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Alberto Buela - O Sentido Profundo da Identidade

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por Alberto Buela



Uma agradável coincidência se produziu nestes dias quando logo após ter participado no México de um congresso sobre as identidades, recebemos uma das melhores e mais atualizadas revistas de pensamento como a francesa Krisis, que trata do tema da identidade.

Isso nos move a voltar a escrever ou reescrever aquilo que temos sustentado há anos para que, não já no âmbito reduzido de um congresso, mas no mega-âmbito da internet, o ponhamos para o conhecimento de muitos.

Em realidade, a pergunta pela identidade tem que ser mais precisamente a pergunta pelas identidades. Assim, se do mundo não há uma única versão ou visão, mas várias segundo as ecúmenes culturais que o constituem, é lógico que estejamos obrigados a nos perguntarmos pelas identidades e não pela identidade.

Esclarecido isso, quando falamos de identidade, falamos de identidades. Isto é, que cada um aplique a sua.

Não devemos buscar a identidade de homens e povos na repetição mecânica do idêntico. Esta radica na repetição ritual de modos, maneiras e costumes como o fazem os centros tradicionalistas quando desfilam ou se vestem de camponeses (charros no México, gauchos na Argentina, tiroleses na Itália ou bretões na França). Isso não é ruim, mas se está limitado à ordem da repetição. A questão é que a repetição tem muito de arremedo, de cópia mal feita.

A repetição é chamada pelos latinos idem, o igual, enquanto que a identidade devemos buscá-la no ipse, na busca de si mesmo.

As identidades dos povos e dos homens não são algo pétreo, algo consolidado de uma vez e para sempre, mas que se conquista, se alcança através da reencarnação de valores de geração em geração que formam parte de cada uma de suas tradições. As identidades são um fazer-se quotidiano.

O que é a tradição? Não é juntar coisas velhas, mas a transmissão de valores, de coisas valiosas de uma geração para a outra. O substancial é o que se transmite como valores, o acidental é a forma ou maneira como esses valores se expressam.

A tradição se funda em valores e vivências. Estas últimas são as experiências histórico-políticas de um povo ou de um indivíduo ao longo de sua vida, enquanto que os valores são, como dissemos, os atos ou produtos transformados em valiosos, porque neles se encarnou um valor. Assim, a América Ibérica possui vivências que lhes são comuns como suas lutas pela emancipação onde o anglo-americano é vivido como o inimigo e onde a liberdade é seu ideal a conquistar ou valor máximo a realizar.

Para entender a identidade temos que partir do ipse, do ser si mesmos. E como somos nós mesmos? Quando preferimos a nós mesmos, quando não imitamos. Perón dizia: "Não sejamos um espelho opaco que imita e imita mal". A imitação é o que tem tilintado em toda a intelligentsia cultural iberoamericana que pensa assim: vamos ver o que está na moda, traduzimos, apresentamos, trazemos e adotamos.


Este é o passo prévio: erradicar o arremedo, o ser um espelho opaco, a má imitação. Preferir a si mesmo é dizer: vou preferir os valores que fazem minha tradição cultural que se expressa bem em uma língua, que é a língua que eu falo. A preferência de nós mesmos nasce do ato primordial pelo qual privilegiamos o nós aos outros.


Isso não quer dizer que reneguemos ao outro, vamos vê-lo em seguida, mas que o ato primordial do acesso à identidade é um ato de preferência, que como ato valorativo, prefere uns valores e pretere outros.

Mas a identidade não se esgota na preferência de nós mesmos, este é o primeiro passo de acesso a ela.

Ainda que nós pensemos e nos preferimos formando parte de tal ou qual ecúmene cultural, de tal ou qual identidade, isso é um ato subjetivo que tem o valor da convicção pessoal, mas nada mais. É necessário, então, introduzir a categoria de reconhecimento, que só se consegue se "o outro" me reconhece como tal. Por isso os velhos crioulos nos ensinavam: "nunca digas que és gaucho, espera que os outros te digam".

O outro ou os outros desempenham aqui, neste segundo momento, um papel fundamental pos é ele ou eles quem produz o que a fenomenologia chama de verificação intersubjetiva, pela qual sabemos que uma coisa é o que é, e não um simples produto de nossos desejos ou de nossa imaginação.

Agora, dado que a preferência de si mesmo é o ato primordial na busca do ipse, alguns autores distraídos como André Lalande sustentaram que "le principe d'identité déclare la superiorité du même sur l'autre", quando em realidade o que estabelece o princípio da identidade através da preferência de si mesmo é a diferença, a distinção de um com o outro, do si mesmo com o outro de si, e não a superioridade de um sobre o outro.

Grande parte das taras de nossa sociedade radicam na não-distinção entre igualdade e diferença.

Os homens são iguais em dignidade, mas naturalmente desiguais por estarem dotados de diferentes talentos e características. Isto foi tratado pela filosofia desde sempre apelando à noção de analogia que foi definida como parte idem, parte diversa.

Se colocamos a ênfase na igualdade caímos no igualitarismo, que é uma das tantas construções ideológicas da modernidade e se colocamos a ênfase na desigualdade, caímos em um nominalismo como o de Ockam, que nos leva ao erro do univocismo.

Certamente, nós na vida prática política, nos aproximamos a remarcar as diferenças acima da uniformidade de mundo do pensamento politicamente correto. O enfrentamento com a homogeneização do homem e sua cultura não tem que nos fazer cair na dissolução do homem e sua cultura. Assim, rechaçamos tanto a definição da identidade como "a de todos por igual", como a de que "cada um faça e se sinta como quiser".

A partir da teologia, os homens somos iguais em dignidade enquanto filhos de Deus. Cristo veio redimir a todos os homens, não a alguns sim e outros não. Esta igualdade de direitos não tem como, nem pode se confundir com o igualitarismo promovido pela modernidade em geral e pela Revolução Francesa em particlar. Nem atribuir a culpa do igualitarismo moderno ao cristianismo, porque isso é pôr a carroça na frente do cavalo.

Todo homem é um animal rationale. A desigualdade dos homens se dá, basicamente, em seus atos e ações, em suas escolhas e postergações, em seus valores e desvalores. O mundo não é um universo, mas sim um pluriverso onde convivem várias ecúmenes culturais: a iberoamericana, a anglo-saxã, a eslava, etc.

A desigualdade, ou melhor, as desigualdades culturais são a raiz da diferença, e esta diferença é a que nos faz ser "si mesmo", a que nos dá a identidade de ser e existir no mundo. Tanto a título individual ou como nações que, como afirma o grande professor espanhol Dalmacio Negro Pavón, são a melhor e mais sã invenção política da modernidade. Quando a querida Bolívia nos fala de um Estado plurinacional com 36 nações (que não inclue aos crioulos, que são a maioria) produz um sem sentido, um desatino.

As diferenças, do latim differre, ir por outro caminho, buscam a caracterização em seu ser, de um algo qualquer que seja. Enquanto que as distinções estão vinculadas com a separação, com a discriminação (perdão por semelhante palarvinha) de uma coisa em relação a outra.

Quando nós afirmamos que hoje o grande inimigo das identidades é a proposta do one World, de mundo uno com suas ideias de homogeneização cultural sob um único modelo, a do deus capitalista do livre-mercado, o da sociedade de consumo que possui milhares de meios, mas que confunde os fins, a do homo oeconomicus dolaris, o que estamos fazendo é dando-nos conta de que na conformação de nossas diversas identidades tomou primazia a visão e versão "do outro", a da ecúmene anglo-saxã, com os EUA à cabeça.

É que a identidade não é uma ideia complexa, como sustentam alguns autores, mas que o que é complexo é seu acesso. Pois, primeiro é a afirmação subjetiva do que somos, depois o enraizamento em uma tradição nacional, com a atualização de valores, para finalmente buscar o reconhecimento do outro.

E é neste último ponto que surge a verdadeira complexidade para a conquista de uma verdadeira identidade. Alguns autores, quando chegam a este ponto, caem na inocente atitude de falar de "construção dialógica da identidade", quando em realidade não existe tal diálogo, pois o diálogo autêntico só se dá entre amigos, isto é: com o outro de si mesmo. Porque só com o amigo se dá o trato em igualdade, Aristóteles dixit.

Se buscamos a identidade no diálogo entre ecúmenes diferentes, o que conseguimos é pôr em marcha o mecanismo de dominação já assinalado por Hegel na dialética do amo e do escravo.

A identidade nesta instância há de ser buscada na explicitação da relação dialética com o outro, evitando cair na colonização cultural, hoje entendida como americanização pelos europeus.

Não podemos, filosoficamente falando, conformar nossa identidade mais genuína em diálogo com os outros, mas em tensão dialética com eles, do contrário seremos dominados e terminaremos perdendo nossa identidade.


Nicola Denzey - O que é Gnosticismo? Uma crítica ao livro de Karen L. King

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por Nicola Denzey



Um leitor despreparado pode pegar What is Gnosticism? esperando um texto introdutório ou um estudo definitivo da natureza e das origens do gnosticismo. Esse livro, no entanto, escrito por uma das maiores eruditas em cristianismo primitivo, não deve ser confundido com uma introdução. Em primeiro lugar, ele nunca discorre sobre o que é gnosticismo. De uma maneira subversiva -tendo em conta o título do livro- King afirma que “gnosticismo” existe somente como uma reificação, um construto terminológico derivado basicamente de um discurso cristão primitivo sobre ortodoxia e heresia que adquiriu uma existência independente. “Meu propósito com esse livro,” explica King, “é demonstrar como o trabalho acadêmico acerca do gnosticismo no século XX simultaneamente reescreveu, elaborou e apartou-se desse discurso”. O livro supõe que os leitores terão no mínimo familiaridade com as fontes convencionalmente descritas como gnósticas, e também com termos contemporâneos em debate e figuras proeminentes.  Esse “público ideal” de estudantes e pessoas com mente aberta tem muito a ganhar da leitura do livro de King. Contudo, leitores esporádicos irão provavelmente achar a tese de King -como o próprio livro- muito sofisticada e demasiadamente esotérica no âmbito historiográfico.

Karen King lecionou na Occidental College em Los Angeles antes de transferir-se para seu cargo atual como professora de História do Cristianismo Antigo na Harvard University Divinity School. Uma respeitada estudiosa do gnosticismo, o trabalho de King tem se focado frequentemente em questões de gênero (2). What is Gnosticism? é o seu segundo livro lançado em 2003, ao lado de sua nova tradução do Gospel of Mary (Santa Rosa, CA: Polebridge, 2003). Aqui, King identifica o seu interesse primário como “a formação da identidade cristã primitiva e a crítica das atuais categorias acadêmicas de análise”. Este livro esteve em construção por pelo menos vinte anos: tivemos a oportunidade de provar a sua argúcia crítica em uma série de artigos sobre o tema do gnosticismo e formação de identidade que ela apresentou a uma variedade de públicos acadêmicos desde 1993. Porque um livro como o de King é apropriado? Os últimos cinquenta anos testemunharam uma série de mudanças nos paradigmas da academia que exigiram a revisão e a rearticulação da nossa disciplina. A primeira das mudanças historiográfica e hermenêutica que King relata é o surgimento da  Religionsgeschichtliche Schule como distinta da teologia em seu interesse, foco, cânone fixo, e o seu superssesionismo cristão implícito. A segunda mudança foi iniciada pela descoberta dos arquivos -contendo textos cristãos- de Nag Hammadi em 1945 no Egito, até então desconhecidos. Porque antes de 1945 os estudiosos possuíam um número muito limitado de fontes primárias que cristãos defensores das principais correntes nomearam “gnósticas”, os tratados de Nag Hammadi tiveram um impacto profundo em nossa compreensão do cristianismo primitivo como uma religião profusamente diversa em doutrina e práxis. A terceira e mais recente mudança tem sido a reavaliação da Escola da História das Religiões por acadêmicos pós-modernos e pós-colonialistas, que levaram em conta a sua orientação colonialista e orientalista explícita. Por essas três razões, o trabalho de gerações de estudiosos do gnosticismo - foi construído sob um número limitado de fontes primárias e os polêmicos escritos de alguns poucos heresiólogos cristãos – precisavam ser reconsiderados. Na maioria dos casos, esse exame iria exigir uma revisão substancial.

O escopo do livro de King é ambicioso, mas é necessário que o seja. Ela reconhece que é impossível abordar o problema conceitual e de definição do gnosticismo sem atacar o problema conceitual e de definição de “heresia”, que aborda a questão do discurso da ortodoxia no cristianismo. Ela destaca, “...uma discussão acerca do discurso de ortodoxia e heresia precisa incluir polêmicas focadas nos pagãos e judeus também”. King dedica o oitavo capítulo do livro a uma crítica e avaliação do “discurso de ortodoxia e heresia” em fontes antigas, no trabalho de estudiosos do começo do século XX, e em estudos mais contemporâneos. O livro discorre sobre o processo de formação primitiva da identidade cristã como um todo, com resultados convincentes e incisivos. É revigorante ler uma abordagem que não marginaliza nem o judaísmo e nem o paganismo, ou que coloca o cristianismo em relevo em relação a opções religiosas “insuficientes” no mundo antigo.

Em seu primeiro capítulo, “Porque o gnosticismo é tão difícil de definir?” King descreve resumidamente duas amplas abordagens acadêmicas acerca do gnosticismo, uma genealógica e outra tipológica. A primeira abordagem localiza a origem e o desenvolvimento do gnosticismo ao longo do tempo ao analisá-lo e compará-lo, por um lado, com as religiões orientais, e por outro lado, com o “cristianismo” (isto é, a ortodoxia). A segunda abordagem se desdobra a partir de análises fenomenológicas principalmente de materiais literários para desenvolver um conjunto de termos, características e tendências coerentes e definitivos. As duas abordagens -King enfatiza- acabaram se extraviando consideravelmente; o mais significativo, a descoberta dos textos de Nag Hammadi, rendeu análises genealógicas e tipológicas na maioria das vezes irrelevantes. Foi central também o problema da relação conturbada entre gnosticismo e cristianismo como um todo. King observa, “o problema de definir o gnosticismo foi e continua sendo em primeiro lugar um aspecto do projeto contínuo de definir e manter um cristianismo normativo”. Nas palavras finais do capítulo, King esclarece a tarefa que está adiante na continuação do livro:

“Meu propósito [...] é considerar de que maneira o discurso de ortodoxia e heresia dos antigos cristãos e suas polêmicas está entrelaçado com os estudos acadêmicos acerca do gnosticismo no século XX com o intuito de demonstrar onde e como esse envolvimento distorceu nossa análise dos textos antigos. Está em discussão não apenas a capacidade de escrever uma história mais exata do cristianismo antigo em todos os seus aspectos multiformes, mas também a nossa capacidade para engajar-se na crítica da política antiga que versava sobre as diferenças religiosas ao invés de reproduzir suas estratégias e resultados inadvertidamente.”

Na sequência, o capítulo dois, “Gnosticismo como heresia”, está focado na “consolidação retórica” da ampla variedade de opções religiosas disponíveis para os indivíduos no mundo antigo em três grupos reconhecíveis, mutuamente exclusivos e facilmente definidos: judeus, cristãos e pagãos. O que estava em questão, observa King, era o discurso de diferença e igualdade que era crucial para a construção da identidade cristã. Com o objetivo de excluir aqueles cristãos a quem os membros de uma ortodoxia nascente se opunham, os membros desse grupo precisavam fazer com que seus concorrentes parecessem estrangeiros; certas diferenças práticas e doutrinais precisavam ser fabricadas, da mesma forma que diferenças reais precisavam ser exageradas. Como parte da estratégia de distinção, as similaridades -fossem entre cristãos e judeus, cristãos e pagãos, ou diferentes professores cristãos- eram suprimidas ou maliciosamente distorcidas. Alguns cristãos foram tão bem-sucedidos nessa tarefa, aponta King, que até agora os termos “heresia” e “ortodoxia” implicam somente diferença, e não similaridade. Esses dois termos são melhor entendidos como a consequência de um processo avaliativo que buscava “articular o significado de si silenciando e excluindo outros membros do grupo simultaneamente”. King recorre aos exemplos de Prescrição Contra os Hereges de Tertuliano e Contra as Heresias de Irineu em um conjunto de atitudes que ela categoriza como “antissincretismo”. Esse discurso funcionou para definir e defender limites e para contribuir à “narrativa central” do declínio cristão de um período prístino até as divisões doutrinais do segundo século e nos períodos sequentes.

Os capítulos três e quatro são explicitamente historiográficos, à medida que King trabalha com figuras importantes no pensamento religioso e movimentos relacionados do começo do século XX. O capítulo três investiga Adolf Von Harnack, o capítulo quatro, o início da Religionsgeschichtliche Schule. Talvez seja esse o capítulo mais importante escrito por King para os leitores modernos, aqui a autora fornece sínteses e análises inteligentes e úteis acerca de trabalhos que são notoriamente impenetráveis e normalmente encontrados apenas no idioma alemão original. Essa extensa investigação da historiografia do início do século XX é central para que King prove a sua tese: a academia moderna serviu apenas para reescrever um discurso de ortodoxia e heresia estabelecido por certos cristãos dos séculos dois e três. King destaca que, como teólogo e pesquisador, Harnack compreendia perfeitamente as múltiplas formas do cristianismo antigo, mas como os seus antecessores, Irineu e Tertuliano, ele empregou o termo “gnosticismo” como uma ferramenta retórica para produzir uma visão normativa do cristianismo.

O capítulo cinco, “gnosticismo reconsiderado”, é dedicado a uma discussão de Walter Bauer -particularmente o seu estudo notório: Ortodoxia e Heresia no Cristianismo Primitivo- e ao livro de Hans Jonas Gnosis und Spätantike Geist. King retrata Bauer como um inovador, o primeiro a desenvolver um modelo alternativo da historiografia cristã, longe da narrativa central do supersessionismo cristão. Jonas, de maneira muito diferente, foi importante por sua redução tipológica do gnosticismo em uma série de qualidades ou características. A sua obra Gnostic experience of self and World definiu o gnosticismo como um movimento religioso transhistórico caracterizado primeiramente pela experiência da alienação existencial e abnegação do mundo. Portanto, Jonas propôs sete qualidades do gnosticismo: gnose, caráter dinâmico (crise patomórfica), caráter mitológico, dualismo, impiedade, artificialidade, e local histórico único. King discute cada uma dessas qualidades por vez, apontando os seus problemas e falhas. O capítulo termina com uma discussão do estudioso Carsten Colpe, membro da  Religionsgeschichtliche Schule. Não está claro qual a ligação entre essas três figuras, contudo, de uma maneira geral, a divisão desse capítulo -como em todo o livro- parece mais arbitrária do que ordenada em uma única narrativa central.

Os últimos três capítulos do livro discutem estudos acadêmicos acerca do gnosticismo após a descoberta dos textos de Nag Hammadi. Nesse capítulo, King discute as próprias fontes, particularmente a maneira pela qual elas desafiam os sistemas de classificação e caracterização estabelecidos por estudiosos de gerações anteriores. De fato, King é sagaz ao destacar que até mesmo as tipologias gnósticas escritas após a descoberta dos textos, tais como “setianismo” e “valentianismo” se apresentam limitadas no intento de parecerem coerentes quando aplicadas à vasta diversidade doutrinária que encontramos nos quarenta e seis textos de Nag Hammadi. Como aponta King, “o problema com a variedade não é a própria variedade; o problema é a tentativa de forçar objetos irregulares e multiformes em formas quadradas com definições elementares”. Esses capítulos são particularmente agradáveis porque eles se distanciam da historiografia das fontes antigas; entretanto, é difícil avaliar como um leitor que não seja versado nos textos de Nag Hammadi conseguiria acompanhar os resumos e os argumentos de King.

Os leitores provavelmente irão comparar What is Gnosticism?ao livro de Michael Williams,   Rethinking "Gnosticism": Arguments for Dismantling a Dubious Category. O trabalho intrigante de Williams -que rapidamente tornou-se uma leitura obrigatória para todos os estudiosos sérios de gnosticismo antigo- argumenta em favor do abandono total do termo “gnosticismo”, justificando que é melhor não imaginar que algo como o “gnosticismo” ou a “a religião gnóstica” algum dia tenha existido. Ao invés, Williams sugere que estejamos cientes dos diversos grupos e indivíduos que originalmente englobavam o cristianismo antes de serem marginalizados por uma ortodoxia emergente. É óbvio que Rethinking Gnosticism e What is Gnosticism? foram escritos na mesma época e que King e Williams mantinham diálogos constantes um com o outro. Eles dirigem-se um ao outro de maneira cuidadosa e elegante nos prefácios dos seus livros: é evidente que o contato entre ambos deu origem a uma relação de respeito e amizade e não de competição. Ainda assim, considerando que Rethinking Gnosticism foi o primeiro a aparecer, o problema para King é se What is Gnosticism? avança suficientemente na abordagem que os dois estudiosos levam à frente, e se ela consegue tratar do tema de uma maneira que complemente, ao invés de competir com o livro de Williams. Como uma resposta parcial a essa questão, é importante perceber que para todas as similaridades e teses virtualmente iguais, são dois livros muito diferentes, porque os autores trabalham de maneira muito diferente. Williams aplica categorias tipológicas previamente estabelecidas do “gnosticismo” aos materiais antigos, destacando assim as suas insuficiências para o entendimento dos materiais antigos em seus próprios termos. King constrói cuidadosamente uma espécie de genealogia historiográfica e mantém seu foco consistentemente nos estudos acadêmicos do último século, relatando a história de como a reificação do “gnosticismo” aconteceu em meio aos interesses e movimentos da vasta matriz social e intelectual do século XX. Os livros diferem também em suas sugestões para trabalhos futuros. No lugar de “gnosticismo”, Williams sugere que seja adotado, quando apropriado, o termo específico “demiurgia bíblica”. Embora King aponte acertadamente os problemas com esse termo: ele é difícil e desajeitado, e persiste nos mesmos processos de nomear e categorizar, e por isso deve ser abandonado por completo. E ainda, ela dedica mais tempo para criticar estudiosos e pesquisas acadêmicas do que resolver o problema essencial proposto pelo livro. Há futuro para o  estudo do gnosticismo sem “gnosticismo”? Ela levanta essa questão em seu oitavo e último capítulo, mas conclui de maneira reflexiva: “Não é tão importante eliminar o termo per se, mas reconhecer e corrigir as formas pelas quais reescrever os discursos de ortodoxia e heresia podem distorcer a nossa leitura e reconstrução de religiões antigas.”

Por fim, o leitor de What is Gnosticism? questiona-se porque King trabalha de maneira persistente a genealogia historiográfica do gnosticismo. O que está em discussão, mais precisamente? E qual o seu êxito em transmitir isso?King afirma em princípio que irá reexaminar como o estudo acadêmico do século XX acerca do gnosticismo reescreveu um discurso do século dois, mas a maioria de seus exemplos detalhados (Harnack, Jonas, Bousset, Reitzenstein, Bauer) encontra-se na primeira metade do século. O único estudioso contemporâneo do gnosticismo discutido detalhadamente é Michael Williams, deixando a impressão de que não há mais ninguém realizando pesquisas similares à de King. Considerando o que o leitor é levado a concluir a respeito do “estágio” no qual o debate se encontra, a autora deixa a impressão de que a sua iniciativa é a única existente em defesa de uma nova hermenêutica. Isso não é inteiramente verdadeiro, porque o trabalho de King não apresenta novos materiais da mesma forma que apresenta, para um grande público, a abordagem metodológica já bem estabelecida na academia entre especialistas nos textos de Nag Hammadi e cristianismo primitivo. No entanto, é possível que King acredite que há apenas alguns estudiosos que tomam essa abordagem como correta, e esse livro evidentemente não é escrito para eles.

Enquanto esse livro derruba as estruturas sob as quais se erigiram muitos estudos anteriores do gnosticismo, King não avança no sentido de propor uma nova direção, embora o seu capítulo final e “Nota sobre Metodologia” parecem sugerir que tal direção encontra-se na adoção de estratégias de leitura pós-modernas e pós-coloniais. Seria esclarecedor e estimulante ver exemplos dessa nova hermenêutica aplicada aos escritos de Nag Hammadi de maneira individual ou em sua totalidade, e quanto a isso é possível afirmar que há de fato artigos e monografias recentes a serem considerados, embora até então ignorados. Pelo fato de que a autora não discorre sobre o trabalho de estudiosos modernos do cristianismo primitivo que igualmente adotam o Neo-historicismo, ela ignora as experiências anteriores colocando suas próprias convicções metodológicas em grande destaque frente a um século de estudos acadêmicos falhos. Ainda assim, certamente há espaço para o livro de King, considerando que se trata do único estudo acadêmico completo no âmbito do gnosticismo. Os leitores podem acompanhar o raciocínio de uma história escrita com maestria acerca de uma disciplina acadêmica relativamente nova, agora enfrentando o desafio da modernidade.

Notas:



2.  1 - N. do Tradutor: os estudos de Karen L. King nesse âmbito tratam-se de revisões e novas interpretações do papel desempenhado pela mulher no cristianismo antigo e em outras religiões da antiguidade e acerca da importância e o papel do gênero nas sociedades antigas onde essas religiões floresceram.

Aleksandr Dugin - São Patrício e o Logos Irlandês

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por Aleksandr Dugin



A Era de São Patrício

No quinto período da era dos Gaels, os irlandeses realçaram a era de São Patrício, que cristianizou a Irlanda no século V. Antes dele, a crônica falava do bispo Palladius, que veio à Irlanda em 431, enviado por Roma, mas sua imagem foi tradicionalmente fundida à de São Patrício.

Os celtas não consideraram a cristianização como uma mudança identitária radical e revolucionária, dado que a peculiaridade da cristandade irlandesa e da Igreja dos celtas, de modo geral, comparada a muitas outras sociedades europeias, não era estritamente oposta ao mito pré-cristão local, mas o incluía leve e suavemente em sua cultura espiritual. Assim, muitos druidas e personagens mitológicos foram cristianizados, e os santos e discípulos cristãos tornaram-se uma nova versão dos druidas. A cristandade irlandesa é um exemplo único da integração harmônica de tradições pré-cristãs à nova religião.

São Patrício foi um católico britânico que se tornou a principal figura da extensão do cristianismo. Junto com São Columba e Santa Brígida, ele é um dos santos padroeiros da Irlanda e o fundador da Igreja Irlandesa. Às vezes São Patrício é chamado de “o apóstolo da Irlanda”. Quando era jovem, piratas irlandeses o sequestraram, então ele teve de passar muitos anos na Irlanda. Ao retornar à Britânia, tornou-se um padre e voltou à Irlanda como missionário. De acordo com a velha tradição, São Germano de Auxerre consagrou-o bispo.

São Patrício, à época, era um estranho para a sociedade irlandesa, uma vez que era bretão, promovia uma nova religião, e se recusava a se integrar à sociedade contemporânea. Seus sermões atraíam muitas pessoas, incluindo pessoas nobres e ricas. Ele estava consagrando padres, construindo igrejas, e expandindo o cristianismo ardorosamente. Para o povo irlandês, a criação de conventos de freiras era incomum, mas São Patrício foi capaz de cristianizar muitas (por vezes muito influentes) mulheres; os hagiógrafos notaram a popularidade de seu sermão de Cristo entre as mulheres. Ao mesmo tempo, seus oponentes eram os druidas, que consideravam a nova religião como uma ameaça à sua fé.

Guyonvarc’h e Le Roux justamente apontaram que:

"Antes da chegada de São Patrício, a Irlanda era pagã, mas depois tornou-se cristã: a evangelização, não importando os detalhes, foi a proeza de um grande missionário. É evidente que este mistério não é explicado somente pela personalidade do fundador da Irlanda cristã e histórica, que foi uma das maiores figuras míticas dos últimos anos da Irlanda pré-cristã". 

São Patrício fundou o centro da missão da igreja no norte da Irlanda (Ulster) em Armagh; um local que era sagrado para os gaélicos, onde a deusa Macha havia sido consagrada (ela dava o nome a tal lugar: “a altura de Macha”, Ard Mhacha). Junto com duas outras deusas, Badb e Morrígan (Anand), ela foi incluída na tríade das antigas deusas célticas (Morrigan). As três deusas eram responsáveis pela soberania, guerras, mortes, e eventos trágicos (má sorte, desastres) da Segunda Função Indo-Europeia, com uma ênfase no lado negativo.

Armagh tornou-se a cátedra arquiepiscopal para todo o cristianismo céltico, influenciando paróquias, dioceses e monastérios.

Guyoncarc’h e Le Roux afirmaram que com seu sermão de cristandade, São Patrício conseguiu evitar um severo confronto entre novas e antigas religiões.

No século VIII, São Patrício, como disse seu principal hagiógrafo Muirchu, veio a Tara e primeiramente cristianizou o Rei Laoghaire, suas filhas, seus guerreiros, e seus druidas. Os hagiógrafos escreveram que isso ocorreu em 432 d.C. Muitos anos depois, toda a Irlanda foi cristianizada sem confrontações e mártires.

Parece mais uma lenda do que história, já que o rei pediu pelo milagre da cristianização, e São Patrício obedeceu. Ele fez Cú Chulainn aparecer em seu carro de guerra. Ele louvou a felicidade extasiante do Céu e alertou sobre os tormentos do Inferno. São Patrício então revisou todas as leis irlandesas para trazê-las ao encontro do cristianismo. Os Filis perderam seu direito a ler e utilizar seus feitiços pagãos mais perigosos, e os sacrifícios dos druidas foram banidos. 

Comparada a outras nações, a cristianização irlandesa foi leve e suave e, na verdade, como Guyonvarc’h e Le Roux observam, se São Patrício e outros pregadores cristãos (especialmente São Columba) não tivessem defendido sua nova verdade espiritualmente, eles não teriam logrado uma campanha tão eficiente.

Durante sua missão apostólica, Patrício mostrou-se um combatente ativo pelo cristianismo, e para uma convicção mais eficiente ele matou, queimou, amaldiçoou, e derrotou seus adversários com magia mais poderosa que seus feitiços. Era consideravelmente normal, como seu druida era Cristo, e ele é mais poderoso que os demais. As disputas de Patrício e Columba com os druidas foram mais mágicas do que teológicas. Um druida de Tara fez com que nevasse aos montes, mas era incapaz de derreter a neve. O outro produziu repentinamente uma escuridão impenetrável. E Patrício fez o sol retornar com uma palavra. Em uma das lendas mitológicas cristãs, um santo veio para lutar com Aengus, o filho de Dagda. 

Toda a estrutura da cristandade celta está cheia de similaridades com antigas tradições. Assim, o principal e mais antigo festival céltico, Samhain, quando se abriram as ‘portas’ para o Outro Mundo (sídhe), possibilitou-se que diferentes milagres o levassem ao Halloween, dando a ele um contexto simbólico especial.

O famoso trevo de três folhas, que, de acordo com a lenda, era usado por São Patrício para explanar os dogmas da Trindade, costumavam ser um símbolo druida que representava a tríade da deusa da guerra.

A  cristandade  irlandesa  tornou-se  o  centro  do  desenvolvimento  espiritual  não
 
somente para a Britânia, mas também para a Europa Ocidental, e a vida monástica irlandesa era uma das mais notáveis e místicas na Europa. E é bastante simbólico que o primeiro filósofo medieval francês Johannes Scot Eriugena tenha sido um irlandês.

As histórias medievais da Távola Redonda, Rei Arthur, e o Santo Graal eram a combinação das antigas lendas sagradas celtas e tradições cristãs.

É significativo que o povo irlandês tenha se mantido fiel ao catolicismo em sua forma irlandesa, rejeitando o puritanismo, assim como o anglicanismo em todos os períodos de sua história. Esta identidade católico-irlandesa deveria ser considerada dentro do contexto de uma síntese profunda dado que sua complexidade difere das tradições católicas da Espanha, de Portugal, da Itália, da Áustria, da Alemanha, da Polônia e da França.

Tuan mac Cairill, Fintan mac Bóchra e Cisnes Cristianizados

Como um exemplo do catolicismo celta, podemos citar a história de Tuan mac Cairill. Ele unificou as diferentes camadas da sacralidade irlandesa: do tempo e do espaço.

Um dos maiores seguidores de São Patrício foi Finnian de Moville (495 d.C. — 589 d.C), que atravessou a Irlanda em suas viagens espalhando o cristianismo. Certo dia ele conheceu um homem que era reconhecido como o maior na história da Irlanda. Era o padre com quem Finnian conversava após ambos terem reunido a missa dominical. Ele se apresentou como: “Eu sou o homem de Ulster. Eu sou Tuan, filho de Cairell, filho de Muredach Redneck, e estas são as terras hereditárias de meu pai. Sou de fato Tuan, o filho de Starn, o filho de Sera, que foi irmão de Partholon, este foi meu nome de outrora a princípio”. Isto significa que o herói deveria ter cerca de 2000 anos de idade no momento da história, uma vez que o período de Partholon foi o primeiro na história da Irlanda. Então, ele disse que viveu 100 anos como um homem na era de Partholon, 20 anos — como um javali selvagem no Período Nemediano, 80 anos — como um cervo no período Fir, 100 anos — como um gavião-preto na era de Tuatha Dé Danann, 100 anos — como um salmão debaixo d’água, e então 100 anos como um homem e conheceu Finnian. Portanto, ele se recordava de todos os eventos históricos, por tê-los testemunhado.

Tuan explica seu último renascimento de salmão a homem:

"Certa vez, no entanto, quando Deus, meu auxílio, julgou que era a hora, e quando as bestas me perseguiam, e cada pescador em cada piscina me conhecia, o pescador de Cairell, o rei daquela terra, capturou-me e levou-me com ele à mulher de Cairell, que tinha um desejo por peixe. De fato, eu me lembro; o homem me pôs em uma grelha e me assou. E a rainha me desejou e me comeu ela própria, de modo que eu estava em seu ventre. Novamente, eu me recordo do momento em que estava em seu ventre, e o que cada um dizia a ela na casa, e o que era feito na Irlanda durante aquele tempo. Também me recordo de quando a fala chegou a mim, como chega a qualquer homem, e eu sabia tudo o que ocorria na Irlanda, eu era um vidente; e um nome foi-me atribuído — a saber, Tuan, filho de Cairell. Logo a seguir veio Patrício com a fé para a Irlanda. Ali, eu já estava em idade avançada; e fui batizado, e sozinho acreditava no Rei de todas as coisas com seus elementos".

Essa história é uma entre muitas que mostra a relação entre os cristãos irlandeses na direção da tradição pré-cristã. É significativo que São Finnian trate Tuan como um senior, e que o diálogo entre eles se dá como o diálogo entre dois druidas: um (Finnian) pergunta ao outro (Tuan).

A história de Tuan mac Cairill é similar à do bardo Taliesin, recontando seus nascimentos e transformações através da história humana. Tuan mac Cairill é a versão irlandesa da essência imortal, transformando de um estado ao outro, mudando de corpo e tempo, porém mantendo a semântica da história da nação. Essa conexão interna à estrutura sagrada, incluindo todas as mudanças temporais: passado, presente e futuro, neste sentido, é o paradigma da cultura dos druidas, baseada não somente nas memórias dos eventos, mas na compreensão da lógica geral de eventos nacionais. A invariabilidade desse eixo compõe as condições para a continuidade da identidade cultural: Tuan mac Cairill é o nome de alguém que faz de um irlandês um irlandês, assim como Taliesin é alguém que faz de um galês um galês. O contexto cristão dessa lenda é crucial, na verdade, sendo um salmão, um javali selvagem, um gavião, um cervo, e um ser humano; a criatura finalmente se torna um anacoreta, um monge, reunindo uma missa dominical com seguidores de São Patrício. Não se trata apenas de uma adaptação do dasein irlandês na tradição cristã; é um estabelecimento estrito de proporção que define a relação entre a nova religião, sob total aceitação de seus dogmas, e a antiga — o elemento semântico seguinte, superior.

Guyonvarc’h e Le Roux prestam atenção ao simbolismo de criaturas, em que Tuan mac Cairill se transformou, e as associam com o período relevante da história da Irlanda.

Na era de Partholón — Tuan mac Cairill é um humano (Druida); 
Na era de Nemedia — um cervo;
Na era dos Fir Bolg — um javali selvagem; 
Na era dos Tuatha Dé Danann — um gavião; 
Na era dos Gaels — um salmão;
Na era de São Patrício — um monge, um padre.

Portanto, existe um ciclo completo indo além do ser humano (da visão sagrada do padre) e retornando ao mesmo estado, mas numa forma atualizada do cristão. Tal transformação possui um caráter escatológico: o objetivo da metamorfose humana se torna uma incarnação humana na era de São Patrício, a cristianização e a salvação.

Outra personagem bastante similar é Fintan mac Bóchra, por vezes referido como marido de Cessair, a primeira mulher a navegar para a Irlanda. Na história do Manor de Tara, ele diz que testemunhou a inundação sofrida por sua mulher e todos os outros primeiros colonos, a que ele sobreviveu transformando-se em um salmão. Mais tarde, ele foi uma águia e um gavião, e então um homem e conselheiro de diferentes reis da Irlanda de muitas gerações (de Partholón a Mil). Particularmente, ele participou em Cath Maige Tuired. Apenas um gavião solitário havia vivido tanto quanto ele, que Fintan mac Bóchra mais tarde conheceu e com quem costumava conversar sobre suas memórias. Fintan e o gavião decidiram deixar o mundo dos homens no século V após a cristianização da Irlanda, ambos sendo verdadeiros e fiéis cristãos.

Outra história interessante é parte do ciclo mitológico. É sobre três filhos e uma filha (Aodh e os gêmeos, Fiachra e Conn, Finnguala) do Rei Lir, que viviam na era de Tuatha Dé Danann e eram pessoas daquela geração. Três filhos e uma filha, nascidos a Rei Lir por Aoibh, sua primeira esposa que era bela e amigável. Porém, quando a mãe morreu, o rei casou-se com Ayofe, irmã daquela, que via com maus olhos os seus sobrinhos e sobrinha pela beleza e pelo amor que tinham um pelo outro e por seu pai. Ela foi incapaz de matá-las, mas usou sua magia para transformar as crianças em quatro cisnes brancos, prometendo trazê-las de volta ao normal quando a Rainha do Sul e o Rei do Norte se casassem e quando o monge os abençoasse. Ayofe foi para todo o sempre transformada em um demônio raivoso dos ares pelo rei. Por trezentos anos os cisnes viveram no mesmo lago, trezentos anos no mar entre a Irlanda e a Escócia, e trezentos anos rondando a ilha de Inis Gluaire. Os cisnes possuíam a voz mais bela do mundo, e os irlandeses admiraram suas canções por muitos séculos.

Nesse momento, São Patrício veio à Irlanda, e assim, os primeiros monges apareceram. Um monge de Inis Gluaire, adepto de São Patrício, chamado MacCaomhog, trouxe os cisnes para dentro da igreja. Os cisnes gostavam de ouvir as missas e o relógio da igreja. Ele os amarrou uns aos outros com correntes de prata, mas essas correntes não eram para eles um fardo.

Quando as correntes de prata foram quebradas (de acordo com uma versão, logo após o rei deixar o santuário com os cisnes, o sino da igreja toca, libertando-os do feitiço, e com outra —a rainha queria os cisnes para si própria, ordenando então a seu marido Lairgean que atacasse o monastério e os apanhasse), os cisnes tornaram-se homens velhos (dado que tinham mais de 900 anos de idade), e pediram a MacCaomhog que os batizasse, morrendo logo depois. Foram todos enterrados juntos.

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Aleksandr Dugin - Contra-Iniciação: Comentários Críticos sobre Aspectos da Doutrina de René Guénon

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por Aleksandr Dugin



1 - Comentários Preliminares: A Necessidade de Emendas ao Tradicionalismo

A questão da "contra-iniciação"é a mais obscura e ambígua em todo o pensamento tradicionalista. Talvez isso seja resultado da própria realidade do que os tradicionalistas, seguindo Guénon, chamaram de "contra-iniciação". O significado da contra-iniciação é apresentado no livro "O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos". Em resumo, nós podemos dizer que por contra-iniciação René Guénon compreende a totalidade das organizações secretas possuindo dados esotéricos e iniciáticos, que, porém, dirigem suas atividades e seus esforços para o objetivo que é o exato oposto do propósito da iniciação normal, que é, não alcançar o absoluto, mas uma extinção fatal e dissolução no "reino da quantidade", no crepúsculo externo. Os hierarcas da contra-iniciação, seguindo o esoterismo islâmico, foram chamados por Guénon de "Awliya al-Shaytan", i.e., "santos de Satã". Em sua perspectiva, os representantes da contra-iniciação se encontram por trás de todas as tendências negativas da civilização moderna, e dirigem secretamente o curso dos eventos a caminho da degradação, da materialização e da degeneração espiritual.

Segundo a Tradição, segindo a lógica de processos cíclicos, um movimento ao longo do caminho da degeneração inevitavelmente leva da era de ouro à era de ferro, portanto deve haver algum tipo de força consciente que contribui para este processo, enquanto o poder da verdadeira iniciação e do esoterismo genuíno, ao contrário, interfere de toda maneira com este declínio fatal. O dualismo histórico de Guénon de modo algum afeta a unidade do princípio metafísico, já que ele se relaciona com o campo da manifestação, onde a lei primária é a dualidade. Esta dualidade, que jaz no âmago da manifestação, só é superada quando se vai além do manifesto, na esfera transcendente, dentro do mesmo mundo da dualidade irremovível. Assim, o papel de contra-iniciação é parcialmente justificado, porque ele não está enraizado na tirania, mas na própria necessidade providencial, associada com as leis do universo. Essa parte puramente teórica da doutrina da contra-iniciação, completamente inequívoca desde uma perspectiva lógica, é confirmada por várias doutrinas de tradições sagradas no que concerne o tema de "demônios", "diabos", "espíritos malignos", "anticristo" e daí em diante. Mas tudo se torna muito mais difícil quando é feita uma tentativa de se passar da teoria à prática e nomear exemplos de qualquer organização ou sociedade secreta contra-iniciática em específico. O problema não é apenas este. Antes de esclarecermos essa delicada questão, deve-se considerar cuidadosamente o que René Guénon entendia por "iniciação" e "esoterismo".

Segundo Guénon, a distinção histórica de formas sagradas (religiões, tradições, etc.), é uma consequência de várias qualidades do ambiente histórico e humano projetados por raios não-humanos da Verdade Unificada. Em outras palavras, para ele, todas as tradições, na medida em que se aproximam de seu próprio centro, superam diferenças sectárias e quase se fundem em uma entidade única. Guénon chama isso de "Tradição Primordial". Essa tradição, segundo Guénon, é a essÊncia secreta de todas as religiões. De certa forma, isso é justo.

Um estudo cuidadoso do simbolismo da Tradição, rituais e doutrinas leva à ideia de que todos os ensinamentos sagrados tem um elemento comum, algum paradigma geral, que de certa forma se perde de vista, assim que assume aspectos mais estreitamente dogmáticos e detalhados. Particularmente, nas condições atuais, a tese da "Unidade da Tradição" parece convincente, quando o mundo moderno criou uma civilização construída em contraste radical a tudo que possa ser chamado de Tradição. Em outras palavras, o tradicionalismo integral e seu apelo à Unidade das Tradições é verdadeiro na medida em que o mundo moderno se opõe a todas as formas de civilização baseadas em princípios sagrados. De fato, entre tradições e religiões há muito mais semelhanças do que diferenças quando contrastadas com a civilização moderna plenamente dessacralizada. Essa é uma afirmação óbvia. A única questão é em que medida tal aproximação em face de um inimigo comum é consequência de uma unidade esotérica?

Em outras palavras, são as diferenças entre tradições sagradas apenas o resultado de erros no ambiente espacial em certos pontos no ciclo? Não se dariam por causas mais profundas?

Um bom exemplo da relevância dessa questão pode ser a hesitação de Guénon em reconhecer se o budismo era uma tradição autêntica o não. Guénon primeiro classificou o budismo como estando na categoria das heresias antinomianismo, e posteriormente o admitiu como tradição verdadeira. A questão aqui não é o budismo, mas o fato de que essa incerteza do Guénon demonstra certa arbitrariedade em seu método sempre que se chega a tradições históricas e princípios dogmáticos específicos. Mesmo que Guénon possa estar errado na questão budista (que permaneceu para ele um grau considerável de abstração já que a opinião de seus informantes hindus diferia, tal como todos os tradicionalistas hindus possuem uma orientação fortemente antibudista), é posível que erros similares também possam ocorrer no caso de outras religiões.

Nossa própria pesquisa nos levou à conclusão de que, em pelo menos dois casos, Guénon não avaliou as coisas corretamente.

Em primeiro lugar, quando Guénon negou a dimensão iniciática da Igreja Cristã (ele datou a perda dessa dimensão, que estava presente no Cristianismo original, à era do Primeiro Concílio Ecumênico), aqui ele está claramente na história e filosofia da história exclusivamente do ramo romano (e do desvio protestante posterior). Guénon claramente ignorava a realidade metafísica e iniciática da Ortodoxia, que nas mais fundamentais posições difere radicalmente do Cristianismo Ocidental. Guénon identificava Cristianismo com Catolicismo e equivocadamente transferou as proporções da organização católica, inclusive a natureza místicas dos rituais e a especificidade da teologia, ao todo do Cristianismo em geral, assim fazendo afirmações absolutamente incorretas sobre o tema.

Em segundo lugar, Guénon se apressou para reconhecer a Cabala judaica como esoterismo genuíno, que, segundo sua opinião, deve ser um universalismo distinto que jaz sob todo particularismo. Na verdade, a Cabala tem um grau exotérico que não é inferior (talvez seja até superior) ao do judaísmo talmúdico, que insiste na singularidade étnica dos judeus, na singularidade de seu destino e sua oposição metafísica a todos os outros povos e religiões. Isso está em contradição clara com a definição guenoniana de esoterismo, que deveria estar dominado por princípios de unidade universal e amalgamação de todas as formas espirituais e religiosas no conceito geral. A Cabala, mesmo em seus aspectos mais transcendentes, reivindica não sua unidade, mas um radical e incontornável dualismo étnico metafísico.

Ademais, em termos mais gerais, a avaliação de Guénon sobre alguns povos (gregos, japoneses, alemães, anglo-saxões, eslavos), algumas vezes tão subjetiva e arbitrária (e nessas avaliações, Guénon tende às vezes a basear conclusões na ortodoxia ou heterodoxia de formas tradicionais) lança dúvidas sobre todos os aspectos do tradicionalismo, que lida com a aplicação de considerações teóricas à esfera prática.

2 - A Ausência de uma Contra-Iniciação Universal

As diferenças de formas religiosas pode ser um fator muito mais profundo do que convenções exotéricas e estar enraizadas na própria metafísica. Se a síntese unificadora é realizada de forma bem fácil (ainda que todas as outras tradições sejam interpretadas na perspectiva peculiar exclusivamente a elas) no hinduísmo e no esoterismo islâmico, isso é por causa da especificidade dessas tradições; em outras formas religiosas a situação é um pouco diferente. O hinduísmo e o islamismo permitiram a Guénon construir uma imagem lógica e não-contraditória, mas tudo isso se torna muito menos óbvio se tentarmos aplicar a outras religiões e sua abordagem particular em relação a metafísica.

Para Guénon (e tradicionalistas que o seguem) a situação é: a tradição metafísica unificada constitui a essência do esoterismo universal, o núcleo das tradições ortodoxas. A religião dogmática e outras formas de tradições exotéricas são cascas externas, se ocultando por trás do visível a unidade dos vários conteúdos (esoterismo e iniciação). No polo oposto ao esoterismo universal está localizada a "contra-iniciação", como negação do universalismo e não apenas uma negação de uma forma religiosa ou exotérica particular. Assim, o conceito de "contra-iniciação" não está separado da postulação da unidade de todas as tradições esotéricas.

Mas, como mostramos, fora do contexto esotérico hindu e islâmico, essa lógica não pode ser aceita de forma inequívoca, já que a metafísica não reconhece outras tradições esotéricas com solidariedade frente a outras formas religiosas. Na verdade, a universalidade do sufismo e do hinduísmo não é tão óbvia quando parece. O preço do reconhcimento de outras formas religiosas ortodoxas é uma aprovação da "distorção" e a interpretação de seus dogmas no espírito e letra específicos e peculiares apenas ao esoterismo hindu e sufi. Por exemplo, na abordagem budista à cristologia, Cristo é equiparado a um avatar, o que dentro do esquema de uma doutrina puramente cristã é equivalente à visão "monofisita". O Islã, baseado em um monoteísmo estrito, por outro lado, adere ao esquema cristológico "nestoriano" ("arriano"). Nos dois casos, nega-se a fórmula cristológica ortodoxa, resultando em uma perspectiva metafísica completamente diferente.

Assim, o universalismo proclamado pelos tradicionalistas, na verdade, não é tão total e inequívoco como gostaríamos.

Ademais, o hinduísmo baseia sua própria tradição na fórmula inversa a da tradição iraniana, vindo da mesma fonte. É sabido que mesmo nos nomes de deuses e demônios há uma analogia inversa entre zoroastrismo e hinduísmo. O budismo é considerado pelo hinduísmo como uma heterodoxia (essa visão foi sustentada por muito tempo pelo próprio Guénon). Portanto, estas três tradições indo-europeias orientais não podem concordar uma com a outra e estabelecer sem problemas sua unidade esotérica. De fato, é difícil reconhecer a "verdade esotérica" daqueles que tem seus deuses chamados de "demônios" e vice-versa ("devas" e "asuras" no hinduísmo e no zoroastrismo significam exatamente o oposto, já de início), ou aqueles que negam radicalmente a autoridade da maior fonte sagrada (os budistas negam os "Vedas", as castas e todas as doutrinas básicas do hinduísmo).

No contexto abraâmico, a situação é ainda mais problemática. Mesmo que o Islã reconheça certa legitimidade de tradições ao "povo do Livro" (judaísmo e cristianismo), assumindo a missão de Maomé como a última palavra do "abraamismo", para corrigir todos os erros prévios, nem cristãos ou judeus reconhecem outras versões abraâmicas, não dando a elas qualquer autenticidade, incluindo-as como heresia, mentira e maldade. Por exemplo, no Zohar, a autoridade suprema da Cabala, é fácil ver hostilidade ao islamismo e ao cristianismo a nível metafísico e esotérico, que não é removida, mas alcança um ardor metafísico ainda mais alto. E, da mesma forma, o esoterismo ortodoxo se relaciona de forma tão ruim quanto com o judaísmo (exotérico e esotérico), considerado não apenas como alteridade de formas religiosas estranhas, mas como incorporação do mal e a "tradição" metafísica do Anticristo.

Assim, fora do sufismo e do hinduísmo (cujo universalismo também não é ilimitado), não há esoterismo geral, o que significa que, sob o termo "contra-iniciação", a tradição provavelmente entende aquelas formas sagradas que estão em franco conflito com sua metafísica. Se o mal esotérico, neste caso, são aqueles aspectos negativos que derivam da especificidade ética e doutrinária de uma dada religião, o mal esotérico (contra-iniciação) é, na verdade, uma tradição metafísica diferente, que a contradiz.

Essa questão incrivelmente complicada da contra-iniciação deixa de ser clara e transparente, e se torna bastante confusa.

Do ponto de vista do esoterismo ortodoxo a contra-iniciação é, naturalmente, o judaísmo e a Cabala. Do ponto de vista do esoterismo da "Zohar", é o "goyim", especialmente "os descendentes de Ismael e Esaú" (muçulmanos e cristãos), como "falsa doutrina do demônio Samael", "cavalgando a serpente Lilith". Do ponto de vista do esoterista hindu, o dualismo iraniano está enraizado no fato de que o zoroastrismo idolatra "demônios", "asuras", chamando-os "deuses". O budismo esotérico crê que as doutrinas iniciáticas do hinduísmo são o supremo mal, porque elas só fortalecem o apego dos homens ao samsara, na verdade, mundos divinos superiores, do ponto de vista budista, são ainda mais ilusórios que os mundos humanos (não há sofrimento, apenas distâncias do alcance do nirvana). E dentro da civilização islâmica, os representantes mais radicais do esoterismo manifestacionista, Al-Hallaj, Suhrawardi, etc., foram executados como os piores hereges.

Como se pode, em tal situação, identificar a contra-iniciação universal, traçar suas fontes, reconhecer aquelas forças e organizações que a servem de forma oculta? Se a universalidade do esoterismo (pelo menos em nossa situação cíclica) não é óbvia e comprovada, então como podemos falar na universalidade da "contra-iniciação", que é sua projeção espelhada?

3 - Diferenças religiosas interiores e interreligiosas

Entre os sistemas religiosos tradicionais há profundas contradições que se estendem até a mais elevada metafísica. Este é um lado. Pelo outro lado, essas formas tradicionais não são algo imodificável, elas estão sujeitas a leis cíclicas. Tradições passam por períodos difíceis de incorporações históricas, incluindo o acréscimo de fases naturais de prosperidade e declínio, há até momentos paradoxais, por exemplo, modificações em sua natureza interior, alienações, transformações em algo essencialmente diferente ao mesmo tempo que atributos externos são mantidos.

E muitas vezes essas eras de atribulações não podem ser reduzidos ao "triunfo de tendências negativas", como costumam ser, considerando a tradição exotérica e a moralidade de formas sagradas. Por exemplo, a degeneração da tradição islâmica pode ocorrer sem que as autoridades comecem a negar abertamente o "princípio do monoteísmo" ou a "missão de Maomé", bem como cristãos podem romper com a Igreja em espírito, sem necessariamente adorar, ao invés de Cristo, a outros deuses (ou, por exemplo, Satã).

Se tudo fosse tão simples, a história seria estruturada por aparatos mecânicos elementares, uma operação previsível e seria fácil prever o futuro. Também, ocasionalmente vê-se muitas pessoas caracterizadas por uma cosmovisão ingênua (para não dizer idiota), sejam eles "conservadores" ou "progressistas". Apenas uma profunda compreensão do núcleo interior da tradição, a implementação efetiva de seus níveis superiores, lhe permite selecionar e apreender o que é principal e mais significativo, e portanto separar precisamente a verdadeira ortodoxia da alienação axial, de desvios, de simulações e de degeneração. Nessa questão, um critério puramente externo não existe, e neste sentido, não subestimem "o diabo" (se tudo fosse tão simples, como parece para os moralistas, seria improvável que ele teria uma participação tão longa e ativa, e mais importantemente, desconhecida, na história humana).

Por exemplo, a divisão da Cristandade em igrejas oriental e ocidental estava longe de ser um evento puramente exotérico, por trás havendo profundas razões metafísicas. O mesmo é verdadeiro para o mundo islâmico e para a divisão entre xiitas e sunitas. A tradição sunita sustenta um elevado prestígio para com o Sultão Yazid, que assassinou Ali, primo de Maomé e polo espiritual (Qutb) dos xiitas. Em certo sentido, as coisas não são tão suaves no hinduísmo. O vaisnavismo e o sivaísmo não estiveram tão em harmonia assim um com o outro, como parece à primeira vista. Assim, por exemplo, traços de dualidade podem ser vistos no "Mahabharata", edição que, naturalmente, foi completada na comunidade vaisnava. Nós vemos ali os Kauravas e os inimigos incorrigíveis, os vilões Pandavas, inspirados por Shiva e seu séquito, ao ponto de Shiva ser considerado como uma "natureza sutil", em contraste com uma natureza puramente espiritual e metafísica de Krishna, avatar de Vishnu. Neste caso, os paralelos com o "diabo" surgem espontaneamente, especialmente quando Guénon indica que o "diabo" pertence exclusivamente ao "plano sutil".

Assim, se uma abordagem tradicionalista é aplicada a outras formas sagradas além do hinduísmo e do sufismo, então chegamos a uma situação na qual falar de uma contra-iniciação como algo universal e oposto a um esoterismo universal é impossível sem cair na mitomania ou no dualismo moralista (o qual, teoricamente, deveria ser superado, se considerarmos o escopo do esoterismo). Ou, em outras palavras, cada forma sagrada possui características metafísicas especiais e formula, em sua teoria, o que é contra-iniciação (e apenas para ela). Dessa forma, em certos aspectos, diferentes posições podem coincidir em algumas tradições, e ser diferentes em outras. Chegamos, então, à afirmação sobre a ausência de uma única doutrina ou organização contra-iniciática, e somos forçados a dizer que tal realidade não é universal, mas plural, multipolar. A definição das qualidades e forma contra-iniciáticas deriva da singularidade metafísica de cada tradição particular.

Não se pode negar o fato de que no último século houve uma história comum de um processo que certamente é uma tendência clara para construir uma sociedade antitradicional baseada em princípios radicalmente opostos ao conjunto comum que é base de qualquer tradição.

Mas há uma exceção. Estamos falando sobre o judaísmo, a perspectiva religiosa e metafísica que nos últimos séculos, desde 1240, e especialmente a partir de 1300, considera, ao contrário, como prelúdio de um triunfo messiânico, a queda da civilização cristã e a libertação política dos judeus (para não mencionar as conquistas modernas do sionismo político e do Estado de Israel) como máximo progresso metafísico. Portanto, mesmo no contexto no qual a maioria das tradições concorda plenamente uma com a outra, há uma exceção, o judaísmo.

O renascimento externo de religiões confessionais em anos recentes, após vários séculos, durante os quais, pelo contrário, houve um processo ativo de dessacralização e secularização, também não se encaixa bem com a lógica tradicionalista, ainda que este seja um interesse na religião, não uma paródia como o neoespiritualismo ou a "Nova Era", mas por outro lado, certamente não constitui uma ressurreição espiritual genuína.

Em resumo, o problema do desvio do esoterismo ou da contra-iniciação se torna complicado não só por causa das contradições interconfessionais, cujas origens se estendem à metafísica, mas também pelas transformações internas nas mesmas tradições.

Para coroar, há casos anormais (um novo interesse sobre judaísmo no Ocidente), que contradizem a tendência aparentemente óbvia de uma secularização progressiva, sobre cuja base Guénon tentou substanciar sua teoria da contra-iniciação e seus planos planetários preparados para o "Reino do Anticristo". 

Alfonso Beltrán - Alessandro Pavolini: O Fascismo Intransigente

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por Alessandro Pavolini



"O fascismo é revolução e não Vendeia, povo e não casta, trabalho e não dinheiro"(Berto Ricci)

"Para trás não se volta, disse o Duce! E para frente, quando se vai?" (Mino Maccari)

"O importante é morrer bem. Morrer bem e com honra. Morrer pelo Duce" (Alessandro Pavolini)

Sob o título L'ultimo Poeta Armato (1) publicou-se recentemente na Itália um interessante estudo sobre Alessandro Pavolini, Ministro-Secretário do Partido Fascista Republicano (PFR) durante a breve e tormentosa etapa de governo da República Social Italiana (RSI), também conhecida como "República de Salò".

Não haveria nada de surpreendente neste fato, se não fosse pela circunstância extraordinária de que se trata do primeiro trabalho sério sobre a vida e a obra do personagem, talvez, mais influente e atrativo da RSI (chegou a ser qualificado como o "Saint-Just de Salò" ou, inclusive, "Lin Biao com camisa negra") saído de um autor e de uma editora que podem ser adscritos sem dificuldade ao complexo mundo político-cultural denominado "neofascismo".

Como é possível que com quase sessenta anos de seu trágico desaparecimento nenhum estudioso qualificado dessa área político-cultural haja sentido a necessidade, não de reivindicar ideológica e humanamente a figura de Pavolini, mas nem ao menos de plasmar por escrito o essencial de seu pensamento e da natureza de sua obra?

Até o momento, sobre Pavolini, à parte condenações unânimes vindos do antifascismo e silêncios cúmplices do neofascismo, existia somente uma biografia onde se narrava de forma novelesca os episódios fundamentais da vida e morte do hierarca fascista, cujo título era já, por si mesmo, bem explícito: Pavolini: O Superfascista.

Publicada pela primeira vez em 1982, escrita a partir de uma aberta hostilidade política, não carecia, porém, de expressões de admiração sincera pela personalidade do único dirigente de Salò preso com armas em mãos e fazendo uso delas antes de ser ferido, capturado e finalmente fuzilado junto a outros ministros e dirigentes fascistas especialmente comprometidos com a linha intransigente e revolucionária que o secretário do PFR encarnava.

"Salò Negra" versus "Salò Tricolor"

Em seu bem documentado estudo, Massimiliano Soldano não entra nas razões que levaram ao esquecimento, à negação, à erradicação até, da figura humana e política de Alessandro Pavolini dentro do ambiente político neofascista, mas aporta significativos elementos de juízo para ratificar uma tese pouco conhecida, mas que não carece de interesse, e que explicaria tomadas de decisão e opções políticas, tanto durante, como depois da experiência história da RSI.

Segundo esta tese, teriam existido, para efeitos interpretativos, duas "Salò". Por um lado, a "Salò Negra", agrupada ao redor do Partido e da liderança de seu Secretário; e pelo outro, a "Salò Tricolor", que afirmava a proeminência da nação, contraposta à facção, quer dizer, ao fascismo, e que se reconhecia nas figuras de militares "apolíticos" e nas proprias Forças Armadas como garantia da continuidade nacional.

As figuras mais representativas dessa última tendência seriam precisamente dois destacados expoentes da casta militar italiana: o marechal Rodolfo Graziani, comandante das forças militares de Salò e Ministro de Defesa; e o príncipe Junio Valerio Borghese, comandante da X Flotilha MAS, uma das mais importantes unidades militares do Régio Exército Italiano até 1943 primeiro e da RSI depois do infame armistício de 8 de setembro do mesmo ano.

Não por casualidade, após a derrota das forças do Eixo e a posterior proclamação da "república democrática italiana", será esta "Salò Tricolor" que encarnará a suposta "continuidade ideal com a República Social Italiana", convertendo-se assim na fonte de duvidosa legitimidade para as forças políticas que reivindicavam a herança do último fascismo.

De fato, Graziani e Borghese, se sucederão na presidência tanto do Movimento Social Italiano (MSI) como das associações de ex-combatentes de Salò, mas nenhum dos dois, assim como muitos outros militares e civis que se identificaram com eles, havia aderido à RSI por razões políticas e ideológicas (nunca foram fascistas, nem nunca se afirmaram como tal) mas por valorações de ordem pessoal e sentimental (meramente patrióticas), quando não para cometer atos de sabotagem interna contra o esforço de guerra da Alemanha nacional-socialista e do fascismo italiano.

O Fascista de "Boa Família"

Alessandro Pavolini nasceu em Florença, em 27 de setembro de 1903 no seio de uma família da alta burguesia toscana. Seu pai, Paolo Emilio, acadêmico italiano, era um dos mais célebres filólogos de seu tempo, especialista em línguas indo-europeias, poliglota e homem de imensa cultura, entre outras coisas, uma autoridade mundialmente reconhecida em sânscrito.

Neste ambiente familiar, elegante e culto, crescerá o jovem Alessandro, frequentando desde a adolescência os salões e círculos da aristocracia florentina e da intelectualidade burguesa mais refinada. Nada podia pressagiar que o jovem de "boa família" se converteria com o passar do tempo no mais radical e intransigente líder do fascismo revolucionário, o mais comprometido com suas tendências sociais (na verdade, socialistas) e o mais firme partidário da linha proletária.

O fascismo florentino, tumultuoso e inquieto, verá em setembro de 1920 o ingresso no partido do jovem intelectual burguês, que participará plenamente nas lutas intestinas do fascio toscano. Em outubro de 1922 se integra nas esquadras florentinas que marcham sobre Roma. De regresso a sua cidade, continua ascendendo no organograma local do Partido Nacional Fascista (PNF), publica seu primeiro livro ("Giro d'Italia", 1927) e se converte, em 1929, em federale da província.

Como máxima autoridade política de Florença realiza importantes iniciativas de caráter civil e, especialmente, cltural. Em meio a uma viva polêmica estética fará construir a nova e funcional Estação Central de Florença. Também serão criaturas suas o circuito automobilístico de Mugello e o estádio municipal de Campo de Marte. Ainda hoje, apesar do tempo transcorrido, sobrevivem em Florença acontecimentos culturais pensados, projetados e postos em marcha pelo futuro comandante das Brigadas Negras: o Maio musical, o encontro anual de "calcio medieval" e a mostra de artesanato em Ponte Vecchio.

No mesmo ano de sua nomeação como federale, Pavolini funda um semanário chamado Il Bargello, órgão da federação fascista florentina, que aparecerá até o ano de 1943 e que será, sem dúvida, "o periódico fascista mais interessante e mais aberto" (Petacco). No mais, o fascio toscano havia dado mostras já de uma inquietude político-cultural e de uma vivacidade ideológica que escapava aos burocráticos esquemas da normalização e institucionalização do regime de Mussolini e do PNF após 1925. La Conquista dello Stato de Malaparte, Il Selvaggio de Maccari ou L'Universale de Berto Ricci, são boa mostra do inconformismo da publicística fascista local.

O Fascismo-regime havia transformado a revolução em administração, marginalizando os partidários do fascismo-movimento que viverão, a partir de então, em uma espécie de exílio interior até a proclamação da RSI.

O Fascismo como Revolução do Povo

"Nosso semanário quer ser um periódico à florentina, não uma revista à americana. Vinho novo e, acima de tudo, vinho nosso", declarará no primeiro editorial de Il Bargello seu diretor, Alessandro Pavolini.

A temática da revista será comum a muitas outras iniciativas espalhadas pelo continente europeu naqueles anos e participará de uma cultura política comum a boa parte da intelectualidade inconformista do entre-guerras, a qual posteriormente será qualificada, um pouco sumariamente, como "fascismo de esquerda".

O fascismo como Revolução do Povo ou como fenômeno universal, como revolução radical contínua ou como vanguarda revolucionária de massas enquadradas totalitariamente em uma batalha antiburguesa e antidemocrática que deveria levar a um mundo novo. Tal é a temática de fundo da revista criada pelo comissário federal florentino.

Por isso, não duvida em aglutinar as três revoluções em marcha na Europa do primeiro pós-guerra: "Massas revolucionárias, disciplinadas e ardentes, enchem as praças e os estádios de Roma, Moscou e Berlim. Camisas negras, blusas soviéticas e camisas pardas. Fascios litórios, estrelas vermelhas, cruzes gamadas. E milhões de faces e gritos. E três almas coletivas".

Nada distinto do que escreveria, alguns anos depois, Ramiro Ledesma Ramos em seu Discurso às Juventudes da Espanha dentro de sua digressão sobre o perfil subversivo da nova Europa revolucionária. E com eles, outros tantos teóricos do pensamento antidemocrático [1].

Da coerência fascista e radical do pensamento pavoliniano já naquela época dá mostra o seguinte fragmento do livro de Soldani: "Contrariamente a quanto se escreveu, o amadurecimento ideológico e pessoal de Pavolini não tem nada a ver com a de Galeazzo Ciano, assim, será precisamente em 1938 (período de êxito para o Ministro do Interior) quando começará o distanciamento intelectual entre os dois: uma fratura insanável por causa, principalmente, do diferente modo de entender o fascismo. O primeiro sinal desse desacordo (...) se manifestará durante a crise espanhola e a guerra civil (...). Durante sua breve etapa espanhola, de fato, havia ficado impressionado pela figura de García Lorca, por suas poesias e por sua trágica morte. [Pavolini] Não admirava Franco, nem a Espanha franquista à que se negava a considerar como um Estado Novo, quer dizer, revolucionário segundo a acepção fascista (...)"

Em realidade, os motivos do apoio do regime de Mussolini ao levante militar de Franco nunca foram de ordem ideológica, como tampouco o foi a hostilidade contra a Segunda República espanhola [2]. Não era algo excepcional, Berto Ricci, um dos principais intelectuais do fascismo radical durante os anos 30, fazia eco dessa falta de compromisso do fascismo com as tendências reacionárias do momento: "As famosas perseguições no México, na Espanha, na Rússia, etc., nos comovem muito pouco e, de qualquer modo, não acreditamos que seja o caso de fazer disso uma questão nacional.

Só uma crítica histórica superficial pôde equiparar o franquismo e os regimes autoritários do entre-guerra por um lado, com o fascismo e o nacional-socialismo pelo outro. E não é demais recordar, neste sentido, que a Espanha franquista não reconheceu nunca a República Social Italiana.

Em 1935, Pavolini, piloto de guerra, participa na campanha da Etiopia. Continua publicando contos e narrativas diversas. Colabora como correspondente internacional na imprensa oficial da época. Viaja ao norte e ao centro da Europa, à Turquia e ao Oriente Próximo, à América do Sul. Escreve naqueles anos seu mais belo e conhecido romance Scomparsa d'Angela.

O Minculpop

Não por azar foi citado anteriormente o conde Galeazzo Ciano. Ciano, genro do Duce, é a estrela ascendente do regime fascista durante os anos 30. Em 1934, Pavolini foi eleito deputado para a Câmara dos Fascios e das Corporações, travando amizade com o então Ministro de Imprensa e Propaganda. Será essa amizade, baseada na paisagem comum e na posse de uma refinada cultura, que impulsionará o jovem poeta e novelista florentino a ascender no organograma político do regime até alcançar sua nomeação como Ministro de Cultura Popular (Minculpop) em 1939, um mês depois do início da Segunda Guerra Mundial [3]. Um cargo com bastante responsabilidade e certo peso específico dentro do Estado.

Afirma Petacco: "O Minculpop que Alessandro Pavolini herda de Dino Alfieri é, na ocasião, uma máquina bem lubrificada que permite ao regime controlar um dos setores mais delicados da nação. Dependem do Ministério de Cultura Popular a imprensa, a rádio, o teatro, o cinema e o turismo. E se trata de uma dependência total. O Minculpop estabelece a linha que todos os periódicos devem seguir, escolhe seus diretores, assinala jornalistas a contratar ou demitir".

Mas, ao fim, se trata de um posto burocrático e, para um poeta que ama a ação, não é um destino que satisfaça suas ambições pessoais e estéticas.

Como Minculpop, assistirá às pouco gloriosas vicissitudes italianas na guerra, constatará o lento declínio do regime da diarquia, entabulará amizade com seu homólogo alemão Joseph Goebbels, expoentes do "romantismo de aço", suas vidas correrão paralelas até o trágico fim de ambos, fieis até a morte a seus respectivos chefes, e conhecerá na meca do cinema italiano, o Cinecittà, a mais famosa atriz fascista do momento, Doris Duranti, com a qual viverá um tórrido romance pouco antes da morte do Ministro.

Em 6 de fevereiro de 1943 é retirado de seu cargo e nomeado diretor do Il Messagero de Roma. À frente desse diario lhe surpreende a queda de Mussolini e de seu regime em 25 de julho. Os acontecimentos se precipitaram e o rei, após aceitar a demissão do Duce e prendê-lo por motivos de "segurança", nomeia o marechal Badoglio como novo Chefe de Governo. Badoglio é um inimigo jurado de Pavolini desde que este denunciara perante o Duce as críticas vertidas pelo marechal em 1940, questionando a capacidade militar de Mussolini na condução da campanha grega.

O novo Chefe de Governo, elemento típico da casta militar monárquica, não é dos que esquecem. Após prometer, falsamente, aos alemães prosseguir a guerra a seu lado, começa a ajustar contas com todos os irredutíveis do fascismo. Ettore Muti, às da aviação italiana, medalha de ouro e heroi da revolução fascista, cairá morto em circunstâncias obscuras nas mãos dos carabineiros enviados por Badoglio para prendê-lo. Pavolini é o seguinte da "lista negra" de Badoglio, mas o deposto diretor do Il Messagero, em paradeiro desconhecido desde 25 de julho, já havia chegado à embaixada alemã em Roma, à espera de partir, por via aérea, para a Alemanha. Ali, será transferido pelos alemães à Prússia Oriental, não muito longe da Wolfschanze, o QG do Führer, compartilhando exílio com outras figuras do fascismo intransigente, Roberto Farinacci, Giovanni Preziosi, Renato Ricci e o próprio filho do Duce, Vittorio.

Na Alemanha conhecerão a traição final da infame monarquia piemontesa e do governo Badoglio quando em 8 de setembro este assina unilateralmente o armistício com os Aliados. "Um assunto sujo", como definido pelo próprio general Eisenhower. Nessa mesma noite, após se reunirem com o Führer no "refúgio do Lobo", Pavolini e Vittorio Mussolini emitem, a partir de um vagão de trem transformado em estação de rádio perto de Königsberg, a primeira mensagem à nação italiana anunciando a formação de um novo governo fascista, o castigo dos traidores de 25 de julho e a continuação da guerra ao lado do aliado alemão, que já havia procedido por sua conta a desarmar e internar as tropas italianas, ocupando o território não invadido ainda pelos anglo-americanos. A guerra continua.

Pavolini: Secretário do Partido Fascista Republicano

Em 12 de setembro, Benito Mussolini é libertado e levado à Alemanha após uma espetacular operação dirigida pelo general de paraquedistas Kurt Student e executada brilhantemente por um comando especial da SS liderado pelo famoso Otto Skorzeny. Chega o dia 14 a Rastemburg, onde é recebido por Hitler primeiro, e pelo "governo fascista provisório" depois.

No dia seguinte dita as primeiras ordens, assumindo a direção do fascismo na Itália e nomeando Alessandro Pavolini secretário provisório do Partido, que dois dias depois tomará o nome de Partido Fascista Republicano. Prediz o castigo dos traidores. Ordena a destituição de todas as autoridades e cargos públicos nomeados pelo governo capitulacionista de Badoglio; e liberta os oficiais do Exército de seu juramento de lealdade ao rei traidor, Vittorio Emmanuel, que havia fugido com sua corte para o sul do país, pondo-se sob a proteção das hordas invasoras anglo-americanas.

24 horas depois, o novo secretário do Partido parte para Roma com a missão de reabrir a sede histórica do fascismo romano, o palazzo Wedekind.

Desde esse dia até o de sua trágica morte, Pavolini viverá somente por e para o fascismo republicano.

Resume a ingente tarefa de Pavolini o historiador Silvio Bertoldi, antifascista implacável, dessa maneira: "De todos os chefes da República Social, Pavolini é o único decidido a ir até o final. Os outros são como certos padres: às vezes creem, às vezes não. Ele crê e basta". Percorre a Toscana e as províncias padanas despertando entusiasmos adormecidos, detendo os que fogem, mobilizando os fieis.

Em 23 de setembro fica constituído o novo governo republicano no qual o novo secretário terá nível ministerial com a prerrogativa acrescentada de que os decretos governamentais deverão ser aprovados por ele antes de ser executados. Isso suporá um poder decisivo em mãos do Partido e de seu secretário, ao qual o próprio Mussolini definia como leal, pobre e valoroso. Porém, no fundo, o Duce o "...temia, também, por seu fanatismo cego, seu rigor ideológico e seu desprezo pelos compromissos e pelas meias medidas. É inclusive provável que Mussolini sofresse com um complexo de culpa diante de um homem que, mais que qualquer outro, naquele momento, encarnava o fascismo mais extremo e desesperado" (Petacco).

O novo secretário nacional do PFR possui já uma ideia clara do que deve ser o novo fascismo republicano: "Pavolini pretende criar um partido novo, restrito, uma "ordem de crentes e combatentes" baseado mais em dados qualitativos do que quantitativos, e que não repetirá os erros do precedente partido de massas. Este novo organismo político devia ser "acima de tudo um partido de trabalhadores, um partido proletário animador de um novo ciclo sem mais obstáculos plutocráticos (...)" e inspirador de reformas "mais que sociais, propriamente socialistas" (Rimbotti).

O Congresso de Verona - Nasce a República Social Italiana

Em 14 de novembro de 1943, o Partido Fascista Republicano celebrará no Castelvecchio de Verona seu primeiro e único Congresso. É, na realidade, uma tumultuosa e tensa Assembleia presidida pela necessidade de castigar os traidores de 25 de julho, que serão finalmente julgados e executados nessa mesma cidade, e de assentar as bases de um fascismo livre dos compromissos do passado.

A liberdade de expressão dos delegados é absoluta. Preside a reunião o próprio Pavolini, que pretende que este Congresso seja um passo prévio para a convocatória de uma Assembleia Nacional Constituinte (que, por causa da guerra, nunca se levará a cabo). Leva consigo um documento redigido por ele mesmo, com a colaboração de Mussolini e do antigo comunista e conselheiro pessoal do Duce, Nicola Bombacci, que resume em 18 pontos a natureza do novo Estado social e republicano.

É o célebre programa-manifesto de Verona. Dividido em três partes (matéria constitucional e interna, política externa e matéria social) ao redor dele se concentrará a linha revolucionária da RSI (a Salò negra) encarnada pelo PFR; e contra ele e contra Pavolini se irá criando uma atmosfera de oposição interna (a Salò tricolor) que tentará sabotar os esforços do partido de levar adiante, ponto por ponto, o programa.

Afirma Massimiliano Soldani: "Assim, como consequência do dinamismo e da intransigência moral da secretaria política, alguns setores do sistema republicano iniciaram uma guerra subterrânea contra o Partido, coagulando qualquer resistência de natureza ideológico-metodológica em um único bloco, para tratar de frear e redimensionar as tentativas de reforma pavolinianas".

As duas frentes dessa guerra subterrânea estavam configuradas do seguinte modo, sempre segundo Soldani:

"(...) [A área] revolucionária (representada por Pavolini, pelo Ministério de Cultura Popular [Mezzasoma], por Barracu e, após o relevo de Buffarini, pelo novo Ministério do Interior de Zerbino) e a moderada (da qual formavam parte o alto comando do ENR, Exército Nacional Republicano, o Ministério de Economia Corporativa, o Ministério de Agricultura, etc.). Paradoxalmente, era precisamente dentro do máximo órgão executivo onde se entrecruzavam as alianças necessárias para retardar, quando não sabotar, a atividade política".

A imagem idílica, utópica, que hoje se quer dar da RSI a partir de alguns meios, choca com a realidade histórica de um sistema, que tendo nascido certamente em circunstâncias desesperadas, seguia refletindo as contradições herdadas do Ventennio, ainda que a correlação de forças agora fosse em teoria favorável ao setor radical, ao fascismo-movimento.

As forças que operavam contra o programa da "socialização", por exemplo, eram bastante poderosas e não duvidavam em alternar artimanhas dilatórias junto com ameaças veladas. Não só os industriais, por razões óbvias, estavam contra o ritmo da "socialização" exigido por Pavolini e pelo Partido. O próprio Ministério de Economia Corporativa não duvidava em lançar areia nos rolamentos, sem esquecer tampouco a presença na Itália do todo-poderoso Rilstund und Kriegsproduktion (RuK), organismo dirigido pelo general Leyers, cuja obsessão era manter e incrementer o volume da produção industrial de guerra das empresas italianas em nome da mobilização total de recursos econômicos para fazer frente aos gastos requeridos pela máquina militar do Reich. E isso sem falar na cúpula militar de Salò, sempre disposta a sabotar os esforços políticos e sociais do partido [4]. Derrubar Pavolini era o passo prévio para desativar a experiência revolucionária da RSI.

Diz, a este respeito, Soldani: "Este secretário do Partido, definitivamente, produzia medo. Medo no exército, na burocracia do Ministério de Assuntos Exteriores, no das Corporações e em um conjunto de poderes alternativamente complementares e antagonistas".

A conjuração desse heterogêneo conjunto de forças conseguiu, finalmente, um triunfo pírrico quando a "ala dissidente" do PFR, comandada por Balisti e Borsani, obteve a exoneração na secretaria do Partido de Pavolini em janeiro de 1944. Mas isso foi uma miragem. Mussolini recapacitou e voltou a confirmar o revolucionário florentino à frente dos destinos do PFR. Não haveria retorno.

Retrocedamos novamente no tempo. Durante o Congresso de Verona, em plenas deliberações, uma notícia comoveu a sala. Iginio Ghiselini, federale de Ferrara, havia sido assassinado em uma emboscada quando se dirigia precisamente a Verona. A notícia corre como pólvora entre os delegados. Se erguem gritos exigindo vingança e os mais exaltados querem ir a Ferrara para realizar uma represália feroz. A duras penas, Pavolini consegue manter a ordem: "Silêncio!", exclama, "Se há que fazer algo, serei eu o primeiro a fazê-lo, mas não se grita na presença de um morto". Logo em seguida, envia a Ferrara uma comissão encabeçada pelo advogado Vezzalini (um dos mais duros do Partido, futuro fiscal no processo contra "os traidores de 25 de julho") e outros squadristas para apurar responsabilidades e castigar os culpados.

Pavolini é consciente já da impossibilidade de fazer frente com argumentos aos bandos homicidas autodenominados "partisans", que assassinam à traição quadros e militantes do recém-reconstituído fascismo. "Eu não sou sanguinário ou maníaco; minha formação mental é muito diferente. Mas tenho a sensação concreta de que ou se atua assim ou não se chega às consciências...", dirá perante os delegados que clamam por vingança. Alertando em continuação: "À violência de nossos inimigos, responderemos com nossa violência multiplicada".

O Congresso de Verona constituirá, espiritualmente, um "retorno às origens do fascismo: aos fascios constituídos como "esquadras de ação". Squadristizare il partito, será o santo-e-senha dos novos dirigentes do PFR. De forma mais poética o expressará Pavolini: "O squadrismo foi a primavera de nossa vida. Quem foi squadrista uma vez o será sempre..."

O Partido Armado - As Brigadas Negras

Alessandro Pavolini passará à "história geral da infâmia" do antifascismo por uma de suas mais radicais intuições, que não é, em realidade, mais que a consequência lógica de uma guerra civil desejada e executada pelo antifascismo militante, por um lado; e, pelo outro, pela vontade expressa manifestada em Verona de squadristizar o partido: as Brigadas Negras.

Transformar todo o partido em um único e compacto corpo armado é um pensamento que se apodera de Pavolini desde os inícios de seu secretariado.

Existia, sim, já uma Milícia, a Guarda Nacional Republicana de Renato Ricci, ex-dirigente da Opera Nazionale Balilla, e firme partidário da politização e fascistização do exército; ao ponto de ter tido um violento confronto pessoal com o marechal Graziani, ministro de Defesa e defensor da "apoliticidade" dos militares profissionais.

Sem embargo, a GNR carecia de homens e recursos adequados para desempenhar suas tarefas com eficácia.

A ideia de armar os militantes do partido e redimensionar militarmente toda sua estrutura política aparece novamente com força, em princípios do verão de 1944, quando os aliados, após terem tomado Roma, se lançam sobre a Toscana. Pavolini mandará armar os militantes florentinos e criará em todo o território ocupado núcleos de "resistenza nera", a fim de fustigar as forças inimigas.

A defesa de Florença, por parte das esquadras militarizadas de camisas negras, será uma das mais belas e dramáticas páginas da história da RSI.

Em 20 de julho de 1944 eclode o complô militar contra Hitler. Em 25 de julho (data já significativa) se torna público o decreto de constituição do Corpo Auxiliar das Camisas Negras, que será mais conhecido como "Brigadas Negras" em contraposição às brigadas de partisans, católicos, liberais, socialistas e comunistas que infestam já o território da República de Salò.

Seu comandante general não é outro que o próprio secretário do Partido. Seu Estado Maior, a própria direção política do PFR. Os comissários federais serão seus comandantes, e comandantes de esquadra os comissários de fascio e de distrito. Não existem distinções de grau. O uniforme é o do Partido, completado com um suéter negro de lã e um gorro montanhista negro com o símbolo da caveira.

Não será esta a única criação pessoal do secretariado do partido durante o ano 44. O Ente Fascista de Assistência (ENF), destinado a socorrer famílias golpeadas pela tragédia da guerra, e o Serviço Auxiliar Feminino (SAF), organismo que centralizava o esforço de guerra das mulheres fascistas republicanas, serão duas emanações orgânicas diretas da linha revolucionária do PFR.

O modelo organizativo das Brigadas Negras está próximo ao do Exército Vermelho idealizado por Trotsky. "Como Trotsky - afirma Pavolini - devemos transformar o partido em um exército revolucionário".

Fiel a seu estilo, o novo comandante general das Brigadas Negras se põe imediatamente em marcha. Percorre incansavelmente a zona ainda controlada pela RSI, junto com seu fiel guarda-costas, De Benedectis, em seu veloz Alfa Romeo sem capota, visitando e conversando com todos os seus novos brigadistas. Sua popularidade na base do partido armado é já considerável. "Leal, pobre e valoroso" até o final.

Do arrojo do outrora delicado poeta, dá boa conta a seguinte anedota. Durante uma visita às esquadras piemontesas das Brigadas Negras em agosto de 44, Pavolini e outros líderes políticos e militares são surpreendidos pelo ataque de efetivo armados de um bando partisan. Produz-se um encarniçado tiroteio e Pavolini, metralhadora em mãos, se lança contra os bandidos, que por sua vez emboscavam os fascistas. Se produzem baixas, entre elas, a do próprio Pavolini ferido pela metralha de uma granada lançada pelos partisans. Estes não reconhecem entre os feridos o comandante das Brigadas Negras. A ausência obrigatória de distintivos no uniforme dos brigadistas negros evita sua captura. Horas depois é resgatado e, após uma curta convalescência, se incorpora de novo à luta política.

Velhos e novos squadristas reconhecem já nele o chefe carismático e valoroso de que precisam. Sobre as Brigadas Negras se estendeu o mesmo manto de silêncio que o que cobriu o próprio Pavolini por parte daqueles que reivindicaram genericamente a herança do último fascismo social e republicano.

O que foram as Brigadas Negras? Será o próprio Pavolini, em dezembro de 1944, que explica:

"As Brigadas Negras são um exército sem distintivos, estando nós, squadristas, persuadidos de que um comandante é tal se manda e se é obedecido independentemente do grau que tenha. O único distintivo é o exemplo (...) As Brigadas Negras não são o Partido que vai ao povo, é uma milícia do Partido que é povo, uma milícia operária e revolucionária, de mecânicos, artesãos, de jornaleiros, de pequenos empregados, em luta de morte contra as plutocracias aliadas dos bolcheviques e contra os plutocratas que subvencionam os bandidos (...) As Brigadas Negras são uma família, essa família tem um antepassado: o squadrismo; um brasão: o sacrifício de sangue; uma progenitora: a ideia fascista; uma guia, um exemplo, uma devoção absoluta e um afeto supremo: Mussolini".

As Brigadas Negras tomarão, ademais, cada uma o nome de um caído do fascismo republicano. Assim, a "Aldo Resega" de Milão, a "Muti" de Ravenna, a "Ghiselini" de Ferrara, etc.

Fascismo Social ou Socialismo Fascista?

Os inimigos das Brigadas Negras, além dos bandidos partisans e dos anglo-americanos, serão os mesmos que os do partido e os de seu secretário.

Citemos apenas um exemplo revelador: "(...) Adriano Bolzoni, em uma obra autobiográfica, quis recordar que, junto a seus camaradas da 'Barbarigo', cantava uma canção cujo refrão repetia: 'Disparai por Deus contra os bárbaros, disparai contra as Brigadas Negras'."

Se isso cantavam os efetivos de uma unidade de combate da Décima MAS, a força mais compacta e disciplinada do Exército Nacional Republicano, comandada pelo célebre Junio Valerio Borghese, imaginemos as condições em que as Brigadas Negras deviam desempenhar sua missão junto a unidades militares que faziam profissão de ódio ao fascismo e aos fascistas.

Presos em um falso patriotismo de marca burguesa, os representantes da casta militar e seus cúmplices do aparato administrativo e estatal nunca tiveram a menor intenção de chegar até o fim na luta contra as plutocracias burguesas e capitalistas ocidentais, tal como exigia a propaganda da RSI.

O patriotismo das Brigadas Negras não é já aquele do "Ventennio": nacionalista-burguês, micro-imperialista, quase de opereta: "A palavra Patria - afirma Pavolini em um discurso - é uma grande palavra, como a palavra mãe, mas todos podem invocá-la e não é suficiente declarar-se a favor da Itália quando existe também uma Itália de Badoglio e de Palmiro Togliatti. Nossas divisões que voltam da Alemanha levam sobre as baionetas uma ideia política". Essa ideia política, esse novo patriotismo, é o fascismo, pelo qal luta e morre a "Salò Negra".

Assim, não será estranho que sejam aqueles elementos nacional-burgueses os que boicotam, de forma discreta, mas eficiente, um dos últimos projetos do Duce e de seu secretário: o chamado Reducto Alpino Republicano (RAR).

Basicamente, tratava-se, diante da evidência de uma guerra irremediavelmente perdida, de refugiar-se na Valtellina, uma região alpina italiana com fama de inexpugnável. Ali, os últimos fieis da RSI e do Duce, junto com as tropas alemães destacadas no norte da Itália, resistiriam ao assalto final das hordas americanas e dos bandos mercenários partisans, ultimando com seu sacrifício, a sorte do fascismo. "Na Valtellina se consumarão as Termópilas do fascismo", reconhecerá Pavolini.

Mas pelas costas de Pavolini e do Duce, a única coisa que se consumava era a traição. Os alemães já haviam começado, na Suíça, conversas secretas com os Aliados através do general da SS Wolff, para preparar a rendição de suas tropas na Itália. Graziani se negava a dirigir suas tropas para o RAR, buscando render suas tropas aos americanos: "Entre militares nos entendemos sempre" repete. É hora do "salve-se quem puder". De fato, alguns militares começaram a colocar as divisas militares do Régio Exército por cima das próprias do ENR. A "mudança de jaqueta"é literal.

Em 25 de abril de 1945, Pavolini se enfrenta ao comandante da Décima MAS, Borghese: "Que vais fazer agora?" - pergunta - "Nos renderemos", responde o futuro "príncipe negro". E estavam a ponto de chegar às vias de fato.

Soldani reconhece que: "...Não é nossa intenção nos determos nos últimos dias de vida da RSI e de seus máximos hierarcas, mas um dado vale por todos: quase todos os generais, inclusive naturalmente Graziani, ministro de Defesa da RSI, membro do diretório do Partido, comandante do corpo de exército Liguria, assim como maior defensor da conscrição obrigatória, sobreviveram às depurações do pós-guerra. Ademais, este último deverá sua salvação aos serviços secretos americanos, com as quais estava em contato desde 26 de abril". 

Paralelamente, os partisans, especialmente os comunistas, iam eliminando fisicamente àqueles fascistas mais fortemente comprometidos com a linha socialista e intransigente da RSI em um tipo de "anti-seleção" contrarrevolucionária que se revelaria funesta para os interesses das classes mais desfavorecidas da sociedade. São as matanças finais, conhecidas como "primaveras de sangue".

Baste, como exemplo, o de Giuseppe Solaro, jovem comissário federal de Turim, estreito colaborador de Pavolini, que aplicará os decretos socializadores na FIAT do todo-poderoso Agnelli. Em abril de 1945, será enforcado pelos partisans "na presença de seus familiares e seu cadáver arrastado pelas ruas da cidade".

Apesar do caos instaurado dentro da RSI, produto da iminência da derrota final, o secretário do PFR tem tempo de convocar o segundo e último Diretório Nacional do Partido em 30 de março de 1945.

Tem este conclave um claro caráter recapitulador da natureza histórica do fascismo e seu papel específico dentro das ideologias do século XX. Segundo Pavolini e o grupo próximo a ele, o fascismo havia assumido um preciso valor revolucionário e por isso podia definir-se como um movimento tendencialmente socialista. Sem embargo, tal definição ideológica encontra o rechaço inclusive de alguns colaboradores de sua linha, incapazes já de seguir em suas argumentações ao mais intransigente de todos os fascistas. Não em vão, na RSI, se assiste à recuperação integral por parte da secretaria do PFR e seus órgãos de propaganda do pensamento político do Risorgimento italiano e de suas figuras mais importantes, os Mazzini, os Pisacane, os Garibaldi, assim como da primitiva tradição sindicalista soreliana e republicana dos fascios, que a política "concordatária" e conservadora do ventennio havia marginalizado [5]. 

"Sob este aspecto, o fascista Pavolini superava indiscutivelmente o regime passado, conseguindo dar nível de lei às declarações de princípio: uma predisposição revolucionária que, ainda devendo enfrentar-se com a linha reacionária de alguns ministros, não será nunca em absoluto abandonada".

De fato, o comandante das Brigadas Negras não duvidará em pôr-se ao lado daqueles que, como o velho sindicalista Grossi, atacavam os ministros técnicos da RSI, Tarchi da Economia, Moroni da Agricultura ou Pellegrini das Finanças, por suas descaradas táticas burocrático-dilatórias. O próprio Grossi recorda as palavras encomiásticas de Pavolini: "Grossi está entre aqueles que melhor compreenderam a finalidade política e social da socialização". Mas também a solidão e a incompreensão do ministro secretário. "Aquelas palavras de Pavolini foram vigorosas e amargas ao mesmo tempo; deixavam entrever o comportamento ambíguo de parte das hierarquias político-administrativas da RSI".

A "socialização", portanto, não era mais que um meio útil, uma aplicação social de um projeto revolucionário mais vasto que, na concepção do mundo, do partido e da sociedade, assumida por Alessandro Pavolini, deveria levar à criação de um verdadeiro Estado republicano dos trabalhadores, de uma autêntica comunidade nacional-popular, parte constitutiva da futura União de Repúblicas Socialistas Europeias, ambicioso esquema continental no qual durante o último período da guerra trabalham as elites da Nova Ordem europeia. 

***

Os últimos dias de Mussolini e seu regim são bem conhecidos. Livros, revistas, séries de TV ou filmes, evocaram a sua maneira a prisão, execução e o posterior vergonhoso ultraje a seu cadáver. 

A sorte de seu secretário correrá paralela à do Duce, constituindo o testemunho final de uma coragem e de uma lealdade que não se deteve nem diante da morte. "O importante é morrer bem. Morrer bem e com honra. Morrer pelo Duce", havia assegurado Pavolini a seus camisas negras em Como, um dia antes de a coluna ítalo-alemã em que ia o Duce, Clara Petacci e alguns de seus ministros e hierarcas ser interceptada por efetivos da 520ª brigada partisan "Garibaldi". Os partisans permitem passagem somente aos alemães. Como é sabido, Mussolini e sua amante se integram na coluna alemã com a intenção de atravessar as colunas inimigas. Serão descobertos e fuzilados pouco depois.

Abandonados a sua sorte, Pavolini e os seus deliberam. O caminhão blindado em que viajam os dirigentes fascistas começa a se mover. Os partisans abrem fogo. Explodem as granadas em sua passagem. O veículo fica imobilizado. Dentro do carro jazem vários squadristas mortos. Alguns querem se entregar. Sem embargo, o secretário do PFR não tem intenção alguma de se render. "Devemos morrer como fascistas, não como velhacos" grita, enquanto salta do caminhão disparando sua metralhadora contra os bandidos. O seguem vários de seus correligionários. Os partisans respondem ao fogo. Um após o outro, os fascistas vão sendo capturados, exceto Pavolino que, sem deixar de disparar, tenta ganhar a borda do lago Como. Ferido, exausto, se lança nas águas gélidas do lago, até alcançar umas pedras, desde onde segue esgotando sua munição. Horas depois é finalmente preso, semiconsciente, meio ferido e com sintomas de congelamento. Levado ao município de Dongo, onde já foram agrupados os fascistas capturados anteriormente, escuta impávido à sentença que condena a ele e a seus camaradas à pena capital, ditada em pessoa pelo tristemente célebre Walter Audisio, apelido "coronel Valerio", que umas horas antes acaba de executar a Mussolini e Claretta Petacci.

Os ministros Mezzasoma, Casalinuovo, Zerbino, os federali Utimpergher e Porta, o secretário do Duce Gatti, o medalha de ouro e subsecretário de Estado Barracu, o professor Coppola, o conselheiro e amigo pessoal do Duce Bombacci, assim até chegar a quinze, são levados em fila indiana até o lugar de execução. Deixemos que Petacco narre os últimos momentos de Pavolini e dos seus:"A longa fila dos condenados está agora em silêncio diante do pelotão de execução. Nenhum dá sinais de debilidade. Pavolini, entre Zerbino e Casalinuovo, se 'ergue orgulhoso e rigido'", como comenta um testemunho ocular. Em um certo momento, tem forças inclusive para ordenar "firmes!" a seus companheiros. A "bela morte está para chegar". É o fim.

Transportado com os outros cadáveres para Milão, o de Alessandro Pavolini ficará também exposto junto ao de Mussolini e dos outros hierarcas, pendurados de cabeça para baixo diante das turbas sub-humanas que na praça Loreto celebram sabá triunfal.

Seu corpo será enterrado no cemitério de Musocco, Milão, em companhia de vários milhares de camaradas fascistas assassinados pela frente vermelha e pela reação. Por vontade expressa de sua família, seus restos continuam ali.

Notas

1 - "Nós não amamos Hitler por ele representar na Alemanha um elemento de ordem; o amamos por ele representar um elemento de desordem na Europa" (Berto Ricci, “La Rivoluzione Fascista. Antología di scritti politici”, SEB, 1996)

2 - Cf. Ismael Saz Campos, “Mussolini contra la 11 República”, IVEI, 1986.

3 - Amizade e gratidão que não serão óbices para que Pavolini assuma a responsabilidade de mandar seu antigo amigo ao paredão, evitando que a petição de graça escrita pela mãe do conde Ciano chegasse às mãos de Mussolini, o que poderia ter ocasionado problemas de consciência para o Duce.

4 - Graficamente, Rimbotti expõe o problema: "A RSI teve todos contra si: os industriais, a Igreja, os trabalhadores, os próprios alemães, sem contar os exércitos anglo-americanos, na terra e no ar".

5 - Apóstolo da "revolução dentro da revolução", Pavolini confessará a sua amante, Doris Duranti, seus verdadeiros objetivos sociais: "o fascismo no qual eu acredito...não existe ainda, (...) outro dia Mussolini disse uma coisa que desagradou a muitos, mas não a mim. Ele disse que a cartilha de racionamento não será abolida nem mesmo após a vitória, assim os Agnelli e os Donegani comerão como seus trabalhadores. Produzir com a inteligência ou com as mãos é o mesmo, quem não produza, não terá lugar na Itália que estamos construindo".

Bibliografia

 ·        Massimiliano Soldani, “L Vltimo Poeta Armato. Alessandro Pavolini, Segretario del PFR’, SEB, 1999

·        Arrigo Petacco, “I1 Superfascista. Vita e Morte di Alessandro Pavolini’, Mondadori,1998

·        Giorgio Bocca, “La Repubblica di Mussolinl’, Laterza, 1977

·        Silvio Bertoldi, “Saló. Vita e morte de la RSf’, Rizzoli, 1976

·         Luca Leonello Rimbotti, “Il Fascimo di Sinistra”, Settimo Sigillo, 1989

·         Vincenzo Vinciguerra, “Camerati, addio”, Avanguardia, 2000

·        Salvatore Francia, “L ‘Altro Volto della RSI”, Barbarossa, 1988

·        Pino Romualdi, “Fascismo Repubblicano”, Sugarco, 1992

·        Marino Vigano, “Il Congresso di Verona’, Settimo Sigillo, 1994

Carlo Terracciano - Jean Thiriart: Profeta e Militante

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por Carlo Terracciano



"Eu escrevo para uma espécie de homem que ainda não existe, para os Mestres da Terra..." (F. Nietzsche, a Vontade de Poder)

O desaparecimento súbito de Jean Thiriart foi para nós como um relâmpago em um céu sereno, para nós, militantes europeus que, no curso de muitas décadas sucessivas, aprendemos a apreciar este pensador da ação, especialmente desde seu retorno à política ativa, após um bom número de anos em "exílio interior" onde ele meditou e reformulou suas posições prévias. 

Ainda mais, sua morte nos surpreendeu, seus amigos italianos que ele conheceu pessoalmente em sua viagem a Moscou em agosto de 1992, onde formamos jntos uma delegação europeia ocidental próxima às personalidades mais representativas da Frente de Salvação Nacional. Essa frente, graças ao trabalho do infatigável Aleksandr Dugin, líder geopolítico e místico da revista Den (Dia), veio a conhecer e valorizar um bom número de aspectos do pensamento de Thiriart e os difundiu nos países da ex-URSS e da Europa Oriental. 

Pessoalmente, eu tenho a intenção, nas linhas seguintes, de honrar a memória de Jean Thiriart sublinhando a importância que seu pensamento teve e sempre tem em nosso país, a Itália, nos anos 60 e 70 no domínio da geopolítica. Na Itália, sua reputação se apoiava essencialmente em seu livro, o único que havia realmente dado uma coerência orgânica a seu pensamento no domínio da política internacional: "Europa: Um Império de 400 Milhões", editado por Giovanni Volpe em 1965, quase 30 anos atrás.

Apenas três anos haviam se passado desde o fim da experiência francesa na Argélia. Este evento dramático foi a última grande mobilização da direita nacionalista, não apenas em solo francês, mas em outros países da Europa, incluindo a Itália. As razões profundas da tragédia argelina não foram compreendidas pelos anti-gaullistas que lutaram pela Argélia francesa. Eles não entenderam o que estava em jogo geopoliticamente na questão e que as potências vitoriosas da Segunda Guerra Mundial pretendiam redesenhar os mapas para sua vantagem, acima de tudo os EUA. 

Quantos desses militantes da Argélia francesa entenderam, em sua época, qual era o inimigo principal da França e da Europa? Quantos desses homens entenderam intuitivamente que, no esquema histórico, a perda da Argélia, seguida pela perda da Indochina, como o colapso de todo o sistema europeu veterano-colonial, foram consequências diretas da derrota militar europeia em 1945? Foi, na verdade, uma derrota não só da Alemanha e da Itália, mas da Europa como um todo, incluindo Grã-Bretanha e França. Nem uma única colônia do velho sistema colonial, que por sua vez se tornaram sujeitas a uma nova forma, mais moderna e sutil, de imperialismo neocolonialista.

Ao ponderarem os eventos de Suez (1956) e da Argélia, os "nacional-revolucionários", como eles se chamam, concluíram formulando várias considerações e análises sobre as consequências dessas duas situações tráticas, considerações e análises que os diferenciam ainda mais da "direita clássica" do pós-guerra, animada por um anticomunismo visceral e pelo slogan de defesa do Ocidente, branco e cristão, contra o ataque simultâneo do comunismo soviético e dos movimentos de libertação nacional dos povos de cor do Terceiro Mundo. De certa forma, o choque político e cultural da Argélia pode ser comparado ao que foi, para a esquerda, a totalidade dos eventos na Indochina, antes e depois de 1975. A velha visão da política internacional perfeitamente integrada na estratégia econômica, global e geopolítica da talassocracia americana, os fascistas como pós-fascistas (ou pelo menos fingindo sê-lo), segundo seu projeto geoestratégico de dominação global. Tudo para chegarmos hoje à "Nova Ordem Mundial", similarmente já abortada e que parece ser a caricatura invertida e satânica da "Nova Ordem" eurocêntrica de criação hitleriana.

A Nova Direita francesa, só para dar um exemplo, começou seu caminho no momento dos eventos na Argélia, para embarcar em uma longa marcha de revisão política e ideológica, que resultou na viagem recente de Alain de Benoist a Moscou, um passo obrigatório para todos os revolucionários europeus dissidentes em relação ao sistema global. A aproximação, então, foi feita por Benoist, apesar de seus relapsos e negativas subsequentes, apoiadas por alguns de seus acólitos mais esquálidos, que ainda evidentemente não entenderam completamente a real importância desses encontros entre europeus ocidentais e russos a nível planetário e preferem se perder em disputas de quintal estéreis, que não tem motivações além das pessoas, revelando pequenos ódios e ressentimentos idiossincráticos. Nesse domínio tal como em outros, Thiriart já havia dado o exemplo, ao contrastar as diferenças naturais existentes entre os homens e as escolas de pensamento interessantes, o supremo interesse da luta contra o imperialismo americano e o sionismo.

Retornando à Itália, devemos relembrar a situação que reinava nesse distante ano de 1965, quando a obra de Thiriart foi publicada: as forças nacional-revolucionárias, então integradas no Movimento Social Italiano (MSI), foram então vítimas de um provincialismo antigo-fascista, provincialismo cinicamente utilizado pela hierarquia política do MSI, completamente subserviente à estratégia dos EUA e da OTAN (uma linha política que será subsequentemente seguida fielmente, até mesmo no curso do breve parêntese da liderança "rautista", supostamente inspirada pelas teses nacional-revolucionárias de Pino Rauti, liderança que apoiou a intervenção de tropas italianas no Iraque, ao lado do exército americano). 

Os líderes dessa direita colaboracionista usaram grupos revolucionários na base, essencialmente compostos de gente bem jovem, para criar militantes projetados destinados a, eventualmente, reunir os votos necessários para enviar deputados "entristas" ao parlamento, para servirem como apoio a governos reacionários de centro-direita. E tudo isso, certamente, não estava nos interesses da Itália ou da Europa, mas apenas no da potência ocupante, os EUA. E novamente, nós recebemos um micronacionalismo centralizador e chauvinista, utilizado para o benefício de interesses estrangeiros e cosmopolitas!

Também era a época em que a extrema direita ainda era capaz de mobilizar nas ruas italianas milhares de jovens que proclamavam que Trento e Trieste foram e permaneciam italianas, ou para comemorar a cada ano os eventos na Hungria em 1956! Maio de 1968 ainda estava longe, parecia a anos-luz de distância! A direita italiana, em seus prospectos, não via que essa revolução era prometida. Em tal contexto político e humano, antigo-nacionalista, provinciano e, na prática, filo-americano (que então se abriria na farsa pseudo-golpista de 1970, que levaria consequentemente, no curso de toda a década, os tristemente famosos "anos de chumbo", a seu cortejo de crimes estatais), a obra de Jean Thiriart teve, para um grande número de nacionalistas, o efeito de uma bomba; um choque elétrico salutar que fez com que o extremismo nacionalista encarasse problemas, que certamente não era novos, mas que foram esquecidos ou haviam caído em desuso. Hoje, nós não podemos nem tomar nota dos efeitos políticos práticos que se desdobraram do pensamento de Thiriart, mesmo se esses efeitos, primeiramente, fossem muito modestos. Nós dizemos que a partir da publicação do livro de Thiriart, o tema europeu se tornou aos poucos o patrimônio ideal de toda uma esfera que, nos anos seguintes, se desenvolveria nos temas antiglobalistas de hoje.

Sem exageros nós podemos afirmar que é nessa época que os temas da Europa-Nação, de uma luta anti-imperialista que não era da "esquerda", da aliança geoestratégica com os revolucionários do terceiro mundo, foram desenvolvidos. A adoção desse tema é ainda mais assombroso e significativo quando sabemos que a aventura da Jeune Europe começou com uma luta contra a FLN argelina. Thiriart havia, neste esquema, mudado completamente de campo, sem apesar de tudo modificar substancialmente sua cosmovisão, ele que, algumas décadas antes, havia deixando as fileiras da extrema-esquerda belga para se unir em colaboração com o Terceiro Reich germânico, sem perder de vistas o fator soviético. Essas acrobacias político-ideológicas lhe garantiram acusações de "agente duplo", sempre às ordens de Moscou!

Na Itália, a seção italiana da Jeune Europe (Giovane Europa) foi rapidamente estabelecida. Apesar da origem política da maioria de seus militantes, Giovane Europa não tinha afiliação direta com a Giovane Italia, a organização estudantil do MSI (copiada, por sua vez, da Giovane Italia de Mazzini no século XIX); ao contrário, Giovane Europa era praticamente a antítese, a alternativa oposta. Uma vez que a experiência militante da Giovane Europa terminou, a maioria de seus molitantes se encontrou no Movimento Politico Ordine Nuovo (MPON), oposto à linha política que defendia a participação parlamentar, como os partidários de Pino Rauti queriam, que haviam retornado às fileiras do MSI de Almirante.

Se considerarmos o papel único que o pensamento de Julius Evola teve no esquema ideológico e cultural na Itália, nós não devemos esquecer que Jean Thiriart impulsionou, de sua parte, uma tentativa única de renovar as forças nacionais nesses anos e nos anos vindouros. Mesmo Giorgio Freda reconheceu suas dívidas, no esquema das ideias, para com o militante e pensador belga.

Outro aspecto particular e muito importante do livro "Europa: Um Império de 400 Milhões", é ter antecipado, em muitas décadas, um tema fundamental, recentemente chegado ao debate, notavelmente na Rússia, graças às iniciativas de Aleksandr Dugin e da revista Den, e na Itália, graças às revistas Orion e Aurora: geopolítica. 

A primeira frase do livro de Thiriart, na versão italiana, é exatamente dedicada a essa ciência essência que tem como seus objetos os povos e seus governos, uma ciência que esteve submetida, após o período da guerra, a um longo ostracismo, sob o pretexto de ter sido o instrumento da expansão nazista! Uma acusação, no mínimo, incongruente já que sabemos que em Yalta os vencedores repartiram os espólios da Europa e do resto do mundo com base em considerações geopolíticas e geoestratégicas. Thiriart estava perfeitamente consciente, ao escrever seu primeiro capítulo, significativamente chamado "De Brest a Bucareste. Apagar Yalta": "No contexto da geopolítica e da civilização comum, como será demonstrado depois, a Europa unitária e comunitária se estende de Brest a Bucareste". Ao escrever essa frase, Thiriart propôs os limites geográficos e ideais de sua Europa, mas depois ele ultrapassaria estes limites, para chegar a uma concepção unitária do grande espaço geopolítico, ou seja, Eurásia. 

Mais uma vez, Thiriart demonstrou que ele era um antecipador lúcido de temas políticos que só amadureceram lentamente entre seus leitores, pelo menos alguns deles...

Mas não é só isso! 

Conjuntamente ao grande ideal da Europa-Nação e à redescoberta da geopolítica, o leitor é obrigado a olhar de novo para os grandes espaços do planeta. Foi outro mérito de Thiriart ter ultrapassado o trauma europeu da era da descolonização e ter encontrado, para o nacionalismo europeu, uma aliança estratégica global com os governos do terceiro mundo, não subservientes ao imperialismo, em particular na zona islâmica árabe, no norte da África e no Oriente Médio. É verdade que aqueles que descobriram a geopolítica não poderiam fazer nada além de ver os eventos do mundo sob uma nova luz, uma nova perspectiva. E é neste contexto, por exemplo, que devemos compreender as numerosas viagens de Thiriart ao Egito, à Romênia, etc., bem como seus encontros com Zhou Enlai e Ceaucescu ou com os líderes palestinos. Em todo lugar em que fosse possível fazer algo, Thiriart buscou tecer uma rede de informação planetária e alianças em uma perspectiva anti-imperialista. Ademais, nós notamos ao mesmo tempo que a revolução cubana, com sua originalidade, exerceu de sua parte sua própria influência.

Com este estilo sintético, quase telescópico, Thiriart ele mesmo traçou em seus textos as linhas essenciais da política externa da Europa unida futura: "As linhas diretivas da Europa unitária: com a África: simbiose; com a América Latina: aliança; com o mundo árabe: amizade; com os EUA: relações baseadas na igualdade"

À parte da utopia que era sua esperança de relações iguais com os EUA, nós notaríamos que sua visão geopolítica era perfeitamente clara: ele queria grandes blocos continentais e esteve distante em toda sua visão de uma pequena Europa "atlântica e ocidental" que, como hoje, é apenas um apêndice oriental da talassocracia ianque, tendo o Oceano Atlântico como centro de gravidade, reduzida à função de "lago interno" dos EUA. 

Certamente, hoje, após a aventura política de Thiriart, algumas dessas opiniões geopolíticas, no milieu "nacional", poderiam parecer evidentes, banais, para alguns, simplistas e integráveis para outros. Mas tirando o fato de que tudo isso dificilmente era claro para o conjunto de "nacionalistas" (é suficiente pensar em certas ressurgências racistas/biologicistas e anti-islâmicas de pseudo-nazismo, utilizadas e instrumentalizadas pela propaganda americana e sionista para um fim anti-europeu), nós não cansamos de repetir que com trinta anos, essa opinião puramente geopolítica de Thiriart, incólume de quaisquer conotações racistas, se apresentam muito originais e corajosas, em um mundo bipolar, aparentemente opondo dois blocos ideológicos e militares antagônicos, em uma perspectiva "horizontal" de conflito entre Oriente e Ocidente e sob a ameaça de aniquilação militar mútua, acima de tudo para os "aliados" das duas maiores potências na Europa.

Podemos afirmar hoje que se muitos entre nós, na Itália, progressivamente passaram a superar essa falsa visão dicotômica de conflito planetário, e bem antes do colapso da URSS e do bloco soviético, é graças principalmente ao fascínio que as teses propagandas por Thiriart exerceram na época, com suas intuições brilhantes. 

Efetivamente, nós podemos falar em "brilhantismo", na política como em todos os outros domínios do conhecimento humano, quando se prevê e expõe (do latim exponere, pôr para fora, colocar em evidência) os fatos ou eventos que ainda estavam ocultos, desconhecidos, confusos para outros e apenas gradativamente emergiam de seu estado oculto para acontecer claramente para o mundo em um futuro mais ou menos distante. Neste capítulo, nós queremos simplesmente relembrar as afirmações de Thiriart sobre as dimensões geopolíticas do futuro Estado europeu, contidas no capítulo (10, §1) chamado "As Dimensões do Estado europeu. A Europa de Brest a Vladivostok" (pp.28 a 31 da edição francesa):

"A Europa desfruta de uma grande maturidade histórica, ela a partir de então conhece a vaidade de Cruzadas e guerras de conquista na direção do Oriente. Após Carlos XII, Bonaparte e Hitler, ela pode medir os riscos de empreendimentos similares e seu preço. Se a URSS quer manter a Sibéria, ela deve fazer paz com a Europa, com a Europa de Brest a Bucareste, eu repito. A URSS não tem e terá cada vez menos força para manter tanto Varsóvia e Budapeste de um lado, e Tchita e Khabarovsk do outro. Ela deve escolher ou se arriscar a perder tudo".

Ainda:

"Nossa política diferia da do general De Gaulle porque ele cometou ou cometê três erros: Colocar a fronteira da Europa em Marselha e não na Argélia; Colocar a fronteira do bloco soviético/Eropa nos Urais e não na Sibéria; Finalmente, querer lidar com Moscou antes da libertação de Bucareste" (pg. 31)

À leitura desses dois breves extratos, não podemos dizer que Jean Thiriart carecia de perspicácia e previsão. Mas essas frases foram escritas, repetimos, em uma época em que militantes europeus sinceros, mesmo os mais audaciosos, mal conseguiram conceber uma unidade europeia de Brest a Bucareste, isto é uma Europa limitada à península ocidental da Eurásia; para Thiriart, isso já representava tão somente um passo, uma plataforma para lançar um projeto muito mais vasto, o de unidade continental imperial. Não falemos, portanto, de direitos nacionalistas, incluindo os de hoje, que apenas repetem infinitamente seu provincialismo, sob o olhar vigilante de seu patrão americano.

Já se passaram trinta anos, Thiriart vai mais longe: ele denunciou todo o absurdismo geopolítico do projeto gaullista (De Gaulle foi mais um responsável direto pela derrota da Europa, em nome do chauvinismo antigo-nacionalista do Hexágono) de uma Europa se estendendo do Atlântico aos Urais, endossando essa visão continental absurda, própria de professores de geografia, que traça em mapas de papel uma fronteira imaginária até os picos dos Urais, que jamais detiveram ninguém, nem os hunos, nem os mongois, nem os russos.

A Europa se defende nas margens dos rios Amur e Ussuri; a Eurásia, isto é, Europa mais Rússia, tem um destino claramente traçado pela história e geopolítica do Oriente, na Sibéria, no extremo oriente da cultura europeia, e este destino se opõe ao Ocidente da civilização americana da Bíblia e do Business. Quanto a história de encontros e confrontos entre povos, não é nada além da geopolítica em ato, tal como a geopolítica não é nada além dos destinos históricos dos povos, nações, etnias e imperios, mesmo religiões, em potência. De passagem, nós devemos acrescentar que a concepção de Jean Thiriart, dado que ela estava ainda ligada a modelos "nacionalistas" influenciados pela França revolucionária, era finalmente mais "imperial" do que imperialista. Ele sempre recusou, até o fim, a hegemonia definitiva de um povo sobre todos os outros. 

A Eurásia de amanhã não será mais russa do que mongol, turca, francesa ou germânica: já que quando todos esses povos exerceram hegemonia singular, eles falharam. As falhas devem servir como lições.

Quem poderia, trinta anos atrás, ter previsto com tamanha precisão a fraqueza intrínseca desse colosso militar-industrial que era a URSS, que parecia à época sempre lançada na conquista de novos espaços, em todos os continentes, em competição dura com os EUA, que depois a ultrapassaria? 

Com o tempo, finalmente, tudo foi revelado como um imenso blefe, uma miragem histórica provavelmente fabricada a partir do zero por forças globalistas no Ocidente para manter povos na servidão com, sua chave, constantes chantagens por terror. Tudo isso para manipular os povos e nações da Terra para o benefício do interesses estratégico supremo, apresentado como única "verdade": o da superpotência planetária que são os EUA, base armada territorial do projeto globalista. Finalmente, falando na língua da geopolítica, foi a "política da anaconda" que prevaleceu, como definida no passado, com as mesmas palavras, pelo geopolítico alemão Haushofer, e definida hoje pelos geopolíticos russos, à cuja cabeça está o coronel Morozov; os americanos e globalistas sempre buscam remover o pivô territorial da Eurásia de saídas potenciais para mares quentes, antes de abocanhar pedaço por pedaço o território da "telurocracia" soviética. O ponto de partida para essa estratégia de abocanhar: Afeganistão.

Jean Thiriart já havia trazido à luz, em seu livro em 1965, as razões brutas e cruas que animam a política internacional. Não é por acaso, de qualquer maneira, que um de seus modelos foi Maquiavel, autor do Príncipe. Certamente, pessimistas nos dirão, se o Thiriart analista político havia sabido antecipar e prever, o Thiriart militante, organizador e líder político do primeiro modelo de uma organização europeia transnacional, falhou nisso. Ou porque a situação internacional à época não estivesse suficientemente madura (ou podre), como afirmamos hoje, ou porque não houve "santuário" de partida, como Thiriart havia julgado indispensável. Na verdade, ele carecia na Jeune Europe de um território livre, um Estado completamente estrangeiro às condições impostas pelas superpotências, que pudesse servir de base, de refúgio, de fonte de provisão para os militantes europeus do futuro. Um pouco como Piemonte foi para a Itália. 

Todos os encontros de Thiriart a nível internacional objetivava isso. Todos falharam. De forma realista, Thiriart renunciou à participação política, retomando seu discurso e aguardando que a ocasião se apresentasse, e mesmo uma melhor ocasião, de ter um grande país a partir do qual ele pudesse propôr sua estratégia: a Rússia. O destino desse cidadão belga de nascimento, mas europeu por vocação, foi estranho: ele foi sempre "atemporal", surpreso por eventos. Ele sempre os previu, mas foi sempre ultrapassado por eles.

Sua concepção de geopolítica eurasiana, sua visão que designava globalmente os EUA como o inimigo objetivo absoluto, pôde ser percebida como indicações de um "visionarismo" iluminado, freado somente por um espírito racional cartesiano, e racionalizante em última instância.

Seu materialismo histórico e biológico, seu nacionalismo europeu centralizador e totalitário, seu fechamento para temas ecológicos e animais, suas posições pessoais em relação a especificidades etnoculturais, sua hostilidade principiológica a todo pathos religioso, sua ignorância de dimensões metapolíticas, sua admiração pelo jacobinismo da Revolução Francesa, tudo isso são pedras de tropeço para um bom número dos antiglobalistas francófonos: tudo isso constituía os limites de seu pensamento e os resíduos de concepções antigo-materialistas, progressistas e darwinistas, cada vez mais distantes das escolhas políticas, religiosas e culturais contemporâneas, entre os homens e povos engajados, por toda a Eurásia e mundo, na luta contra o globalismo. As ideias "racionalistas" que Thiriart endossava foram, ao contrário, o solo político e cultural sobre o qual o globalismo germinou no curso de séculos passados. Estes aspectos do pensamento de Thiriart revelavam seus limites, durante os últimos meses de sua existência, notavelmente nos colóquios e conversas em Moscou em agosto de 1992. Seu desenvolvimento intelectual parece ter sido definitivamente preso na época do historicismo linear e progressivo, com sua mitologia de um "futuro radiante para a humanidade".

Tal visão racionalista não lhe permitiu compreender fenômenos tão importantes quanto o renascimento islâmico ou o novo "misticismo" russo eurasiano, bem como suas projeções políticas de teor altamente revolucionário e antiglobalista. E nem falemos no impacto das visões tradicionalistas de um Evola ou um Guénon. Thiriart, assim, transmitia sua deficiência "cultural", o que não nos impediu de nos encontrarmos em Moscou em agosto de 1992, onde colhemos suas inúmeras intuições políticas. 

Algumas de suas intuições foram feitas junto a jovens militantes europeus que foram encontrar os protagonistas da vanguarda "eurasiana" da Frente de Salvação Nacional Russa, reunidos ao redor da revista Den e do movimento de mesmo nome. Nós descobrimos, assim,na capital do antigo império soviético que ele foi perfeitamente reconhecido como pensador de vanguarda pelos russos. Os ensinamentos geopolíticos de Thiriart haviam germinado na Rússia, é indubitável, enquanto no Ocidente eles sempre foram ignorados, ou mesmo desprezados. Thiriart teve um impacto profundo nas distâncias glaciais da Rússia siberiana, no coração do Velho Mundo, perto ao pivô central da telurocracia eurasiana.

É uma ironia na história das doutrinas políticas, que se ergue no momento de sua atualização prática ou é a enésima confirmação desse velho adágio, "ninguém é profeta de seu próprio século?" O longo "exílio interior" de Thiriart parecia, assim, terminado, ele havia se retirado da política ativa definitivamente e havia superado essa aposentadoria que, desde o início, foi uma grande farsa. Ele nos inundou com documentos escritos, gravações de depoimentos orais. A inundação nos pareceu intermináve! Como se ele buscasse compensar pelo tempo perdido em silêncio desdenhoso. 

Movido por um entusiasmo juvenil, às vezes excessivo e cansativo, Thiriart se comprometeu a dar lições de história e geopolítica, ciências exatas e ciência política, e quaisquer outras disciplinas imagináveis, para o público geral e jornalistas, para parlamentares e escritores, para políticos da ex-URSS e militantes islâmicos da CEI, e também, certamente, para os italianos presentes, que haviam, ao mesmo tempo que ele, conhecido mudanças de opinião, aparentemente inesperadas. E tudo isso aconteceu na Rússia de hoje, onde tudo, a partir de então, é possível e nada é garantido (e que pode ser, quem sabe, a Rússia de amanhã quando este artigo aparecer); nós lidamos realmente com uma Rússia suspensa entre um passado glorioso e um futuro sombrio, mas plena de possibilidades inimagináveis. Foi lá que Jean Thiriart encontrou uma nova juventude.

Em uma Moscou que sobrevive dia após dia entre apatia e febrilidade, parecendo aguardar por "algo" cujo nome ou rosto não conhecemos; uma cidade onde tudo acontece, onde tudo pode acontecer em uma dimensão especial, entre o céu e a terra. Em solo russo tudo e seu oposto pode emergir: salvação e perdição, renascimento ou o fim, um novo poder ou a desintegração total de um povo que foi imperial e foram transformados hoje em plebeus miseráveis. Ao fim, é este, e apenas este, que é o destino de todos os povos europeus e, finalmente, do planeta Terra. A alternativa é muito clara: nós teremos um novo império eurasiano que nos guiará na luta pela libertação de todos os povos do planeta ou assistiremos ao triunfo do globalismo e da hegemonia americana pelo próximo milênio. Foi ali que o escritor e político Jean Thiriart encontrou a esperança de pôr em prática suas intuições passadas, dessa vez em escala muito mais vasta. 

Neste solo russo, onde o exército messiânico dos povos da Eurásia, novo avatar de um ciclo de civilização ou o Anticristo da profecia de João pode surgir, nós teremos um espaço para toda alquimia e experiência política, inconcebível se olharmos com os olhos de um ocidental. A Rússia hoje é um imenso laboratório, um território político virgem que pode fertilizar os enxertos que vem de longe, um território virgem onde liberdade e poder buscam se unir e tentar uma nova síntese: "O caminho da liberdade passa pelo do poder", Thiriart sublinhou em seu livro fundamental:

"Assim, não deve ser esquecido, ou é necessário ensinar aos que são ignorantes. A liberdade do fraco é um nobre mito, uma engenhosidade para uso demagógico ou eleitoral. Os fracos nunca foram livres e nunca serão. Só a liberdade do forte existe. Quem quer ser livre deve querer ser poderoso. Aquele que quer ser livre deve ser capaz de deter outros homens livres, porque a liberdade é invasiva e tende a se expandir sobre a de vizinhos fracos".

Ou ainda:

"É criminoso, do ponto de vista da educação política, tolerar que as massas possam ser intoxicadas por mentiras debilitantes como aquelas que consistem em 'declarar paz' aos seus vizinhos, imaginando que eles possam manter sua liberdade. Cada uma de nossas liberdades foi adquirida após lutas repetidas e sangrentas e cada uma delas só poderá ser preservada se demonstrarmos a força capaz de desencorajar aqueles que nos querem tomá-las. Mais do que os outros, nós desfrutamos de muitas liberdades e rejeitamos inúmeras limitações. Mas nós sabemos o quanto essas liberdades são perpetuamente ameaçadas. Seja como indivído, ou como nação, nós conhecemos a fonte da liberdade e que ela é o poder. Se quisermos preservar a primeira, devemos cultivar a segunda. Eles são inseparáveis". (p. 301-302)

Eis uma página que, por si mesma, poderia garantir a seu autor um posto acadêmico em história das ciências políticas. Quando tudo parece possível novamente e quando o jogo das grandes estratégias políticas retorna à vanguarda, em um tabuleiro de xadrez tão grande quanto o mundo, quando Thiriart mal havia vislumbrado a possibilidade de dar vida a sua grande ideia de unidade, ali surgiu o último golpe do destino: morte. Apesar de sua inevitabilidade, é um evento que sempre nos surpreende, que nos deixa com uma sensação de pesar e incompletude. No caso de Thiriart, o fato da morte fez o espírito vagar e imaginamos tudo que este homem de elite poderia ter ainda trazido para nossos combates, tudo que ele poderia ter ainda ensinado àqueles que partilhavam de nossa causa, mesmo que em simples trocas de opinião, mesmo que apenas fazendo proposições em questões políticas e culturais. No fim das contas, cabe a nós sublinhar a completude da obra de Thiriart. Mais do que qualquer outro, ele havia sistematizado completamente seu pensamento político, ao mesmo tempo sempre permanecendo plenamente coerente com suas próprias premisas e permanecendo fiel ao estilo que ele deu a sua vida. 

Para ele não podemos dizer qualquer coisa post mortem que ele já não houvesse dito, nem adaptando seus textos e suas teses às demandas políticas do momento. O fato permanece, indubitavelmente, que sem Jean Thiriart, nós não seríamos o que nos tornamos. Em efeito, nós somos todos herdeiros no esquema de suas ideias, que conhecemos pessoalmente ou através de seus escritos. Nós temos sido, de um momento ou outro de nossa vida política ou missão ideológica, os devedores de suas análises e intuições meteóricas. Hoje, nos sentimos todos como órfãos.

Neste instante, queremos recordar um escritor político, um homem que era simplesmente apaixonado, ríspido, com vitalidade transbordante, um rosto sempre iluminado com um sorriso juvenil e uma alma animada por uma paixão flamejante, a mesma que queima em nós, sem vacilar, sem a menor incerteza ou dobra. 

O caso de Jean Thiriart? É a encarnação viva, vital, de um homem de elite que levou seu olhar à distância, que viu mais além, para além das contingências do presente, onde as massas permanecem prisioneiras. Eu quis pintar o retrato de um profeta militante. 

José Ignacio Moreno Gómez - O Princípio Solidarista de José Antonio Primo de Rivera e de Leon Duguit

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por José Ignacio Moreno Gómez



Não se destacou suficientemente a enorme influência da nova Sociologia do Direito, especialmente a do Sindicalismo Solidarista de Durkheim e, acima de tudo, de Léon Duguit, na formação do pensamento do fundador da Falange. Retirando a pretensão antimetafísica do pensador francês, que põe em risco o ser mal interpretada sua negação dos direitos subjetivos, e em contraste com a fundamentação teológica que o líder falangista faz da liberdade e da dignidade da pessoa humana, o paralelismo entre as propostas de um e outro são evidentes, tal e como pretendo expor à continuação.

Direito e Política


Há que insistir, para entender em profundidade José Antonio Primo de Rivera e seu pensamento, que a vocação primigênia do chefe falangista não foi a política, mas o Direito. É por meio do estudo de juristas e filósofos, que se inicia em sua etapa de estudante e continua posteriormente, como chega o fundador da Falange a construir o andaime de estrutura firme e constante a partir do qual realizará sua construção política. José Antonio estuda as reflexões de juristas como Stammler, Ihering, Kelsen, Jellinek, Hariou, Durkheim ou Duguit sobre a regulação dos direitos reais como objeto da ciência jurídica, e se propõe, seguindo filósofos e teólogos como Santo Agostinho, Santo Tomás, Platão, Kant, Hegel ou o positivista Comte, se existe alguma relação desses direitos com aqueles outros princípios metajurídicos que encarnam um ideal de Justiça e que, por isso, não são objeto do Direito, mas da Política. José Antonio se aparta do positivismo quando nos adverte em sua conferência sobre Direito e Política, pronunciada na inauguração do curso do Sindicato Espanhol Universitário de 1935, que todo jurista tem a necessidade de ser político, pois não é honesto, nos diz, incitar à fraude dizendo professar, como único critério organizador da sociedade, a juridicidade. Mas, ao mesmo tempo, uma vez abraçado um ideal (político) de Justiça, terá que cuidar de procurar uma "técnica limpa e exata, pois no Direito toda construção confusa leva escondida uma injustiça". Pode-se afirmar que a aproximação à política do falangista foi, antes de tudo, uma exigência de foco jurídico. José Antonio admitiu, seguindo Stammler, que os fenômenos jurídicos haviam de ser referidos à ordenação de certos meios para conseguir fins pretendidos, a velha ordinatio rationis de Santo Tomás, acrescentando a distinção kantiana entre conteúdo e forma, e defendeu, metajuridicamente, a capacidade dos fatos revolucionários de produzirem uma legitimidade jurídica de origem; princípio que aplicaria à defesa da Ditadura de seu pai, assim como à aceitação do fato revolucionário do 14 de abril como legitimador da 2ª República espanhola, que nasceu rompendo o ordenamento constitucional anterior.


Fascismo ou Solidarismo?


Quando, mais tarde, José Antonio publica em El Fascio seu artigo "Orientações para um novo Estado", não nos fala um seguidor daqueles que, a partir de coordenadas hegelianas, propugnavam um Estado totalitário de soberania plena. Sua proposição tem um enfoque, jurídico e político, que em nada recorda à posição mussoliniana que identificava o povo com o corpo do Estado e o Estado com o espírito do povo, e que reservava todo poder, sem divisões ou restrições, para o Estado, atitude próxima, por paradoxal que possa parecer, à dos defensores do mito da soberania popular. A crítica de Primo de Rivera a essa ideia de soberania, que logo repetirá em A Comédia e em inúmeros escritos posteriores, é a mesma que expõe Léon Duguit em suas lições sobre Soberania e Liberdade. Em José Antonio não existe essa submissão da razão à vontade tão característica do fascismo e dos adictos à soberania nacional. O discurso de José Antonio não é fascista. Seria solidarista?


A Soberania e o Princípio de Solidariedade


O princípio sobre o qual se vertebrarão os sistemas jurídicos dos Estados futuros, segundo a nova sociologia francesa do Direito, terá de ser um princípio de solidariedade. Duguit proclamava que estava em caminho de se iluminar uma nova sociedade baseada no rechaço do direito subjetivo como noção básica do sistema político. Seria o direito objetivo a regra fundamental da sociedade nova. Para Duguit, o fundamento da norma permanente do Estado se encontrava no conceito solidário de liberdade e na divisão do trabalho; quer dizer, nas distintas funções a realizar em uma sociedade unida por laços de solidariedade e cooperação. A liberdade é concebida como um dever, não como uma espécie de soberania individual, mas com mais exatidão, como uma função. Para Duguit, a doutrina da soberania é, na teoria e na prática, uma doutrina absoluta. Rousseau sacralizava o sofisma da ditadura da maioria, de um sufrágio universal que impunha tiranias em nome da democracia parlamentar. O sistema jurídico-político ao qual Duguit aspirava não podia se fundar sobre o conceito de soberania, mas sobre a dependência recíproca que une os indivíduos; quer dizer, sobre a solidariedade e a interdependência.


Liberdade e Serviço


A autonomia individual é um serviço; a atividade dos governantes é o serviço público, afirma Duguit. José Antonio, na conferência que pronuncia em 1935 sobre Estado, Indivíduo e Liberdade, avisa que se o Estado se encastela em sua soberania e o indivíduo na sua, o pleito não tem solução. A única saída, justa e fecunda, para o líder falangista, é que não se proponha o problema da relação entre o indivíduo e o Estado como uma competição de poderes e direitos, mas como um cumprimento de fins e de destinos: "Aceita esta definição do ser-portador de uma missão...floresce a nobre, grande e robusta concepção do serviço... Se alcança a personalidade, a unidade e a liberdade próprias servindo na harmonia total". Primo de Rivera está formulando os mesmos princípios solidaristas de Léon Duguit, amarrando-os com a doutrina de Santo Tomás e da escola de Salamanca.


O Estado Sindicalista Descentralizado

No terreno político, o Estado não justifica sua conduta, como não a justifica um indivíduo, nem uma classe, senão na medida em que não se adapta em cada instante a uma norma permanente, explica o falangista a quem acusam de divinizar o Estado. Assim é como o homem pode fundar todo o sistema político-social sobre o postulado de uma regra de conduta que se impõe a todos. Existe uma "lei orgânica da sociedade", objetiva e positiva, por cima da vontade dos indivíduos e da coletividade, nos diz Duguit. Sobre essa regra se realiza a transformação do Estado, através de uma organização social que deve se basear na descentralização ou federalismo sindical. O sindicato se converte, pois, na corporação elementar da estrutura jurídica ideada pelo jurista francês, e passa de ser um "movimento classista" a desempenhar funções concretas capazes de limitar a ação do governo central.

Léon Duguit em La représentation sindicale au Parlament (1911) concretizou, finalmente, essa ideia de um novo regime político erigido sobre a representação funcional do sindicalismo que, após a revolução russa, se convertia no único meio de assegurar as liberdades próprias da civilização ocidental (Souveraineté et Liberté, 1922). José Antonio é já um sindicalista, neste mesmo sentido, antes de conhecer Ledesma, e é essa a ideia de sindicalismo que permanece em seu pensamento, também após ter se fundido com o grupo das JONS, ainda que se aprofunde mais nela e a radicalize após ler Sorel.

Economia Solidária

Algo similar à transmutação solidarista do contrato social, ocorre com a propriedade privada. No terreno da economia, Duguit rechaçava tanto a luta de classes quanto o direito absoluto à propriedade: ninguém tem "direitos subjetivos" para impôr sua vontade de maneira absoluta. A propriedade é o produto do trabalho e ninguém tem direito a deixá-la improdutiva. A propriedade sobre o capital não é um direito, mas uma função, dirá o francês, para quem a propriedade privada adquire uma função social ao se transmutar de propriedade-direito em propriedade-função. Para José Antonio, a propriedade é um atributo humano distinto ao capital, que é um mero instrumento.

O Estado de Bem-Estar

Sob a inspiração do princípio solidarista, se passa de uma concepção negativa da ordem pública, como a que se tinha no Estado liberal-individualista, à necessidade de ajustar a ideia do contrato social ao postulado do bem comum (ad bonum commune), e a entender que as liberdades individuais vem limitadas pelo princípio solidário da função social. Quando Duguit anuncia a superação do Estado liberla, que desapareceria naquele dia em que a evolução social elvasse os governados a pedirem a seus governantes algo mais que os serviços de defesa, polícia e administração de justiça, está estabelecendo os fundamentos do Estado do Bem-Estar, que viria após a Segunda Guerra Mundial e que hoje encontramos quase desaparecendo. José Antonio vai mais além, pois a finalidade do Estado que ele defende não se limita a procurar um bem-estar puramente materialista, mas que tem como objetivo supremo assegurar condições que permitam aos povos voltar à supremacia do espiritual.

Rumo a um Novo Estado

Duguit foi acusado de anti-estatismo e de anarquizante. Desde o realismo político, Carl Schmitt o situou entre os precursores do "pluralismo desagregador". José Antonio, defendendo ideias parecidas, tem sido qualificado de fascista, totalitário e defensor do pan-estatismo.

Mas assistimos hoje à crise dos Estados nacionais e das organizações internacionais, cada vez com menor margem de manobra para garantir o bem-estar dos cidadãos; presenciamos o auge de um neoliberalismo (principalmente na economia), que estende sua sombra escura de desconfiança à capacidade do Estado de ordenar a sociedade, e que pretende recortar cada vez mais as funções desse; tentam nos inculcar uma fé renovada na quimérica e fracassada mão invisível de Adam Smith, que nos é proposta novamente como panaceia mágica para alcançar o bem de todos mediante o equilíbrio mecânico de egoísmos contrapostos; comprovamos o poder enorme dos grandes trustes multinacionais e transnacionais, e dos grupos de pressão, com uma liberdade de ação cada vez menos limitada nos mercados globalizados.

A ausência de uma armação verdadeiramente fraterna e humana na vertebração das sociedades nos convida também a considerar que o princípio solidarista de Duguit e, acima de tudo, o de José Antonio Primo de Rivera necessita, com prontidão, ser repensado e postos de novo para calibrar, para que essa solidariedade orgânica que eles consideravam como a regra fundamental, seja situada como pedra angular em um novo conceito de Estado e como pilar de uma nova sociedade. 

Luciano Lanna e Filippo Rossi - Fascistas de Esquerda

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por Luciano Lanna e Filippo Rossi

Tradução por Lucas Rodrigues




"A direita é censura, reação, carolice. E se tenho uma afiliação cultural é mais ao fascismo que à direita, que me dá nojo [...]. O fascismo que conheci na minha família é aquele libertário, alegre, generoso. Penso no fascismo revolucionário do início e do fim, aquele que não conserva mas muda, aquele socialista e socializante...".
Idéias claras e ouvidas do rapaz de vinte e oito anos Nicolo Accame, jornalista do "Secolo d'Italia", que foi entrevistado, junto com seu pai Giano, em Março de 1996, por Stefano di Michele: dois fascistas, pai e filho. Idéias claras e ouvidas que afundam em um ambiente existencial e cultural difuso e enraizado: o dos assim chamados "fascistas de esquerda".
Já Alberto Giovannini, jornalista de velha idade, nascido em 1912, quando foi pressionado a se definir, teve de recorrer àquele aparente oxímoro: "Eu sou fascista ao meu modo. Era, o nosso, um fascismo de esquerda". E acrescentava: "Não podia não possuir certa fidelidade e reconhecimento àquele regime, em que eu, que era ninguém, filho de gente pobre, de operários, comecei a trabalhar como garoto de entregas e cheguei à direção de um jornal. O fascismo me tinha dado a possibilidade de avançar socialmente. Não esqueci isso."
E quando, no meio dos anos 80, durante a apresentação de uma reedição do "Scrittore Italiano" de Berto Ricci, os dirigentes do MSI Pinuccio Tatarella e Beppe Niccolai também foram pressionados a se definir, as duas respostas foram antitéticas. Mais que "de direita", de "centro-direita" se definiu Tatarella, reivindicando a tradição política que nos anos 50 tinha visto muitas cidades do Sul administradas de coalizões compostas do MSI, da direita liberal e monárquica e da Democracia Cristã. Do lado oposto, seguramente "não de direita", "antes de esquerda", se declarou Niccolai, reivindicando uma tradição toda outra. Uma tradição que afundava suas raízes no Mussolini jacobino, no socialismo do "Resorgimento" de Pisacane, no sindicalismo revolucionário de Sorel e Corridoni, nas vanguardas artísticas do início do Novecentos, no fascismo de San Sepolcro de 1919, na interpretação gentiliana do marxismo...
Se de fato, historicamente, o fascismo nasce com Mussolini e "Il Popolo d'Italia" entre 1914 e 1919 a partir de uma cisão do partido socialista, o filósofo católico Augusto del Noce faz retroagir sua gênese filosófica a 1899, com a publicação do ensaio de Giovanni Gentile sobre "A filosofia de Marx", que foi considerado por Lenin - no "Dicionário Enciclopédico Russo Granat", de 1915 - um dos estudos mais interessantes e profundos sobre a essência teórica do pensador de Tréveris. Do marxismo, Gentile rejeitava o materialismo oitocentista mas abraçava com entusiasmo a dimensão ultramoderna da "filosofia da práxis", que pretende não só interpretar o mundo, mas mudá-lo. Seguindo a interpretação de del Noce, portanto, o fascismo não seria de fato uma negação do marxismo, mas antes uma "revisão" dele, que reinterpreta a práxis como espiritualidade. O fascismo se projeta, portanto, como uma revolução "posterior" no que diz respeito à marxista-leninista. Por outro lado, tornado filósofo oficial do fascismo, Gentile republicou seu livro sobre Marx em 1937, em plenos "anos do consenso". E quando, em 24 de Junho de 1943, pronunciou em Campidoglio o discurso aos italianos para exortá-los a resistir aos anglo-americanos, se dirigiu expressamente aos ambientes da esquerda apresentando o fascismo como "uma ordem de justiça fundada sobre o princípio de que o único valor é o Trabalho". E precisou: "quem fala hoje de comunismo na Itália é um corporativista impaciente". O próprio Lenin, de resto, dirigindo-se ao comunista Nicola Bombacci tinha dito: "Na Itália, havia apenas um socialista capaz de fazer a Revolução: Benito Mussolini".
Existem muitas coisas na trajetória do fascismo de esquerda: o  percurso político do próprio Bombacci, comunista que acabou em Salò e que teve seu corpo exibido com o de Mussolini em Piazzale Loreto; o bando rebelde dos jovens intelectuais agregados em torno do ex-anarquista de Florença Berto Ricci e da sua revista "L'Universale"; a longa viagem do fascismo ao comunismo de tantos intelectuais, de Davide Lajolo a Fidia Gambetti, de Felice Chilanti a Ruggerzo Zangrandi, de Elio Vittorini a Vasco Pratolini, de Ottono Rosai a Mino Maccari. Fermentos culturais e contradições que inspiraram o historiador Giuseppe Parlato a dedicar um livro inteiro à assim chamada "esquerda fascista": "Aquela mistura, várias vezes discordante e contraditória, de sentimentos, de posições, de perspectivas e de projetos que se fundavam na convicção de viver no fascismo e através dele uma espécie de ressurreição revolucionária, a primeira verdadeira revolução italiana desde a unificação".
E das várias almas do fascismo, a "esquerda" foi seguramente a mais vivaz. Ancorada no Risorgimento de Mazzini e de Garibaldi, a esquerda fascista procurou encarnar um projeto que nasceu antes do Fascismo e que buscava ultrapassar a própria experiência mussoliniana. E se nos primeiros tempos ela se traduz essencialmente no esquadrismo e no sindicalismo, lá para a metade dos anos 30 - somando-se a isso sobretudo os jovens universitários, os intelectuais e os sindicalistas - se reclamou portadora de um "segundo fascismo", que buscava superar a sociedade burguesa. Não foi por acaso que os vários Bilenchi, Pratolini e todos os jovens intelectuais do assim chamado "fascismo de esquerda" achassem uma figura de referência no fascista anarquista Marcello Gallian, além de em Berto Ricci. "Os livros de Gallian", escrevia Romano Bilenchi no "Il Popolo d'Italia" de 20 de Agosto de 1935, "são documentos...e um documento de um período revolucionário que não se crê completo não terá fim até que toda a revolução seja realizada".
Essa alma de esquerda conviverá durante os vinte anos do regime com outros componentes. E, em que pese o seu projeto ter sido em muitos sentidos "incompleto", marcará sempre o "Ventennio", influindo decisivamente sobre a identidade cultural seja do fascismo, seja do pós-fascismo.
Confessará Bilenchi, que se tornou comunista depois da guerra: "Permaneci muito ligado a essas idéias, digamos assim, socialistas...O programa do fascismo me conquistou, mais à esquerda, ao menos nas suas palavras e ao menos no início, mais do que os outros...depois conheci Berto Ricci, uma pessoa séria, honesta e simpática. Era uma anarquista, filosoviético, e entrou no partido fascista convencido de estar participando de uma revolução proletária".
De resto, já em 1920, Marinetti tinha escrito: "Gostei de saber que os futuristas russos são todos bolcheviques...As cidades russas, para a última festa de Maio, foram decoradas por pintores futuristas. Os trens de Lenin foram pintados por fora com formas coloridas dinâmicas muito parecidas com as de Boccioni, Balla e Russolo. Isso honra Lênin e nos alegra como uma vitória nossa".
E ficam ainda os atos que em 16 de Novembro de 1922, com uma intervenção na Câmara dos Deputados de Mussolini, presidente do Conselho Fascista, fizeram com que a Itália fosse o primeiro país ocidental a declarar-se disponível ao reconhecimento internacional da União Soviética. Uma abertura que, ao menos até a guerra civil da Espanha, nunca será menor. No dia 29 de Junho de 1929, Italo Balbo, em uma de suas célebres viagens aéreas a partir da Itália, chegou em Odessa na URSS, e ali foi recebido com guardas de honra. E no 4 de Dezembro de 1933, Mussolini recebeu oficialmente o Ministro do Exterior Russo, Maxim Litvinov: havia três meses os dois países tinham assinado um pacto de amizade e a ocasião reforçou, em momentos posteriores, as boas relações
Eram esses os anos em que o filósofo Ugo Spirito chegava a teorizar - no Encontro de Estudos Corporativos de Ferrara de 1932 - a "corporação proprietária" que previa de fato a abolição da propriedade privada, e em que pululavam as publicações abertamente filosoviéticas, entre as quais um livro de Renzo Bertoni, que, recém-tornado de uma longa estada na União Soviética, publicava em 1934 uma obra intitulada "O Triunfo do fascismo na URSS"; na sua capa, um Stalin com a mão aberta, com os dizeres: "Stalin saúda romanamente a massa".
Depois, a guerra na Espanha, a Segunda Guerra Mundial e a República de Salò. E exatamente essa última experiência gera fortes discussões entre Mussolini e Hitler. Para o ditador alemão, a República devia se chamar "República Fascista Italiana". Mussolini, por sua vez, sem mais qualquer coisa que o ligasse com a monarquia e os conservadores, teria preferido "República Socialista Italiana", voltando às sugestões de Sansepolcro. Mas Hitler não queria ouvir falar daquele adjetivo que "fedia" a subversão e a marxismo. E ao final chegaram a um consenso com "República Social Italiana". E, ainda que reduzida a "social", a palavra socialista voltava ao léxico dos fascistas. Tão forte foi o efeito de emoção que tal ato gerou no socialista de primeira hora e ex-comunista Nicola Bombacci - aquele que havia feito os comunistas italianos adotarem a foice e o martelo - que o fez reatar relações com Mussolini. No dia 11 de Outubro de 1943 escreve: "Duce, estou hoje mais do que ontem convosco. A torpe traição rei-Badoglio, que jogou a Itália na ruína e na desonra, liberou o senhor de todos os componentes plutocráticos e monárquicos de 1922. Hoje o caminho está livre e em minha opinião já nos permite chegar até o ponto socialista".
Em um dos artigos escritos pouco antes de ser assassinado pelos "partigiani", o jornalista Enzo Pezzato - redator-chefe em Salò de "Repubblica Fascista" - escreveu: "O Duce não chamou a República de 'Social' por brincadeira: os nossos programas são decisivamente revolucionários, as nossas idéias pertencem ao que seria chamado em um regime democrático de idéias de 'esquerda'".
E nos dias do crepúsculo de Salò, Mussolini confidenciará ao jornalista socialista Carlo Silvestri: "O grande drama da minha vida se produziu quando não tive mais força de apelar à colaboração dos socialistas e de resistir ao assalto dos falsos corporativistas. Esses últimos agiam na verdade como procuradores do capitalismo...tudo aquilo que aconteceu depois foi a consequência do cadáver de Matteotti que no dia 10 de Junho de 1924 jogaram entre os socialistas e a minha pessoa para impedir o encontro que teria dado todo um outro destino à política nacional".
Sobre a experiência da RSI, Enrico Landolfi escreveu que não foi algo monolítico: "Foi um prisma com muitas faces, um fenômeno pluralístico. Tanto isso é verdade que nela estava presente quase todo o espectro doutrinário e político". Landolfi sublinha a  presença em seu interior de expoentes até mesmo da esquerda anti-fascista dispostos a colaborar pela implementação do assim chamado "Manifesto de Verona": além de Bombacci e Carlo Silvestri, Edmondo Cione, Germinale Concordia, Pulvio Zocchi, Walter Mocchi e Sigfrido Barghini. Além deles, existia em Salò uma vasta "agremiação mais consequentemente e coerentemente revolucionária, socializante, popular-nacional, libertária. Aberta, além de tudo, e mesmo simpática, ao diálogo com o anti-fascismo, inclinada à mais ampla democratização da República, decidida a resistir às interferências e rapinas nazistas, inequivocavemente anti-burguesa e anti-capitalista". E também por isso, Landolfi deu o título de "Adeus, Salò Vermelha" ao seu livro sobre a RSI. Aquela república vermelha que Bombacci saldou pela última vez, antes que os partigiani o fuzilassem, com as palavras: "Viva Mussolini! Viva o socialismo!".
No imediato pós-guerra o tema da rehabilitação política, ou ao menos eleitoral, de quem foi fascista durante o Ventennio e na RSI interessará, mais ou menos abertamente, até ao Partido Socialista Italiano e ao Partido Comunista Italiano, partidos em que encontraram abrigo muitos fascistas de esquerda. Assim, em Agosto de 1947, Palmiro Togliatti, que um ano antes tinha concedido anistia aos fascistas na qualidade de Ministro da Justiça e da Graça, escrevia no jornal comunista "La Repubblica d'Italia": "Não escondemos as nossas simpatias por aqueles ex-fascistas, jovens ou adultos, que sob o regime passado pertenciam àquela corrente em que se sentia a ânsia pela abertura de novos horizontes sociais...Nós reconhecemos aos ex-fascistas de esquerda o direito de se reunir e de se exprimir abertamente conservando a própria autonomia". 
E também o líder socialista Pietro Nenni, entrevistado em "Paese Sera" no primeiro de Janeiro de 1955, legitimava os fascistas de esquerda: "Para nós a direita exprime somente instintos anti-sociais, de conservação e reação. Típico disso é o caso dos fascistas que, para se inserir na política reacionária americana, não pensaram duas vezes antes de apunhalar de novo seu líder e renegar o único elemento respeitável da sua tradição, vale dizer, a oposição às assim chamadas plutocracias". E o mesmo Nenni, que abriu as páginas do seu "Avanti" ao ex-diretor fascista do "La Stampa", de Turim, Concetto Pettinato às vesperas ,das eleições de 1953, já no imediato pós-guerra tinha ajudado no nascimento de uma revista - "Rosso e Nero", "vermelho e negro" - com a qual o fascista de esquerda Alberto Giovannini tentava conciliar as teses fascistas da "revolução incompleta" com as teses socialistas da "revolução que não ocorreu".
Nesse clima, um grupo de fascistas de esquerda se agrupará em torno da revista quinzenal "Il Pensiero Nazionale", dirigido pelo escritor e jornalista pró-republicano Stanis Ruinas. Foram definidos como "fascistas-comunitas", "comuno-fascistas", "camisas negras de Togliatti" e "fascistas vermelhos", essa última uma definição que depois de algumas exitações acabaram por aceitar. Mas o vermelho desses fascistas não foi necessariamente o do PCI, mas um vermelho mais articulado, mais complexo, mais variado. Tanto que, principalmente nos seus componentes mais inclinados a favorecer a linha da Direção do PCI (localizada na Rua Botteghe Oscure), surgiu uma divisão entre aqueles que queriam entrar - e posteriormente entraram de fato - no PCI e os outros que preferiram permanecer independentes. Depois de 1953, o grupo do "Il Pensiero Nazionale" se aproximará dos socialistas, dos social-democratas e da esquerda católica, acabando por gravitar na órbita do presidente da Eni, Enrico Mattei, e do seu nacionalismo mediterrânico e democrático. Mas não faltaram, mesmo aí, relações e diálogos com os exponentes do MSI (o partido herdeiro do fascismo) ligados ao fascismo de esquerda.
Líder reconhecido da esquerda do MSI das origens foi indiscutivelmente Giorgio Pini: jornalista próximo a Mussolini antes e durante a RSI, será um assíduo colaborador da revista "Il Pensiero Nazionale" a partir de 1954, depois que, em Abril de 1952, abandonar o MSI e, em 1953, se interromper a ligação não bem vista por ele entre a revista e o PCI. Mas, na realidade, todos os anos 50 registraram contatos e debates, mesmo públicos, entre jovens comunistas e os jovens dirigentes do MSI, sobretudo nos anos do debate sobre o ingresso da Itália na OTAN. E em 1958, o próprio Palmiro Togliatti chegou a defender a assim chamada "Operação Milazzo" que, na Sicília, concretizou a aliança administrativa entre o MSI e o PCI.
Em uma intervenção na Câmara, no dia 9 de Dezembro, o líder do PCI disse: "As convergências fizeram com que tivessem lugar, também aqui, as reiteradas e bestas brincadeirinhas sobre o comunista do PCI e o fascista do MSI, que apertam as mãos, se abraçam e tudo o mais. Se trata de um fenômeno profundo que deve ser reconhecido e analisado em todo o seu valor, ao qual daremos o nosso contributo para que passos adiante sejam dados." De outro lado, mesmo depois da saída de Giorgio Pini do MSI - ainda distante de se tornar o "partido da direita nacional" -, no interior do partido permaneceu e foi sempre ativa uma vasta e articulada presença de "fascistas de esquerda":  Ernesto Massi, Bruno Spampanato, Diano Brocchi, Giorgio Bacchi, Roberto Mieville, Domenico Leccisi, Giuseppe Landi, Ugo Clavenzani e Beppe Niccolai...E o próprio Giorgio Almirante, antes de virar secretário do Partido e de lançar a "grande direita", foi por muitos anos um expoente central da esquerda do MSI.
Ernesto Massi, grande estudioso de geopolítica, professor na Universidade Católica de Milão e vice-secretário nacional do MSI de 1948 a 1952, saiu do partido em 1957 para tentar experimentos políticos autônomos. Até 1965 anima como Giorgio Pini um "Comitê de iniciativa pela Esquerda Nacional". E só depois da falência do "Partido Nacional do Trabalho" - o qual ainda em 1958 se apresenta às eleições políticas em cinco regiões - e de se exaurir, em 1963, a sua revista "Nazionale Sociale", voltará a se aproximar ao MSI através do Instituto de Estudos Corporativos, em 1972.
Em 1963, enquanto se acabava a experiência da "Nazione Sociale", nascia em Roma "L'Orologio", dirigido por Luciano Lucci Chiarissi, uma revista e um laboratório que repunha a tradição do "fascismo de esquerda" em novos termos, de maneira muito atenta à evolução dos cenários italianos e internacionais. Chiarissi, nascido em Ancona em 1924, foi voluntário em Salò, militou no imediato pós-guerra no movimento clandestino FAR ("Fasci di Azione Rivoluzionaria"), e sempre se sentiu pertencente a uma "esquerda nacional". "L'Orologio" tentava sair do caminho do "rancor eterno" e do nostalgismo fechado em si mesmo, contestando não só o MSI micheliano, mas também grupos extraparlamentares como o "Ordine Nuovo" e "Avanguardia Nazionale". Explicava Lucci Chiarissi: "Aníbal não está às portas e, de qualquer forma, não estaria por culpa da centro-esquerda". E "L'Orologio", que tinha lançado o tema da reapropriação das "chaves de casa", apoiou De Gaulle contra o Pacto Atlântico e na Guerra dos Seis Dias ficou ao lado dos países árabes contra o imperialismo israelense. Segundo Giuseppe Parlato, "[...] no capitalismo e no imperialismo americano "L'Orologio" encontrou um perigo maior à cultura e a à política italiana que no soviético [...] e diferentemente de todos os outros jornais neofascistas, "L'Orologio" assumiu imediatamente uma posição claramente a favor dos vietnamitas e da sua luta pela independência".
São os anos nos quais ao lado - e muitas vezes de costas viradas - de tantos grupos extraparlamentares de direita, surgem também grupos extraparlamentares inspirados no "fascismo de esquerda". Assim, a seção italiana da Jovem Europa de Jean Thiriart intitulava um documento fiorentino seu de 1968 como "Por um  socialismo europeu". E assim, em 1967, nascia a "Constituinte Nacional Revolucionária", fundada por Giacomo de Sario: nascido em 1927, ex-secretário da federação jovem da social-democracia e ex-dirigente da Giovane Italia, um grupo juvenil ligado ao MSI. Com um símbolo vermelho e negro, "vermelho pela socialidade, negro pela nação", esse movimento - entre os quais os expoentes jovens de relevo estavam Massimo Brutti e Massimo Magliaro, o primeiro futuro dirigente do PCI e depois dos DS, o outro que acabará virando chefe das relações públicas de Almirante e depois jornalista da RAI - se fazia conhecer através de um periódico: "Forza Uomo", semanário de luta com redações em Roma, Milão, Varese e Brindisi. O primeiro número saiu em 10 de Agosto de 1969. Entre as suas referências culturais estavam Mazzini e Pisacane, Corridoni e Gentile, Mussolini e os futuristas.
No bojo da mesma tradição se inseria a "Federação  Nacional de Combatentes da RSI", da qual em 1970 vira presidente Giorgio Pini. No seu discurso de posse, Pini condenava a atitude dos fascistas que "debandam para a direita conservadora e autoritária, totalitária, em conúbio híbrido com os monarquistas e com os grupos religiosos mais reacionários", convidando também a que se rejeitasse "o fanático ocidentalismo de direita que chegava à servil exaltação de Nixon, o bombardeador do Vietnam", e condenando "todo apoio aos regimes militares e liberticidas dos coronéis gregos, do general Franco, sacrificador da nobre Falange de José Antonio Primo de Rivera, do regime obtusamente conservador, classista e colonialista de Lisboa, dos racistas da África do Sul e da Rodésia". Naqueles anos a Federação publicava em Roma uma série de periódicos - o quinzenal "Fnc-RSI notizie", o mensal "Corrispondenza Repubblicana", o trimestral "Azimut" e o jornal juvenil "Controcorrente" - cujos animadores contavam em suas fileiras com Romolo Giuliana e P.F. Altomonte (sigla quase pseudônima com a qual assinava o artista futurista Principio Federico Altomonte).
Quando explodiu 1968, tanto a "FNC-RSI", quanto a "Forza Uomo" e o "L'Orologio" se alinharam naturalmente com a contestação. "L'Orologio", aliás, apoiou o protesto juvenil também no plano organizativo, dando vida aos "Gruppi dell'Orologio" e fornecendo substância cultural à transformação em sentido revolucionário de alguns ambientes de matriz neofascistas. E depois que se dispersou essa experiência, Luciano Lucci Chiarissi fundará a associação político-cultural "Italia e Civiltà" que, no início dos anos 80, promoverá uma série de encontros públicos sobre seu novo "socialismo tricolor" inspirado pela mudança de postura de Bettino Craxi.
Dentro ou fora do MSI, portanto, uma certa tradição nunca morreu. E aquela que poderemos chamar de a última encarnação de uma "esquerda"  que tem sua origem no universo neofascista terá sua expressão no meio dos anos 70 com pressupostos e pontos de referência inéditos. Dessa vez se tratava de um fenômeno mais generacional e existencial que ideológico em sentido estrito. O primeiro a tomar nota disso, em Janeiro de 1979,  foi Giorgio Galli no "Repubblica", falando de "fascistas em camisa vermelha". Filhos dos anos 1970, esses netos inconscientes de Berto Ricci e Nicolino Bombacci revelavam um percurso paralelo àquele que, em outro plano, estavam realizando os seus contemporâneos da "nova esquerda". E Galli já sublinhava alguns "elementos diversos daqueles típicos" nesse grupo e, em particular, a aspiração a sintonizar e agregar "a revolta anti-sistema dos jovens, dos desocupados, do subproletariado".
Se tratava de um vasto fermento juvenil que vinha a público naqueles anos e que se podia verificar através de publicações como "La Voce della Fogna" e "Linea", nas quais apareciam argumentos e tons inéditos para a precedente atividade pública neofascista. Se introduziam temas novos, como a atenção aos direitos civis e às temáticas ambientalistas. "Nuclear? Dez vezes, NÃO!", se lia no segundo número de "Linea". E de novo sobre as páginas daquela revista apareciam as primeiras verdadeiras pesquisas sobre os "verdes" alemães, a abertura de um debate sobre a liberação da droga, e páginas e páginas sobre os novos desejos e sobre a condição juvenil. Emergia, sobretudo, o quadro de um ambiente caracterizado por uma linha libertária, garantista, anti-estatal, ambientalista, anti-ocidentalista e, quase sempre, com veias regionalistas e anti-proibicionistas.
"A saída é à esquerda", era o título de um artigo de Marco Tarchi que, no terceiro número de "Linea", lançava em grande estilo uma expressão destinada a ter sucesso. Já em 1976, de resto, o mesmo Tarchi foi autor de um documento do "Fronte della Gioventù" toscano em que, examinando as causas de uma derrota eleitoral, convocava a se "buscar uma saída à esquerda": muitos eleitores, segundo a tese de Tarchi, tinham votado no PCI não porque fossem comunistas, "mas porque eram animados por uma ânsia de mudança, e estavam desgostosos do modo de gerir a coisa pública instaurado pela Democracia Cristã e seus aliados".
Essa componente juvenil achará sua identidade sobretudo na experiência dos Campos Hobbits. E, paradoxalmente, entre 1976 e 1982, o MSI terá como indivíduo referência dessa corrente dentro do partido aquele Pino Rauti que nas décadas precedentes, todavia, tinha sido o campeão da ala tradicionalista e de matriz evoliana do neofascismo. Como escreveu o historiador Pasquale Serra, "na segundo metade dos anos 1970, Rauti arruína o esquema do seu raciocínio anterior:  de um lado, de fato, ele escolhe como fonte privilegiada o fascismo italiano (o fascismo da síntese) e não mais o nazismo ou os fascismo "menores", ao contrário do que antes tinha ocorrido nas décadas prévias, e de outro lado filia o fascismo às suas origens de esquerda".
E essas orientações, até os anos 80, se expressarão também em algumas experiências de administração local, em que o MSI governará junto com o PCI e o PSI. Assim em 1987, durante uma tribuna política, Giorgio Almirante se meteu em uma enrascada quando um jornalista lhe pediu explicações sobre o que acontecia em Furci Siculo, um centro do MSI onde o membro do MSI Carmelo Briguglio era o vice-prefeito de uma coalizão vermelha e negra.
A síntese e a soma de toda essa tradição - da "L'Universale" ao "socialismo tricolor", da parada da praça San Sepolcro aos Campos Hobbit - poderia ser representada pela figura política e humana de Beppe Nicolai: fascista de esquerda desde sempre, deputado do MSI por três legislaturas, intelectual, jornalista, homem político e, sobretudo, "homem de caráter", segundo seu mestre Berto Ricci. Nascido em Pisa em 26 de Novembro de 1920, combatente na frente africana, prisioneiro de guerra no "Campo de Criminosos Fascistas" de Hereford no Texas. Bastou voltar à Itália, em 27 de Setembro de 1948, escreve uma carta sobre a laceração de sua geração ao seu velho amigo Romano Bilenchi que naqueles anos, seguindo a estratégia da atenção de Togliatti, se ocupava no "Nuovo Corriere" do diálogo com os fascistas. E a amizade entre Niccolai e Bilenchi durará por toda a vida. Enquanto deputado do MSI, Niccolai não teve qualquer dúvida em elogiar o Vietnam vitorioso sobre o imperialismo americano. Por muitos anos um estreito colaborador de Giorgio Almirante, ele se torna seu principal antagonista nos primeiros anos da década de 80 quando teve a coragem de "se fazer de advogado do diabo" e lançar uma corajosa autocrítica, que pretendia inspirar em todo o partido uma reflexão sincera, sobretudo.
Niccolai solicitava uma reflexão dos erros cometidos nas abordagens com relação à contestação juvenil, com os novos fermentos culturais e, sobretudo, nos temas da política externa. "Beppe", recordou Altero Matteoli, "escavava nos personagens que encontrava na sua cotidiana leitura. E de cada um exaltava a parte que o havia impressionado particularmente. Carlo Pisacane: o fascinava a sua morte, o seu sacrifício, o seu feito. Nicolino Bombacci: Beppe era convicto que o fascismo, para o revolucionário da Romagna, fosse uma revolução a se completar. Berto Ricci: a coragem civil, o caráter. E enfim Itallo Balbo: a morte atingiu Beppe enquanto 'escavava' na vida, na ação e no pensar do grande homem de Ferrara".
No início dos anos 80, Niccolai transforma Berto Ricci em uma verdadeira "bandeira": e faz isso no mesmo momento em que o MSI começa a parecer-lhe sempre mais estreito e a exigência de uma renovação o leva a buscar, no passado, uma referência de grande capacidade de fascinação. E nesse percurso não pôde deixar de se encontrar, naturalmente, com alguns jovens da geração dos "fascistas de camisa vermelha". Em 1984 - e aquela foi a única oposição à liderança de Giorgio Almirante no décimo quarto Congresso do MSI que ocorreu em Roma - se apresentará o documento "Sinais de Vida", que será assinado entusiasticamente pelos componentes juvenis e criativos do partido. Em 1985, por ocasião da crise de Sigonella, Nicollai fez com que o Comitê Central do MSI aprovasse uma ordem do dia de apoio a Craxi, um socialista, em nome do "pulsar" do orgulho nacional. Por outro lado, como explicou depois de sua morte o mesmo Tatarella em uma reunião do Comitê Central do MSI, Niccolai queria fazer do MSI uma espécie de "trabalhismo nacional": era, em suma, um autêntico homem de esquerda e, em perspectiva, sonhava com uma convergência estratégica entre o MSI e a esquerda italiana.

Uma posição minoritária, a de Niccolai: quase herética, fortemente combatida, mas em condições de pensar uma política capaz de colher as ondas longas da história italiana. Em 1987, ficou para história seu discurso ao Congresso de Sorrento. Nele, em nome de Nicolino Bombacci, convidava à recomposição das "cisões socialistas". Naqueles anos, com sua revista "L'Eco della Versilia", será o ponto de referência mais forte para a dissidência interna e as tentativas de diálogo com o exterior. E quando morre em Pisa, em 31 de Outubro de 1989, deixará o testamento ao seu colaborador Antonio Carli. "L'Eco" mudará seu nome transformando-se em "Tabula Rasa". E em volta da publicação se juntarão Gianni Benvenuti e Pietrangelo Buttafuoco, Umberto Croppi e Beniamino Donnici, Vito Errico e Fabio Granata, Luciano Lanna e Peppe Nanni... São a última morada de uma velha tradição. Que por vezes se apresenta com a força de mito. E por vezes, ao contrário, com a instabilidade de uma ilusão ótica. Mas que teve o mérito de não permanecer jamais restrita ao interior de um partido, e muito menos de uma corrente. Sempre emanando energias e iluminações que todavia influíram sobre os percursos políticos e culturais de todo o Fascismo.

Adriano Erriguel - O Tempo dos Sargentos e dos Poetas: Gabriele D'Annunzio e as Origens do Fascismo

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por Adriano Erriguel



Hoje é difícil admitir, mas em seus inícios o fascismo italiano não pressagiava o rumo funesto que terminaria tomando para a história da Europa.

Surgido do caos como uma onda de juventude, o fascismo pertencia a uma época revolucionária na qual, diante dos velhos problemas, se vislumbravam novas soluções. Em seu momento fundacional, o fascismo se apresentava como uma atitude, mais do que como uma ideologia, como uma estética, mais do que como uma doutrina, como uma ética, mais do que como um dogma. E foi o poeta, soldado e condottiero Gabriele D'Annunzio quem esboçou, da maneiras mais rotunda, esse fascismo possível que nunca pôde ser, e que acabou dando passagem para um fascismo real, que malogrou suas promessas iniciais para se encaminhar, da forma mais obtusa, ao abismo.

Poeta laureado e heroi de guerra, exibicionista e demagogo, megalômano e histrião, nacionalista e cosmopolita, místico e amoral, asceta e hedonista, drogado e erotômano, revolucionário e reacionário, talento do ecleticismo, da reciclagem e do pastiche, gênio precursor da posta em cena e das relações públicas: D'Annunzio foi um pós-moderno avant la lettre cujas obsessões nos parecem assombrosamente contemporâneas. O incêndio que ajudou a provocar tardaria a se extinguir, mas depois nada voltaria a ser o mesmo. Por que relembrar, hoje em dia, este maldito?

Talvez porque em uma atmosfera monocórdica de correção política, de transgressões amestradas e de pensamento desnatado, figuras como a sua funcionam como contramodelo, e nos lembram que, depois de tudo, a imaginação pode sim chegar ao poder.

Anos Incendiários

Houve uma época de vitalidade impossível de conter que, sobrecarregada de tensões e ideias de alta voltagem, precisou de uma guerra mundial para ventilar suas contradições. Os poucos anos que mediam entre 1900 e 1914 conheceram um extraordinário incêndio na arte e na literatura, no pensamento e na ideologia, que logo se propagou por todo o mundo. Um dos epicentros desse incêndio foi a Itália, mais concretamente o eixo entre Florença e Milão, lugar onde se acendeu "o sonho de um futuro radiante que surgiria após ter purificado o passado e o presente pelo ferro e pelo fogo". [1]

Esta piromania artístico-literária se alimentava, em seus estratos mais profundos, de uma revolução filosófica e cultural cuidadosamente incubada durante a segunda metade do século XIX: um vendaval ideológico que arremetia contra o positivismo racionalista da triunfante civilização burguesa. Frente à tabulação da existência pela economia e pela razão este novo vitalismo reivindicava o poder do irracional, do instinto e do subconsciente, e frente ao otimismo liberal em um mundo pacificado pelo progresso, opunha uma concepção trágica e heroica da existência. Neste clima intelectual surgiu uma aposta que, por sua radicalidade, bem poderia se qualificar de novo mito. Um mito destinado a cortar a história em duas metades.

O ensaista italiano Giorgio Locchi deu há três décadas o nome de "supra-humanismo" a uma corrente de ideias que encontrou sua formulação mais acabada na obra de Friedrich Nietzsche, em um plano filosófico, e na obra de Richard Wagner, em um plano artístico e mitopoético. Em sua essência, segundo Locchi, o supra-humanismo consistia em "uma consciência historicamente nova, a consciência do fatídico advento do niilismo, isto é, para dizê-lo com terminologia mais moderna, da iminência do fim da história". [2]

Essencialmente anti-igualitarista, o supra-humanismo se situava frente às correntes ideológicas que configuraram dois milênios de história: o "cristianismo enquanto projeto mundano, a democracia, o liberalismo, o socialismo: correntes todas que pertenciam ao campo igualitarista". A aspiração profunda do supra-humanismo, que para Locchi não era senão a emergência do inconsciente pré-cristão europeu ao âmbito da consciência, consistia em proceder a uma refundação da história através do advento de um homem novo. Com um método de ação: o niilismo como única via de saída do niilismo, um niilismo positivo que bebia a taça até a borra e que fazia tábula rasa para construir, sobre as ruínas e com as ruínas, o novo mundo.

Mais que uma corrente organizada, o supra-humanismo se configurou como um clima intelectual europeu que impregnou, em graus diversos, o pensamento, a literatura e a arte de princípios do século XX, com a França como laboratório ideológico e com a Itália como teatro de todos os experimentos. Na ebolução italiana daqueles anos, se agitavam sindicalistas revolucionários, vanguardistas, anarquistas e nacionalistas, e todos levavam, em graus diversos, a impressão supra-humanista. Mas o protagonista indiscutível entre todos os aspirantes a incendiários era o movimento futurista.

O futurismo foi a primeira vanguarda autenticamente global, não apenas no sentido geográfico, mas enquanto veiculava uma espiração à totalidade. [3] Longe de se limitar a ser uma proposta artística, o futurismo se estendia ao pensamento, à literatura, à música, ao cinema, ao urbanismo, à arquitetura, ao desenho, à moda, à publicidade, à política. O futurismo portava "a euforia pelo mundo da técnica, das máquinas e da velocidade" e empregava "uma nova linguagem sintética, metálica, sincopada". Não desdenhava "a apologia da violência e da guerra, exaltava a raça entendida como estirpe, não como racismo vulgar, e acima de tudo como promessa de uma supra-humanidade futura". [4] Seus inimigos eram a burguesia, o romantismo, a tradição, o clero, as famílias, todo o velho, em suma. O futurismo era a vanguarda por excelência, a teorização radical de uma vontade pirômana. Algo que parecia estar, em princípio, nas antípodas de D'Annunzio.

No momento de apogeu das vanguardas e da eclosão da Primeira Guerra Mundial, Gabriele D'Annunzio, celebrado em toda Itália como Il Vate, era o escritor mais famoso da península, para muitos seu principal poeta depois de Dante. Mas para os futuristas, seu estilo, abundante em maneirismos modernistas, decadentistas e simbolistas, em florilégios e em retórica oitocentista, podia ser considerado, por direito próprio, como a linguagem desse mausoléu ao qual eles pretendiam atear fogo.

Mas entre os futuristas e D'Annunzio, se tratava mais de amor e ódio. No esteio de Byron, Il Vate pensava que um poeta podia ser também um heroi. Ao eclodir a guerra, e fazendo gala da versatilidade que já havia mostrado em sua carreira literária, se tornou de poeta decadente em poeta combatente. E se investiu de uma nova missão, a de exemplarizar o ideal supra-humanista e sua aspiração máxima: a superação do mundo burguês e a chegada de um "homem novo" que encarnasse uma nova ética da ação. O estilo é o homem. Poucas figuras tão dispostas como a sua para simbolizar os novos tempos.

Florilégios para um Massacre

"A morte está aqui (...), tão bela quanto
a vida, embriagadora, cheia de promessas,
transfiguradora". - Gabriele D'Annunzio

Hoje é difícil compreender a pulsão suicida de uma civilização que, no ápice de seu poder, organizou seu próprio holocausto. O eclodir da Primeira Guerra Mundial foi celebrado como esbanjamento de vitalidade, como catarse e como regeneração moral. O entusiasmo belicista não conhecia fronteiras de ideologia ou de classe, e os artistas e intelectuais de toda Europa se apressaram para se converterem na voz da nação. Nenhuma outra voz cantou a guerra com tanto arrebato como a de D'Annunzio. Nenhuma outra oratória preparou tantos compatriotas, pela glória e sedução das palavras, para matar e morrer. Nenhum outro apóstolo da guerra se mostrou tão ávido por assumir, em sua própria carne, os efeitos do que pregava.

Quando a Itália anunciou sua entrada na guerra, Il Vate se encontrava no ápice de sua glória. Celebrado em toda Europa, rodeado de luxos e coberto de mulheres, tudo o convidava a contemplar a guerra desde uma cômoda distância. Mas com 52 anos, se alistou nos Lanceiros de Novara, unidade com a qual chegaria a participar em dezenas de ações. O exército, consciente do potencial propagandístico de sua figura, o permitiu servir da maneira qe o impacto público fosse mais notável. E lhe permitiu utilizar a que seriasua arma mais letal: a palavra.

Durante quatro anos de guerra, D'Annunzio falou e falou. Falou nas trincheiras e nas retaguardas, nos aeródromos e nas bases navais, nos funerais massivos e na hora dos ataques. Seus discursos eram sugestivos e magnéticos, destinados a conquistar não o intelecto, mas as emoções. Neles as misérias físicas mais cruas eram orladas em uma nuvem de glória, os combatentes eram herois e mártires, tão nobres quanto os herois da Antiguidade clássica ou as legiões de Roma, e a guerra era uma sinfonia heroica na qual suas palavras repicavam como "ondas hipnóticas de linguagem: sangue, morte, amor, dor, vitória, martírio, fogo, Itália, sangue, morte...". Ainda que conhecesse de primeira mão o horror da carnificina, continuava pregando sua fé nas "virtudes purificadoras da guerra e dizendo às tropas que eram sobre-humanas". Falava de bandeiras tremulando sobre o céu da Itália, de rios cheios de cadáveres, da terra sedenta de sangue. Não dissimulava a atrocidade da guerra, que descrevia como as torturas que Dante nunca imaginou para seu Inferno, mas aos soldados dizia que seu sacrifício tinha um sentido, e os elogiava de uma forma que nunca ouviram, e lhes repetia que o sangue dos mártires clamava por mais sangue, e que só pelo sangue a Grande Itália se veria redimida. [5]

Uma apologética da matança que resulta, vista cem anos depois, difícil de digerir. Acreditavam nisso?

Não é essa a questão. E parece insuficiente se conformar aqui com uma leitura "não-anacrônica", ou se limitar a assinalar que "essa era a linguagem da época". Talvez seria mais indicado proceder a uma inversão de perspectiva. Ou a uma leitura diferente, em chave supra-humanista.

A Guerra como Experiência Interior

A reputação que D'Annunzio adquiriu durante a guerra se deve mais a seus feitos que a suas palavras. Longe de ser um "soldado de papel", não desperdiçou ocasião de pôr sua vida em perigo, e ao longo de três anos chegou a combater por terra, mar e ar. Com um talento precursor para a publicidade, sabia que os pequenos atos de terrorismo tinham mais força psicológica que os ataques massivos, e se especializou em ações suicidas, aéreas e navais segundo os cânones futuristas, com valor simbólico e impacto midiático. Voou em inúmeras ocasiões sobre os Alpes, em uma época na qual isso era algo extraordinário, para bombardear o inimigo, ocasionalmente com folhas de propaganda. E quando os austríacos puseram preço em sua cabeça, liderou uma incursão suicida, em um torpedeiro com um punhado de homens, contra o porto inimigo de Buccari. [6] Em uma de suas missões aéreas perdiu a visão de um olho e parcialmente a do outro, o que ocultou durante um mês para seguir voando. Finalmente teve que permanecer vários meses imobilizado para salvar a vista.

Suspenso de costas e entre dores e pesadelos compôs seu poema "Notturno". A perspectiva da cegueira era para ele ocasião de superação, mais que de abatimento. Se confessava feliz na grandeza de sua perda, os cegos em ação eram considerados como a aristocracia dos feridos, e se recreava na agudização de seus sentidos da audição e do olfato. Se crermos nele, essa sensação de felicidade nunca o abandonaria ao longo de toda a guerra. [7]

O verdadeiro D'Annunzio se revela, mais que em suas trompeterias patrióticas, em sua correspondência e em seus diários. Neles, transparece sua atitude supra-humanista frente à guerra. Se algo chama a atenção em suas anotações é a "flutuação constante entre o espantoso e o pastoral". Tudo se faz para ele objeto de celebração, até os detalhes mais mínimos: desde as explosões e os ataques a baioneta até o brilho de uma libélula no barro ou a aparição fugaz de um pica-pau entre as árvores calcinadas. Se crermos nele, D'Annunzio foi feliz em meio a fome, sede, frio extremo, feridas e bombardeios, porque seu entusiasmo onívoro pela vida podia com tudo isso, porque tudo isso não era senão uma só coisa: a manifestação dessa vida que ele consumia com um entusiasmo voluptuoso. O que era a guerra, além de um furo na vida ordinária através do qual se manifestava algo mais elevado?...: "a vida tal e como deve ser, e que passa diante de nós, a Vida - nas palavras de Ernst Jünger - como esforço supremo, vontade de combater e dominar". [8]

O paralelismo entre D'Annunzio e Jünger não é casual, ambos manifestam uma comum atitude supra-humanista. A mesma avidez de experiências, o mesmo desafio ao azar, a mesma preocupação estética, a mesma ausência de moralismo. Contrasta no caso do prussiano, à parte a objetividade afiada de seu estilo, a ausência prática de qualquer nota patriótica. Mas cabe também pensar que em D'Annunzio a prosopopeia nacionalista não era o grão, mas a palha. Uma arma de guerra como outras muitas. Cabe pensar que o essencial para ele era essa disciplina do sofrimento da qual falava Nietzsche, esse Amor fati que não é senão um grande SIM à vida em toda sua crueza.

Mais que de exaltação belicista se trata de uma opção filosófica, muito distinta da postura moralizante e lastimosa de outros escritores. Quando Wilfred Owen, Erich Maria Remarque ou Ernest Hemignway denuncia e condenam a guerra, indubitavelmente tem razão, mas não por isso deixam de sublinhar uma obviedade. Ocorre que eles vivem a guerra a partir da sensibilidade horrorizada do homem moderno. Mas quando Ernst Jünger escreve: "aqueles que unicamente sentiram e conservaram a amargura de seu próprio sofrimento, em lugar de reconhecer nela [a guerra] o signo de uma alta afirmação, esses viveram como escravos, não tiveram Vida Interior, mas somente uma existência pura e tristemente material", o que faz é expressar essa sensibilidade imemorial que considera que o espírito é tudo. "Tudo é vaidade neste mundo - continua Jünger - somente a emoção é eterna. Só a muitos poucos homens é dado poder se fundir em sua sublime inutilidade". Amor fati. A linguagem "moral" não tem nada que fazer aqui. Não por acaso esta é a linguagem da Ilíada.

Outro elemento interessante é o uso que D'Annunzio faz do tempo histórico. A dicotomia novo/velho, um tema recorrente em seu pensamento, alcançaria expressão plena em suas anotações bélicas. Sempre à caça de analogias históricas, "cada soldado de infantaria lhe recordava algum episódio do glorioso passado, cada camponês esgotado a um intrépido marinheiro veneziano, a um legionário romano, a um cavaleiro medieval, a algum santo marcial recriado em um quadro renascentista. Sua visão do passado glorioso da Itália recobria o horrível conflito com um véu teatral e rodeava de glamour aos excrementos, ao lixo e às montanhas de mortos". [9] Para o poeta de Pescara o armamento podia ser moderno, mas os homens que o manejavam, os jovens recrutas que assemelhava herois míticos ou arquétipos, pertenciam a uma tradição atemporal.

Essa confusão do passado e do presente ilustra a sua maneira um elemento que Giorgio Locchi associava à mentalidade supra-humanista: a concepção "não-linear" do tempo, a presença constante do passado como uma dimensão que está dentro do presente junto à dimensão do futuro. É a ideia revolucionária, frente às concepções lineares, sejam "progressistas" ou "cíclicas", da tridimensionalidade do tempo histórico: em cada consciência humana "o passado não é outra coisa que o projeto ao qual o homem conforma sua ação histórica, projeto que trata de realizar em função da imagem que se forma de si mesmo e que se esforça por encarnar. O passado aparece, então, não como algo morto, mas como uma prefiguração do porvir".[10]

Locchi associava essa "nostalgia do porvir"à imagem "esférica" do tempo esboçada em Assim Falou Zaratustra, assim como a um dos significados canalizados pelo mitema nietzscheano do Eterno Retorno. Confusão do passado e do porvir, nostalgia das origens e utopia do futuro: a concepção supra-humanista do tempo, sentida de forma seguramente inconsciente por D'Annunzio e muitos outros, põe em primeiro plano a liberdade do homem frente a todo determinismo, porque o passado ao qual se deve religar é sempre objeto de escolha no presente, assim como objeto de interpretação mutante. O momento presente "nunca é um ponto, mas sim uma encruzilhada: cada instante presente atualiza a totalidade do passado e potencializa a totalidade do futuro". [11] De maneira que o passado nunca é um dado inerte, e quando se manifesta no futuro o faz de forma sempre nova, sempre desconhecida.

Assinala Hughes-Hallett que "a guerra trouxe a D'Annunzio a paz". Havia encontrado ma transcendental "terceira dimensão" do ser, mais além da vida e da morte. Partir em missão perigosa era para ele alcançar um êxtase comparável ao dos grandes místicos. A guera lhe trouxe "aventura, propósito, uma coorte de bravos e jovens camaradas aos quais amar com um amor mais além do qe se dedica às mulheres, uma forma de fama, nova e viril, e a intoxicação de viver em perigo mortal constante". [12]

Acabou a guerra reconhecido como um heroi e coberto e condecorações. E então ele e muitos como ele, aqueles recrutas aos quais comparava com os herois míticos do passado, deviam voltar a suas casas, a suas oficinas, a seus matrimônios de conveniência, à monotonia de suas aldeias...

Começava a nascer o fascismo.

Adeus às Armas?

A revolução vitoriosa chegará. Mas não a
farão as almas belas, como a sua, a
farão os sargentos e os poetas - Margarita Sarfatti, no filme O jovem Mussolini, 1993

Quando em 23 de março de 1919 um aglomerado de futuristas, de ex-arditi (tropas de assalto do exército italiano), de sindicalistas revolucionários e de antigos socialistas fundava na praça do Santo Sepulcro em Milão o primeiro Fasci di Combattimento, ninguém sabia em realidade o que resultaria de tudo aquilo. Sua cabeça visível era o ex-sargento Benito Mussolini, um político manobrista e possibilista recém-expulso do Partido Socialista Italiano. Mussolini afirmava que os fascistas evitariam o dogmatismo ideológico: "nos permitimos o luxo de sermos aristocráticos e democráticos, conservadores e progressistas, reacionários e revolucionários, de aceitar a lei e de ir mais além dela". E acrescentava que "antes de tudo somos partidários da liberdade. Queremos a liberdade para todos, até para nossos inimigos". [13] O primeiro programa fascista, visivelmente inclinado à esquerda, recolhia a herança intelectual do sindicalismo revolucionário.

Visto em perspectiva não cabe dúvida hoje de que o fascismo histórico foi um fenômeno ideológico completo. Mas em seus inícios parecia o fruto de um grande improviso. Mussolini proclamava então: o fascismo é a ação e nasce de uma necessidade de ação. Em primeiro lugar, reunia muitas das aspirações urgentes da "geração perdida" que havia feito a guerra, e que considerava que o estado da Itália, um país pobre e atrasado, com desigualdades crônicas, sem comberturas sociais, com uma vitória "mutilada" pelos aliados e à beira da guerra civil, tornava impensável uma volta à era dos partidos burgueses e a suas danças eleitorais. Mas em um sentido mais profundo, tal e como assinala o historiador Zeev Sternhell, antes de se converter em força política o fascismo foi um fenômeno cultural, uma manifestação extrema, ainda que não a única possível, de um fenômeno muito mais amplo. [14]

O antecedente intelectual mais imediato do fascismo era a revisão do marxismo realizada pelo sindicalismo revolucionário, uma revisão em um sentido antimaterialista. O que estes hereges do marxismo recusavam da doutrina era sua pretensão científica, sua infravaloração dos fatores psicológicos e nacionais, sua visão do socialismo como uma mera forma racional de uma organização econômica. Outra de suas motivações era o desencanto diante do valor do proletariado como força revolucionária: os proletários eram normalmente refratários a tudo que não afetasse seus interesses materiais, ou seja a sua aspiração a se converterem em pequenos burgueses. Algo que os primeiros fascistas constataram, assim como também constataram que, entre o socialismo e o proletariado, a relação era meramente circunstancial. Do que se deduzia que a revolução não era já questão de uma única classe social (...), o que por sua vez quebrava o dogma da luta de classes. A revolução passaria a ser, assim, uma tarefa nacional, e o nacionalismo seu fio condutor". [15]

Mas que revolução? Uma revolução de motivos puramente econômicos resultava insuficiente para a cultura política que se estava gestando: uma cultura política comunitária, anti-individualista e anti-racionalista e que aspirava a remediar a desagregação social ocasionada pela modernidade. De fato, na economia, o fascismo se manfiestava como possibilista e declarava querer aproveitar o melhor do capitalismo e do progresso industrial, sendo o essencial que a esfera econômica ficasse sempre subordinada à política. A questão subjacente era outra.

O essencial, seguindo Zeev Sternhell, era "instaurar uma civilização heroica sobre as ruínas de uma civilização rasteiramente materialista, moldar um homem novo, ativista e dinâmico". O fascismo oridinário exibia um caráter moderno e sua estética futurista ferroava a imaginação dos intelectuais, o que explica a atração que exercia sobre a juventude, assim como pregava que uma elite não é uma categoria definida pelo lugar que ocupa no processo de produção, mas a expressão de um estado de ânimo: a aristocracia forjada nas trincheiras era uma prova disso. [16] E do marxismo tomava a ideia da violência como instrumento de mudança. Alguém definiu uma vez o fascismo como nosso mal do século: uma expressão que evoca uma aspiração à superação do mundo burguês. Mais que um corpo dotrinário o fascismo original era uma nebulosa, uma força rupturista de caráter inédito que aspirava à construção de uma "solução de mudança total".

O que ocorria, seja dito em termos locchianos, é que o princípio supra-humanista estava passando, de forma acelerada, de sua fase mítica a sua fase ideológica e política. [17] No plano ideológico a chamada Revolução Conservadora alemã era uma de suas manifestações. E no plano político o fascismo de Mussolini foi o broto que fez fortuna. Mas não o único.

É aqui que entra D'Annunzio.

A Rota rumo ao Rubicão

No início de 1919, Mussolini era apenas um líder político em processo de amadurecimento, enquanto que D'Annunzio era o homem mais célebre da Itália. Finalizada a guerra com uma "vitória mutilada", os aliados ignoraram as promessas territoriais feitas à Itália, o país se afundou em uma espiral de caos político e social. E então muitos dos que esperavam que um "homem forte" tomasse as rédeas começaram a olhar para D'Annunzio. De sua parte, o poeta-soldado descobria o difícil que lhe resultava viver sem a guerra, e assim como muitos outros italianos ruminava sua amargura pela traição dos aliados.

"Vossa vitória não será mutilada", escreveu D'Annunzio em outubro de 1918. Um slogan que fez sucesso (como tantos outros que cunhou) e que era música nos ouvidos de todos que esperavam um novo chamado às armas. A Itália transbordava de homens acostumados à violência e que, ao invés de receber uma saudação como herois, eram tratados como hóspedes indesejáveis quando não como feras selvagens, destinados ao desemprego e aos insultos dos agitadores de uma revolução bolchevique que amadurecia. Entre esses homens destacavam-se os arditi, os soldados de elite, ferozmente indisciplinados, acostumados à luta corpo a corpo e com adagas e granadas, ataviados com uniformes negros e com jubas às vezes tão grandes quanto crinas de cavalo, os dândis da guerra. [1] Sua bandeira era negra e seu hino a Giovinezza. Todos olhavam para D'Annunzio como símbolo, e alguns deles começaram a se denominar dannunzianos. Um heroi de guerra e um exército de volta ao lar: uma conjunção fatídica para qualquer governo civil. As autoridades começaram a temer D'Annunzio. O Rubicão nunca havia sido verdadeiramente esquecido na Itália.

O poeta-soldado começou a multiplicar suas aparições públicas, a escarnecer do governo que havia aceito a humilhação de Versalhes, a incitar os italianos a rechaçar as autoridades. Em muito pouco tempo se viu no centro de todas as conspirações, e todos os grupos de oposição começaram a utilizar seu nome. Com os fascistas manteve distância. D'Annunzio os considerava como "vulgares imitadores, potencialmente úteis, mas lamentavelmente brutos e primários em sua forma de pensar". [2] E entre todos os que voltavam seu olhar para D'Annunzio se destacavam as comunidades italianas na costa do Adriático que esperavam ser "redimidas" mediante sua incorporação à pátria mãe. D'Annunzio, de sua parte, prometeu que estaria com eles "até o fim".

A cidade de Fiume, porto principal do Adriático, contava com uma maioria de população italiana que em outubro de 1918 reclamou sua incorporação à Itália. [3] Mas os aliados reunidos em Versalhes situaram a cidade sob uma administração internacional. A cidade se converteu, então e, um símbolo para todos os nacionalistas italianos, e grupos de ex-arditi, ao grito de "Fiume ou morte", começaram a formar a "Legião de Fiume" dispostos a "libertar" a cidade. E em meio a uma espiral de violência, os italianos de Fiume ofereceram a D'Annunzio a liderança da cidade.

O poeta-soldado havia encontrado seu Rubicão. E sua nova encarnação: a de condottiero.

Fiume era uma Festa

"O contágio da grandeza é o maior
perigo para qualquer um que viva em Fiume,
uma loucura contagiosa, que impregnou
a todo mundo". - o bispo de Fiume, em uma entrevista

Quando em 11 de setembro de 1919, D'Annunzio chegou a Fiume em um Fiat 501, seguramente não sabia que dava início a um dos experimentos mais extravagantes da história política do Ocidente: o sonho platônico do príncipe-poeta ganhava vida com dois milênios de atraso. Um vendaval de libertação dionisíaca se desencadeou sobre a cidade adriática, uma farra nietzscheana na qual davam as mãos a política e o misticismo, a utopia e a violência, a revolução e Dadá. A era da política-espetáculo havia começado, e D'Annunzio levantava a cortina.

A época de Fiume foi descrita como um microcosmo do mundo político moderno: tudo se prefigurou ali, tudo se experimentou ali, todos somos em grande parte os herdeiros. Um momento mágico, uma bacanal de sonhadores, uma sinfonia supra-humanista e heroica na qual uma sociedade faminta de maravilhas, galvanizada pela guerra, cansada da insipidez de um século de positivismo, se encontrava com um líder a sua altura e secundava, a ritmo de desfiles multicoloridos e multidões enfervorizadas, suas quimeras de César visionário.

A trajetória política da cidade durante esses dezesseis meses foi, como não podia deixar de ser, errática. O primeiro programa, a anexação à Itália, era simples e realistas, mas naufragou em pélago de indecisões e puritanismos diplomáticos. O segundo programa era de caráter subversivo: provocar a fagulha que desencadeasse uma revolução na Itália. Mas havia um terceiro programa, incontrolável e radical: Fiume como primeiro passo, não para uma Grande Itália, mas para uma nova ordem mundial.

Um programa que ganhava força a medida que se dissipava, pela pressão dos aliados e pela indecisão do governo italiano, a perspectiva da incorporação à Itália. Impulsionada pelos revolucionários sindicalistas que rodeavam D'Annunzio, a "Constituição de Fiume" (a Carta del Carnaro) é o aspecto mais interessante do legado de Fiume, pelo que aporta de contribuição original à teoria política. [4] A Carta del Carnaro continha elementos pioneiros: a limitação do (até então sacrossanto) direito à propriedade privada, a completa igualdade das mulheres, o laicismo na escola, a liberdade absoluta de culto, um sistema completo de seguridade social, medidas de democracia direta, um mecanismo de renovação contínua da liderança e um sistema de corporações ou representação por seções da comunidade: uma ideia que faria fortuna. Segundo seu biógrafo Michael A. Leeden, o governo de D'Annunzio, composto por elementos muito heterogêneos, foi um dos primeiros a praticar um tipo de "política do consenso" segundo a ideia de que os diversos interesses em conflito podiam ser "sublimados" dentro de um movimento de novo cunho. O essencial era que a nova ordem estivesse baseada nas qualidades pessoais do heroísmo e do gênio, mais que nos critérios tradicionais de riqueza, herança e poder. O objetivo final, basicamente supra-humanista, não era outro senão a forja de um novo tipo de homem.

A Carta del Carnaro continha toques surrealistas como designar à "Música" como princípio fundamental do Estado. Mas o mais original, o mais especificamente dannunziano, era a inclusão de "um elaborado sistema de celebração de missas e rituais, designados para garantir um alto nível de consciência política e de entusiasmo entre os cidadãos". [5] Em Fiume, D'Annunzio, agora denominado "o Comandante", começou a experimentar com um novo meio, criando "obras de arte nas quais os materiais eram colunas de homens, chuvas de flores, fogos artificiais, música eletrizante, um gênero que posteriormente seria desenvolvido e reelaborado durante duas décadas em Roma, Moscou e Berlim". [6] O comandante inaugurou uma nova forma de liderança baseada na comunicação direta entre o líder e as massas, uma espécie de plebiscito quotidiano no qual as multidões, congregadas diante de sua varanda, respondiam a suas perguntas e secundavam suas invectivas. Todo o ritual do fascismo já estava ali: os uniformes, os estandartes, o culto aos mártires, os desfiles de tochas, as camisas negras, a glorificação da virilidade e da juventude, a comunhão entre o líder e o povo, a saudação com braço ao alto, o grito de guerra: Eia Eia Alalá! [7] Assinala Hughes-Hallett que D'Annunzio nunca foi fascista, mas que o fascismo foi inequivocamente dannunziano. Alguém escreveu que, sob o fascismo, D'Annunzio foi a vítima do maior plágio da história.

Outro elemento pioneiro foi a criação de uma Liga de Nações anti-imperialistas: a "Liga de Fiume", projeto de aliança de todas as nações oprimidas que desenvolvia o conceito de revolução mundial e de "nação proletária" teorizado por Michels, e que aspirava a reunir desde o Sinn Fein irlandês até os nacionalistas árabes e indianos. Algém quis ver o Comandante como um profeta do terceiro-mundismo, se bem seria mais correto ver aqui "a primeira aparição da temática dos direitos dos povos". [8] As potências aliadas começaram a se alarmar. A empreitada de Fiume perdia seu caráter nacionalista e acentuava seu conteúdo revolucionário...

Fazei Amor e fazei Guerra!

"Giovinezza, Giovinezza, Primavera di 
Bellezza!..." - Canção dos Arditi

Um Estado regido por um poeta e com a criatividade convertida em obrigação cívica: não era estranho que a vida cultural adquirisse um viés anticonvencional. [9] A Constituição estava sob a guarda da "Décima Musa", a Musa, segundo D'Annunzio, "das comunidades emergentes e dos povos em gênese (...), a Musa da Energia", que no novo século deveria conduzir a imaginação ao poder. Fazer da vida uma obra de arte. No Fiume de 1919, a vida pública se converteu em uma performance de 24 horas em que "a política se fazia poesia e a poesia sensualidade, e na qual uma reunião política podia terminar em um baile e um baile em uma orgia. Ser jovem e ser apaixonado era uma obrigação". [10] Entre a população local e os recém-chegados se propagou uma atmosfera de liberdade sexual e de amor livre, incomum para a época. Começava a revolução sexual. Assim o queria o novo "Príncipe da Juventude", caolho e de cinquenta e seis anos.

Não é de estranhar que a cidade se convertera em um pólo magnético para toda a confraria de idealistas, rebeldes e românticos que pululava pelo mundo. Uma Cocanha na qual se acotovelavam protofascistas e revolucionários internacionalistas sem que a ninguém ocorresse algo tão vulgar quanto "entrar em diálogo". Um laboratório contracultural no qual brotavam grupos heterogêneos como o "Yoga" (inspirado pelo hinduísmo e pelo Bhagavad Gita), os "Lótus Castanhos" (proto-hippies partidários de um retorno à natureza), os "Lótus Vermelhos" (defensores do sexo dionisíaco), ecologistas, nudistas, dadaístas e outros espécimes de variada índole. O componente psicodélico estava assegurado por uma generosa circulação de drogas sob o olhar tolerante do Comandante, consumidor mais ou menos ocasional do pó branco. [11] Os anos 60 começaram em Fiume. Mas diferentemente dos hippies californianos, os hippies do Comandante estavam dispostos não só a fazer o amor, mas também a fazer a guerra.

Enquanto isso Roma olhava para Fiume com uma mistura de consternação e pavor. Nas palavras dos socialistas italianos, "Fiume estava sendo transformada em um bordel, refúgio de criminosos e prostitutas". O certo é que todo mundo ia para Fiume: soldados, aventureiros, revolucionários, intelectuais, espiões aliados, artistas cosmopolitas, poetas neopagãos, boêmios com a a cabeça nas nuvens, o futurista Marinetti, o inventor Marconi, o diretor de orquestra Toscanini...

Proliferavam a eloquência e o dandismo, a personalidade do Comandante era contagiosa. Condecorações, uniformes, títulos, hinos e cerimônias para todos! O estilo ornamental era de rigor. E por sua vez os novos visitantes se iam fazendo cada vez mais marginais: menores fugitivos, desertores, criminosos e outras pessoas com assuntos a tratar com a justiça... Muitos desses elementos foram recrutados para formar a guarda do Comandante: a "Legião Disperata", de uniformes esplendorosos. D'Annunzio observava seus arditi comendo cordeiro nas praias, em seus fantásticos uniformes resplandecentes à luz das fogueiras, e os comparava a Aquiles e seus mirmidões de volta a seu acampamento frente a Troia. É essa mistura eletrizante de arcaísmo e futurismo, tão própria da sensibilidade supra-humanista. Soava tão antigo, e não obstante era tão novo...

Pressionado por seus compromissos internacionais, o governo de Roma decretou um bloqueio contra Fiume, e a cidade encontrou um método para assegurar sua subsistência: a pirataria. Organizados por um antigo ás da aviação italiana, Guido Keller, os barcos de Fiume passaram a se apossar de qualquer buque que transitasse entre o estreito de Messina e Veneza. E cada captura realizada pelos uscocchi, assim chamados por D'Annunzio em honra aos piratas adriáticos do XVI, era recebida na cidade como uma festa. As atividades ilícitas se ampliaram ao sequestro, um comando de Fiume capturou um general italiano que passava por Trieste, e às expedições para tomar provisões em territórios vizinhos. Também às ocupações simbólicas de outras cidades próximas. O Comandante mandou bordar seu lema Me Ne Frego (algo como: "Não dou a mínima") em uma bandeira que pendurou sobre sua cama. [12] Fiume era um Estado fora-da-lei, o que hoje chamaríamos um Estado ilegal. Assinala sua biógrafa que D'Annunzio, como um novo Peter Pan, havia constrído uma "Terra do Nunca, um espaço liberado das relações causa-efeito onde os garotos perdidos poderiam desfrutar para sempre de suas perigosas aventuras sem se sentirem incomodados pelo senso comum". [13]

Mas o problema da infância é que ela acaba, e chega a hora dos adultos. O Tratado de Rapallo, assinado em novembro de 1920, estabelecia as fronteiras ítalo-iugoslavas e chegava a um compromisso sobre Fiume. D'Annunzio ficou isolado, e até os fascistas de Mussolini retiraram seu apoio. Após uma intervenção da Marinha italiana e da resistência de um punhado de arditi, que findou com várias dezenas de mortos, D'Annunzio foi obrigado a abandonar Fiume ao fim de dezembro de 1920. Em uma cerimônia de despedida seu último grito foi: Viva o amor!

O poeta havia concluído sua revolução. Chegava a vez do ex-sargento.

O Fascismo sem D'Annunzio

Passados os anos, um Mussolini já no poder celebraria Gabriele D'Annunzio como o "João Batista do fascismo". Convertido em lenda, o poeta passaria suas últimas duas décadas recolhido em sua mansão do Vittoriale nas margens do lado de Garda, onde Mussolini o visitava ocasionalmente para encontrar-se com ele.

Hoje se considera D'Annunzio como um personagem do Regime, mas o certo é que nunca foi membro do Partido Fascista e suas relações com o Duce foram muito mais ambivalentes do que se pensa. Em privado, Mussolini se referia a D'Annunzio como a "uma cárie, que se tem que arrancar ou cobrir com ouro", e se referia também ao "fiumismo mal entendido" como sinônimo de atitude anarquizante e de pouca confiança. Em realidade, ambos personagens se observavam com mútua suspeita: Mussolini considerava que D'Annunzio era muito influente e imprevisível, e este se abstinha de prestar apoio expresso ao Duce. Em realidade, o poeta havia recomendado a seus arditi que se mantivessem à margem de qualquer formação política, ainda que muitos acabassem no fascismo e alguns na extrema esquerda, inclusive na Espanha nas Brigadas Internacionais. [14] As únicas ocasiões em que D'Annunzio tratou de influenciar politicamente Mussolini foram para lhe aconselhar a que se mantivesse longe de Hitler ("esse palhaço feroz", "esse rosto engomado e pouco nobre").

O poeta-soldado faleceu em 1938 em sua mansão do Vittoriale, em uma atmosfera tão barroca quanto claustrofóbica, rodeado de espiões italianos e alemães. Com sua morte desapareceu toda uma época: a dos albores desse fascismo que não pode ser. O fascismo real recolheu a encenação e a liturgia de Fiume, mas as esvaziou de liberdade e as transformou em uma coreografia burocratizada a serviço de um projeto que levou a Itália à catástrofe. A história é bem conhecida. Não obstante, é necessário mencionar certas coisas por alto...

Normalmente se passa por alto que esse primeiro fascismo formava parte de um clima cultural vanguardista, sofisticado e plural, muito diferente do provincianismo obtuso que caracterizava os nazistas e sua breguice völkisch. De fato, o pluralismo cultural da Itália fascista, um país onde praticamente não houve qualquer êxodo intelectual, não tem comparação com o dirigismo imposto sobre a cultura na época nazista. Estudiosos como Renzo de Felice ou Julien Freund contrapuseram o caráter otimista e "mediterrâneo" do fascismo, com sua tendência a exaltar a vida dentro de um certo espírito de medida, frente ao caráter sombrio, trágico e catastrófico do nazismo, com sua inclinação germânica ao Ragnarök. [15] Igualmente se poderia destacar o caráter antidogmático, inclusive artístico e boêmio, desse primeiro fascismo, em contraposição às ínfulas "científicas" da dogmática nazista, baseada no racismo biológico e no darwinismo social.

Ao que se há que acrescentar que o primeiro fascismo não tinha qualquer traço de antissemitismo, mas até o contrário: muitos judeus foram fascistas de primeira hora e inclusive tiveram cargos importantes, tais como a publicista Margaritta Sarfati, amante judia do Duce e prima donna da vida cultural do regime. De fato, a política externa do regime manteve contatos frequentes com o movimento sionista. E após a chegada de Hitler ao poder eminentes exilados judeus encontraram acolhida na Itália.

Se passa também por alto que após a "Marcha sobre Roma" em 1922 Mussolini se apresentou perante o Parlamento e obteve um amplo voto de confiança da maioria não-fascista. Se tende a esquecer que a violência das esquadras fascistas, ainda que verdadeira, não era exclusiva do fascismo: essa era a linguagem política em boa parte da Europa. E na Itália foi o fascismo, melhor organizado, o que finalmente se impôs. Se omite também que o fascismo colaborou com os socialistas e com outras forças de oposição, e que ganhou uma maioria de votos nas eleições de 1924. Somente então, após o brutal assassinato do deputado socialista Matteoti e a negativa da oposição de permanecer no Parlamento, os energúmenos do fascismo ganharam a mão e se institucionalizou a ditadura.

Em realidade, 1924 marca o começo do declive. Os anos posteriores são os das grandes realizações do regime: a edificação de um Estado social, as grandes obras públicas e a modernização do país. Logros que conquistaram a adesão de boa parte da população. Mas o fascismo já estava mortalmente ferido. Ao trair aquela promessa de 1919 na Praça do Santo Sepulcro de Milão ("Queremos a liberdade para todos, até para nossos inimigos") o fascismo se transformou em uma burocracia complacente e satisfeita, e Mussolini se foi apartando da realidade para se encerrar em uma megalomania que resultou funesta.

Ainda assim, durante alguns anos o fascismo impulsionou uma política favorecedora da paz e da cooperação internacional, como o provam os Acordos de Latrão em 1929 e as propostas de desarmamento na Sociedade das Nações em 1932. Em relação à Alemanha nazista há algo que também se tende a esquecer: Mussolini foi o impulsionador da chamada "Frente de Stressa", uma iniciativa diplomática que em abril de 1935, junto a França e Grã-Bretanha, tratava de garantir a independência da Áustria e o respeito ao Tratado de Versalhes, e por conseguinte frear Hitler quando todavia era possível fazê-lo. Dois meses depois, em junho de 1935, Grã-Bretanha assinava com a Alemanha nazista um acordo naval que representou a primeira violação desse tratado. Mussolini ficou sozinho.

O isolamento se consumou a partir da invasão da Abissínia e das sanções que foram impostas à Itália, e que levaram Mussolini a uma aliança com Hitler. A partir de então, prisioneiro de uma mistura de temor e fascínio pelo ditador alemão, o Duce se viu arrastado para o abismo. Em 1938 caiu inclusive na abjeção de importar a legislação antissemita do Terceiro Reich.

Teroa sido possível outro rumo, menos ditatorial e mais "dannunziano"? Mussolini, ao contrário de Hitler, nunca teve domínio absoluto sobre o Partido, e dentro do fascismo sempre houve linha contrária aos nazistas e favorável a um entendimento com França e Grã-Bretanha. Sua principal figura era o Ministro da Aviação Ítalo Balbo, heroi de guerra e esquadrista de primeira hora: o autêntico protótipo do "novo homem" exaltado pelo fascismo. Mas um ciumento Mussolini o nomeou Governador da Líbia para apartá-lo dos centros de poder. Ali faleceu em 1940, em um acidente de aviação pouco claro. Os últims restos da oposição fascista foram liquidados em 1944 no processo de Verona, com o ex-ministro de Relações Exteriores Galeazzo Ciano e outros hierarcas executados por insistência dos alemães.

Um Fascismo Democrático?

Há quase cem anos, D'Annunzio e sua aventura em Fiume ainda apresentam interrogações. Há uma especialmente provocadora: poderia ter sido possível um fascismo democrático?

Uma pergunta que só tem o valor que queiramos dar à história-ficção. Porque a história é o que é, e não é possível mudá-la. Falar em "fascismo democrático"é hoje um oxímoro, e isso parece irrebatível. Não obstante, demasiadas vezes nos refugiamos em posturas intelectualmente confortáveis e moralmente irrepreensíveis, e isso dificulta a compreensão de certos fenômenos. Neste caso, o da natureza do fascismo. A interpretação marxista clássica do fascismo como um instrumento defensivo do Capital se condena a não compreender nada, e deixa sem explicação a ampla adesão que obteve um sistema que só foi extirpado pela guerra, uma guerra na qual os marxistas se aliaram com...o capitalismo. Essa interpretação foi superada há tempos, e hoje tende a se admitir que, como assinala Zeev Sternhell, o fascismo era uma manifestação extrema de um fenômeno muito mais amplo, esse que Giorgio Locchi denominava de supra-humanismo, e como tal é parte integral da história da cultura europeia.

D'Annunzio não foi um ideólogo sistemático, mas seu empenho prometeico e nietzscheano simboliza esse clima cultural supra-humanista do qual brotou o fascismo. Fiume foi um momento mágico e necessariamente fugaz: não se pode ser sublime durante vinte anos. Mas Fiume nos recorda que a história poderia ter sido diferente, e que talvez essa rebelião cultural e política, vamos chamá-la de "fascismo", poderia ter sido compatível com um maior respeito pelas liberdades, ou pelo menos evoluir distante das aberrações já conhecidas... Claro que, então, talvez isso não fosse mais fascismo, mas outra coisa...

Se não temos em conta o fenômeno cultural do supra-humanismo, não se pode entender o fascismo. Mas este não foi seu único rebento. Historicamente houve outros dois. O primeiro foi um broto intelectual de grande altura, e que segue falando ao homem de nossos dias: a chamada "revolução conservadora" alemã. E o segundo foi uma planta venenosa: o nazismo. A questão que hoje se poderia apresentar é a de saber se esse humus cultural supra-humanista está definitivamente esgotado, ou se ainda poderia dar lugar a derivações inéditas. Ao fim e ao cabo, e segundo a concepção "esférica" do tempo, a história sempre está aberta, e quando a história se regenera o faz de forma sempre nova, de forma sempre imprevista.

Anarquismo de Direita

"Denunciamos a falta de gosto da representação parlamentar. Nos recriamos na beleza, na elegância, na cortesia e no estilo (...) queremos ser dirigidos por homens milagrosos e fantásticos". - Filippo Tommaso Marinetti

"A arte de mandar consiste em não mandar". - Gabriele D'Annunzio

Mas o interesse de revisitar D'Annunzio vai muito mais além da pergunta sobre a natureza do fascismo. O poeta-soldado prefigura uma forma de fazer política vigente até a atualidade: a política-espetáculo, a fusão de elementos sacros e profanos, a intuição de que em último termo tudo é política. A Carta del Carnaro é um documento visionário na medida em que reune preocupações, liberdades e direitos até então relegados fora do âmbito político, e que durante as décadas seguintes passariam a ser integrados no constitucionalismo moderno. De alguma forma, D'Annunzio parecia possuir a chave de tudo o que viria depois. Todos somos em boa parte seus herdeiros, para o bem e para o mal.

Por isso seria um erro menosprezar D'Annunzio como um esteta diletante metido a revolucionário. Ou despolitizá-lo e considerar, como parece apontar seu perspicaz biógrafo Michael A. Leeden, que o importante de Fiume não é o conteúdo, mas o estilo, e que nenhuma posição ideológica concreta pode se deduzir de Fiume. Pensamos que muito mais acertado esta Carlos Caballero Jurado quando assinala que: "Fiume não era um pedaço de terra. Fiume era um símbolo, um mito, algo que quiçá não possa se entender em nossos dias, em uma época tão refratária ao mito e aos ritos. A empreitada de Fiume tem mais de rebelião cultural do que de anexação política". [16] Que mensagens pode extrair o homem de hoje em dia, não só de Fiume, mas de toda a trajetória de D'Annunzio?

Em primeiro lugar, a ideia de que a única revolução verdadeira é a que busca uma transformação integral do homem. Isto é, a que se apresenta antes de tudo como uma revolução cultural. Algo que os revolucionários de maior de 1968 pareceram entender bem. Mas o que desconheciam é que, em realidade, quase tudo o que propunham já estava inventado. A imaginação já havia chegado ao poder, cinquenta anos antes, na costa do Adriático. A grande surpresa é que o que assim decidiu, e essa é a segunda grande lição de Fiume, não era um progressista utópico, libertário e mundialista, mas um patriota, um elitista praticante de uma ética heroica. Fiume é a demonstração de que ideias como a liberação sexual, a ecologia, a democracia direta, a igualdade entre homens e mulheres, a liberdade de consciência e o espírito de festa podem se apresentar não só desde posições igualitaristas, pacifistas, hedonistas e feministas, mas também desde valores aristocráticos e diferencialistas, identitários e heroicos.

O gesto de D'Annunzio implica ademais algo muito atual: foi o primeiro grito de rebeldia contra um sistema americanomorfo que naqueles anos começava a estender seus tentáculos, é o grito de defesa da beleza e do espírito frente ao reino da vulgaridade e o império do dólar.

O gesto de D'Annunzio foi também a reivindicação, surrealista e heroica, de uma regeneração política baseada na liberação da personalidade humana, e um grito de protesto frente ao mundo de burocratas anônimos que avançava. [17]

Fiume é, ademais, a demonstração de que é sim possível transcender a divisão direita/esquerda, de que a transversalidade é possível. Valores de direita e ideias de esquerda. A primeira síntese genuinamente pós-moderna. Fiume é o único experimento conhecido até a data do que poderia ser um anarquismo de direita levado a suas últimas consequências.

Há uma última questão, e que tem a ver com a atividade de D'Annunzio como pregador e exaltador da guerra. Isso é algo que hoje nos parece indefensável, ainda que não fosse tanto naqueles anos nos quais a guerra ainda podia ser vivida como uma aventura épica. Mas hoje sabemos que por trás daquela retórica inflamada não havia nenhuma causa real que justificasse tanto sacrifício. E ainda assim...

Sem embargo, é possível que aqueles homens de retórica inflamada, no fundo, também soubessem disso. É muito possível que D'Annunzio e outros como ele, por destilação de um niilismo positivo, soubesse que ao final de contas é muito melhor o patriotismo ao Nada, e desde logo temos menos mortos. Mas cabe se perguntar se graças a isso, em comparação com aqueles homens, estamos também mais vivos.

A era dos anos incendiários ficou submersa no tempo. Passou a época na qual sargentos e poetas faziam revoluções. E como se costuma dizer, o tempo devorou os corpos, a história devorou os sonhos e o esquecimento engoliu a história. Também dizem que os velhos guerreiros nunca morrem, que só desaparecem fisicamente. Depois da catástrofe nos fica a lembrança da grandeza, e dos homens que a sonharam.

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[1]Lucy Hughes-Hallett, Gabrielle D’Annunzio. Poet, seducer and preacher of war. Fourth State, edición Kindle, 2013.

[2]Lucy Hughes-Hallett, Obra citada.

[3] Fiume es la actual Rijeka, en Croacia.

[4]Fiume es la actual Rijeka, en Croacia.

[5]Michael A. Ledeen: D Annunzio, The first Duce. Transaction Publishers 2009, pags XIV y XV.
[6]Lucy Hughes-Hallett, Obra citada

[7]¡Eia Eia, Alalá! era, segundo a lenda, o grito com o qual Aquiles chamava seus cavalos. D'Annunzio o cunhou durante la guerra como substituto grecorromano ao ¡hip hip, hurra! anglo-saxão.

[8]Carlos Caballero Jurado: El Comandante y la décima musa. La fascinante historia de D'Annunzio en Fiume.

[9]O Ministerio de Assuntos Exteriores de Fiume era dirigido também por dois poetas: León Kochnitzky e Henry Furst.

[10]Lucy Hughes-Hallett: Obra citada

[11]Nos anos anteriores à guerra a cocaína, cujos autênticos efeitos não eram ainda bem conhecidos, era considerada como un suplemento para a resistência e a corage. Personagens como Shackleton ou Scott a levaram em suas expedições, e tampouco era infrequente entre os pilotos de guerra. (Lucy Hughes-Hallett: Obra citada).

[12]Anos depois Mussolini adotou este lema como expressão do “estilo de vida” fascista.

[13]Lucy Hughes-Hallett: Obra citada.

[14]Muito significativamente o líder nacional-sindicalista e principal redator da Carta del Carnaro, Alceste de Ambris, passou à oposição radical contra o fascismo. Privado da nacionalidade italiana, murreu no exilio na França em 1934.

[15]É curiosa a este respeito a excelente série de televisão da RAI “O jovem Mussolini” (Gian Luigi Calderone, 1993), na qual o futuro Duce (interpretado por Antonio Banderas) aparece retratado, mais que como un futuro ditador sanguinario, como un simpático destrambelhado.

[16]Carlos Caballero Jurado: El Comandante y la décima musa. La fascinante historia de D’Annunzio en Fiume.

[17] “Una Historia de Europa: De D’Annunzio a Van Rompuy”.

Jeff Wallder - Perón ou Morte!

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por Jeff Wallder



O general Juan Perón foi uma vez descrito como o único ditador do século XX que jamais fuzilou ninguém. Ele foi o excêntrico presidente argentino do pós-guerra que enfrentou os grandes latifundiários, os grandes empresários, juntas militares, multinacionais globais e o governo americanoa para poder redistribuir a riqueza de seu país de forma mais justa entre os trabalhadores argentinos.

Durante seu período no poder foi criado o sistema público de saúde, a previdência social foi tornada universal, a educação se tornou gratuita, e os trabalhadores (e estudantes trabalhadores) receberam férias pagas pela primeira vez e resorts especiais foram construídos que ofereciam temporadas de 2 semanas por 15 centavos o dia a trabalhadores.

Mesmo quando forçado a sair da presidência e a ir ao exílio em 1955, Perón manteve sua influência sobre a política governamental através de seus descamisados no sindicato CGT e sucessores simpáticos a quele que governaram em sua ausência forçada antes de seu retorno triunfante a Buenos Aires em 1973.

As reformas sociais de Perón lhe garantiram a lealdade e afeição duradouras de uma enorme camada do povo argentino em uma escala inconcebível hoje. Mesmo em 2013, quase 40 anos após sua morte, quatro de cada cinco dos maiores partidos políticos do país se descreviam como peronista.

A "doutrina justicialista" de Juan Perón foi inspirada pelo socialismo sindical do Estado Corporativo de Mussolini durante a visita pré-guerra à Itália e Alemanha. Mas apesar de na década de 60 ele se referir a seu credo econômico como "nacional-socialismo", Perón sempre manteve sua distância do fracasso do fascismo europeu. Sua maior perícia pessoal foi a habilidade extraordinária de controlar e manipular facções rivais dentro do movimento peronista, e os utilizou para avançar sua agenda em prol do bem-estar da nação argentina.

Evita!

Porém, mencionem "Perón" fora da América do Sul hoje e as pessoas pensam instintivamente em Eva Perón, a ex-atriz que se tornou a segunda esposa de Juan Perón. Conhecida universalmente como Evita, ela foi a principal defensora sul-americana pelos direitos das mulheres e crianças e trabalhou incansavelmente em seu favor até sua morte prematura em 1952. Este ícone da feminilidade argentina, que deu às mulheres o voto e o benefício de maternidade pela primeira vez, e sua Fundação Eva Perón, foi reverenciada sem precedentes em casas da Patagônia ao Rio da Prata.

Estranhamente, este eclipse parcial de Juan Perón na percepção moderna por sua bela e eloquente esposa se deve parcialmente a um famoso ex-sindicalista do oeste londrino. Uma tarde, ele ouviu dois jovens pretendentes a dramaturgos, Andrew Lloyd Weber e Tim Rice, discutindo uma ideia para um musical sobre Eva Braun, esposa de Adolf Hitler. Ao ouvir isso, o organizador se apoiou em uma mesa de café e lhes garantiu que se eles escrevessem um musical sobre a mulher de Hitler ninguém os apoiaria e suas carreiras musicais seriam curtas. Considerariam eles escrever um musical sobre Eva Perón, ele perguntou? O resto, como se diz, é história.

O Rei sobre a Água

Durnate o curso do período de Perón como Secretário do Trabalho e do Bem-Estar (1943-1946) e suas duas primeiras presidências (1946-1955), ele embarcou em um pacote radical de reformas econômicas baseadas na "Terceira Posição" do socialismo sindical. Ferrenhamente anticomunista, sua doutrina justicialista era igualmente oposta ao capitalismo. O justicialismo deu aos trabalhadores argentinos um enorme poder de controle na administração das empresas para as quais eles trabalhavam, e como acionistas eles recebiam uma parcela maior da riqueza que eles ajudavam a criar. Ao mesmo tempo, uma nova iniciativa de construção garantia que as escolas modernas e clínicas médicas fossem acessíveis para todos, e os vastos projetos habitacionais de baixa renda da Argentina deram lares para mais pessoas por ano do que qualquer outro país no mundo.

As reformas ambiciosas do general Juan Perón e sua esposa Evita não tiveram aprovação universal. Proprietários de terras e fábricas (e seus filhos oficiais nas Forças Armadas) entraram em aliança aberta com o governo americano projetada para causar a derrocada da administração peronista. O embaixador americano à Argentina, Spruille Braden, manteve uma campanha de hostilidade impiedosa ao regime seguindo a diretriz do Departamento de Estado dos EUA.

A oportunidade sorriu para os antiperonistas em 1955 após o governo argentino aprovar leis dando aos filhos ilegítimos os mesmos direitos que os filhos legítimos e insistir que a Igreja Católica pagasse impostos. O Vaticano respondeu com a excomunhão imediata de Perón. Isso enfureceu muitos descamisados e nas revoltas que se seguiram a Catedral de Buenos Aires e doze outras igrejas foram incendiadas. Perón ficou horrorizado com esse exagero.

A hora da espada veio em setembro de 1955. O exército em Córdoba entrou em revolta e a marinha bombardeou a capital, resultando na morte de 350 civis inocentes. A CGT pediu por uma milícia de trabalhadores armados para proteger Perón e a revolução sindicalista: a nação estava à beira da guerra civil. Em 20 de setembro, Perón, que apesar de seu estilo político agressivo não gostava de violência e do uso da força, decidiu poupar a nação de um banho de sangue inaudito. Ele foi para casa na Casa Rosada, colocou sua escova de dente e navalha em uma sacola e foi para o exílio, na Espanha, pelos próximos 18 anos.

Durante este tempo, Perón pode ter estado fora do governo, mas ele certamente não estava fora da arena política. Ele continuou a ser considerado o líder espiritual do Partido Justicialista e manteve a lealdade total da CGT. Uma grande parte de cada dia no exílio era passada recebendo funcionários do partido, discutindo estratégia política e controlando as facções conflitantes dentro do Movimento Peronista. A mais conhecida tática de Perón era sempre concordar absolutamente com a perspectiva de cada pessoa, e então ir em frente e fazer o que ele pretendia originalmente.

A Argentina sem Perón se tornou virtualmente ingovernável: líderes políticos e militares vieram e foram embora tão regularmente quanto as estações. Concessões conquistadas pelo trabalhador foram se erodindo e a insatisfação era ampla.

Em 1973, uma eleição foi realizada na Argentina na qual todos os partidos eram livres para participar (apesar de Perón não ter permissão para se fazer presente). Apesar de sua ausência de 18 anos, o Partido Justicialista de Perón emergiu como claro vencedor e seu candidato presidencial, Hector Campora, foi empossado em 25 de maio.

O primeiro ato de Campora foi aprovar leis aumentando todos os salários. Então, ele pegou um avião para Madri para escoltar Perón de volta à Argentina e sua terceira presidência.

O Retorno do General do Povo

Em junho de 1973, o Generalíssimo Franco se encontrou com Perón pela primeira e única vez para se despedir dele no Aeroporto de Madri. Dentro do avião com Perón e Campora estava uma comitiva de 150 pessoas. Essas inclíam peronistas veteranos, funcionários importantes do partido da época, dois políticos não-peronistas, um boxeador, um cantor de tango, uma modelo, um diretor de cinema, um historiador, um poeta, a terceira esposa de Perón, Isabella e seu guarda-costas croata. O corpo embalsamado de Evita também estava junto.

Em Buenos Aires, uma multidão de 1 milhão e meio de pessoas se reuniu no Aeroporto de Ezeiza, nas estradas contíguas e em cada ponto alto para saudar o retorno de seu campeão, foi a maior reunião política a céu aberto na história registrada. A multidão estava em um ânimo festivo: o sol raiou, bandas tocaram, havia cantoria e danças, um retrato de 30 metros de Perón foi erguido e vendedores vendiam cachorros quentes e limonada gelada. Então as coisas começaram a dar errado.

Dentro do Partido Justicialista havia dois movimentos juvenis: a "Juventude Peronista", de esquerda, e a "Juventude Peronista Sindical", de direita, entre os quais não havia amizade. Eles começaram a provocar um ao outro, um lado cantou "Perón, Evita, a Pátria Socialista", e o outro respondeu com "Perón, Evita, a Pátria Peronista". A minúscula diferença em palavras era demais para que suportassem e o contronto começou entre jovens peronistas fanáticos, a maioria dos quais nem havia nascido quando Perón havia governado pela última vez.

Então, armas apareceram dos dois lados e o tiroteio começou. Subitamente, atiradores de elite de outras facções peronistas se uniram à batalha objetivando eliminar seus próprios rivais odiados. A polícia tentou restaurar a ordem, corpos caíram de árvores e em meio ao "Massacre de Ezeiza", centenas de pombas brancas reservadas para a cerimônia de saudação foram soltas acidentalmente. Apoiadores segurando bandeiras declarando "Perón ou Morte" soltaram suas placas e correram por suas vidas. Até hoje, ninguém sabe exatamente quantos morreram, mas certamente foram centenas.

O avião de Perón teve que ser desviado para um aeroporto militar. Suprimindo sua raiva, ele dirigiu direto para a Casa Rosada desde onde ele aparecia de hora em hora para receber a adulação das massas imensas. Em sua primeira transmissão à nação, ele denunciou os "promotores de violência e de doutrinas estrangeiras" que haviam tentado infiltrar o Partido Justicialista. Ele então expôs sua "Visão Dourada" para a nação, que era apoiada pelo Partido Radical, o segundo maior da Argentina. Três meses depois, ele foi empossado para seu terceiro mandato como presidente, com sua esposa Isabella, uma ex-dançarina de tango, como vice-presidente.

O Terceiro Mandato de Perón

Pelo resto de 1973 e a primeira metade de 1974, Perón começou a reestabelecer a sua doutrina justicialista. Mas seu tempo foi cada vez mais tomado pela restruturação do partido para livrá-lo da luta sectária entre os rapazes da esquerda e da direita. Um grande acordo comercial com Cuba e au tonomia para universidades rebeldes eram sinais de que Perón não havia perdido sua habilidade de surpreender os argentinos com novas iniciativas. Porém, sua maior surpresa ocorreu em 1 de julho de 1974, quando ele subitamente morreu de um infarto fulminante aos 78 anos de idade.

Isabella Perón assumiu como presidente, mas estava sob fortei nfluência da figura raputinesca de López Rega. Mesmo apoiada por seus poderes místicos, Isabella não podia se comparar a Evita ou Juan Perón. Em março de 1976, ela foi deposta por uma junta militar que imediatamente iniciou uma selvagem campanha de sangria que ignorou todas as formalidades judiciais. Nenhuma distinção foi feita entre terroristas e peronistas, e mais de 9 mil argentinos foram assassinados ou desapareceram.

Mas o peronismo sobreviveu até mesmo a isso. Novamente, o Partido Justicialista começou a recuperar ímpeto até que em 1989 seu candidato Carlos Menem foi eleito presidente: um posto mantido por 10 anos.

Como a história se lembrará de Juan Perón? Seu biógrafo definitivo, Joseph Page, dá sua resposta: "Ele legitimou as aspirações de milhões de argentinos anteriormente excluídos da vida civil. Ele deu aos trabalhadores uma auto-consciência duradoura...trouxe bem-estar para os pobres, e permitiu às mulheres ver nos papeis que ele atribuiu a sua segunda e terceira esposas novas possibilidades de realização. Neste sentido, ele se afastou do enraizado machismo de seus compatriotas.

"Ele era também, no fundo, um pacifista...uma curiosa contradição na essência de sua natureza. Ele rejeitava patentemente a violência como instrumento de Estado...é inegável que o homem outrora considerado o Hitler da América do Sul jamais levaria seu país a uma guerra".

"Harry Morley" voa para a Argentina

Em 31 de outubro de 1950, o voo BA351 da BOAC levantou do Aeroporto de Londres e chegou a Buenos Aires às 19:40 do dia seguinte. Segundo a lista de passageiros, havia um "Harry Morley" no avião.

Porém, seu nome não enganou o MI5. Tão cedo quanto 9 de outubro eles haviam pego a partir de um grampo telefônico no QG do Movimento da União que Alf Flockhart, um dos secretários políticos de Oswald Mosley, estava marcando um bilhete aéreo para a Argentina para ele, e que "Harry Morley" estaria na lista de passageiros.

O MI5 imediatamente enviou uma lista com 8 dos principais apoiadores de Mosley na Argentina e em outros lugares da América do Sul para o SIS e em 26 de outubro informou o Ministério de Relações Exteriores.

Ao chegar a Buenos Aires, Mosley foi entrevistado e disse que sua visita estava somente ligada à venda de livros na Argentina e no Chile e que ele estaria ficando com amigos. Uma mensagem enviada pela embaixada britânica a Londres em 4 de novembro comentava que a visita de Mosley havia sido bastante divulgada na imprensa argentina que afirmava que ela havia sido instigada por membros do governo argentino. Porém, a embaixada acreditava que isso não parecia ser o caso, não havia qualquer indicação de algum interesse governamental argentino e depois a imprensa passou a dizer que ele era um visitante inconveniente.

Em 17 de novembro, o señor Pombo da embaixada argentina em Londres foi levado para jantar por alguém do Ministério de Relações Exteriores e ele "confirmou" que Mosley estava apenas se encontrando com certos alemães. Depois, o MI5 reportou que Mosley voltou para a Grã-Bretanha no Aeroporto Hurn em 26 de novembro, tendo passado 2 dias na Espanha.

A visita de Mosley de 1 mês na Argentina foi mencionada por muitos jornais britânicos e americanos, incluindo o semanário "União", do Movimento da União. Nenhum deles indicava que Mosley estaria indo se encontrar com o presidente Juan Perón.

Mas apesar de todos os seus grampos e interceptações, o MI5 e o Ministério de Relações Exteriores foram enganados. Mosley realmente se encontrou com Perón que, se tivesse sido sabido, poderia ter seriamente atrapalhado as negociações argentinas por preços de carne mais elevados com o governo trabalhista britânico, que considerava Mosley seu inimigo mortal. Subitamente, a "garantia" do señor Pombo e a rápida mudança de tom da imprensa argentina pode ser vista como um plano orquestrado de desinformação do governo Perón.

Mas como sabemos que Mosley e Perón se encontraram? E qual foi o motivo?

O Acordo Mosley-Perón

O primeiro indício do encontro veio três meses após a queda de Perón em 1955. O "European Stars and Stripes", o jornal do exército americano de ocupação na Europa, reportou que investigadores da nova junta argentina haviam atacado a casa de Hans Ulrich Rudel, que havia acabado de fugir para o Paraguai.

Rudel era o antigo ás da Luftwaffe que sozinho destruiu 532 tanques soviéticos, 2 cruzadores e um navio de batalha. Após a guerra, ele havia se mudado para a Argentina, trabalhando como piloto de testes da Fábrica de Aviões Militares de Córdoba, junto do ex-comandante Adolph Galland.

Entre os doucmentos de Rudel deixados para trás estavam cartas sobre os encontros realizados na Argentina alguns anos antes entre Rudel e Perón (indicando concordância completa em questões políticas), Rudel e Oswald Mosley, e Oswald Mosley e Perón. Porém, como o "European Stars and Stripes" não era muito lido pelos britânicos, a revelação passou despercebida.

Mosley não mencionou o encontro com Perón em sua autobiografia 'Minha Vida'. Mas na biografia de Robert Skidelsky, 'Mosley', publicada em 1975, o ano da morte de Perón, há uma breve menção confirmando que eles se encontraram. O falecimento do presidente havia liberado Mosley do voto de segredo que ele havia observado estritamente mesmo que a razão para ele houvesse passado há muito tempo.

Mas o que Mosley e Perón discutiram em seu encontro na Casa Rosada em 1950, sem o conhecimento do MI5 e do Ministério de Relações Exteriores da Grã-Bretanha?

Hans Ulrich Rudel contou a história de suas incríveis experiências de guerra em "Piloto Stuka", uma biografia best-seller distribuída pela Editora Euphorian do Mosley. Os investigadores do governo da junta, como reportado no "European Stars and Stripes", notaram que em seu encontro Mosley havia pedido a Perón permissão para que Rudel visitasse a Europa para promover seu livro que isso havia sido acordado. Mas na mente de Mosley havia uma questão muito mais importante na agenda.

Desde a guerra ele havia defendido uma Europa Unida autossuficiente contendo toda a capacidade industrial, energética, material e alimentar necessária para proteger sua economia do trabalho barato do Terceiro Mundo. Para uma autarquia completa, isso também incluiria a "Europa Ultramarina" para englobar o Canadá, a Australásia e parte da África do Sul. Mas isso não era tudo, Mosley visualizava a inclusão dos países pró-europeus da América Latina em uma única "Europa Nação". Para começar, isso incluiria Argentina, Uruguai e Chile.

Eu lembro de suas palavras sobre o tema faladas há 50 anos para uma audiência popular na Prefeitura de Kensington: "E é lá na América do Sul, também, que apenas duas coisas realmente importam. Uma é o comunismo, e a outra é nossa grande ideia europeia!" Os aplausos que se seguiram devem ter chegado até o Royal Albert Hall..

A busca de Perón por unidade política com outros países da América do Sul começou logo no primeiro ano de sua segunda presidência, quando ele defende publicamente a união econômica entre Argentina, Chile e Brasil. Ele considerava uma confederação de Estados latinos como a única maneira de conseguir um desenvolvimento livre da dominação pelo imperialismo capitalista ou comunista. Em uma visita ao Chile em 1953 ele foi ainda mais longe: "Eu acredito que uma unidade chileno-argentina, uma unidade completa e não uma feita pela metade, deve se tornar total e imediata. A simples unidade econômica não será suficientemente forte".

Como primeiro passo para uma América do Sul Unida, acordos sobre os princípios da união foram assinados por Perón com o Chile, o Equador, a Nicarágua e o Paraguai, este até o tornou cidadão honorário. O presidente Vargas do Brasil, admirador de Perón, também se declarou em favor da unidade continental. Como sabemos, a união política permaneceria um sonho: golpes e crises internas logo ocuparam as energias de seus líderes. Mas como o biógrafo de Perón Joseph Page resumiu: "Perón foi o único líder latino a promover vigorosamente a união e ele o fez até o dia de sua morte".

Perón estava tentando fazer pela América do Sul o que Mosley queria fazer pela Europa. Isso certamente teria sido o principal tópico de discussão no encontro secreto entre Perón e Mosley: um no qual eles estariam em completo acordo.

Os dois homens continuaram a se manter em contato pelos anos seguintes, ainda que não esteja confirmado que eles tenham se encontrado novamente. Mas mesmo enquanto escrevo essas palavras, uma carta assinada por Perón no exílio dirigida ao escritório de Mosley apareceu na internet onde se lê: "Eu vejo agora que temos amigos em comum aos quais dou muito valor, algo que me faz reciprocar ainda com mais força as suas expressões de solidariedade... eu ofereço meus préstimos e um forte abraço". - assinado Juan Perón, Hotel Pinar, Málaga, Espanha, 20 de fevereiro de 1960.

Oswald Mosley e Juan Perón vieram de origens inteiramente diferentes, mas eles partilhavam de muitas crenças fundamentais. Ambos defendiam a "Terceira Posição" em economia. Ambos queriam unificar seus continentes e vislumbravam que a civilização, valores e cultura europeus passariam por um renascimento histórico. E ainda que, quando cercados, lutassem como leões, ambos iriam até os limites consistentes com a honra para evidar derramamento de sangue e guerra.

Mais do que nunca tais homens são necessários em uma era na qual pigmeus políticos disputam para descer a níveis ainda mais baixos de corrupção, covardia e mediocridade.


Andrew Korybko - Guerras Híbridas e Segurança Democrática

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por Andrew Korybko



Guerras híbridas são, em realidade, algo completamente diferente daquilo que a maioria das pessoas pensa que elas são. Minha visão é que aquilo que todas as pessoas falam – guerra de informação, guerra econômica, guerra institucional- e que em realidade já foi praticado antes, hoje em dia está sendo integrado através de uma ação conjunta de guerra. Portanto, minha definição de guerra híbrida trata de sua implementação prática no processo de transformar uma revolução colorida em uma guerra não convencional com o intuito de alcançar uma mudança de regime ou federalismo sob o eixo de uma identidade em um estado alvo.

 “A lei da guerra híbrida”, como eu a denomino, é que “o grande objetivo por detrás de toda guerra híbrida é interromper os projetos multipolares de alianças transnacionais através de conflitos de identidade (étnica, religiosa, regional, política, etc.) provocados externamente no estado em transição alvo”, e nós podemos observá-la na prática pelos esforços dos EUA para obstruir os projetos de integração russa na Ucrânia e a sabotagem do chamado Friendship Pipeline iraniano através da Síria. E ainda, todos os corredores de infraestrutura que coletivamente compreendem a estrutura global do chamado One Belt One Road da China, outrora considerada “A Nova Rota da Seda”, são alvos óbvios também, especialmente a área de interesse compartilhado, foco estratégico tanto para Rússia quanto para a China, localizada nos Bálcãs e na Ásia Central.

Agora que eu lhe falei o que são as guerras híbridas, deixe-me contar como elas operam. Organizações não governamentais (ONG’s) e agências de inteligência trabalham para cultivar grupos de frente nos âmbitos políticos e sociais dentro dos estados alvo, construindo essas redes até o ponto em que elas se tornem suficientemente fortes para desafiar as autoridades legítimas.  Antes que quaisquer hostilidades comecem, ONG’s e agências de inteligência se ocupam da tarefa de estimular um sentimento de diferença profundamente enraizada em meio ao povo, que geralmente está centrada em alguma forma de identidade, seja real ou imaginada, ou exagerada, com o objetivo de gerar um ressentimento antigoverno mais intenso.

Uma vez que as pré-condições da infraestrutura social e informacional alcançaram o estágio em que os financiadores externos estão confiantes em seu potencial de interromper a situação política do estado alvo, uma provocação é organizada com o objetivo de criar um motivo plausível para trazer à frente o movimento antigoverno e aberta iniciar o projeto de desestabilização de maneira aberta. Se a revolução colorida, ou a pressão “suave” não for bem sucedida em colher os frutos desejados, então esse movimento é eventualmente transformado em uma guerra não convencional, ou pressão “forte”, através de uma série de ações organizadas.

Quando isso acontece, alguns dos revolucionários se transformam em terroristas insurgentes que então são apoiados por estados pró-americanos, que enviam mais soldados, armamentos, e assistência material para seus representantes. Nós vimos esse processo acontecer na Síria após o fracasso da “Primavera árabe”, quando a revolução colorida se transformou em uma guerra terrorista e na Ucrânia logo depois do golpe de fevereiro quando as regiões ocidentais estavam em revolta aberta contra Kiev. Atualmente, esse padrão de eventos está se repetindo na Macedônia e há uma grande possibilidade de estourar no vale de Fergana em um futuro próximo. Para lembrar a todos vocês, isso está acontecendo com o objetivo de interromper ou tomar o controle de projetos importantes para a infraestrutura de áreas de trânsito essenciais, utilizando os meios inter-relacionados de mudança de regime, federalismo de identidade e caos incontrolável.

Mesmo sendo perigosas e representando uma ameaça, isso não significa que as guerras híbridas sejam inevitáveis e não possam ser contidas. Os métodos de contenção a essa ameaça são o que eu chamo de segurança democrática, e eu acredito que esse é um campo novo e animador que necessita urgentemente de apoio governamental para desenvolver-se. Até então, eu identifiquei três formas primárias para derrotar as guerras híbridas, mas eu tenho certeza que pesquisas futuras irão revelar outras estratégias efetivas.

A primeira coisa a ser feita é que as ameaças híbridas, no sentido que eu as defini, devem ser identificadas e expostas em seus estágios incipientes. Isso significa que todas as organizações não governamentais dentro de nosso país e de nossos aliados interessados devem ser registradas ou investigadas a respeito de financiamento estrangeiro, e que todas as organizações que representam uma ameaça à segurança nacional e estejam operando ilegalmente devem ser imediatamente banidas. Nós já alcançamos isso, então precisamos dar um passo adiante e criar uma base de dados internacional junto com nossos aliados com o objetivo de vigiar todas as ONG’s e suas atividades, sejam elas legais ou ilegais. E ainda, nós temos que demonstrar publicamente as conspirações dos EUA ao fomentar guerras híbridas encorajando os nossos profissionais da mídia, academia e segurança a trabalharem de maneira conjunta e informar coletivamente a nossa população a respeito das ameaças assimétricas que ela enfrenta, já que informação avançada e conhecimento são os meios de dissuadir e prevenir que cidadãos ingênuos e bem intencionados sejam levados a participar desses movimentos perigosos.

Em segundo lugar, nós precisamos ter certeza que os nossos representantes responsáveis pela segurança estejam treinados nos métodos apropriados para desmembrar as células que levam à frente as guerras híbridas, particularmente em dispersar revoluções coloridas e responder a atividades de guerras não convencionais. É muito importante que eles possam lidar com distúrbios de uma maneira delicada e evitem incitar de maneira inadvertida respostas violentas pelo uso de força desproporcional. Os instigadores frequentemente tentam enganar as autoridades fazendo-as cometerem erros e negligências que eles possam explorar através das mídias sociais gerando uma onda adicional de sentimento antigoverno e utilizando esse sentimento para canalizar mais atividades nas ruas. Seja através desses meios ou outros, a sua meta última é reunir o máximo de pessoas possível nas ruas para que elas possam funcionar como escudos humanos ao protegerem os agitadores mais violentos e evitar que eles sejam presos.

Finalmente, a última estratégia de segurança democrática que eu descobri é o encorajamento de movimentos patrióticos da sociedade civil que se manifestem em larga escala e apoio público ao próprio governo. Nós vimos isso de maneira mais clara na República da Macedônia, onde milhares de pessoas protestaram contra os colaboradores da revolução colorida e demonstraram ao mundo que eles não querem uma mudança de regime em seu país. É importante que governos ao redor do mundo ajudem a estimular esses movimentos como defesas pró-ativas em oposição às conspirações das revoluções coloridas, já que eles servem como primeira linha de defesa em resposta à essas ameaças.
Além disso, essas tecnologias de “reverter revoluções coloridas” também podem ser praticadas por cidadãos patriotas que exercem pressão para que seus governos reneguem acordos pró-ocidentes que sejam controversos. Por exemplo, os povos da Sérvia e Montenegro experimentaram através da disciplina e aplicação seletiva dessas táticas a tentativa de convencer os seus líderes a revogarem os seus compromissos com a OTAN, sendo cuidadosos ao não exigir uma mudança de regime ou utilizar meios violentos. O uso positivo da tecnologia das revoluções coloridas definitivamente merece maior atenção.


A última coisa que eu gostaria de dizer para todos vocês é que a Rússia possui o verdadeiro potencial para se tornar o centro global dos estudos e treinamentos em segurança democrática, e se os nossos especialistas podem dominar essas tecnologias e adquirir uma compreensão plena de como elas funcionam, nós podemos compartilhar esse conhecimento valioso com nossos aliados e aumentar a nossa importância estratégica no mundo. É possível que um dia venhamos a treinar os representantes dos nossos parceiros do âmbito militar, social e sua inteligência aqui em Moscou e portanto, fazer de nosso país a vanguarda que garantirá o futuro multipolar coletivo. No entanto, para que isso ocorra, nós necessitamos do apoio imediato das instituições para o financiamento de projetos de pesquisa relacionados e a mobilização em tempo integral de analistas qualificados nessa tarefa. Se nós formos bem-sucedidos em construir uma estrutura de segurança democrática integrada que seja mais forte que a estrutura das revoluções coloridas que os EUA já construíram, então a Rússia pode se tornar a líder indiscutível na resistência global frente às guerras híbridas. 

Fernando José Vaquero Oroquieta - Carlismo: O Movimento de um Povo Católico por seu Rei

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por Fernando José Vaquero Oroquieta



No último domingo 8 de maio, algumas dezenas de pessoas se reuniram, convocados pelo Partido Carlista, em memória e homenagem das duas vítimas mortais dos acontecimentos de Montejurra do ano de 1976: 40º aniversário, nada menos. Fatos, lembremos, ainda não esclarecidos em sua totalidade e dos quais atores políticos muito diversos obtiveram certos benefícios: desde a aparente superação definitiva de um pleito dinástico centenário, em benefício de Juan Carlos I, então, e Felipe VI hoje, até a captação de quadros e eleitorado por parte de alguns partidos.

Outra vez mais, a ladeira de Montejurra foi testemunha, neste domingo de maio, da presença de boinas vermelhas. Mas, que longe ficava aquele ano de 1974 em que 40 mil pessoas se concentraram ali ao redor de seu porta-bandeira, Carlos Hugo, e suas irmãs!

Apesar de cifras tão díspares, e seu enraizamento social correspondente, Montejurra vem sendo o reflexo débil de um movimento popular extraordinário; fundamental na História da Espanha.

Por isso quisemos refletir sobre o mesmo, assinalando algumas chaves que possam permitir compreender melhor uma História da qual todos os espanhois somos, em alguma medida, tributários.

Para a historiografia dominante (caso, entre outros, de Jordi Canal i Morell, Martin Blinkhorn, etc.) o carlismo foi um movimento contrarrevolucionário orientado para a guerra civil. Mas, com um olhar e conclusões contraditórias com a apresentação ideológica e apriorística anterior, um grupo de historiadores, os quais encontramos em grande medida ao redor da Revista de História Contemporânea Aportes, vem realizando diversas investigações de resultados muito diversos.

Este preconceito ideológico, que etiqueta negativamente o carlismo, também encontramos em outros meios; inclusive no seio da própria Igreja Católica espanhola. Desse modo, por exemplo, se ignora com silêncios ou omissões que foram carlistas muitos dos alunos entusiastas da, à época, nova Doutrina Social católica de Leão XIII; o que se concretizou em sindicatos, cooperativas, editoras, mutualidades e obras sociais de vários tipos e alcance. E tudo isso sem esquecer que um grupo significativo de "mártires" da guerra civil espanhola, beatificados no último ano, eram carlistas.

Dois Testemunhos sobre o Carlismo

Para enquadrar este estudo, reproduziremos dois testemunhos muito interessantes

O navarro Gregorio Monreal, histórico militante nacionalista basco hoje em Geroa Bai, que foi catedrático de História do Direito na Universidade Pública de Navarra e antigo reitor da do País Basco, em uma longa entrevista publicada na revista de extrema-esquerda Hika (número duplo 121/122, abril/maio de 2001, páginas 14 a 18), realizava a seguinte reflexão familiar sobre o carlismo: "...E vou dar-te um exemplo que tiro de meu próprio meio familiar, concretamente de minha mãe, procedente do vale de Yerri, sancta sanctorum do carlismo. Essa família, que não havia tido nunca relação com a cultura liberal, se dividiu quase meio a meio entre UPN e HB".

Por outra parte, o escritor navarro Miguel Sánchez-Ortix, recebedor do prêmio Príncipe de Viana 2001 da Cultura, respondia em 1 de julho de 2001 da seguinte maneira à pergunta: "Por que resgata o carlismo?", ao jornalista do Diário de Navarra: "Fundamentalmente porque está na raiz de nosso presente. Me resulta muito enigmático que o movimento carlista, que sangrou nessas terras durante 150 anos, que está na origem da última Guerra Civil, que todas as sequelas que deixou em Navarra de rupturas familiares, ruínas econômicas, a emigração à América que provocou... Que tudo isso, em uma manhã, a de 9 de maio de 1976 em Montejurra, deixasse o carlismo ferido de morte, é um assunto muito enigmático. Para onde foi toda essa massa de gente que nos anos 60 acuda a Montejurra aos milhares? Há que ver que houve uma transferência, estimo, tanto para o socialismo, como para o Herri Batasuna". E, à seguinte pergunta do jornalista, "E essa transferência foi por medo?", responde: "Não. Não tem nada a ver com medo. Pode ser que fosse uma ideologia que tinha muito pouco futuro em um mundo que mudou tanto. O tecido social de Navarra mudou demais. Não sei se a ideologia carlista, por muito estimável que seja, pode seduzir às pessoas".

Não é nenhuma temeridade afirmar que o denominado "carlismo sociológico" desapareceu quase totalmente. Não obstante, encontramos antigos carlistas, ou filhos de carlistas, em todo o espectro político navarro, tanto em suas bases, como em seus níveis dirigentes. De fato, alguns dos mais qualificados representantes da política navarra nos anos 70 e 80 do século passado podiam ser incluídos nessa categoria. Recordemos, a título simplesmente de exemplo, Federico Tajadura, dirigente da esquerda do PSOE, Jaime Ignacio del Burgo (jurista, escritor e político de longa trajetória na centro-direita navarra), Florencio Aoiz Monreal (de família carlista de Tafalla e porta-voz de Batasuna em sua épocA), Juan Cruz Alli (líder do disolvido partido Convergencia de Democratas de Navarra, ex-presidente do governo de Navarra) e tantos outros.

Podemos nos perguntar, com que critério, desde que impulsos ideológicos ou existenciais, se adscreveram tantos, como antigos carlistas, a umas ou outras forças políticas percebidas como mais "atuais"? Por acaso se pode afirmar que aqueles de convicções navarristas e espanholistas mais acentuadas engrossaram as fileiras da União do Povo Navarro; não em vão, hoje em dia, em algumas zonas do norte de Navarra, a base desse partido é basicamente gente de antiga pertença carlista. Por outro lado, muitos jovens, da etapa final do carlismo "socialista", engrossaram as fileiras do Herri Batasuna e suas sucessivas "marcas". Por sua vez, alguns outros se integraram, o que se pode explicar pelo sentimento social do carlismo, nas fileiras do PSN-PSOE e outros partidos à esquerda.

O Movimento Carlista

Desde tamanha disparidade e dispersão, como podemos definir e caracterizar o carlismo? A resposta é importante, pois a mesma poderia nos proporcionar algumas pistas fundamentais para entender seu aparente e brusco desaparecimento e a complexa situação política e social pela qual passa Navarra.

Para isso, partiremos de uma declaração oficial do próprio carlismo, emitida em um momento especialmente delicado de sua história. Assim, mediante o Real Decreto de 23 de janeiro de 1936, Don Alfonso Carlos estabelecia a Regência com as seguintes precisões:

"Tanto o Regente em suas obrigações como as circunstâncias e aceitação de Meu sucessor, devem sujeitar-se respeitando como intangíveis aos fundamentos da legitimidade espanhola, a saber:

I - A Religião católica, apostólica, romana com a unidade e consequências jurídicas com que foi amada e servida tradicionalmente em Nossos Reinos.
II - A constituição natural e orgânica dos Estados e corpos da sociedade tradicional.
III- A federação histórica das distintas regiões e seus foros e liberdades, integrantes da unidade da Pátria espanhola.
IV - A autêntica monarquia tradicional, legítima de origem e exercício.
V - Os princípios e espírito e, na medida do praticamente possível, o próprio Estado de direito e legislativo anterior ao mal chamado Direito Novo".

Agora vejamos alguma resposta científica emitida a partir da abundante historiografia especializada.

A historiadora Aurora Villanueva, em seu livro O Carlismo Navarro durante o Primeiro Franquismo (Actas, Madri, 1998), o caracteriza da seguinte maneira: "Configurado politicamente ao redor de fidelidades pessoais, ao pretendente e sua dinastia, o carlismo constituiria o sinal de identificação daqueles que, no universo individualista característico do sistema político e cultural liberal, participavam de uma visão tradicionalista da vida e do mundo. Uma 'comunhão' de pessoas aglomerada ao longo da história sobre o eixo da lealdade a certas ideias e uma dinastia" (pg. 531). Fidelidade, antes de tudo, à legitimidade dinástica e a um ideário muito preciso; ambos elementos em simbiose perfeita.

De sua parte, o prolífico historiador Josep Carles Clemente considera, em sua abundante bibliografia, que o carlismo se caracterizava, ademais dos anteriores elementos, por se tratar de um movimento popular e de protesto. Originado no seio do legitimismo espanhol do século XIX, integraria em seu ideário indubitáveis conceitos ideológicos modernos (desde nosso ponto de vista, herança expressa do cristianismo): federalismo, profundas aspirações sociais, sentido de protesto. As relações desse povo com seus líderes, assegura Clemente, quase nunca teriam sido exemplares, ainda que em geral, os defensores máximos do carlismo teriam sim respondido aos anseios de seu povo. Tradicionalismo, integrismo, franco-juanismo, teriam sido, opina o citado historiador, tendências ideológicas inseridas posteriormente no carlismo, mas com uma intencionalidade instrumentalizadora de tão generoso movimento; mas que não responderiam ao sentimento geral da base.

Clemente conclui sua elaboração afirmando que foi com o já falecido Carlos Hugo que o povo carlista teria alcançado o mais alto grau de fusão com seus líderes naturais, já despojados dos elementos dissonantes; o que não impediu sua debandada geral por ocasião do fracasso eleitoral do partido em 1979. Em consequência, para este autor, os carlistas concentrados no último 8 de maio seriam os últimos e diretos representantes desse "povo em marcha" que percorreu boa parte dos séculos XIX e XX.

Os autores tradicionalistas, de sua parte, proporcionam uma perspectiva bastante distinta. Consideram, em seu conjunto, que a rápida evolução ideológica, da Comunhão ao "socialismo autogestionário e federalista" do Partido Carlista, teria sido forçada e "contra natura". Dita transformação, impulsionada por um pequeno grupo de líderes e quadros, que utilizaram o instrumento dos "cursinhos" dos anos 60 e 70 empenhados em uma "modernização" a todo custo, os teria levado à trincheira contrária; o que teria provocado, ou acelerado, a desarticulação desse povo e inclusive do chamado "carlismo sociológico".

Para alguns desses autores, e para a atual Comunhão Tradicionalista Carlista, esta. refundada já há 30 anos no Congresso de El Escorial, seria o agrupamento herdeiro desse carlismo extraordinário que assombrou aos próprios e a estranhos.

Em todo caso, retomemos a pergunta inicial, como é possível que um movimento político popular, centenário, vigoroso, que atravessou provas tremendas, desapareça quase de um só golpe?

Já mencionamis que a historiadora Aurora Villanueva descreve o carlismo como um fenômeno político, sociológico e ideológico completo. Paradoxalmente, foi nos períodos liberais da história recente da Espanha que o carlismo pode se expressar e desenvolver ideologica, orgânica e sociologicamente. Villanueva descreve em seu texto, documentadamente, o processo agônico de desintegração que sofreu, em Navarra, esse carlismo que não conseguiu se adaptar à semiclandestinidade em que o regime de Franco o colocou; depois de terminada totalmente a guerra civil. Por outra parte, as convicções religiosas e semitradicionalistas do regime puderam contribuir para a desmobilização de setores importantes do carlismo; os quais se sentiriam acomodados no mesmo.

Nesse estado de coisas, e nas décadas seguintes, o carlismo sofreu novas fraturas: falcondismo, carlosoctavismo, juanismo... Analisando os fatos descritos em seu livro, concluímos que a sorte do carlismo foi jogada por umas poucas dezenas de protagonistas, no que concerne Navarra, a "Israel do carlismo"; permanecendo em boa medida alheia a tudo isso sua massa popular, acomodada a um regime que afirmava, ao menos no papel, boa parte de seus princípios.

Enquanto isso, a sociedade espanhola se transformava aceleradamente: se consumava o êxodo do campo à cidade, diminuindo assim a influência do clero rual (muito implicado, como no caso de Navarra, no sustento do carlismo); a família tradicional iniciava uma lenta, mas inexorável transformação; novos ares sopravam no seio da Igreja; etc.

Uma Hipótese

A estas alturas de nosso estudo, como caracterizar, sinteticamente, o carlismo?

Resumindo os diferentes elementos comuns assinalados anteriormente, a nosso juízo o carlismo seria um "movimento de um povo católico por seu rei". O povo tradicional espanhol, mobilizado durante mais de um século a serviço de seus ideais e da "Dinastia Legítima". E, no que se refere a sua crise, assinalemos que tal não pode se separar da que sofre a Espanha e a própria Igreja Católica.

Desde essa perspectiva, o tradicionalismo e, posteriormente, o socialismo autogestionário carlista dos anos 70, não teriam sido senão tentativas de ideologização de um movimento em crise e certa indefinição doutrinária desde seus primórdios.

Esfumaçada a liderança e atrativo do "rei legítimo", questionada em seus fundamentos a "unidade católica" sustentadora da Espanha à raiz de novas correntes impulsionadas a partir do Vaticano II, atomizado e disperso em consequência seu povo, persistem, mesmo hoje, famílias e pessoas e profundas convicções ideológicas. Pelo contrário, boa parte do antigo povo carlista se diluiu, com maior ou menor convicção, nas fileiras de outras forças políticas que consideraram mais afins a sua sensibilidade; tudo isso em consonância com o movimento geral da sociedade.

Avançando nessa hipótese, deve se destacar, antes de tudo, a profunda religiosidade do movimento carlista; enquanto que outros componentes doutrinários, à parte a dinâmica dessa relação povo-rei, seriam ingredientes ideológicos mais acidentais.

Francisco Javier Caspistegui Gorasurreta em seu livro O Naufrágio das Ortodoxias, o Carlismo, 1962-1977 (EUNSA, Pamplona, 1997) explica como o impacto das novas correntes teológicas derivadas do Vaticano II foram determinantes na rápida evolução ideológica experimentada pelo carlismo nas décadas de 60 e 70. A transformação de alguns movimentos eclesiásticos rumo a posturas de extrema-esquerda afetou também mutos dos homens e mulheres do carlismo. Exemplifica tal hipótese na trajetória de duas pessoas: Antonio Izal Montero (carlista navarro que assumiu com paixão as novas correntes da Igreja) e Alfonso Carlos Comín (figura paradigmática do progressismo católico catalão dos anos 60 e de grande influência em determinados ambientes intelectuais "comprometidos"; filho de um dirigente carlista aragonês).

Desse modo, na página 46 do texto citado, se recolhe um parágrafo esclarecedor: "O carlismo não ia ser uma exceção neste ambiente de mudança, ainda mais em se tratando de um movimento cuja estrutura social marcadamente diferenciada entre dirigentes e dirigidos, faria com que sua ampla e pouco ideologizada base aceitasse com rapidez as transformações que iam introduzindo-se na variável sociedade espanhola do momento. Ademais, a debilidade de estruturas ideológicas fazia com que o que houvesse de político em sentido doutrinário se diluísse no muito mais pujante carlismo sociológico, mais apto às mudanças ante influxos diversos, pouco condicionado pelos escassos esquemas doutrinários existentes no carlismo, ainda que sem deixar de lado as possibilidades que uma doutrina como a carlista, apesar de suas limitações, oferecia para a renovação, insistindo em um rechaço ao imobilismo enquanto tal...".

No que concerne o veículo da transformação ideológica operada, em suas páginas 52 e 53 o concretiza assim: "Através dele (o religioso) faria ato de presença um elemento que, aos poucos, de forma real ou imaginária, como mito do dissolvente ou como efeito de uma realidade mutante, se apossou das obsessões e ilusões de boa parte do carlismo, contribuindo de maneira importante para a aceleração das mudanças nele. O mito do progressismo ia se introduzir no carlismo, utilizado como desculpa para a crítica ou como via para a reforma. Este progressismo de raiz religiosa ia muito unido ao processo de atualização que afrontava a Igreja desde o começo do pontificado de João XXIII".

Aqueles anos de regência foram muito críticos para o carlismo, ao que se somou a semiclandestinidade da Comunhão e a despolitização do regime franquista; segundo víamos antes. Apesar disso, a figura de Xavier de Borbón-Parma seguiu agregando boa parte das adesões das "primeiras figuras" do carlismo, ainda que se produzissem algumas defecções políticas importantes; caso do que foi Chefe Regional de Catalunha e impulsionador, posteriormente, da denominada Regência de Estella, Mauricio de Sivatte. Mas essa adesão mingua progressivamente, ao longo dos anos 60, com a saída de diversas figuras significativas da Comunhão por motivações diversas.

Um dado concreto avaliza essa religiosidade fundamental do movimento carlista: ainda hoje, boa parte das vocações ao sacerdócio surgidas nos últimos anos em Navarra, assim como à vida contemplativa, o foram no seio de famílias carlistas. Famílias que souberam transmitir o legado carlista; parelho a sua profunda e indubitável experiência católica.

Voltemos a nossa tese. Conforme essa concepção do carlismo seria necessário diferenciar três elementos hmanos, estruturais consubstanciais, que o integrariam: o povo, os líderes, o rei.

A sintonia povo-rei teria sido, em geral, magnífica. Mas a continuidade dinástica se interrompe em 1936 por causa da morte de Dom Alfonso Carlos de Borbón Austria-Este, estabelecendo-se uma regência. Este novo período histórico do carlismo, iniciado em plena guerra civil, coincidindo com o esforço militar que absorveu todas as suas energias durante anos tão transcendentais, se prolonga até o chamado "Ato de Barcelona" (31 de março de 1952). Dessa forma, e em pleno franquismo, se produziu a assunção do caudilhismo monárquico da Comunhão, ante seu Conselho Nacional, pelo até então regente Dom Xavier de Borbón-Parma, pai de Dom Hugo Carlos (mais tarde Carlos Hugo); após muitas dúvidas e vacilações.

Essa interrupção na continuidade da "dinastia legítima" coincidiu, na época, com a desmobilização de boa parte das massas carlistas posterior ao término da guerra civil; com uma Comunhão Tradicionalista ilegal. Neste sentido, Aurora Villanueva proporciona algumas novas chaves de máximo interesse. Assim, na página 536 de seu livro: "E é que ambos, carlismo e franquismo, procediam do mesmo universo mental: o tradicionalismo cultural do fim do século XIX e início do XX. Daí que o esforço dos líderes carlistas por manter o carlismo organicamente diferenciado alcançasse tão somente os setores de militantes mais politizados, enquanto que as bases, do carlismo sociológico, encontravam fácil acomodação no regime de Franco. Quiçá aqui resida a razão última da perda de sinal de identidade carlista durante o regime franquista".

A reativação do carlismo com um novo pretendente à cabeça (Dom Xavier) e, anos depois, com m projeto político diferenciado já em oposição aberta ao franquismo, após certa reconciliação prévia, coincide com o processo de transformação social operado na Espanha e com as mudanças da Igreja Católica. Tudo isso impulsionou a rápida evolução ideológica do carlismo (retificação ou definição, segundo seus impulsionadores), que acarretou o distanciamento progressivo de seus elementos inequivocamente tradicionalistas; perante o desconcerto de boa parte da base desse povo em desintegração. 

O papel dos líderes teria que ser questionado em maior medida; a história nos desenha múltiplos dissensos, cisões, mudanças de estrategia, expulsões, mudança de partido, etc., protagonizados por muitos deles. Todos esses movimentos fracassaram, entendendo-os como projetos coletivos, sendo, ao contrário, polo de atração do povo carlista a pessoa concreta do porta-estandartes que encarnava a continuidade da dinastia legítima e a mesmíssima autopercepção das Espanhas.

Resumamos, pois. A sintonia povo-rei, base do movimento histórico carlista, se rompe por um conjunto de causas:

1 - Por fatores estruturais internos da própria realidade carlista (a interrupção dinástica, as relações flutuantes com o franquismo, e a renovação de suas elites).

2 - Pelas novidades doutrinárias externas que afetaram, de forma determinante, ao "corpus" ideológico carlista (novas correntes teológicas desenvolvidas na Igreja a partir do Vaticano II; que questionaram o princípio básico carlista da "unidade católica" da Espanha).

3 - Por fatores externos derivados da dinâmica social histórica em que se desenvolve este povo concreto (as mudanças profundas que transformaram a Espanha, passando de uma sociedade rural a outra industrial, com o desaparecimento consequente do até então influente clero rural carlista; a progressiva desarticulação da família tradicional em prol de um modelo familiar nuclear muito mais individualista, conforme padrões sociais procedentes das chamadas sociedades "avançadas"; o impacto quotidiano das ideologias de "68"; finalmente, a incidência brutal individual e social do consumismo e do individualismo próprios da sociedade pós-moderna e pós-industrial.

Fatores tão complexos e rápidos pressionaram simultaneamente e sem freio algum, sobre o povo carlista, determinando que a família tradicional, principal custódia do carlismo durante várias gerações não fosse capaz de transmitir, salvo exceções contadas, seu legado; como tampouco foi capaz de comunicar uma experiência religiosa atraente em tantos casos.

Algumas Conclusões

Hoje em dia, fica algo vivo do carlismo? De forma organizada, sobrevivem três pequenos grupos: o Partido Carlista (último e minúsculo representante do carlismo socialista, federalista e autogestionário); a refundada Comunhão Tradicionalista Carlista; e o núcleo agrupado ao redor da chamada Secretaria Política de S.A.R. Dom Sixto Henrique de Borbón, a quem reconhece como Porta-Estandarte da Tradição.

Sociologicamente, por acaso, poderíamos aventurar que alguns tiques da mentalidade navarra em particular, se encontram intimamente entrelaçados com o carlismo sociológico: sentido de grupo, gosto pelo próprio, generosidade e entrega pessoal, certas imagens e lugares comuns do léxico, apego às tradições, espontaneidade, substrato religioso...

Não obstante, as novas gerações navarras, salvo exceções contadas, mostram um assombroso desconhecimento da história e saga carlistas de seus pais e avós.

Na dinâmica das relações humanas, a presença e companhia gerada por pessoas excepcionais pode chegar a materializar, pelo atrativo que são capazes de transmitir entre os homens e ao longo do tempo, um movimento que atravesse um período histórico. Essa dinâmica elemental determinou a operatividade concreta na transformação do catolicismo, e também o esteve, na história do carlismo.

Refletindo sobre a saga popular do carlismo, e analisando seu peso na história de Espanha e Navarra, não podemos menos que nos sentir tributários de todos esses carlistas, antepassados diretos nossos, que lutaram de forma consequente com seus ideais. Inclusive podemos chegar a afirmar que, em boa medida, graças eles, nossa tradição histórica concreta (a espanhola) e religiosa (o catolicismo) nos chegaram até nossos dias de uma forma viva, reconhecível e tangível. Trata-se, definitivamente, de um precioso legado para os navarros de hoje e todos os outros espanhois.


Ananda Coomaraswamy - O Sentido da Morte

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por Ananda Coomaraswamy



"Ez ist nieman gotes riche wan der ze grunde tót ist" - Meister Eckhart (Pfeiffer ed., p. 600)

O sentido da morte está inseparavelmente ligado ao sentido da vida. Nossa experiência animal é apenas de hoje, mas nossa razão toma contas também do amanhã; daí, na medida em que nossa vida é intelectual, e não meramente sensorial, nós estamos inevitavelmente interessados na questão, O que acontece "conosco" no amanhecer da morte. Essa é, evidentemente, uma pergunta que só pode responder em termos do que ou quem "nós" somos agora, mortal ou imortal: uma questão da validade que ligamos, por um lado, a nossa convicção de ser "este homem, tal e tal" e, do outro lado, a nossa convicção de ser incondicionalmente.

Toda a tradição da Philosophia Perennis, oriental e ocidental, antiga e moderna, faz uma distinção clara entre existência e essência, devir e ser. A existência desse homem tal e tal, que fala de si mesmo como "Eu", é uma sucessão de instantes de consciência, dos quais nenhum é igual a outro; em outras palavras, este homem jamais é o mesmo homem de um momento para o próximo. Nós conhecemos apenas passado e futuro, nunca um agora, e assim jamais há qualquer momento em relação ao qual possamos dizer de nosso eu, ou de qualquer outra apresentação, que ele "é"; assim que perguntamos o que ele é, ele já se "tornou" outra coisa; e é apenas porque as mudanças que ocorrem em qualquer período breve são normalmente pequenas que nós tomamos o processo incessante por um ser real.

Isso se sustenta tanto em relação à alma quanto em relação ao corpo. Nossa consciência é uma corrente, tudo flui, e "você jamais molha os pés duas vezes nas mesmas águas". Ademais, consideradas individualmente, cada corrente de consciência teve um início, e deve também ter um fim. Mesmo que assumamos que uma continuidade individual de consciência possa sobreviver à dissolução do corpo (como não seria inconcebível se supôssemos a existência de uma variedade de suportes substanciais não tão grosseiros quanto, mas mais sutis do que, a "matéria" que nossos sentidos normalmente registram), é evidente que tal "sobrevivência da personalidade", ainda envolvendo uma duração, não dá prova de que tal existência deva durar para sempre. O universo, independentemente de quantos diferentes "mundos" (i.e., loci de compossíveis) se possa pensar que ele abarque, não pode ser pensado separado do tempo; nós não podemos, por exemplo, perguntar O que Deus estava fazendo antes de criar o mundo? ou O que ele estará fazendo quando ele acabar? porque o mundo e o tempo são concomitantes e não podem ser pensados em separado. Se nós supormos que o universo teve um começo, nós também supomos que isso signifique que o que quer que exista no tempo e no espaço deve chegar a um fim mais cedo ou mais tarde. Nós enfatizamos este ponto porque é importante perceber que as "provas" espíritas da sobrevivência da personalidade, mesmo que aceitemos sua validade, não são provas de imortalidade, mas apenas de um prolongamento da existência pessoal. Presumir uma sobrevivência da personalidade é apenas adiar o problema do sentido da morte.

Toda a tradição da qual estou falando assume, então, e nesse sentido concorda com a opinião do "materialista" ou do "nada-mais", de que para este homem, tendo tal nome, aparência, e qualidades, não há possibilidade de uma imortalidade; sua existência sob quaisquer condições é uma sempre em devir, e "todo mudar é um morrer". É sustentado, também com base na autoridade e na razão, que "este homem"é mortal, e que "não há consciência após a morte". Tudo que nasce deve morrer, tudo que é composto deve se decompor, e seria inútil lamentar pelo que é inerente à própria natureza das coisas.

Mas a questão não termina aqui. É verdade que nada que seja mortal por natureza pode se tornar imortal, não importando quanto possa durar. A tradição, porém, insiste em que devemos "conhecer nosso eu", o que e Quem somos. Ao confundirmos nossa intuição-de-ser ou consciência-de-ser-assim-e-assado, nós podemos ter esquecido de nós mesmos. O caso é, na verdade, um de amnésia e identidade trocada. Lembremos que uma "pessoa"é primariamente uma máscara e disfarce adotado, que "todo o mundo é um palco", e que pode ter sido uma ilusão um tanto infantil ter assumido que as dramatis personae [o "elenco"] eram as "próprias pessoas" dos atores. Do ponto de vista de nossa tradição, o cogito ergo sum cartesiano ["Penso, logo existo"] é um absoluto non sequitur ["Não se segue"] de um argumento circular. Porque eu não posso dizer cogito ["Eu penso"] realmente, mas apenas cogitator ["Pensamento"]. "Eu" nem penso, nem vejo, mas há um Outro que vê, ouve, pensa em mim e age através de mim; uma Essência, Fogo, Espírito ou Vida que não é mais ou menos "minha" do que "sua", mas que nunca se torna alguém; um princípio que informa e vivifica um corpo após o outro, e em relação ao qual não há outro que transmigre de um corpo para o outro, um que nunca nasce e nunca morre, apesar de presente em todo nascimento e morte ("nem um pardal caiu no chão..."). Esse é uma Vida que é vivida dove s'appunta ogni ubi ed ogni quando [Onde o "quando" e o "onde" estão focados], um lugar sem dimensões, e um agora sem duração, do qual a experiência empírica é impossível, e que só pode ser conhecido imediatamente. Essa Vida é o "Fantasma" do qual "abrimos mão" quando este homem morre e o espírito retorna a sua fonte e o pó ao pó.

Toda nossa tradição, por todo lugar, afirma que "há dois em nós"; as "almas" mortal e imortal platônicas, nefesh (nafs) e ruah (ruh) hebraica e islâmica, a "alma" e a "Alma da alma" de Philo, O faraó egípcio e seu Ka, o Sábio Interior e o Exterior dos chineses, o Homem Interior e Exterior dos cristãos, psyche e pneuma, e o "eu" (atman) e o "Eu Imortal do eu" (asya amrta atman, antah purusa) - uma a alma, eu ou vida que Cristo demanda que "odiemos" e "neguemos", se quisermos segui-lo, e a outra alma ou eu que pode ser salvo. Por um lado, somos comandados "Conheça-te a ti mesmo", e pelo outro lado, "Isto (o Eu Imortal do eu) é tu". Levanta-se então a questão, Em quem, quando eu ir adiante, deverei seguir? Em meu eu, ou em seu Eu Imortal.

Depende da resposta para essa pergunta a resposta para a pergunta, O que acontece com o homem após a morte? É evidente, porém, do que foi dito, que essa é uma pergunta ambígua. Com referência a quem se pergunta, este homem ou o Homem? No caso desse homem, nós só podemos responder perguntando, O que há nele que poderia sobreviver além de como herança para seus descendentes? e no caso do Imortal, apenas perguntando, O que há nele que morra? Se nessa vida - e "uma vez fora do tempo, sua chance se foi" - nós lembramos nosso Eu, então "Tu és isto", mas caso contrário, então "grande é a destruição".

Se nós conhecemos aquele Homem, podemos dizer com São Paulo, "Eu vivo, porém não eu, mas Cristo em mim". Quem quer que possa dizer isso, ou seu equivalente em qualquer outro dialeto der einen Geistessprache, é o que é chamado na Índia um jivan-mukta, um "homem livre aqui e agora". Este homem, Paulo anunciou sua própria morte; as palavras "Contemplem um homem morto andando" poderiam ter sido ditas sobre ele. O que dele permaneceu quando seu corpo cessou de respirar, senão Cristo? - aquele Cristo que disse, "Ninguém subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu."

"O reino do Céu não é para ninguém além dos completamente mortos" (Meister Eckhart, Evans ed. I, 419). Assim, nas mesmas palavras do Mestre, "a alma deve matar a si mesma". Pois o que mais significa "odiar" e "negar" a nós mesmos? Não é verdade que "toda a Escritura clama pela liberdade do eu"?

Como l'uomo s'eterna? ["como o homem se torna eterno"] A resposta tradicional pode ser dada nas palavras de Jalalu'd-Din Rumi e Angelus Silesius: "Morra antes de morrer". Só os mortos podem saber o que significa estar morto.


Kerry Bolton - Brexit e a Falácia da "Independência" Britânica

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por Kerry Bolton




Nigel Farage do Partido da Independência do Reino Unido se referiu ao referendo que, por pouco, viu os britânicos votando pelo abandono da União Europeia como marcando o "Dia de Independência" da Grã-Bretanha. O Brexit foi promovido em boa medida em cima da premissa de que a União Europeia é responsável pelo multiculturalismo britânico, e que a imigração ameaça o modo de vida britânico. Há uma certa euforia resultante da crença de que isso significa o início do renascimento britânico. Há algumas falhas sérias nesses argumentos.

Primeiramente, os problemas britânicos com a imigração e o multiculturalismo não se originam primariamente da participação na União Europeia. Segundo o Departamento Nacional Britânico de Estatísticas: "624.000 pessoas imigraram para o Reino Unido até setembro de 2014, um aumento estatístico significativo em relação aos 530.000 dos 12 meses anteriores. Há aumentos estatísticos significativos na imigração de cidadãos de fora da UE (de 49.000 para 292.000) e cidadãos (não-britânicos) da UE (de 43.000 para 251.000)". A maior parte dos imigrantes britânicos nunca veio da UE. Enquanto a Grã-Bretanha verá uma redução na imigração vinda da Espanha, Polônia, Itália, etc., eles não verão essa redução de países africanos e resultados como resultado do Brexit.

O Brexit foi promovido com base em um retorno à independência britânica. O que "independência" significa realmente? Independência de quem e para quem? Talvez seja possível dizer que a Grã-Bretanha não tem sido independente, isto é que a Grã-Bretanha não tem tido soberania para fazer política com base apenas em interesses britânicos, desde a criação do Banco da Inglaterra em 1964. Nigel Farage mencionou que o Brexit era um voto contra os grandes bancos mercancis e contra as corporações. É verdade que esses interesses queriam que a Grã-Bretanha permanecesse na União Europeia. Mas como o poder das instituições financeiras sobre o Reino Unido vai diminuir um pouquinho que seja ao se abandonar a UE? A Grã-Bretanha ainda vai estar pegando dinheiro emprestado com bancos internacionais. A Grã-Bretanha ainda vai estar fazendo comércio através do sistema comercial global facilitado pelos bancos. Brexit não significa que a Grã-Bretanha passará a emitir seu próprio crédito estatal, ou que ela começará a fazer comércio por escambo, fora do sistema financeiro internacional. Nem o próprio Partido da Independência do Reino Unido possui uma política financeira que inclua uma reforma bancária: ela se baseia em reforma tributária e reduzir ajuda a outros países. O sr. Farage até mesmo disse em seu discurso de vitória em relação ao Brexit que a Grã-Bretanha será "global". Como este tipo de sentimento se encaixa com a palavra "independência" de seu próprio partido? A mesma situação se aplica aos outros partidos "eurocéticos" que agora demandam que suas nações realizem um referendo sobre a participação na UE. Geralmente, esses partidos, ditos "de direita", acreditam em economia de mercado e comércio global.

Talvez haja visões da Grã-Bretanha retornando às velhas preferências comerciais da Commonwealth? Esse era o ideal do National Front durante seu ápice na Grã-Bretanha nos anos 70; construir um bloco de Domínios Brancos que resistiria ao financismo internacional. A oportunidade para isso se foi há muito tempo. Nova Zelândia, Austrália e Canadá já sucumbiram aos arranjos comerciais globalistas como o TTPA, e ao livre-comércio com a China e outras economias asiáticas em expansão, que são em si parte do sistema financeiro internacional. 

E quanto a outras áreas importantes da "independência", como a política externa? A Grã-Bretanha continua na ONU, uma versão internacional da burocracia da UE. A Grã-Bretanha é o quinto maior contribuinte financeiro da ONU, fornecendo 5% do orçamento anual da ONU e 6.7% de seu orçamento "pacificador" para 2015.

A Grã-Bretanha é o quarto maior contribuinte para o orçamento da OTAN, com 10.5%. A Grã-Bretanha é parte dessa organização militar global, junto a outros países da UE e muitos outros, para o propósito de manter uma "nova ordem mundial" baseada na hegemonia americana. Porém, de maior importância do que as contribuições financeiras para a OTAN é a subserviência a interesses globalistas.

Em conclusão, o Brexit não fez nada para estabelecer a Grã-Bretanha como um Estado soberano, resgatar a Grã-Bretanha do impasse multiculturalista ou avançar políticas soberanas na economia, finanças e política externa. Ela estará buscando mercados dentro do mesmo sistema globalista, pagando dívidas para os mesmos bancos internacionais e enviando tropas segundo as necessidades globalistas. Há ainda o prospecto da saída da Escócia do Reino Unido para continuar ligada à UE. O Sinn Fein também comentou que eles demandarão que a Irlanda do Norte se una à Irlanda para permanecerem na UE. Neste evento, o povo de Ulster reagirá, com o prospecto de uma guerra civil bastante sangrenta. O prospecto agora é que não haverá Reino Unido, para o bem ou para o mal.

Em prol de algumas economias em relação ao orçamento da UE limitando a recepção de imigrantes europeus, a Grã-Bretanha não ganhou nada em prol de sua independência ou por sua integridade cultural. O que foi alcançado por dar aos britânicos a ilusão de liberdade e renascimento. 



Gregory Hood - Nacional-Bolchevismo, Rússia e o Papel das Ideias

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por Gregory Hood



O que acontece conosco quando morremos? Os grandes filósofos, teólogos e acadêmicos do passado debateram essa questão por séculos. Ninguém conhece a verdade definitiva, e é impossível pensar que conforme cambaleemos na beira da eternidade no momento de nossa morte, que pelo menos uma pequena porção de medo vai se misturar com esperança pela vida eterna. Talvez a busca por sentido seja o próprio sentido. Quem pode saber com certeza? Uma coisa, porém, podemos dizer com certeza. Se Adolf Hitler e Josef Stalin ainda existem, em algum lugar, de alguma forma, e eles vissem esse vídeo, eles ficariam realmente, realmente, realmente confusos.

Onde começar? A reação óbvia de americanos estúpidos como eu seria imaginar o que raios são esses nazi-comunistas.

Ao mesmo tempo, esse tipo de riso é artificial. Você sabe que deve rir desse tipo de coisa ao invés de analisar de verdade, da mesma maneira que você deve rir, digamos, de nacionalistas brancos. Você também sabe que deve reagir dessa maneira exatamente em relação às ideias mais ameaçadoras ao sistema. Vamos dar uma olhada séria no nacional-bolchevismo, e ver se há algo que realmente faria alguém combinar a música "Ghost Division" do Sabaton (sobre a investida de Rommel na França) com imagens do Exército Vermelho vitorioso. Essa análise também lançará luz no debate sobre a Nova Direita Europeia, Francis Parker Yockey e o anti-americanismo dentro do movimento nacionalista branco.

O nacional-bolchevismo é uma tentativa de combinar elementos do comunismo com nacionalismo. Ele rejeita fortemente tanto o capitalismo de livre-mercado quanto o socialismo universalista, em prol de uma receita interessante de tradicionalismo radical, estética modernista, imagética militarista e uma forte ênfase em geopolítica e autarquia econômica, ao invés de livre-comércio. Não surpreendentemente, o movimento hoje está centrado na Rússia, com influências tão diversas quanto Gregor Strasser, Alain de Benoist e Josef Stalin.

O nacional-bolchevismo possui suas raízes na Alemanha, conforme escritores como Ernst Niekisch viam a emergente União Soviética como uma maneira de criar uma comunidade nacional forte que poderia transcender a corrupção da democracia, desde que ela abandonasse o seu universalismo de "trabalhadores do mundo uni-vos". Ernst Jünger, que escreveu sobre como ele "odiava democracia", foi também influenciado por essas ideias, bem como um ativista nacional-socialista chamado Joseph Goebbels.

Essas ideias não são contraditórias como parecem. Argumentos de que a Primeira Guerra Mundial era uma "guerra do povo" que poderia varrer o mundo burguês e servir como ponto de partida para uma comunidade autenticamente socialista eram retórica comum dos socialistas pró-intervenção que ganharam o dia em cada país da Europa ocidental. Como bem sabemos, Benito Mussolini, que era conhecido como um dos socialistas revolucionários mais convictos antes da guerra e liderou pessoalmente protestos antiguerra, se tornou eventualmente um campeão do militarismo italiano. Tampouco ele se viu como traindo o socialismo nesse sentido, a condenação da "fraude e chantagem" do socialismo pelo Duce veio muito depois. Militarismo, nacionalismo e socialismo; unidos, constituiriam uma força diametralmente oposta ao liberalismo capitalista. Subitamente, uma aliança entre nacionalismo e socialismo, entre o que chamamos de "fascismo" e "comunismo", contra o liberalismo, começa a fazer sentido.

As bases econômicas por trás da ideologia também foram fortemente influenciadas pelos conceitos de "geopolítica" delineados por Harold Mackinder, Karl Haushofer, e outros. Diferente da teoria de que "o poder marítimo determina o poder mundial" promovida por Sir Alfred Maham; Mackinder, Haushofer e outros, viam o controle da "Ilha-Mundo" da Eurásia como a chave da dominação econômica, militar e política. O controle da Eurásia permitiria a um império poderoso ser autossuficiente e prosperar sem ter que depender de comércio marítimo e impérios e influência internacional dispersos. Politicamente, um império eurasiático que alcançasse autarquia também é mais provável que seja estatista, autoritário e tradicionalista do que uma potência oceânica comercial que precisaria ser mais internacionalista, classicamente liberal e socialmente progressista por causa de sua orientação econômica e cultural externalista.

Na década de 20 então, uma aliança entre a "extrema-direita" emergente das nações europeias ocidentais com a URSS de Stalin fazia sentido a nível prático e filosófico, já que ambos partilhavam de premissas políticas e econômicas importantes, e ambos se opunham à ordem capitalista ocidental. A ascensão de Josef Stalin garantiu que as tendências "internacionalistas" do comunismo soviético fossem mais ou menos permanentemente descartadas e que os "velhos bolcheviques" (i.e. os judeus) terminariam seus dias em julgamentos e execuções. Mesmo antes de Stalin consolidar plenamente seu poder, uma fação extremamente influente no NSDAP, chefiada por Gregor Strasser e Joseph Goebbels, defendia a cooperação e parceria alemães com a Rússia soviética contra o Ocidente. Uma parceria germano-soviética poderia ter acabado definitivamente com a ordem liberal.

E daí, Greg? Esse palavrório todo não é apenas autismo, masturbação ideológica e mais filosifismo nacionalista branco virtual sobre conceitos obscuros sem importância prática? Surpreendentemente não, por várias razões.

Primeiro, essa aliança nunca ocorreu, e essa obscura disputa ideológica pode ter sido, retrospectivamente, o evento mais decisivo do século XX. Em 1926, Adolf Hitler convocou uma reunião da liderança nazista na qual ele convenceu Goebbels e marginalizou a facção strasserista "nacional-bolchevique". Nos anos vindouros, Hitler chegaria ao poder com a ajuda de conservadores e nacionalistas tradicionais alemães. Em troca de controle absoluto, ele expurgaria o NSDAP de boa parte de sua esquerda; limitando os guerreiros proletários da S.A., matando Ernst Rohm e Gregor Strasser, e conquistando a maior parte da elite alemã, incluindo capitães da indústria e oficiais militares.

A razão pela qual Hitler fez isso não foi apenas porconta de diferenças de estratégia política, mas sim por causa de política externa. Hitler aceitava a teoria da "Ilha Mundial", na verdade, o vice-Führer Rudolf Hess havia sido um estudante ávido de Karl Haushofer e debates sobre o envolvimento de Haushofer na política externa nazistas e mesmo na escrita do "Mein Kampf" continuam até hoje. Porém, ao invés de parceria, Hitler defendia a conquista militar direta do Lebensraum no leste. Ao invés de amizade com ma União Soviética antiliberal, Hitler fez de sua missão destruir o que ele via como o centro do "bolchevismo judaico".

Muito alarde tem sido feito por "conservadores" idiotas (e judeus) sobre como os fascistas eram, na verdade, "esquerdistas". Muitos nacionalistas, nacional-socialistas, fascistas e outros ativistas atuais também pensam assim. A própria Horst Wessel Lied fala sobre camaradas mortos pela "reação". Certamente, Hitler não era conservador, tampouco Mussolini, ou Jose Antonio Prima de Rivera, ou Corneliu Zelea Codreanu ou qualquer um dos outros e conflitos violentos foram travados entre nacionalistas e conservadores.

Não obstante, o fato é que todos esses movimentos chegaram ao poder através de ajuda de pelo menos alguns elementos da ordem estabelecida. Os nacional-socialistas foram convidados ao governo por Hindenburg. Mussolini foi convidado a formar um governo pelo rei. A Falange espanhola lutou com os monarquistas e o exército. Os conservadores podem ter julgado estupidamente aquilo com que eles estavam lidando e os nacionalistas bem poderiam ter aniquilado os reacionários após uma vitória final na guerra. Seja o que for, apesar de muitas razões para uma aproximação nacionalista/soviética ou mesmo uma aliança, os nacionalistas por toda a Europa estava muito mais ligados à direita tradicionalista do que a qualquer ideia de nacional-bolchevismo à época da Segunda Guerra Mundial.

A consequência dessa orientação política foi a derrota.

Isso é controverso entre nacionalistas brancos. Há vários livros excelentes que dizem que Stalin sempre pretendeu invadir a Europa e que Hitler essencialmente salvou a civilização ocidental com um ataque preventivo. Não obstante, é claro que apesar do Pacto de 1939, Hitler sempre pretendeu destruir a União Soviética. Talvez uma paz nazi-soviética de longo prazo fosse impossível, mas era algo claramente mais provável que o sonho de Hitler de uma aliança com a Inglaterra. No fim das contas, Hitler era muito mais ávido por destruir a URSS do que Stalin por enfrentar a Wehrmacht.

Obviamente, a guerra de Hitler contra a URSS falhou, mas com consequências interessantes. Para garantir sua vitória, Stalin recuou rumo a uma retórica nacionalista russa, até dando concessões à Igreja Ortodoxa. A vitória soviética na Segunda Guerra Mundial foi interpretada dentro do país tanto naquela época quanto hoje não como uma vitória do proletariado internacional, mas como uma vitória da eterna e santa Rússia.

Francis Parker Yockey foi um dos poucos americanos que conseguiu ver através da retórica da Guerra Fria e notou que a Rússia poderia servir como uma barreira contra o sistema capitalista liberal inerentemente degenerativo que ele equiparava a seu próprio país. Assim, os nacionalistas brancos deveriam buscar uma aliança com a União Soviética, a qual havia se tornado, a sua própria maneira, autoritária, nacionalista, e até mesmo sutilmente antissemita. O objetivo final, é claro, era uma Europa que pudesse se afirmar novamente como potência mundial. Essas ideias, apesar de parecerem estranhas, não estavam muito longe das posições em política externa de Enoch Powell.

Interessantemente, mesmo enquanto os EUA impunham a "desnazificação" na Alemanha, novos movimentos neonazistas estavam surgindo na Alemanha Ocidental. Esses novos movimentos eram muito mais abertos a conceitos strasseristas do que a uma aliança com forças conservadoras ou nacionalistas tradicionais. Isso não é surpreendente por três razões. Primeiro, obviamente, não havia mais conservadorismo ou nacionalismo após a Segunda Guerra Mundial. Segundo, o capitalismo, desnudado de qualquer conexão, mesmo que tênue, com uma ordem tradicionalista, está na vanguarda da promoção da mestiçagem, do universalismo e das forças anti-nacionalistas. Terceiro, os movimentos neonazistas da Alemanha Ocidental foram financiados pela União Soviética.

Isso significa que a URSS era de alguma forma uma força nacionalista branca secreta? Certamente não, e é besteira sugerir isso. A União Soviética financiou guerrilhas que lavaram a Rodésia e a África do Sul em rios de sangue. Ela promoveu revolucionários latino-americanos que eram chauvinistas anti-brancos velados. A propaganda comunista constantemente atacava nosso país como racista e expunha a típica linha antirracista. Nem foi a América uma força inerentemente destrutiva. Os EUA manipularam eleições para impedir que os vermelhos tomassem Itália e França na década de 40. Nós usamos golpes militares para deter o comunismo na Grécia e no Chile, entre outros lugares. Abertamente e de forma acobertada, a América auxiliou regimes de direita ao redor do mundo no século XX e, deliberadamente ou não, lutou pelo lado pró-branco muitas vezes.

Ao mesmo tempo, é impossível não ver a União Soviética como, no fim das contas, mais tradicionalista que os EUA, especialmente conforme nos aproximamos do presente. O homossexualismo era duramente punido. A propaganda do governo focava em patriotismo e orgulho nacional. Nunca ocorreria à URSS substituir deliberadamente trabalhadores brancos por meio da imigração em massa de seus aliados do Terceiro Mundo, diferentemente do arquiconservador Ronald Reagan e sua anistia aos imigrantes ilegais de 1986. Enquanto o comunismo soviético era um sistemae econômico maligno, destrutivo e estúpido, ele não aniquilou o espírito do povo da mesma maneira que o capitalismo liberal o fez. A União Soviética simplesmente não era uma força igualitária revolucionária, mas um país estrangeiro buscando expandir sua influência e poder. Nossos próprios esquerdistas domésticos (em sua maioria trotskistas ou neoesquerdistas) fizeram mais para fazer mal à nossa sociedade do que a URSS.

Portanto, quando a URSS entrou em colapso, as velhas tradições russas ainda subsistiam sob a superfícia, esperando para eclodir novamente. Agora, porém, elas estavam misturadas com tradições soviéticas que haviam se tornado inseparáveis da própria identidade russa. Apesar de alguns acenos em direção a uma ortodoxia renovada e sentimentos de apreço pelos Romanov, uma Rússia forte era vista como ligada a uma nostalgia pelas glórias passadas da URSS. Ao mesmo tempo, a Rússia havia estado fundamentalmente isolada da torrente de igualitarismo racial que inundava o mundo ocidental, e assim o povo russo tinha um senso sadio de sua identidade branca, bem como hostilidade em relação aos judeus comunistas que mataram milhões de seus irmãos raciais. Poder-se-ia dizer que tal ambiente é fértil para um movimento nacionalista vibrante, mas poderia algum ser criado quando a identidade nacional em si está indissociavelmente ligada à derrota do nacional-socialismo?

Entram os nacional-bolcheviques.

O nacional-bolchevismo moderno está centrado na Rússia e é um produto das circunstâncias singulares do país. Os naiconal-bolcheviques enfatizam fortemente a necessidade da Rússia reestabelecer a integridade territorial da antiga União Soviética e estabelecer um império eurasiático, um produto da nostalgia russa pelo passado soviético e sua posição econômica única. Eles enfatizam uma ordem antiliberal, uma ideologia plausível já que décadas de comunismo ironicamente deixaram a academia russa mais aberta a ideias nacionalistas e de direita. Finalmente, enquanto muitos nacional-bolcheviques não são racistas, outros são e nenhum deles foi criado no hospício de lunáticos do antirracismo que o "Mundo Livre" toma como dado.

O nacional-bolchevique contemporâneo mais famoso (ou infame) é Eduard Limonov. Um escritor que frequentava a cena punk de Nova Iorque nos anos 70 e viveu na França nos anos 80, Limonovo subitamente emergiu nos anos 90 como um nacionalista demandando ação militar para recuperar território perdido com populações russas. Ele atingiu notoriedade por andar na companhia do "criminoso de guerra" sérvio Radovan Karadzic enquanto disparava um rifle em Sarajevo. Ele também escrevia para o tabloido moscovita eXile, onde seus ensaios mal traduzidos eram veiculados junto aos de Gary Brecher. Tal personagem foi feito para o teatro de rua, e Limonov entusiasticamente defendeu e participou deu ma série de ações protstando contra o governo de Vladimir Putin, eventualmente se aliando ao grupo de oposição "Outra Rússia" de Garry Kasparov.

É claro, Kasparov é um liberal fortemente apoiado pelo Ocidente, que é anátema para muitos nacional-bolcheviques. Uma cisão, assim, se formou, com a Frente Nacional-Bolchevique, qe está muito mais focada em combater a influência judaica na Rússia, bem como em defender a raça branca mais especificamente.

Este grupo está ligado a um dos "nazbols" mais influentes, Aleksandr Dugin, fundador do "Partido Eurásia". Ele defende um imenso império eurasiano centrado na Rússia, especificamente projetado para contrabalancear a ordem econômica liberal centrada nos EUA. Dugin também expressa interesse por alguns elementos do Terceiro Reich, elogiando as Waffen-SS e a Ahnenerbe. A visão de Dugin é de um "fascismo, vermelho e sem fronteiras" centrado em uma concepção de Tradição similar à de Julius Evola, com o stalinismo, o czarismo e Reinhard Heydrich todos dignos de elogio em alguma medida.

O nacional-bolchevismo está banido hoje na Rússia. Apesar de haver muitos truques publicitários, o partido não tem políticos eleitos, nem qualquer esperança de chegar ao poder por meio de eleições (ainda que os nazbols provavelmente rejeitem essa abordagem, de qualquer maneira). Então por que deveríamos nos importar?

Os nacional-bolcheviques, apesar de banidos, não são marginalizados da mesma maneira que nacionalistas brancos são na América, ou que os membros do Partido Comunista. Os nacional-bolcheviques são parte importante dos principais grupos de oposição na Rússia e não raro são retratados pela mídia americana como "ativistas democráticos".

A influência nazbol também vai além de seus membros. A facção anti-Limonov tem suas ideias levadas a sério em todos os níveis do governo russo. Dugin não é uma figura marginal. Ele está ligado a muitos dos assessores mais influentes de Vladimir Putin, sua retórica é copiada pelo Kremlin, e seus escritos são citados ao redor do mundo tanto pela imprensa quanto por escritores de direita na América. As tentativas da Rússia de conservar e expandir sua esfera de influência em suas proximidades tem muitos paralelos com o que pareceria uma política nacional-bolchevique. Qualquer nazbol concordaria entusiasticamente com Vladimir Putin de que o colapso da URSS foi "o maior desastre geopolítico do século XX". O sucesso de Putin em fundir símbolos do Exército Vermelho com o patriotismo tradicional russo também se encaixa bem com as ideias nazbol.

O nacional-bolchevismo, longe de ser uma ruptura radical com a política russa contemporânea, é simplesmente a forma mais extrema de tendências que já existem. Como a Rússia é a única nação  branca que ainda está fora do controle do sistema estabelecido em alguma medida, o nacional-bolchevismo é digno de estudo no mínimo para indicar o que o futuro pode reservar para a Terceira Roma.

O nacional-bolchevismo é, tanto na teoria quanto na prática, o conceito mais anti-americano que possivelmente poderia ser criado, se a América for definida como o exemplar do capitalismo liberal. O nacional-bolchevismo ameaça diretamente a base do poder econômico americano (livre-comércio e a ordem internacional liberal), poderio militar (OTAN e preponderância militar americana), valores morais (militarismo, disciplina, estatismo, Tradição e orgulho nacionalista contra direitos humanos, governo limitado e consenso internacional). Ele representa, assim, uma ideologia atraente para aqueles que sentem repulsa pela América moderna e que se excitam com um movimento político com apelo estético inegável, vitalidade intelectual e ativismo de rua por hordas de seguidores jovens e saudáveis.

Ao mesmo tempo, o nacional-bolchevismo é melhor visto como um fenômeno russo, uma manifestação de algumas demandas únicas da história russa em relação à identidade daquele povo. Ele combina com sucesso nostalgia pela força geopolítica da URSS com um programa e simbolismo de reconstrução. Ele permite que os russos reivindiquem as realizações soviéticas ao mesmo tempo que rejeitam o comunismo e o controle judaico. Ele lhes permite serem nacionalistas sem serem nazistas, uma necessidade em um país no qual a invasão alemã matou milhões. Mesmo aqueles russos que não são nacional-bolcheviques partilham de muitas dessas premissas. O nacional-bolchevismo simplesmente as leva a sua conclusão lógica.

Mas o que isso significa para nós? Eu concordo com Yockey que a ordem liberal dos EUA é ainda mais destrutiva para a raça branca a longo prazo que o comunismo. Porém, levantar uma foice e martelo ou denunciar seu próprio país não é a resposta. A chave para nacionalistas brancos é desenvolver uma oposição ao sistema que desconstrua a ideologia hegemônica, forneça uma alternativa real, e, crcialmente, se apresente em termos e com símbolos que a população-alvo possa compreender e apreciar.

Certamente, os EUA tem muito em sua história que pode ser utilizado por nacionalistas brancos. A caricatura da América como uma abstração ideológica construída sobre uma combinação de dinheiro, maçonaria, liberalismo e judaísmo pode servir para atingir pontos retóricos quando se descreve a situação hoje, mas ele dificilmente sumariza a história desse país. Houve corrupção e veneno desde o início, mas houve muito de verdadeiro também. A verdade está ao nosso lado no que concerne a história americana. 

Eu não estou dizendo que deveríamos ignorar essas correntes ou que elas não importam. Os intelectuais devem explorar essas ideias e líderes políticos precisam estar conscientes do significado mais profundo das premissas intelectuais de movimentos políticos e culturais. Nós podemos discutir sobre se o Führer cometeu um erro catastrófico ao se apegar a uma visão simplista do "bolchevismo judaico" quando a URSS da década de 30 já era algo bastante diferente. Um pouco menos de chauvinismo alemão poderia ter ajudado.

Ao mesmo tempo, as ideias não se desenvolvem em um vácuo. Não há torre de marfim. As ideias não só movem a história, a história também molda ideias, permitindo àqueles que correspondem às necessidades dos povos se erguer à proeminência e se tornarem credos para ação. A história não é apenas a execução de premissas ideológicas, na verdade, ideias e ideologias são muitas vezes simplesmente a justificativa retórica dada à busca de interesses concretos por atores políticos.

Não vamos nos enterrar em abstrações ou, pior, lutar uns com os outros por credos obscuros. É impossível desenvolver uma teoria "correta" e aplicá-la às circunstâncias. A ideologia deve ser flexível e capaz de se adaptar às realidades políticas, ao mesmo tempo mantendo uma determinação férrea nos objetivos a serem realizados. A ideologia é uma ferramenta, ela não é nosso mestre.

Para nacionalistas brancos americanos, o nacional-bolchevismo é algo a ser estudado, pelas verdades reveladas nele e por sua importância para a política contemporânea, mas não como algo a ser imitado. Mesmo os "nazbols" são produto da história, não uma transcendência. A questão real é como nós americanos podemos usar nossa história única, com todas as contradições e complexidades, glórias e derrotas, para moldarmos a Ideia que construirá nossa República branca. 


Jack Donovan - A Sociedade Masturbatória dos Bonobos

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por Jack Donovan



O que aconteceria se os homens, de tão mal-acostumados, arregassem e se rendessem incondicionalmente às mulheres? Como funcionaria uma sociedade assim? 

A teoria evolutiva do investimento parental sugere que, em virtude do alto custo da reprodução, os membros do sexo que fizer o menor investimento parental disputarão o acesso sexual aos daquele que fizer o maior. No caso dos seres humanos e da maior parte dos mamíferos, as fêmeas é que se veem obrigadas a fazer o maior investimento na reprodução.

Não bastasse passarem nove meses carregando o filho no ventre, as fêmeas humanas ficam extremamente vulneráveis e têm mais dificuldades de deslocamento, nos últimos estágios de gestação. Mesmo dar à luz é uma coisa traumática, e, no passado, as mortes ocorridas durante o parto eram mais corriqueiras que hoje em dia. Depois disso, a mãe continua especialmente vulnerável por um curto período de tempo, ao passo que a criança, extremamente vulnerável nos primeiros meses, continua vulnerável por vários anos. Também a amamentação é um investimento que se exigia das mães humanas até bem pouco.

Para os machos, essas coisas comparativamente fáceis. Podemos transmitir nossos genes em questão de minutos e, depois, sumir do mapa — a não ser que sejamos persuadidos a não ir muito longe, seja pelas próprias fêmeas, pelos controles socais ou por pais de trabuco na mão.

A evolução dos machos humanos os levou a disputarem o acesso às fêmeas, por causa do prêmio valioso que é o investimento reprodutivo delas. Os machos até poderiam viver no mundo exclusivamente masculino da gangue, mas as fêmeas representam quase que literalmente o futuro. Os homens traçam um perímetro e estabelecem a segurança; criam os rudimentos de uma hierarquia, de uma ordem e de uma cultura seminal, que contrapõem nós e eles. Para perpetuarem o nós, os homens precisam de mulheres — daí tentarem bolar como consegui-las e como ter “acesso a seu investimento reprodutivo”.

Major West, personagem do filme de zumbis Extermínio, conta uma história que lembra a da fundação de Roma. Em poucas palavras, ele explica a razão para o rapto das sabinas:

“Há oito dias, eu encontrei o Jones com uma arma enfiada na boca. Ele disse que ia se matar porque não havia nenhum futuro. O que eu podia dizer para ele? Ou lutamos com os contaminados, ou esperamos até que a fome os mate... e depois? O que nove homens podem fazer a não ser esperar a própria morte? Eu os tirei do bloqueio, fiz a transmissão no rádio e prometi mulheres para eles. Porque mulheres são o futuro.”

O Código dos Homens é o Código da Gangue, mas uma gangue só de homens não tem futuro nenhum. Uma gangue exclusivamente masculina acaba junto com a morte do último homem. Os homens querem ser lembrados, querem que sua tradição sobreviva — e querem sexo. Em última instância, esses mecanismos e desejos psicológicos lhes dão a chance de transmitirem seus genes. Numa disputa por recursos, inclusive por mulheres, a melhor estratégia para uma gangue de homens é criar uma hierarquia patriarcal, eliminar as gangues rivais vizinhas, tomar suas mulheres e protegê-las das demais gangues rivais. É exatamente isso que fazem muitas tribos primitivas. Trata-se de uma estratégia básica de gangue.

E o que acontece quando a disputa por recursos é drasticamente reduzida?

O que acontece quando as mulheres fazem as coisas de seu jeito?

Dois de nossos parentes primatas mais próximos, chimpanzés e bonobos, ilustram algumas das diferenças entre os hábitos dos homens e os das mulheres.

O argumento de Richard Wrangham e Dale Peterson é que, apesar das teorias culturais deterministas e da quantidade de ilusões sobre o pacifismo dos matriarcados pré-históricos, evidências evolutivas, arqueológicas, históricas, antropológicas, fisiológicas e genéticas sugerem de forma inequívoca que os seres humanos sempre foram uma espécie patriarcal, um grupo-subgrupo unido pelos laços entre machos e envolvido regularmente em coalizões com finalidades violentas. É uma conclusão corajosa, tendo em vista que os dois autores parecem sinceramente contrários à violência. Na qualidade de autodenominados feministas evolutivos, eles oferecem sugestões de como poderíamos dar um basta à violência masculina, agora que os homens têm os meios de descarregar seu ódio de uma forma bem mais destrutiva que a que permitiam os braços fortes e armas toscas de seus primitivos ancestrais. À parte a adoção da procriação seletiva para reduzir as violentas tendências alfa dos machos — programa que parece estar em andamento, muito embora acidentalmente — e o estabelecimento de um governo mundial, eles sugerem que busquemos orientação nos dóceis macacos bonobos.

Chimpanzés e bonobos são parentes próximos dos seres humanos. Ambos têm muito comum com as pessoas, mas quando se trata de estruturas sociais, aqueles estão mais aptos a viver em subgrupos, sob a liderança de uma hierarquia de machos, ao passo que a tendência dos bonobos é viver em grandes grupos mais estáveis, com um número maior de fêmeas; e são as fêmeas que mantém coalizões, para impedir a violência dos machos. Os chimpanzés se organizam em prol dos interesses reprodutivos dos machos e os bonobos, em prol dos interesses das fêmeas. Os chimpanzés observam o Código dos Homens. Os bonobos observam o Código das Mulheres.

A ORGANIZAÇÃO DOS CHIMPANZÉS

Os chimpanzés podem se misturar em grupos maiores, se puderem fazer alianças e se houver comida farta. Chimpanzés e seres humanos preferem comida de qualidade, e os chimpanzés machos saem efetivamente à caça de carne, em especial a carne dos macacos colobus-vermelhos. Os recursos sendo escassos, eles os disputam se dividindo em subgrupos. Essa estrutura social é chamada “grupo-subgrupo”, por causa da flexibilidade no número de membros. Sob pressão, eles revertem aos subgrupos patriarcais comandados por parentes machos e aliados unidos pelos laços entre machos. As fêmeas passam (e são passadas) de subgrupo em subgrupo. Os machos disputam o acesso sexual às fêmeas, mas eventualmente também as cortejam e as escoltam para longe da violência da competição masculina. Às vezes, as fêmeas sem filhotes se juntam aos machos nas atividades de caça e incursão. Na hierarquia social dos chimpanzés, as fêmeas se subordinam aos machos e têm de demonstrar submissão. Quando o macho jovem chega à idade adulta, é comum que faça um estardalhaço e passe a querer mandar nas fêmeas, até que elas o reconheçam como macho adulto. Depois que ele consegue, para de criar caso. Contudo, os chimpanzés espancam as fêmeas, esporadicamente, para manter o prestígio e mostrar às garotas como é que a banda toca. Os machos que chegam à idade adulta passam um bocado de tempo juntos, mas também passam muito tempo disputando prestígio entre si. Essas disputas costumam ser violentas, e, em raras ocasiões, soube-se de dois machos que fizeram uma aliança para matar o macho alfa. É possível que os seres humanos reconheçam isso como parricídio ou tiranicídio. Para os chimpanzés, disputas internas importam menos que a disputa com outros grupos. Chimpanzés e seres humanos são as duas únicas famílias dos grandes primatas cujos machos formam coalizões para sair em incursões ou para eliminar os membros de um subgrupo vizinho. Em certas ocasiões, os chimpanzés alfa reúnem os outros machos, vão à fronteira de seu território e tentam capturar e matar um membro desprevenido com a estratégia de “guerra furtiva”, comum entre seres humanos primitivos também envolvidos em incursões de guerrilha. Com o tempo, os machos abatem todos os machos do subgrupo vizinho, absorvem a seu próprio subgrupo de fêmeas remanescentes e acasalam com elas. Em razão de caçarem, os chimpanzés têm de estar dispostos a pôr de lado as disputas internas e manter sólidos laços entre si. Escreve o primatólogo Frans de Waal:

“... a psique do chimpanzé macho, forjada em milhões de anos de beligerância intergrupal em seu habitat natural, se divide entre a concorrência entre eles, os machos contam uns com os outros contra o mundo externo. Nenhum macho sabe quando precisará de seu maior adversário. É claro que é justamente essa mistura de camaradagem e rivalidade entre os machos que faz com que a sociedade dos chimpanzés seja tão mais familiar para nós que a estrutura social dos outros grandes primatas.”

A ORGANIZAÇÃO DOS BONOBOS

Os bonobos se alimentam de muita coisa da qual os chimpanzés gostam, e também comem carne quando encontram. Mas uma vez que os bonobos não compartilham território com os gorilas, conseguem comer os mesmos tipos de erva de que aqueles se alimentam. Wrangham e Peterson acham que essa é uma das principais diferenças entre os chimpanzés e os bonobos. Os bonobos dispõem de uma fonte de alimentos essenciais fáceis de achar, não têm de disputar recursos nem quando muitos desses alimentos estão fora de estação — daí conseguirem relaxar parcialmente o ano inteiro, desfrutando da paz proporcionada pela fartura. Embora disputem prestígio, os machos parecem menos preocupados com essas coisas, que não dizem muito para eles. Os bonobos não disputam parceiras. Cada macho só faz esperar por sua vez, e as fêmeas recebem de bom grado qualquer um que as procure. Para os bonobos, o sexo é social, e eles mantém relações tanto heterossexuais quanto homossexuais. Os machos ignoram quais são suas crias, qualquer um dos filhotes pode ser seu. Sobra para a mãe todo o investimento parental. Os machos bonobos sabem quem são suas mães e permanecem ligados a elas a vida inteira; não raro eles as acompanham por toda parte ao longo de toda a idade adulta, e elas intervêm em conflitos em nome deles. Entre os bonobos, os machos não passam muito tempo juntos, mas as fêmeas criam sólidos laços de amizade entre si, Quando os machos começam uma encrenca, elas se juntam em bando e dão logo um chega-pra-lá. As fêmeas bonobos é que mandam. Quando um grupo entra em contato com outro, elas se encarregam de selar a paz e, em geral, passam a fazer o hoka-hoka— que é como os nativos chamam a relação entre as bonobos fêmeas. Depois, acasalam com os machos do outro grupo. Os machos de seu próprio grupo só fazem ficar ali à toa observando, dar de ombros e, por fim, entrar na dança. 

UM CONFLITO DE INTERESSES

Bonobos e chimpanzés são adaptados para ambientes diversos, e suas estruturas sociais são influenciadas pelo que esses ambientes têm a oferecer. A sociedade dos bonobos privilegia o interesse das fêmeas. As coalizões entre elas prevalecem na política, e seus laços são mais importantes que os laços entre machos. Estes são ligados a suas mães e ignoram quem são seus pais. As fêmeas ficam juntas o resto da vida. Na sociedade dos chimpanzés, as fêmeas ficam meio que isoladas, e permanecem com suas crias enquanto estas forem pequenas; já os machos se dedicam tanto à rivalidade quanto à camaradagem, e permanecem com seus pais, irmãos e amigos o resto da vida. A sociedade dos chimpanzés privilegia o interesse dos machos.

Wrangham e Peterson acreditam que os bonobos oferecem um "caminho triplo para a paz", tendo em vista que conseguiram reduzir a violência entre sexos, reduzir a violência entre machos e reduzir a violência entre comunidades. Em resposta à destruição em massa inerente às guerras modernas, muitos homens têm procurado meios de abandonar o “sistema de hostilidades”, a serviço do patriarcado, e se orientado com as mulheres sobre a formação de coalizões e a descoberta de um estilo de vida mais pacífico.

Quem acredita que a hostilidade humana é de certo modo artificial não encontrará, na história das ciências, muito apoio objetivo para essa teoria. As sociedades humanas são complexas, e certos aspectos do padrão de comportamento dos bonobos e dos chimpanzés são bastante familiares. Só que a agressão masculina, a violência das coalizões masculinas e a ascendência política masculina foram todas elas identificadas como “universais humanos” — o que significa dizer que evidências desse comportamento foram encontradas, sob diferentes formas, em quase toda sociedade humana já estudada.

Em razão de se desenvolverem num território restrito e abrigado, os bonobos só passaram a ser estudados pelos cientistas como espécie à parte e distinta na década de cinquenta. O território dos chimpanzés é bem maior, e eles se adaptaram a ambientes mais diversos. É evidente que seres humanos e chimpanzés têm mais em comum, em termos de organização social. Embora os humanos sejam mais inteligentes e se organizem em arranjos sociais bem mais complexos que os dos chimpanzés, é provável que os laços entre machos e a violência das coalizões masculinas tenham sido características constantes das sociedades humanas e pré-humanas.


Interesse dos machos (Chimpanzés)
Interesse das fêmeas (Bonobos)
Recursos


Priorização da caça
Alta
Baixa
Aliança entre machos
Sim
Não
Aliança entre fêmeas
Não
Sim
Sexualidade
Para fins de acasalamento
Por prazer e para fins de socialização
Homossexualidade
Mínima, incomum
Frequente, comum
Ascendência política
Machos
Compartilhada, mas coalizações entre fêmeas exercem grande influência
Machos – laços parentais
Pai, irmãos, patrilinear, os machos passam o tempo com a mãe na juventude, com machos o resto da vida, com fêmeas para fins de acasalamento
Mães
Fêmeas – laços parentais
Mães, fêmeas podem deixar o subgrupo
Mães, matrilinear, fêmeas costumam permanecer no grupo
Machos agridem fêmeas
Sim
Não
Machos violenta fêmeas
Sim, mas raramente
Para que se incomodar?
Fêmeas reconhecem a ascendência dos machos
Sim
Não
Defesa do território
Sim
Às vezes
Incursões intergrupais
Sim
Não
Patrulhamento das fronteiras
Sim
não



Essa tabela mostra as diferenças entre os diversos aspectos das sociedades de chimpanzés e das sociedades de bonobos — ela mostra dois caminhos, dois extremos.

Alguns pesquisadores sugerem que os bonobos não assim tão pacíficos quanto Wrangham e Peterson acreditavam, mas o que de fato parece claro é que são mais pacíficos e matriarcais que os chimpanzés, e que seu estilo de vida é semelhante à minha descrição.

Tomados como uma metáfora do que ocorre aos homens que vivem na paz e na segurança proporcionadas por uma fartura como a nossa, os hábitos dos bonobos parecem assustadoramente familiares.

Então a maioria dos homens de hoje em dia não é composta de filhinhos de mamãe mimados, desprovidos de figura paterna, desprovidos das atividades de caça e combate e de laços fraternos, e cuja masculinidade só encontra vazão no sexo promíscuo?

As guerras contra outros homens são uma coisa que cada vez menos de nós conhecemos. O recrutamento obrigatório para a Guerra do Vietnã acabou no ano anterior ao de meu nascimento. Dessa época em diante, os EUA tiveram sucesso em formar uma classe de soldados profissionais, que travam combates em terras distantes no lugar do governo. O americano médio sabe mais de basquete universitário que de qualquer conflito além-mar.

Assim como os bonobos, não temos de nos preocupar com a fome. Mal e porcamente temos razões para levantar da poltrona. Até a recente recessão prolongada, era razoavelmente fácil arranjar emprego, e quase todo homem disposto a trabalhar era capaz de conseguir uma vaga. Programas de bem-estar e assistência social oferecem redes de proteção para muitas outras pessoas, e são poucos os americanos de hoje que se criaram numa casa que não tivesse televisão. Fome, pobreza e desespero de verdade, do jeito que os africanos conhecem, são raros até para quem é oficialmente considerado pobre. Doenças que dizimaram populações do passado hoje têm tratamento, e as pessoas chegam a se recuperar por inteiro de ferimentos que teriam sido fatais cem anos atrás. Se tem uma coisa que ilustra a fartura surreal de que desfrutamos hoje em dia, é o fato de enfrentarmos problemas como epidemia de obesidade. Ou seja, a pessoa consegue ficar sentada em casa, comendo, até ficar tão gorda que nem dá mais para se mexer.

Os americanos estão obesos, em parte, porque simplesmente não fazem o suficiente. É difícil encontrar um emprego no qual se tenha de fazer o tipo de trabalho estafante de nossos ancestrais. Sei disso porque sou daquele tipo de pessoa para quem um emprego temporário cavando fossos parece uma diversão. E olha que cheguei a procurar. Nosso corpo é dotado de uma tremenda capacidade de trabalho, quando estamos condicionados para isso. O corpo humano é feito para trabalhar arduamente. Quando não se tem trabalho a fazer, a saúde física deteriora. Os médicos têm de mandar as pessoas fazerem caminhadas como se fosse alguma espécie de inovação na tecnologia de exercícios físicos. Uma vez, observei assombrado um personal trainer conduzir autoritariamente uma parelha de uns quarenta e poucos adultos, numa caminhada nas imediações da própria vizinhança deles. Era um passeador de cães humanos a setenta e cinco dólares por hora.

O restante de nós vai à academia “malhar”, que é só um substituto para a execução de trabalhos físicos. Pessoas que vivem de responder e-mails vão a um prédio especial onde enganam o corpo, fazendo-o achar que elas estão de fato executando o tipo de trabalho para o qual a evolução as preparou. Atividades como treinar com sacos de areia, levantar pedras e correr descalço estão virando coqueluche. É só uma questão de tempo até aparecer alguém que bole um jeito de comercializar mais um modismo fitness, que ponha as pessoas para correr de lá para cá lanceando mamutes de mentirinha.

E, contudo, somos bons à beça em conceber formas inventivas de masturbar nossa natureza primitiva com a “segurança” de prazeres virtuais, vicários e abstratos.

O objetivo da civilização parece ser o de eliminar o trabalho e o risco, só que o mundo mudou mais que nós. Nosso corpo suplica por trabalho e sexo, nosso espírito suplica por risco e conflito.

Sempre me pareceu surpreendente que, mesmo nas mais populares de nossas concepções futuristas, não fôssemos capazes de eliminar o conflito — como na série Jornada nas Estrelas, por exemplo. Por alto, ela é um sonho modernista, feminista, igualitário. Homens, mulheres e povos de todas as raças trabalhando lado a lado numa meritocracia mundial, com o objetivo de levar a paz a todo o universo. Mas nossa fantasia é o conflito, não a paz. Se não houver conflito entre nós e eles não haverá trama. Em Jornada nas Estrelas, eles estão sempre em luta com alguém. Muita gente sente atração por essas platitudes pacifistas, iguais às que se ouvem na música “Imagine”, de John Lennon; só que as pessoas não são assim tão boas nem têm tanto interesse em imaginar um futuro sem conflito. Se escrevessem uma série de ficção científica que não tivesse conflito, será que alguém assistiria?

Nossa sociedade não tem tolerância quase nenhuma com a violência física não sancionada. Crianças são expulsas da escola quando brigam, e uma coisa historicamente banal como um arranca-rabo entre bêbados desarmados é capaz de mandar um homem para o juiz ou para a prisão.

À medida que as coalizões femininas, os políticos alcoviteiros e os homens acovardados se organizam para nos proteger de nosso mundo, para criminalizar as armas e regulamentar os esportes violentos, os homens recuam para redutos de masculinidade virtual e vicária, como videojogos e simulações de jogos de futebol americano, que é tudo o que sobrou para eles.

As pessoas também estão buscando outras formas não violentas de risco simulado e aventura “segura”. De paraquedismo e bungee-jumping a montanhismo guiado e corrida de aventuras, homens e mulheres têm bolado um número cada vez maior de simulacros da vida humana primitiva. Homens e mulheres são dotados de impulsos semelhantes, mas em graus diferentes — e o que percebi, quando participei de corridas de 5K, dos CrossFit e da “Warrior Dash”,[1] é que, depois que a novidade esfria, é comum a presença ser cada vez mais feminina. Mesmo que algumas mulheres participem de forma competitiva, um número bem maior atribui à experiência um caráter social e emocional, parando a meio caminho para animar as amigas e incentivar seu esforço. Minha impressão é a de que muitos maridos e namorados reconhecem a natureza masturbatória, “de bem com a vida”, dessas atividades e dão de ombros, se perguntando porque eles deveriam atravessar correndo um lamaçal a uma temperatura de mais de 30º, sem razão nenhuma. Do ponto de vista evolutivo, faz sentido as mulheres tenderem a preferir e se sentir mais satisfeitas com simulações de risco “seguras" e “divertidas”, enquanto os homens desejam disputas reais, com riscos reais e a possibilidade real de ganhar prestígio. Raramente o exercício que é cuidadosamente orquestrado, higienizado, acolchoado, segurado e autorizado se compara à fantasia de ação viril e risco significativo.

Nos videojogos os homens pelo menos vivenciam uma morte virtual.

À medida que foi diminuindo a disputa física por recursos, o sexo foi se tornando cada vez mais social [2]— que é o que acontece com os bonobos. Homens e mulheres se juntam para satisfazer seu impulso primitivo de reprodução. Para o desgosto dos reformistas da masculinidade, as mulheres ainda respondem sexualmente àqueles traços e comportamentos “alfa” que teriam feito dos homens bons caçadores e combatentes. Para as mulheres, as demonstrações de força, coragem e destreza são sinais de superioridade genética e de um acentuado prestígio masculino — inclusive para aquelas que não têm planos de reproduzir. Os homens estão atrás de mulheres que pareçam amáveis e férteis, e elas empulham o cérebro de macaco deles com batom, lipoaspiração e seios de silicone. Hoje em dia, o sexo é cada vez mais desconexo do acasalamento, e para muitos virou uma questão de “se masturbar com o corpo do outro".

Em muitos casos, o que esse corpo tem a oferecer é desapontador, se comparado ao sexo isento de riscos que os homens podem ter virtual e vicariamente, com pornografia de alta qualidade e acesso imediato. Em 2003, a feminista Naomi Wolf e o escritor David Amsde disseram que a experiência da simulação de sexo estava fazendo os homens se desinteressarem do sexo com mulheres de verdade, que se sentiam obrigadas a disputar a atenção deles com a pornografia.

2003... Não faz tanto tempo assim que as pessoas ainda pagavam efetivamente por pornografia, e arquivos de um gigabyte ainda pareciam enormes. Hoje em dia, os jovens podem baixar pornografia de alta definição em segundos e assistir na mesma TV deslumbrante, de tela enorme, que compraram para assistir ao Super Bowl (Campeonato nacional de futebol americano). A New York Magazine investigou esse assunto em 2011, com a reportagem “He’s just not that into anyone”, na qual o autor relata que tinha fingido um orgasmo numa relação sexual real, mas que não tinha problema nenhum em atingi-lo quando assistia a pornografia. Alguns homens entrevistados para a matéria disseram que vinham sofrendo com disfunção erétil durante as relações sexuais reais, outros contaram que tinham de se recordar de cenas de pornografia para conseguir gozar, quando trepavam com as esposas. O cantor John Mayer confessou à revista Playboy que, certos dias, antes de se levantar da cama, era provável que ele já tivesse visto fotos de umas trezentas vaginas.

Nosso mundo não está oferecendo aos homens outros meios de obterem um desempenho viril, nem uma experiência vital.

O que o mundo moderno tem a oferecer ao homem comum são mil e um métodos seguros de enxotar seu cérebro de macaco para o esquecimento.

Não é de surpreender que alguns homens, naqueles momentos de lucidez entre uma e outra masturbação inspirada por diversas formas vicárias de sexo e violência, se façam a mesma pergunta que, segundo Betty Friedan, as donas de casa instruídas andavam se fazendo na década de cinquenta:

— É só isso?

Nascemos na fartura proporcionada pela paz, numa economia de prazer, numa sociedade masturbatória de bonobos.

O futuro que a elite de nossos adestradores nos reserva só apregoa mais do mesmo, ou seja, mais prazer indiferente, menos risco, liberdade da necessidade, mais masturbação. Os reformadores da masculinidade nos oferecem a oportunidade de combatermos batalhas metafóricas, mas, no mundo real, as batalhas mais importantes serão “travadas” entre a elite da burocracia e os gestores especialistas e abastados, que acham que sabem o que é melhor, enquanto o resto de nós se arrasta num emprego tedioso, isento de riscos, no qual fazemos um trabalho idiota e ficamos de olho no relógio, ansiosos para voltar para casa e nos render furiosamente a qualquer forma de experiência primitiva vicária ou virtual que nos proporcione um orgasmo.

Jornalistas cosmopolitas de escolas de elite, tipo Betty Friedan, encheram a cabeça das mulheres, fazendo-as fantasiar carreiras empolgantes na cidade grande, mas que poucas delas poderiam ter esperança de um dia conseguir. Para cada mulher que hoje vive essa fantasia, há uma penca de outras mulheres registrando mercadorias na caixa de alguma grande rede varejista, ou fazendo um trabalho repetitivo de preenchimento de fichas em algum escritório cinzento. No Oriente, elas estão atendendo a nossas chamadas telefônicas ou executando tarefas monótonas na linha de montagem de alguma fábrica. A isso se dá nome de “progresso”. É provável que, para muitas dessas mulheres, melhor seria passarem mais tempo participando ativamente da vida dos filhos — mas elas já não têm a opção de ficar em casa.

O custo da civilização é a progressiva permuta com a própria existência vital. É a troca do real pelo artificial, pela fraude convincente, que a gente faz pela promessa de segurança e de barriga cheia.

Sempre foi assim.

A questão é: “Quando é que essa troca passa dos limites?

No futuro que globalistas e feministas conceberam para eles mesmos, só umas poucas pessoas chegarão a fazer alguma coisa que valha a pena. Alguns serão cientistas, encarregados de desvendar os mistérios do universo. Alguns serão engenheiros, daqueles que concebem, projetam e resolvem problemas. Alguns farão parte de uma classe gestora privilegiada de financistas e de burocratas, responsável por tomar as decisões importantes em nome de todos os demais. São eles que estarão à frente de companhias e departamentos, e erguerão seus enormes leviatãs a partir de documentos legais e de sorrisos fingidos. Assim como hoje em dia, também haverá uma classe criativa glamorosa, encarregada do planejamento de nossos divertimentos sedentários. Haverá gladiadores e corridas de carruagens. Haverá encenações e gente de teatro, e haverá os mexericos da aldeia global.

Só que não dá para todo mundo ser cacique — e a maioria de nós ficará mesmo é com o papel de índio. Os produtos precisam de hordas de consumidores, vendedores, atendentes, balconistas, estoquistas, assistentes de prevenção de perdas, vigias noturnos. Qualquer um que esteja no lado esquerdo da curva de sino [3], qualquer um que faça a escolha errada na hora errada, qualquer um que não seja submetido a duras provas ou não se comporte com correção, qualquer um que não tenha sido “adequadamente socializado”, qualquer um que decline das opções erradas pelas razões corretas, acabará ganhando uma merreca para trabalhar feito um burro de carga. Como observa Matthew B. Crawford, até o chamado “trabalho de conhecimento” dos colarinhos brancos está “sujeito à rotinização e à degradação, a se seguir a mesma lógica que atingiu o setor industrial cem anos atrás, ou seja, os elementos cognitivos do trabalho são expropriados dos profissionais, aduzidos num sistema ou processo e, depois, restituídos a uma nova classe de trabalhadores — os funcionários — que substituem os profissionais”. Ter leitura e escrita de nível superior não significa que, para fazer o que você faz, seja necessária uma capacidade de raciocínio ou de solução de problemas graves muito maior que a necessária para ser um gerente do McDonald’s. Só vai poupá-lo da testa oleosa.

Só algumas centenas de anos atrás, muitos homens hoje destinados ao funcionalismo teriam aprendido um ofício com os pais e adquirido destreza nele, fosse a agricultura ou outro tipo de trabalho interessante do qual pudessem se orgulhar. Teriam sido membros valorosos de uma reduzida comunidade de pessoas, que se importariam se estavam vivas ou mortas. Alguns passariam a vida com grupos de homens, a bordo de alguma embarcação, mas a maioria estaria destinada a prover e a proteger suas famílias — seu pequeno clã pessoal. Era um acordo factível entre a vida de gangue e a vida em família. Algumas gerações atrás, esses homens teriam responsabilidades significativas, e seus atos teriam o potencial de causar estragos maiores que meramente ferir os sentimentos de alguém ou causar incômodo. Eles teriam razões prementes para se esforçar em serem bons em serem homens, mas também em serem bons homens. Não muito tempo atrás, esses homens teriam dignidade e honra.

No futuro concebido por globalistas e feministas, para a maioria dos homens só haverá mais funcionalismo e mais masturbação. Só haverá mais pedidos de desculpa, mais submissão, mais solicitações de permissão para serem homens. Só haverá mais exames, certificações, requisitos obrigatórios, processos de triagem, inquéritos pessoais, testes de personalidade e diagnósticos de caráter político. Só haverá mais medicação. Só haverá mais ocasiões de confiarem a sua secretária um frasco quentinho de sua própria urina. Haverá alongamentos matinais obrigatórios, e apresentações de segurança em vídeo, e folhas rubricadas para seu arquivo. Haverá mais capacetes, e óculos de proteção, e arneses, e uniformes alaranjados chamativos com tarjas refletivas. É inevitável que haja mais aconselhamentos e mais treinamentos de sensibilidade. Haverá mais empecilhos administrativos a superar, para quem quiser abrir o próprio negócio e pô-lo para funcionar. Haverá mais apólices de seguro obrigatórias. Não restam dúvidas de que haverá mais impostos. É provável que haja mais leis e políticas corporativas contra o assédio sexual, caracterizadas pela bizantinice, e ainda mais recursos graças aos quais tanto mulheres quanto grupos identitários privilegiados poderão acusá-los de conduta imprópria. Haverá mais rotinas microgeridas, e regulamentos mais insignificantes, e multas mais pesadas, e penalidades mais severas. Haverá mais meios deles se meterem em encrenca com a lei e mais meios da sociedade preservar suas doces ilusões, varrendo-os para debaixo do tapete. Em 2009, nos EUA, havia quase cinco vezes mais homens na condicional ou cumprindo pena nas prisões que na ativa em todas as Forças Armadas.

Se você for um bom rapaz e seguir as regras, se souber falar num tom passivo e inofensivo, se for capaz de convencer algum outro pobre paspalho inadvertido de que você está tomado de um desejo quase doentio de fornecer um serviço excepcional de atendimento ao consumidor ou de aumentar a eficiência operacional aperfeiçoando os processos internos e tornando mais efetiva a comunicação organizacional, se conseguir repetir babaquices estúpidas como essa sem cair na gargalhada, se seu histórico conferir e seu mijo cheirar bem — você poderá conseguir um E-M-P-R-E-G-O. Quem sabe você não vira o sujeito que aplica o exame ou que autoriza a apólice de seguros? Quem sabe você não vira o sujeito que ajuda alguma corporação global desnaturada a fazer um dinheirinho? Quem sabe você não recebe um afago por ter tido a brilhante ideia de mandar uma penca de outros rapazes para o olho da rua, terceirizando os empregos entediantes deles e entregando para gente de outro lugar, disposta a trabalhar mais e ganhar menos? Seja lá o que você faça, não importa o que as pessoas comentem, não importa a quantas atividades de formação de equipa você compareça, nem quantos cartões de aniversário receba da secretária de não-sei-das-quantas, você saberá que é só uma unidade de trabalho, completamente substituível, no grande esquema das coisas.

Nenhuma burocracia pervasiva nem corporação global jamais cairão de amores por você. Elas contam com dotações orçamentárias para seus setores de relações públicas e com departamentos de recursos humanos para proteger os interesses e os lucros delas. Não há um “nós”. Não cabe a uma entidade legal se importar se você vive ou morre, nem se você é feliz.

Se você for um bom rapaz, se vestir com esmero, tiver um EM-PRE-GO e souber dizer a coisa certa, quem sabe não acaba convencendo uma garota legal a permitir que você dê a ela um bebê e ajude a custeá-lo? Mas se essa não for sua praia, você pode gastar seu dinheiro enchendo a caveira ou ocupar seu tempo no esforço de conseguir trepar com o primeiro traseiro que mexer com sua imaginação. Afinal de contas, nesta sociedade masturbatória de bonobos, o sexo é social. Você desfrutará do “direito” arduamente conquistado de se esfregar em qualquer coisa que o faça sentir-se bem — contanto que siga as regras.

Se você for um bom rapaz, pode se enroscar na segurança uterina de seu apartamentinho de condomínio em estilo soviete-nouveau, com seus trastes confortáveis, e desfrutar de suas indulgências meticulosas, sua dieta gourmet, sua cerveja exclusiva. Pode ocupar o tempo procurando se adestrar na arte de reduzir suas emissões de carbono, ou fazer sua parte indo de bicicleta para o trabalho, costurando displicentemente no meio de uma barragem de caminhões e de carros capazes de esmagá-lo por puro prazer. Quem sabe você não faça aulas e obtenha uma autorização, e, depois de outro funcionário confirmar que você é competente o bastante para merecer uma licença e a devida cobertura do seguro, não se habilite a fazer uma coisa fora do normal, tipo andar de moto? Quem sabe você não pague a alguém para deixá-lo disputar um jogo, ou participar de uma corrida, ou se meter num arnês de segurança e escalar pedras falsas? Caso contrário, nada impede que você assista a alguém fazer isso na TV. Quem sabe você não fique revoltado com alguma iniquidade ou injustiça à toa e participe de uma resistência pacífica? Quem sabe você não se convença de que está fazendo a diferença quando marca com outras pessoas de se encontrarem em algum lugar para dirigir gritos enraivecidos contra uma gente que não está nem aí? Se preferir, pode entrar na internet e dar largas a sua fúria confusa, impotente e vangloriosa assumindo a identidade daquele casca-grossa anônimo que vive em algum blog ou fórum. Ou pode só tocar um foda-se e gastar todo o dinheiro em videogames que proporcionem a sensação vicária de enfrentar hordas carniceiras de “outros”, cheios de agressividade. Você pode ficar obcecado com o time de futebol de seus sonhos. E não podemos esquecer dos hobbies. Você pode arranjar uma atividade inútil e inofensiva para passar o tempo. Jardinagem, talvez. Você pode formar uma banda ou mexer com carros. Virar um cinéfilo. Você pode pintar estatuetas de guerreiros. Você pode até vestir uma fantasia e jogar RPG na modalidade live action.

Seja lá o que você faça, arrume um jeito de se manter ocupado.

Não há nada de errado com essas coisas, todas elas são “divertidas”. E o que é “diversão”, se não dar uma masturbadinha em seu cérebro primitivo? Eu gosto de me “divertir”. Não há mal nenhum em se permitir um pouco de “diversão” — daí a gente chamar de “diversão”, em vez de alguma coisa extremamente grave, tipo “sobrevivência” ou “guerra”.

Mas se isso é tudo, se sua vida se resume a sair à cata de “diversão”, será que é o bastante?

Será que este patamar de civilização — toda esta paz e esta fartura — vale o que estamos pagando?

Por quanto tempo os homens se satisfarão em reviver e reinventar os dramas conflituosos do passado por meio de livros, filmes e jogos, sem esperança de passar por qualquer conflito significativo em suas próprias vidas? Quando será que nos cansaremos de ouvir histórias de grandes homens há muito falecidos?

Por quanto tempo os homens tolerarão esse estado de relativa desonra, sabendo que seus ancestrais eram mais fortes, mais resistentes, mais sabendo que essa força que herdaram continua viva neles, mas que seu próprio potencial para as virtudes masculinas, para a glória, para a honra, será desperdiçado?

Já sabemos como era o Código dos Homens.

Será que viver uma vida de bonobos foi só o que nos restou?

NOTAS

[1] Corridas de cinco quilômetros são promovidas em todos os EUA e disputadas majoritariamente por atletas amadores. Os CrossFit Games são uma competição com diferentes provas, que testam a força e a resistência dos participantes. A Warrior Dash é uma corrida de obstáculos, também com extensão de cinco quilômetros; é a ela que o autor se refere ao falar em “lamaçal”, mais adiante.

[2] Donovan dissertou melhor sobre esse assunto nesse texto.

[3] O gráfico de distribuição normal (cognominado curva de sino, devido a seu traçado) descreve eventos que oscilam em torno de um Valor médio. Estar “no lado esquerdo da curva de sino” é estar abaixo da média.

Ramiro Ledesma Ramos - O Fascismo Italiano: A Segunda Mensagem das Juventudes Subversivas

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por Ramiro Ledesma Ramos

(Trecho de Discurso às Juventudes da Espanha)



1 - Fascismo e Marxismo, frente a frente

O triunfo do fascismo em 1922, e principalmente sua vitória definitiva contra todas as oposições em 1925, que é realmente o fato que o aloja e consolida, equivale à primeira réplica que diz NÃO à revolução bolchevique mundial. O fenômeno tem um interesse culminante para perceber o leito exato por onde correm as novas formas europeias. Pois já hoje, aos treze anos do regime fascista, é ingênuo, e já falso, pensar que Mussolini congregou ao redor dos fasces litórios às forças passadistas e regressivas da Itália para combater e deter a ofensiva bolchevique com a instauração de um Poder reacionário. Essa interpretação do fascismo é absolutamente errônea, e se por efeito da batalha política, da agitação e da estratégia revolucionária, a fazem sua os partidos e as organizações marxistas, é seguro que nem o mais fanático de seus dirigentes o estima e julga desse modo.

Mussolini organizou e dirigiu o fascismo com apoio em uma mística revolucionária. E o que de verdade faz dele um criador e um inventor, quer dizer, um caudilho moderno, é precisamenter ter intuído ou descoberto, antes de qualquer outro, a presença nessa época de uma nova força motriz com possibilidades revolucionárias, ou o que é o mesmo, a presença de um novo palanque, de signo e estímulo diferentes aos tradicionalmente aceitos como tais, mas capaz também de conduzir à conquista revolucionária do Estado.

O fascismo é, de fato, a primeira manifestação clara de que as consignas bolcheviques, não só não esgotavam ou polarizavam em sua defesa todas as energias transmutadoras da época, senão, ao contrário, deixavam de fora uma zona poderosíssima, e também subversiva e revolucionária, e tão extensa, que seria chamada a usurpar o próprio bolchevismo, em cruenta luta de rivalidade, a missão de desarticular o sistema caduco das formas demoliberais. E criar uma nova ordem.

Foi na Itália, pois, onde ficou patenteada essa realidade, onde se evidenciou o erro em que se debatiam os propósitos universais do bolchevismo. E é curioso que alguns escritores socialistas, não bolcheviques mas sim revolucionários, como o espanhol Ramos Oliveira, imputem a razão da vitória do Mussolini sobre o marxismo na Itália "a que o leninismo se havia inoculado na maioria do socialismo italiano". Quiçá não se dão conta esses escritores do quão profunda é sua observação, mas não no sentido da mera influência tática, mas sim no que concerne a dimensão histórica do signo mundial bolchevique.

2 - O Fascismo, Fenômeno Revolucionário

Que o fenômeno fascista pertence à ordem dos acontecimentos revolucionários, nutridos com um estrito espírito da época, é para nós um fato incontestável. O que pediremos nestes tempos a um fato político destacado para poder situá-lo na órbita revolucionária, na linha subversiva de serviço à missão criadora e libertadora que corresponde a nossa época? Simplesmente o que segue:

I) Que contribua para decompor as instituições políticas e econômicas que constituem o embasamento do regime liberal-burguês, e isso, claro, sem facilitar a menor vitória às forças propriamente feudais;

II) Que ao arrancar da burguesia o papel de monopolizadora de todo o timão dirigente, edifique um novo Estado nacional, no qual os trabalhadores, a classe operária, colabore na missão histórica da Pátria, no destino assignado a "todo o povo";

III) Que tenda a subverter o atual estancamento das classes, postulando um regime social que dê base para o equilíbrio econômico, não no sistema dos lucros privados, mas no interesse coletivo, comum e geral de todo o povo.

IV) Que seu triunfo se deva realmente ao esforço das gerações recém-surgidas, mantendo uma ordem de coação armada como garantia da revolução.

É evidente que o fascismo italiano admite esse quadrilátero, e que os fascistas creem de verdade que esse é o sentido histórico da marcha sobre Roma. Agora, que a subversão haja sido quiçá excessivamente modesta, que o grau de serviço concreto à ascensão social e política dos trabalhadores resulte ainda pequeno, que o influxo dos velhos poderes anti-históricos, representativos da grande burguesia e do espírito reacionário, seja ainda excessivo, etc., tudo isso, apesar de aceito, não priva à revolução fascista do caráter que atribuímos a ela, e admite explicações bem variadas.  Uma delas, a de que todo regime necessita de uma base de sustentação o mais ampla possível, e se o fascismo, por chegar à vitória após uma luta com a classe operária de tendência marxista, se viu privada da devida adesão e colaboração de grandes núcleos proletários, teve que se apoiar mais do que o conveniente em uma constelação social distinta.

Mussolini retificou, com o fascismo, a linha que os bolcheviques se gabavam de apresentar como a única com direito a monopolizar a subversão moderna. Para isso, o primeiro foi considerá-la como exorbitante e monstruosa em seu duplo signo primordial e característico: a ditadura proletária e a destruição do "nacional", quer dizer, a aniquilação política absoluta de tudo que não fosse "proletário", e a aniquilação histórica, igualmente absoluta, da "Pátria".

O fascismo estava conforme, sem dúvida, em reconhecer a razão histórica do proletariado, a justiça de sua ascensão a ser de modo direto uma das forças sustentadoras do novo Estado. Não aceitava seu caráter único, sua ditadura de classe contra toda a nação, e menos ainda que isso aceitava o signo internacional, anti-italiano, da revolução bolchevique.

Mussolini demonstrou com seus "fascios" que não podia ser exata a imputação que os "vermelhos" faziam a "toda a burguesia", quer dizer, a todo "o não-proletário", de ser resíduo podre e moribundo. Para defesa da Itália, para triturar uma revolução que ele acreditava, naquelas duas ordens, monstruosa e injusta, mobilizou massas de combatentes, extraídos de todos os lugares, em boa parte procedentes dos setores assinalados pelos marxistas como podres e moribundos. Sua atuação, heroica em muitos casos, a serviço, não da ordem vigente e da sensatez conservadora, mas de uma possível revolução "italiana", se impôs como mais vigorosa, mais profunda e popular que a atuação paralela desenvolvida pelo bolchevismo.

O fascismo revelou a existência de juventudes, de uma massa ativa, extraída em geral das classes médias, que se montava por cima da luta de classes, contra o egoísmo e o passadismo da burguesia e contra o afrouxamento anti-nacional e exclusivista dos "proletários". E fez dessas forças um palanque subversivo, desencadeado contra o que realmente havia de podre e moribundo na burguesia, que era seu Estado mofado, sua democracia parlamentar, sua estupidez exploradora dos despossuídos com a artimanha da liberdade, seu sistema econômico capitalista e seu viver mesmo alheio e estranho ao serviço patriótico e nacional da Itália. Agora bem, esse palanque não podia ser uma revolução antiproletária, anti-operária. Isso o viu e tinha que ver Mussolini, antigo marxista, homem absolutamente nada reacionário, para quem a primeira verdade social e política da época, verdade de signo terrível para quem a ignore, consistia na ascensão dos trabalhadores, em sua elevação a coluna fundamental do novo Estado.

3 - Os Interesses Econômicos das Grandes Massas

Julgue-se o difícil e delicado de uma revolução como a fascista de Mussolini, que tendo sido feita em grande parte contra a consciência proletária, mantida fiel ao marxismo, tinha, não obstante, que realizar a missão histórica de elevar a classe proletária ao mesmo nível de influência que os atuais grupos dominantes da burguesia.

Por sua própria origem, por esse caráter seu de ter tido que se bater contra uma das forças motrizes evidentes da subversão moderna a que assistimos, o fascismo se ressente e até se retarda no cumprimento daquela missão histórica. Ele derrubou, de fato, as instituições políticas da burguesia, e dotou os proletários de uma nova moral e de otimismo político, proveniente de terem desaparecido as antigas oligarquias; mas, terá ele derrubado ou pelo menos enfraquecido pelo menos as grandes fortalezas do capital financeiro, da alta burguesia industrial e dos terratenentes, em benefíci oda economia geral de todo o povo? E ainda, ele vai realmente tornando possível a eliminação do sistema capitalista e baseando cada dia mais o regime nos interesses econômicos das grandes massas? Não parece suficiente que os operários se formem na milícia fascista e participem na mesma medida que outras classes no sustento político do Estado, se ao mesmo tempo o Estado fascista não adota a crença de que é, precisamente, elevando o nível econômico dos trabalhadores como se fortalece de fato a verdadeira potência do Estado italiano.

Facilmente se adivinham os perigos de que resulte futuramente falida neste aspecto a revolução. Claro que isso não tiraria do fascismo o caráter que já tem, mas evidenciaria seu fracasso histórico, seu caráter de coisa inacabada, de tentativa, de começo. Sua marcha sobre Roma recordaria então mais à marcha sobre Roma de Sila do que a de Julio César, e sua etapa de mando mais a um período conservador e regressista que a um revolucionário e fértil.

4 - O Fortalecimento do Estado por meio da Incorporação dos Trabalhadores

Neste momento, a eficácia fascista, quanto a ter conquistado a colaboração proletária, parece superior à da democracia burguesa. Não se pode por em dúvida que os operários italianos estão hoje mais identificados com o Estado fascista do que os operários franceses, por exemplo, com o Estado democrático-parlamentar da França. Este fato pode proceder de uma situação sentimental, o que significaria seu caráter transitório e movediço, mais que de uma realidade social-econômica, o que lhe proporcionaria um valor mais firme, mas é um fato existente e formidavelmente representativo.

O Estado fascista ve diante de si a possibilidade de ampliar sua força história, fazendo com que a incorporação proletária represente para ele a própria eficácia que a incorporação da burguesia, com a revolução francesa, supôs para o Estado napoleônico. É evidente que a surpresa da Europa, ante a pujança imperial de Napoleão, procedia de que a Europa desconhecia, ao que parece, que a primeira consequência do fato revolucionário de 1789 foi vigorizar consideravelmente o Estado com a ascensão política da burguesia. Isso, hoje vemos com clareza solar. Antes de 1789, o Estado não tinha outro poder que o emanado dessas três forças: o rei, a nobreza e a Igreja. A revolução francesa pôs o Estado sobre os quadris e costas da burguesia, grande e pequena, e as consequências foram aprendidas pela Europa através das jornadas imperiais de Napoleão. Não se esqueça que o espírito bonapartista era o próprio espírito jacobino tornado hierarquia e disciplina, quer dizer, milícia.

Pois bem, parece que não escapa à perspicácia e à agudeza histórica e política de Mussolini que sozinho, na medida em que consiga realizar com os trabalhadores um fenômeno similar, conquistará para o Estado fascista verdadeira transcendência, e para a Itália verdadeiro império.

As dificuldades do fascismo italiano para a plena realização de semelhante perspectiva histórica são enormes. No que escrevemos estão insinuadas as de linhagem mais perigosa. Quiçá o fascismo, agoniado com o problema de se assegurar ferrenhamente desde o princípio, está ligado excessivamente a velhos valores, cuja vigência perturbaria quase por inteiro a ambição histórica a que temos nos referido.

5 - O Fascismo e as Instituições Demoburguesas

Mussolini derrubou com grande sentido revolucionário as instituições políticas da burguesia. Desfez o parlamento, destruiu as oligarquias partidárias e acabou com o mito da liberdade política, coisas todas elas que não vacilamos um só minuto em assinalar como um serviço à subversão moderna. Não há, em efeito, nada mais insólito e deprimente que ver hoje as massas concedendo o menor crédito a esses redutos políticos da democracia parlamentar, cuja vigência, ademais de desmoralizar e corromper os partidos operários, assegurará sempre a vitória à burguesia, dona do dinheiro, e, portanto, monopolizadora da grande propaganda, da imprensa e de todos os estímulos do triunfo eleitoral.

Efetivamente, a revolução fascista tem em seu haver o desmoronamento real e teórico das formas políticas demoburguesas. E ainda que isso seja avaliado, desde o setor marxista mundial, como um fortalecimento das posições da burguesia, já que fortalece sua segurança com instituições mais firmes que as parlamentares, as consequências históricas que em nossa opinião devem se deduzir daquele fato são precisamento de orientação contrária. Pois deslocada a burguesia das formas políticas e das instituições que lhe são próprias, aquelas que são uma típica criação sua e a cuja vigência deve de fato seu desenvolvimento econômico e sua força social, é notório que resulta debilitada enquanto poder histórico e político.

Arrancar da burguesia sua democracia parlamentar, seu culto ao livre jogo econômico e político das energias individualistas, e isso de um modo definitivo, sistemático e doutrinário também, quer dizer, não ao estilo de ditaduras reacionárias transitórias, dessas que deixam resquícios para o futuro e as quais desde logo o bom burguês aplaude, como aqui na Espanha aconteceu com o general Primo de Rivera, arrancar-lhe tudo isso do jeito que o fascismo fez, com certo sabor catilinário e adoração pública aos mitos de império, ação direta e coação absoluta, é, não o duvide ninguém, iniciar a decomposição radical da burguesia enquanto classe dominante. Em resumo, que o espírito burguês, e disso trataremos em outro capítulo posterior, não respira livremente na atmosfera do fascismo, não está nele nem se move em seu seio como o peixe na água ou o leão na selva. Não está em seu elemento próprio. Isso nos conduz a extrair uma consequência: o fascismo não é uma criação da burguesia, não é um produto de sua mentalidade, nem de sua cultura, nem de suas formas de vida.

Quiçá acontece com o fascismo o que já apontávamos em relação ao regime soviético. Que são fenômenos típicos da subversão que começa a se desenvolver em nossa época, e fenômenos com características de índole nada definitivo ou concluído, mas como as primeiras erupções, anunciadoras de algo ainda sem previsão. Por isso, abundam neles contradições que não se apresentam nunca em sistemas definitivos, acabados e perfeitos. Assim resulta que o marxismo, doutrina internacional e estranha em absoluto à ideia de Pátria, salva a Rússia "nacionalmente", fenômeno pelo menos tão estranho quanto o de nascer uma amendoeira onde se houvesse posto uma semente de laranjeira. E que o fascismo italiano, vitorioso contra os supostos "proletários", e em muitos aspectos, não sendo o menor o de seu financiamento, elevado pela grande burguesia, tenha que ser quem busque o fortalecimento de seu Estado na adesão e colaboração dos trabalhadores.

Brett McKay - A Importância da Força Masculina

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por Brett McKay



Esparta, Roma, os cavaleiros medievais, os samurais... Eles veneravam a força, porque força é o que torna todos os outros valores possíveis. – Han, personagem fictício do filme Operação Dragão, estrelado por Bruce Lee

Quando dei inicio a esse blog, eu não acreditava muito que a força física fosse um componente importante da masculinidade. A força de caráter, claro, mas a busca pela força física era algo secundário. Talvez eu pensasse assim devido ao motivo, parcial, porque eu criei esse blog para fugir da overdose de fetichismo em ficar esbelto e definido. Talvez tenha sido porque eu mesmo não estava em forma na época (com frequência construímos nossa definição de masculinidade de acordo com nossa visão, que por sua vez é a forma que melhor nos descreve, e eu infelizmente não estou imune à essa tentação!)

Eu joguei diversos esportes, mas depois de ir para a faculdade, meus treinos se tornaram esporádicos e sem entusiasmo. Isso foi ainda mais verídico durante o período de faculdade - onde eu tentava manter boas notas e manter um blogue incipiente, o exercício físico simplesmente não era uma prioridade.

Ao longo dos últimos anos, no entanto, trabalhar fora e levantar pesos em particular tornou-se uma parte fundamental da minha vida. Eu comecei a fazer exercícios regularmente para ver o efeito que eles teriam sobre meus níveis de testosterona. Quando a experiência terminou, esse habitou se afixou em mim. Eu era alguém que era quase indiferente para os exercícios físicos, mas depois passei a ficar ansioso pelos meus treinos, e encará-los como minha parte favorita do dia. E eu percebi que treinar e cultuar a força mudou a forma como eu me sentia e via como homem.

Ao mesmo tempo, minha pesquisa sobre os 3 p's da masculinidade me deu um entendimento teórico sobre o papel da força no código ancestral e universal da masculinidade. Essa pesquisa me convenceu que a força forma o núcleo da virilidade, visto que ela torna possível todas as outras virtudes masculinas.

A importância da construção de força para a virilidade de um homem adentrou em minha mente. A força pode não parecer necessária na atualidade, onde a maioria dos homens sentam atrás de mesas e trabalham o dia todo. Mas ser forte nunca é uma desvantagem, e é frequentemente benéfico em várias situações.

Além disso, a força constitui a parte mais importante do código da masculinidade, visto que se você desmontar algo ou modificá-lo, haverá certos aspectos que deverão continuar intactos ou serem substituídos para que essa coisa mantenha sua identidade. Sem certas partes, ela se torna outra coisa. 

Sem força, a masculinidade se torna outra coisa, um conceito diferente. Na definição de masculinidade é necessário começar com força física porque força é a raiz donde todas as virtudes masculinas brotam. Força é a realidade física que fundamenta os conceitos mais abstratos, que também definem a masculinidade.

Hoje, eu gostaria de dissertar sobre o porquê.

A força física constitui uma das mais significativas diferenças entre homens e mulheres

Se o papel protetor representa o núcleo da masculinidade, então a força física constitui seu centro. É o fator fundamental que determina se um homem consegue se impor em uma luta, se ele é capaz de empurrar de volta quando empurrado. Então, isso é vital para como os humanos julgam, de forma visceral, a masculinidade de um homem. Você pode chamar isso de estúpido, de bobo ou arcaico, mas tudo volta na forma que avaliamos os homens — eles poderiam manter o perímetro numa crise? 

Apesar de vivermos em um tempo confortável de paz, isso não mudou o fato de que tanto homens quanto mulheres (até mesmo as mais progressivas delas) acham que homens de aparência fisicamente forte e em forma são mais respeitáveis, confiáveis, atrativos — e viris — dos que os que não são. 

Além disso, levantar pesos aumenta sua testosterona, que é o ponto vital da masculinidade. Sendo assim, se você deseja se sentir mais homem, e ser tratado como tal, você deveria trabalhar o seu corpo.

A força física é prática, preparando você para qualquer exigência


Mesmo em nossa sociedade segura e suburbana, a força física ainda é útil.

Eu quero saber que sou forte o suficiente para carregar alguém para fora duma casa em chamas e colocar essa pessoa em segurança (assim como ser capaz de salvar sua própria vida em uma emergência); eu quero a força para levantar sacos pesados de adubo quando estiver trabalhando ao redor de casa; eu quero a força para derrubar um suposto agressor.

De certa forma, a força pode ser classificada com uma redundância antifragilidade em ascensão: na maior parte do tempo, dependemos de nossa tecnologia e de nossas ferramentas para realizar o trabalho por nós, mas nunca se sabe quando você irá precisar sujar as suas mãos e, quando você precisar, ficará feliz por ser capaz de usar sua força física. Quando tudo é tirado de você, o que resta é a mais básica das lutas: músculo versus natureza, e músculo versus músculo.

A força física promove a excelência equilibrada e uma vida de florescimento pleno.


Nós costumamos pensar no fortalecimento como algo para homens fúteis e não-inteligentes. Nós estabelecemos uma falsa dicotomia entre virtude e força, entre inteligência e força.

Ainda assim, muitos dos grandes homens na história, incluindo filósofos, políticos e escritores, rejeitaram essa divisão de araque, e enfatizaram a importância de desenvolver o corpo, a mente e o espirito. Eles entenderam que sem um corpo forte, um homem nunca será capaz de desenvolver suas outras virtudes ao máximo de seu potencial.

Você pode estar familiarizado com a convicção de Theodore Roosevelt desta verdade – sobre como ele transformou uma infância fraca e doentia em uma vida forte e viril. Certa vez, seu pai disse a ele o seguinte: “Theodore, você possui a mente, mas não possui o corpo. E sem a ajuda do corpo, a mente não pode ir tão longe quanto deveria. Você deve moldar o seu corpo”. E então Theodore respondeu: “Eu irei moldar o meu corpo!”, e passou o resto de sua vida fazendo isso. De forma vigorosa, ele fez boxe, luta livre, trilha, caça e natação até a sua morte.

O que você pode não saber, é que Winston Churchill, outro dos homens mais célebres da história, teve uma história quase idêntica. Seu biógrafo, William Manchester, detalha sua transformação:

“De saúde frágil, um fracote descoordenado com uma pronúncia ruim, que gaguejava e tinha as mãos frágeis e pálidas como as de uma garota. Ele esteve a mercê dos valentões. Eles batiam nele, o ridicularizavam, e o atiravam bolas de críquete. Tremendo e humilhado, ele se escondeu em uma floresta das proximidades. Este era, severamente, o tipo de coisa do qual eram feitos os gladiadores. Suas únicas armas eram um vontade inconquistável e um senso incipiente de imortalidade.

Começando aos sete anos de idade, Churchill se propôs, deliberadamente, a mudar sua natureza para provar que a biologia não determina o destino, ele estava, de forma exagerada, forçando a si mesmo a ir contra sua própria natureza interior. Como um vitoriano, ele acreditava que podia dominar o seu destino e que a fé o sustentava, mas tudo o que temos aprendido sobre a motivação humana desde então sobrepõe a imensidão de seu empreendimento.

W.H. Shelldon delineou três físicos dominantes, cada um com seus traços de personalidade concomitantes. Dos três tipos – ectomorfia (magreza), mesomorfia (muscularidade), endomorfia (adiposidade), – Churchill com certeza se enquadrava na terceira categoria. Sua cabeça era grande, os membros eram pequenos, a barriga era protuberante, e seu peito era franzino. Sua pele era tão sensível que ele tinha erupções cutâneas a menos que ele dormisse pelado a noite em lençóis de seda. Durante o dia, ele só podia ter roupas de baixo de seda em contato com sua pele. Endomorfos são, de forma característica, preguiçosos, calculistas, descontraídos e previsíveis. Churchill não era nada disso. Ele alterou sua constituição emocional para a de um atleta, projetando a imagem de um homem valente, indomável.


Ele se desesperou por diversas vezes ao longo do caminho. Em 1893, ele escreveu: ‘Eu estou amaldiçoado com um corpo tão fraco que mal posso suportar a fadiga do dia a dia’. Ainda assim, ele estava determinado a provar ser tão resistente quanto qualquer mesomorfo. 

Durante sua adolescência, ele quase se matou ao pular de uma ponte durante um jogo de pega-pega. Ele caiu quase nove metros e ficou inconsciente por três dias. Ele caiu de novo enquanto praticava hipismo em Aldershot, e uma outra vez quando estava desembarcando em Bombay, onde feriu permanentemente um ombro. Pelo resto de sua vida ativa, ele jogou polo com seu braço rente ao corpo. Quando era criança, pegou pneumonia, e sofreu de doenças no peito pelo resto de sua vida. Ele era alérgico à anestésicos e tinha febres com uma certa periodicidade. Todavia, ele se recusou a se render à fragilidade de sua genética. Em seu mundo interior, não havia espaço para concessões à fraqueza. Ele nunca reclamou da fadiga. 

Em seu septuagésimo ano, ele foi até conselhos de guerra no exterior esparramado em um colchão de carrapatos durante o início dos bombardeiros da Segunda Guerra Mundial. Ele será lembrado como o campeão da liberdade em sua hora mais escura, mas será valorizado como homem”.

Ambos entenderam que, se eles quisessem desenvolver suas mentes ao máximo de sua excelência, e fazer algo significante no cenário mundial, eles não poderiam passar suas vidas somente lendo. Ao invés disso, eles precisariam de energia para viajar ao redor do mundo e expandir não apenas seus horizontes mentais, mas os físicos também – para testar suas convicções morais e competências cognitivas na dura realidade que é a liderança. Um corpo forte os levaria onde eles precisassem, e os ajudaria a agir nobremente no campo. Sem força física, eles nunca teriam alcançado o que conseguiram, ou se tornado tudo que representam.

Por isso, se você está interessado em se desenvolver ao máximo de seu potencial, seria bom você seguir os passos desses grandes homens, e procurar o que os romanos enalteceram como: mens sana in corpore sano (uma mente sã em um corpo são)

Trabalhar a força física ensina lições de vida


Além de, literalmente, nos oferecer energia para enfrentar nossos objetivos, trabalhar a força física também nos ensina muitas lições metafóricas. A dor e dedicação necessárias para treinar com frequência ensinam a você sobre disciplina, resiliência e humildade, dentre outros. No ensaio de leitura obrigatória, O Ferro, Henrry Collins resume o poder que o levantamento de pesos pode ter na formação do caráter de um homem:

Eu levei anos para apreciar de forma completa o valor das lições que aprendi com o Ferro. Eu costumava pensar que ele era meu adversário… que eu estava tentando levantar algo que não queria ser levantado. Eu estava errado. Na verdade, não se levantar é a melhor coisa que ele pode fazer por você. Se ele se levantasse facilmente, sem exigir esforço, ele não te ensinaria nada. É assim que o ferro se comunica com você. Ele diz que o material com o qual você treina a favor, é com o qual você irá se tornar semelhante. Que aquilo que você tenta ir contra, sempre estará contra você.Aprendi que, ao me exercitar, eu estava me dando um grande presente. Eu aprendi que nada de bom vem sem esforço e uma certa quantidade de dor. Quando eu termino uma sessão de treino que me deixa até tremendo, eu passo a conhecer mais sobre mim mesmo. Quando alguma coisa fica ruim, eu sei que essa coisa não pode ser tão ruim quanto o treino.

Eu costumava lutar contra a dor, mas, recentemente, uma coisa se tornou clara para mim: a dor não é minha inimiga, ela é o meu chamado para a grandeza. Mas, ao lidar com pesos, devemos tomar cuidado para não interpretar a dor de forma errada. A maioria dos ferimentos envolvendo pesos vem do ego. Certa vez, tentei levantar uma quantidade de pesos que meu corpo não estava preparado para suportar, e então passei algum tempo sem poder levantar nada.Tente levantar aquilo que você não está preparado, e o ferro irá lhe ensinar uma lição sobre limitação e autocontrole.

Eu nunca conheci uma pessoa verdadeiramente forte que não tivesse auto-respeito. Acho que o menosprezo direcionado, tanto de forma interna quanto externa, nos passa uma ideia de respeito próprio: a ideia de se levantar apoiando-se em alguém, ao invés de fazer isso por conta própria. Quando eu vejo homens treinando por razões estéticas, eu vejo a vaidade os expondo da pior maneira como se estivessem estampando desequilíbrio e insegurança. A força física se revela por meio do caráter.

A força física age como base para as nossas virtudes

A construção de força não desenvolve somente o caráter e virtude, ela fornece a base necessária sobre o qual construímos nossos valores morais. O manto da virtude fica muito estranho em um homem se não houver fogo e luta. Ele escorrega e cai quando usado em uma estrutura que carece de força e firmeza. Todos nós conhecemos homens amáveis que são extremamente magros, ou que estão muito acima do peso; homens que parecem que iriam se desfalecer caso um valentão os peitasse, e que ficariam sem fôlego só de subir um lance de escadas. Esses homens flácidos preconizam ser bons homens, perfeitos cavalheiros, mas nós não os respeitamos como homens, ou como cavalheiros. Eles são bons homens, mas não são bons em ser homens.

A força física assegura nossa virtude pra nós

A razão pela qual talvez você pode gostar dum bom homem fraco, mas não considerá-lo viril, é que sua pretensão de virtude é fraca, e que talvez ele não tenha coragem e força para nos apoiar num suposto desafio. O quão bom são as realizações intelectuais e os princípios morais se aqueles que os detêm e os cultivam são subjugados por aqueles não se importam com esses valores mais elevados? É importante ter princípios, mas você está preparado para lutar por eles? Do mesmo modo, você poderia mesmo dizer que você é um “bom homem” se fosse dominado pela força de um bandido tentando por suas mãos em sua família? Como diria Theodore Roosevelt:

“Eu admiro o homem, que sente quando alguém faz algo de errado para a comunidade, quando há uma exibição de corrupção, traição, demagogia, violência ou brutalidade. Eu não quero que esse homem se sinta chocado e horrorizado e queira ir para casa, mas sim que ele sinta a determinação para derrubar o culpado, que o faça saber que o homem decente não é superior a ele somente na decência, mas também na força física”.

Cultivar a força homenageia seus ancestrais



Antes da modernidade, um homem tinha que ser fisicamente forte para sobreviver e reproduzir. Seja lutando contra os elementos ou contra outros, os nossos ancestrais tinham que contar com sua astúcia e força para saírem vitoriosos. Os homens que tentavam provar seu valor em batalhas ou caças, que ousavam a fazer grandes coisas e tinham a força para superar qualquer obstáculo, eram aqueles capazes de serem pais, e de passar adiante os seus genes. Os que não aceitavam o desafio, ou não tinham a força e a valentia de seus companheiros, morriam sem ter filhos, e infelizmente seus genes morriam com eles.

Isso significa que todos nós descendemos dos homens mais fortes, rápidos, inteligentes e corajosos do passado, os “machos alfa” do mundo.

Não é exagero concluir que o sangue de grandeza corre em nossas veias.

Então, o que você está fazendo com sua herança genética?

Jogando videogames?

Trabalhando o dia inteiro num escritório?

Assistindo televisão e comendo “junk food” no seu tempo livre?

Jack Donovan argumenta que envergonhamos nossos antepassados viris por desperdiçar o legado da força física que eles deixaram em nossos genes. "Imagine o desgosto e desprezo que eles teriam de nós todos...”

Quando treinamos para ser fisicamente fortes, nós honramos e reverenciamos os homens que vieram antes de nós, que tiveram que ser fortes para que nós pudéssemos existir e aproveitar os confortos que temos hoje. Levantar um peso muito pesado é como acender uma vela em homenagem aos nossos ancestrais viris.

Trabalhar a força física faz você se sentir ótimo, e incrivelmente viril

Por fim, além dos benefícios práticos e de formação do caráter que podem ser obtidos por aqueles que são fisicamente fortes, pode-se dizer que é incrível saber que você é capaz de levantar uma grande quantidade de peso do chão. A primeira vez que eu levantei cerca de 100 quilos e vi no espelho a barra entortando, eu me senti como um animal. Soltei um grito primitivo de realização e carreguei aquele sentimento comigo.

Fazer o que o seu corpo foi feito para fazer, o que foi evoluído para fazer, é uma sensação incrível, e passar toda a sua vida sem vivenciar o máximo dessa sensação é um grande desperdício (uma vergonha). Esta é uma verdade que até mesmo Sócrates pregou há muito tempo na Grécia antiga. 

Quando o filósofo viu um jovem em péssimas condições físicas, ele o reprimiu dizendo: “Nenhum cidadão tem o direito de ser um amador em matéria de treinamento físico. Que desgraça é para o homem envelhecer sem nunca ver a beleza e a força do que o seu corpo é capaz”.

O que significa ser forte?


Nem todo homem tem a composição fisiológica para se tornar fisiculturista. Mas todo homem pode ficar mais forte do que é agora. Não importa quais sejam seus outros interesses, ou qual seja sua estrutura. Se você quer se sentir viril, você precisa se familiarizar com os pesos.

O ideal de força é algo muito debatido, e tem mudado com o passar do tempo. Nossos antepassados eram fortes devido ao trabalho braçal, mas não tinham um físico esbelto. Hoje em dia, alguns homens se concentram no tamanho e procuram ter um físico estruturado e definido, enquanto outros não se importam em ficarem grandes, e se concentram na “força funcional”.

Para mim, não importa muito quais são os seus objetivos, contanto que você esteja fazendo algo. O importante é encontrar um estilo de treinar que você goste, que o inspire a continuar treinando e desenvolvendo seus músculos, e que você permaneça com ele. Mesmo que sua paixão seja qualquer outro exercício, e você queira fazer isso por um longo tempo, seria bom você fazer exercícios de fortalecimento e torna-los uma parte essencial da sua rotina.

Eu não acho que você deva ficar tão grande a ponto de prejudicar a sua mobilidade, seu sistema cardiovascular, e de não ser capaz de correr mais de um quilômetro sem se cansar. Você também não deve negligenciar a parte da força que constitui a força funcional. Assim, se algum dia você precisar levantar algo muito pesado, você irá sentir muito o peso, e será algo que você será capaz de levantar apenas uma vez.

Mas entre esses extremos, há diversas opções. Eu mudo meus treinos o tempo todo. Ás vezes eu apenas quero levantar o maior número de peso, para me sentir forte. Parece idiota, mas é estranhamente satisfatório. Ás vezes, quero fazer treinamentos que nossos antepassados faziam. Variar os meus treinos os mantém desafiadores e me mantém interessado.

Conclusão

A força é um atributo que define a masculinidade. É, literalmente, o poder que permitiu que gerações de homens protegessem e cuidassem de suas famílias, e que construiu nossos arranha-céus, rodovias e pontes. Mesmo que nosso ambiente atual não exija que nós sejamos fortes, ainda se faz necessário buscar o desenvolvimento da força física, pois nela reside a base para a formação de um homem completo.

Lute para se tornar mais forte sempre. Eu prometo que se fizer isso, você verá uma transformação não apenas em seu corpo, mas também em sua mente e seu espírito.

Vires et honestas. Força e honra

Alain de Benoist - Livre Comércio e Protecionismo

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por Alain de Benoist



Quando ela foi criada em 1842, a muito liberal Société d'économie politique cunhou o slogan, "Não é economista quem for protecionista". Isso mostra a medida em qe, nos meios liberais, o livre comércio já era à época considerado como um fator que contribui para o "progresso". Hoje, a situação continua a mesma. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o livre comércio se tornou a doutrina econômica dominante. A criação de zonas de livre comércio como a União Europeia, o NAFTA (na América do Norte), e o Mercosul (na América do Sul) foi uma das consequências da abertura das economias nacionais. A Organização Mundial do Comércio (OMC), que tem estado em operação desde 1 de janeiro de 1995, também é devotada à promoção do livre comércio. Em 1979, as vendas internacionais de bens e serviços representava quase 12% do PIB internacional; hoje elas representam quase 30%.

O livre comércio está fundado na ideia de que regras e regulamentos devem ser os mesmos em todo lugar, para que se possa chegar a uma competição "pura e perfeita" na maior medida possível, que permite à "mão invisível" exercer sua influência em todo mercado. No jargão dos economistas, seu ideal é o "campo de jogo nivelado" livre de tudo que possa representar um obstáculo ao livre jogo do mercado: fronteiras, controles, regulações, tarifas alfandegárias, etc. Desde essa perspectiva, o problema não é o comércio internacional, que está devotado a se estender indefinidamente, mas a "rigidez" de salários e regulações trabalhistas, consideradas como limitadoras da competitividade de países desenvolvidos. Quanto às regras iguais para todos, o objetivo do livre comércio é finalmente a abolição de todas as regulações, de tudo que poderia impedir a expansão planetária da lógica do crédito e do lucro. O livre comércio é, em última análise, nada além da liberdade absoluta do capital e de sua capacidade de controlar o mundo, sem se submeter a qualquer regra.

A ideia geral é a de que o comércio internacional representa a principal força de impulso do crescimento econômico, e que, portanto, nós veremos mais crescente quanto mais suprimamos completamente tudo que possa atrapalhar o comércio. Isso se traduz na realidade em uma pressa para exportar. Os estudos relativos à correlação entre o grau de abertura econômica e taxas de crescimento, porém, não confirmam essa ideia. Eles mostram, ao contrário, que o livre comércio não resulta necessariamente em uma equalização de preços por todo o tabuleiro; mas ao contrário, que ele beneficia certos países (geralmente os mais ricos), que ele também prejudica seriamente outros, pois ele induz distorsões profundamente destrutivas entre países dotados de diferentes sistemas sócio-produtivos, porque o ajuste entre oferta e demanda não acontece na mesma velocidade em todo lugar (o teorema de Mordecai Ezekiel). Além disso, é impreciso depender apenas do PIB (ou do produto nacional bruto [PNB]) para medir a riqueza, pois estes indicadores não são capazes, por definição, de levar em consideração bens e serviços comprados e vendidos em mercado de balcão. "A commodificação de uma economia que inicialmente possui um setor não-mercantil", relembra Jacques Sapir, "se traduz sempre em um aumento do PIB, mesmo quando a riqueza real do país diminui".

Os economistas, cegos por sua adesão aos dogmas do liberalismo econômico, na verdade são incapazes de pensar na dimensão coletiva, nas entidades nacionais ou continentais, ou no fenômeno da influência e do poder que sempre entram no caminho da competição "pura e perfeita". Eles também se recusam a admitir que não é o consumo (demanda) que é o objetivo do crescimento econômico (oferta), mas o crescimento econômico que é o fruto do consumo. Ademais, eles não veem que o sistema de oferta e demanda, que supostamente deveria se auto-ajustar espontaneamente, no máximo é capaz de satisfazer a demanda solvente, que diminui rapidamente. Eles imaginam que a liberalização ou desregulação total do comércio permitirá a todos os participantes se beneficiarem igualmente de suas relações comerciais, quando, na verdade, as desigualdades só se tornarão cada vez piores, tanto entre países como dentro deles. O princípio da competição "livre e sem distorções"é uma contradição em termos: toda competição "livre"é necessariamente distorcida, e toda competição sem distorções não é mais "livre".

O ganhador do Nobel Maurice Allais relembrou isso há bastante tempo, afirmando em 1988: "Uma liberalização de todas as trocas e movimentos de capital é possível e desejável apenas dentro do escopo de grupos regionais unindo países economicamente e politicamente relacionados, e com desenvolvimento social e econômico comparável". Em outras palavras, o livre comércio só é possível entre sistemas socioprodutivos dotados de estruturas similares. É por isso que "a liberalização total do comércio a nível internacional, o objetivo declarado da OMC, deve ser considerada simultaneamente irrealizável, danosa e indesejável".

No que concerne o comércio internacional, a ideologia do livre comércio também está baseada na teoria das "vantagens comparativas" enunciada por David Ricardo. Essa teoria, segundo a qual cada país tem um interesse em se especializar na produção daqueles bens nos quais ele é mais competitivo, está baseada na ideia implícita de que as economias são definidas por retornos constantes em escala, o que não corresponde à realidade. Um país extremamente especializado e fortemente focado em exportações, em realidade, logo se encontrará em uma posição na qual ele é incapaz de satisfazer sua demanda doméstica, e se torna dependente de taxas de câmbio flutuante que ele não controla. Abandonando os setores produtivos nos quais ele é considerado menos competitivo, ele também abandona uma competência, um "recurso intangível", o que impedirá o desenvolvimento futuro de toda sua economia.

É claro, esse dogma antiprotecionista também é bastante hipócrita. Os EUA, grandes promotores do livre comércio, jamais hesitou, como todos sabem, em recorrer (pela desvalorização, subsídios diretos ou indiretos, taxas alfandegárias, etc.) ao protecionismo toda vez em que eles consideram ser de seu interesse fazê-lo. Os americanos, particularmente, financiam seu complexo militar-industrial através de compras públicas. E os chineses subsidiam maciçamente suas exportações quando eles manipulam sua moeda para inundar os mercados ocidentais com produtos baratos, etc.

A globalização, que inflamou a espetacular ascensão de países emergentes (China, India, Brasil, etc.), que temos visto desde 2000, combinou três fatores: a redução progressiva de barreiras alfandegárias, a desregulação de mercados financeiros e avanços tecnológicos em comunicação e transporte. A extensão do livre comércio tem andado de mãos dadas com aglobalização, favorecendo a livre circulação de trabalho, bens e capital. Isso facilitou a externalização da indústria para países emergentes com pouca competência tecnológica, mas salários extremamente baixos, bem como exportações maciças de bens baratos originados em países que, como a China, essencialmente baseiam seu crescimento em demanda externa, e apoiam suas exportações mantendo suas moedas desvalorizadas. Tais países tem reservas virtualmente ilimitadas de mão-de-obra a sua disposição, com salários 30 a 80 vezes menores que os de países ocidentais. Estes salários extremamente baixos são, é claro, uma "vantagem comparativa" para países em desenvolvimento, mas constituem competição injusta para aqueles que sofrem com oresultado.

A globalização permitiu que a burguesia e as camadas governantes locais desterritorializassem a produção na esperança de se livrarem das molduras limitadoras de nações e países, transplantando uma parte crescente dessa produção para regiões do planeta que são as menos conscienciosas em coisas como salários, impostos, seguridade social e proteção ambiental. Esse desenvolvimento resulta em custos sociais crescentes. O livre comércio, na verdade, rompe o equilíbrio entre produção e consumo. Ao colocar países de níveis econômicos completamente diferentes e com estruturas sociais diferentes em competição e em pé de igualdade, ele cria condições de dumping e distorções sociais insuportáveis. Ele leva as empresas a considerarem seus assalariados como nada além de um custo e, reduzindo seus salários, os empurra para uma competição brutal e inumana.

Os processos de globalização e desregulação iniciados noas anos 80, que atingiram seu ápice em meados dos anos 90, não só cavaram uma vala ainda mais profunda entre o sistema financeiro e a economia real. Eles fizeram com que a mais-valia da produção fosse cada vez mais alocada aos acionistas e proprietários do capital, enquanto os assalariados recebem cada vez menos. Ao expor as forças de trabalho dos países desenvolvidos a competição com trabalhadores subempregados de economias emergentes, os proprietários do capital conseguir reduzir salários, esquecendo que trabalhadores também são consumidores.

Neste sentido, a globalização de fato marcou o fim do sistema fordista no qual era em interesse do capital aumentar cada vez mais a remuneração dos assalariados de modo a maximizar sua capacidade de consumo. O aumento da produção e do consumo, assim, caminhavam juntos. Esse "círculo virtuoso" foi rompido no momento em que, para satisfazer as demandas do livre comércio, foi necessário reduzir salários com o único objetivo de permanecer "competitivo" em relação a países em que bens similares podem ser produzidos, mas com salários bem menores. Cada vez mais sujeitos à pressão de acionistas (acionistas demandando retornos máximos dos investimentos, o que implica em redundâncias, redução salarial, externalização, etc), os assalariados tem tido que aceitar condições laborais cada vez piores para que possam manter seus empregos. (Em muitos países com estruturas sociais similares às da França, o custo total das doenças laborais já representa quase 3% do PIB). Seu padrão de vida começou a encolher, enquanto o desemprego cresceu. O vácuo entre a renda média e a renda mediana se ampliou. A deflação de salários levou a um empobrecimento relativo dos trabalhadores e da classe média, e assim e um enfraquecimento relativo da demanda doméstica. Enquanto a maioria dos governos engatou "reformas", as pessoas afetadas estão bem conscientes de que essas reformas consistiram essencialmente em fazê-los trabalhar mais e ganhar menos.

Sob essas condições, a capacidade política e sociológica para aumentar a demanda por bens e serviços não parou de cair, apesar da capacidade tecnológica e econômica de oferecer bens e serviços tenha continuado a crescer. Isso é graças em particular a ganhos de produtividade, dos quais uma das consequências é o crescimento do desemprego, esses ganhos permitindo a produção de cada vez mais bens com cada vez menos pessoas, e tornando o trabalho ao mesmo tempo uma commodity rara. (Desde 2005, o Departamento Internacional do Trabalho ressaltou que havia cada vez menos correlação entre crescimento econômico e criação de empregos).

O principal resultado da expansão do livre comércio, além dos benefícios marginais imediatos que possam ter resultado disso (economias de escala, alocação mais eficiente de certos fatores de produção, etc.), tem sido, assim, taxas de crescimento decrescentes associadas a um forte crescimento da desigualdade econômica em todos os países. A única maneira de compensar pelo crescimento decrescente resultante da deflação salarial, da falta de seguridade social e da consequente redução em demanda interna tem sido por meio de empréstimos. Quando salários ficam estagnados e trabalhadores recebem pouco, a demanda só pode crescer por meio de empréstimos e crédito. Ameaçados pelo empobrecimento, os assalariados se endividam cada vez mais para conseguir manter seu padrão de vida, mesmo que suas rendas reais diminuam. Quando eles hajam alcançado um certo patamar, eles se tornam incapazes de pagar suas dívidas, e todo o sistema corre o risco de colapso. É isso que aconteceu no outono de 2008 quando a crise "subprime" americana iniciou a crise internacional atual. A explosão dos mecanismos de crédito resultante da tentativa de manter artificialmente a capacidade de consumo das famílias por meio de crédito, mesmo enquanto as rendas reais estagnavam ou diminuíam, finalmente culminou em uma ampla crise no setor privado (abarcando famílias e empresas).

Essa crise eclodiu nos EUA porque este é um país no qual se consome mais do que se produz, e as poupanças lá são inexistentes. Suas rendas diminuindo, os americanos estavam destinados a se endividarem, e essa situação de dívida atingiu alturas nunca vistas antes. Desde 2007 a dívida das famílias americanas representa 100% do PIB! Depois dos EUA, os países mais afetados tem sido aqueles com as dívidas mais altas, e aqueles inspirados pelo modelo anglossaxão de uma economia bastante aberta e financializada: Inglaterra e Espanha em primeiro lugar, mas também Holanda, Irlanda, Hungria e Coreia do Sul. Vários outros países estão praticamente falidos hoje: Irlanda, Grécia, Islândia, Ucrânia e Romênia.

Emmanuel Todd muito corretamente observa que os efeitos negativos do livre comércio estão vindo da base para o topo da sociedade. Nos anos 80, foram os trabalhadores os mais afetados pelas desigualdades crescentes. Então, nos anos 90, o declínio atingiu a classe média, que começou a sofrer com os efeitos do empobrecimento e a consequente perda de posição social. Hoje, os lucros do livre comércio beneficiam apenas o 1% mais rico, que se torna cada vez mais rico, enquanto as diferenças salariais se apliam e a massa de assalariados se torna cada vez mais pobre. "A adesão das elites ao livre comércio", diz Emmanuel Todd, "a partir de então faz com que a sociedade como um todo sofra".

Os grupos mais ameaçados não são mais os menos qualificados, como no passado, mas aqueles cujos empregos são os mais fáceis de externalizar para outros países. Os campeões do livre comércio não dão a mínima para isso, a externalização sendo justificada a seus olhos simplesmente por aumentar a competitividade, e assim permitir aos proprietários do capital adquirir uma parcela ainda maior da riqueza produzida. (É o mesmo argumento que foi usado para justificar o trabalho infantil no século XIX). "Eu tenho orgulho de ser um chefe que externaliza", declarou recentemente Guillaume Sarkozy, presidente da Union des Industries Textiles e irmão de sabemos-quem.

Seja diretamente ou indiretamente, já percebida ou usada como uma ameaça para culpar acordos trabalhistas e regulações sociais conquistadas por meio da luta no passado, a externalização de empresas afetou primeiro os produtos baratos para consumo de massa. Então, a partir da década de 80, eletrônicos para consumo, eletrodomésticos e carros, e finalmente, desde os anos 90, também os produtos mais sofisticados bem como serviços "intnagíveis" (processamento de informação, interpretação de exames radiológicos, etc.) foram atingidos. A distância entre os locais de produção e de consumo se tornou, portanto, cada vez maior.

Contrariamente à opinião geralmente mantida, as políticas predatórias de países emergentes não só tiveram um efeito devastador sobre as economias de países desenvolvidos, mas também desestabilizaram os países do Terceiro Mundo. Países em desenvolvimento de fato ganharam pouco com as regras da OMC. "Contrariamente ao que muitas vezes se diz", escreve Jacques Sapir, "o livre comércio não tem sido um fator positivo no desenvolvimento dos países mais pobres, e seu efeito na redução da pobreza tem sido muito superestimado, isso quando não tem sido produto de erros de cálculo". O argumento segundo o qual os desequilíbrios que se notam hoje beneficiam, mais ou menos, as populações de países menos desenvolvidos é, assim, contestável, já que as desigualdades entre países continua a aumentar. Na verdade, os ganhos alcançados nos países emergentes serve acima de tudo para enriquecer um pequeno segmento governante da sociedade cujas fortunas literalmente explodiram no curso dos últimos 10 anos.

O risco hoje é de uma espiral deflacionaria surgindo de um aumento dramático no desemprego e uma redução geral da renda, mas também de um forte declínio em produção industrial nos países desenvolvidos. Já em 1999, Maurice Allais, em seu livro La Crise Mondiale d'Aujourd'hui, previu o "colapso geral" de uma "economia internacional baseada inteiramente em uma pirâmide de dívidas". Nós estamos nos aproximando desse ponto.

Desde que a atual crise econômica internacional irrompeu, todos os líderes do planeta declaram que eles estão dispostos a tomar medidas "drásticas" para lidar com a "urgência" e gravidade da situação. Mas ao mesmo tempo eles competem um com o outro declarando (isso foi visto em abril de 2009 durante o encontro do G20 em Londres, e na cúpula italiana mais recente) que o princípio da globalização não deve ser questionado, e que é necessário lutar contra todas as formas de protecionismo. A principal razão para essa atitude é que eles pensam que a crise se resume a desregulação financeira, e que seria suficiente fazer cortes para garantir um retorno à normalidade. Na verdade, porém, ela também é uma consequência da economia real e deriva da própria natureza do sistema econômico hegemônico.

Denunciado pelos líderes de países e governos, o protecionismo também é rejeitado pela direita (e pela extrema-direita) por liberais leais ao dogma do livre comércio, mas também por uma grande parte da esquerda e da extrema-esquerda, particularmente pelos trotskistas, para quem o problema do protecionismo conflita fortemente com suas convicções internacionalistas. (Nas últimas eleições europeias, como Jacques Sapir ressaltou, o partido de Olivier Besancenot foi o único a se recusar a abordar esse problema de qualquer maneira. Quanto ao Partido Socialista, que pensa poder resolver os problemas se limitando a lutar por uma Europa mais "social", ele considera o protecionismo um tema tabu). De um modo mais geral, é toda a Nova Classe, da direita e da esquerda, que nunca cansa de trovejar contra a "ameaça protecionista", as próprias palavras "barreiras", "proteção", "regulação" e por aí vai se tornando para eles sinônimo de isolacionismo, nacionalismo e até mesmo xenofobia. Obviamente, para a ideologia do livre comércio, o protecionismo é o diabo. E isso vai além da simples economia. Desde uma perspectiva simbólica, na verdade, o protecionismo é uma barreira contra a mudança ilimitada, uma medida contra a imoderação, o elemento "térreo" em oposição ao elemento "líquido".

"A recusa em identificar o livre comércio como uma causa da crise atual", escreve Jacques Sapir", demonstra que seus defensores abandonaram o universo da reflexão para adentrar no do pensamento mágico".

Na França, Jacques Sapir é provavelmente aquele que argumenta mais vigorosamente por um retorno ao protecionismo. Ele não é o único. Emmanuel Todd, que já havia denunciado a ideologia do livre comércio em L'Illusion Économique, desenvolve novamente os mesmos argumentos em sua última obra, Après la Démocratie. A ele se unem na defesa do protecionismo Hakim El Karoui e Jean-Luc Gréau. El Karoui, Sapir e Gréau estiveram, aliás, presentes na conferência sobre a crise do livre comércio internacional organizada pela Fundação Res Publica em 27 de abril de 2009 em Paris sob a presidência de Jean-Pierre Chevènement. Alguns economistas de renome internaiconal também estão começando a abraçar a ideia do protecionismo, tal como o fortemente neoclássico Paul Samuelson, que recentemente observou que o caso chinês tornava a velha teoria ricardiana das vantagens comparativas insustentável. Quanto a opinião pública, todos os estudos publicados em anos recentes mostram que o protecionismo é apoiado pela maioria dos europeus, especialmente na França, onde 73% da população acredita que a globalização representa uma ameaça ao emprego. "O humor geral é, ao contrário, favorável ao protecionismo", notou o jornal Les Echos há 12 anos.

"Contrariamente a todo pensamento liberal", observa Laurent Cohen-Tanugi, "a globalização não pode hoje ser separada do retorno vingativo da geopolítica, ou das estratégias de poder, nacionalismos, até impérios históricos... Este retorno está repleto de consequências, primariamente de natureza ideológica: a despolitização de movimentos econômicos, um dogma da globalização liberal desde os anos 80, vai se deparar cada vez mais com a geopolitização do espaço econômico internacional resultante da ascensão econômico de nações continentais legitimamente animadas por ambição estratégica".

Os próprios argumentos antiprotecionistas não são novos. O protecionismo ainda é acusado de encorajar o "isolacionismo", de causar contração do comércio internacional, de criar privilégios injustos ao instituir sistemas de produção artificialmente protegidos dos efeitos positivos da competição, de enfraquecer o poder de compra dos mais pobres através dos preços mais altos dos produtos protegidos, e por aí vai. Mas o grande argumento é histórico: ele consiste em uma evocação enviesada do protecionismo instituído na década de 30, que se diz ter agravado os efeitos da depressão de 29, e, finalmente, teria levado à guerra. Como a crise atual está sendo comparada em todo lugar a 1929, a conclusão pareceria seguir daí automaticamente.

Nos EUA, a adoção do famoso Smoot-Hawley Tariff Act, que foi convertido em lei pelo presidente Herbert Hoover em 17 de junho de 1930, resultou no estabelecimento de tarifas alfandegárias de até 52% sobre mais de 20 mil produtos. Três anos depois, a produção total do país havia caído em 27%, enquanto as importações haviam caído 34% e as exportações 46%. Mais de 60 países então levantaram tarifas alfandegárias ou estabeleceram quotas. O volume global do comércio internacional caiu 40% entre 1929 e 1932. Economistas liberais concluem a partir disso que essas medidas só agravaram a crise: o fechamento de fronteiras diz-se ter provocado a implosão do comércio internacional antes de levar à guerra. Foi por isso que o protecionismo foi tão fortemente estigmatizado durante a conferência de Bretton Woods em julho de 1944, que estabeleceu as bases do livre comercio pós-guerra.

Como falamos, este argumento é enviesado. Isso já foi demonstrado por Paul Bairoch que, em Mythes et Paradoxes de l'Histoire Économique, indicou que o comércio internacional não declinou no mesmo ritmo que a produção dos países em questão, e que o declínio no comércio internacional, portanto, não poderia ter causado a Depressão. A mesma demonstração foi feita recentemente por Jacques Sapir em um texto datado de 8 de janeiro de 2009, chamado "A crise atual levará à guerra? Lições falsas e verdadeiras da década de 30". Nele Sapir relembra que "a parte essencial da contração comercial ocorreu entre janeiro de 1930 e julho de 1932, isto é, antes da instituição de medidas protecionistas, ou autárquicas, em certos países". Ademais, se a fatia de exportações de bens no PIB dos grandes países industrializados de fato passaram de 9.8% a 6.2% entre 1929 e 1938, devemos nos lembrar de que ela era apenas de 12.9% em 1913. Os defensores do livre comércio também se esquecem que, na década de 30, o comércio internacional consistia essencialmente de matéria-prima, que então representava 2/3 desse comércio, enquanto hoje 2/3 do comércio internacional consiste de bens manufaturados. Na verdade, a causa real do colapso do comércio internacional na década de 30 não foi o protecionismo. mas a alta brusca nos custos de transporte e distribuição, a ampla desorganização do sistema financeiro que se seguiu à acumulação de desvalorizações "competitivas" decididas após o erro da Conferência Econômica de Londres em 1933, e a contração da liquidez internacional (que caiu 35.7% em 1930 e 26.7% em 1931), que resultou em uma crise de demanda culminando no que John Maynard Keyners chamou de "balança de subemprego". Quanto ao Smoot-Hawley Tariff Act, ele só fez o nível de protecionismo global subir marginalmente.

Foi sua consideração dessa crise da década de 30 que fez Keynes perceber a importância de alimentar o sistema internacional com liquidez, e o levou, apesar de até então ele ser bem favorável ao livre comércio, a considerar que o livre comércio não tinha mais benefícios a oferecer, e a se declarar cada vez mais favorável ao protecionismo, notavelmente em seu famoso artigo de 1933, "Autossuficiência Nacional". Keynes escreve ali, "O capitalismo internacional decadente, porém individualista, em cujas mãos nos encontramos após a Grande Guerra, não é um sucesso. Ele não é inteligente, não é bonito, não é justo, não é virtuoso; e ele não funciona".

A produção americana em 1938 ainda era inferior à de 1929. Foi, como sabemos, o esforço de guerra que fez do relançamento da máquina possível, a custo de uma explosão da dívida pública, que não deixaria mais de crescer. Pode-se perguntar se não foi realmente a recusa obstinada do sistema capitalista em ser limitado que mesmo hoje gera o risco de levar a uma nova guerra (com o Irã, por exemplo). Chega um momento em que o capital, confrontado com o rebaixamento tendencial de suas margens de lucro e com a impossibilidade de encontrar novas válvulas de escape, só pode depender da guerra para encontrar um novo estímulo, primeiro na forma de produção de armamentos, e então na reconstrução após a devastação maciça causada pelo conflito.

Outra tática dos defensores do livre comércio consiste em denunciar o protecionismo a nível nacional. Eles então não tem qualquer dificuldade em demonstrar que o protecionismo hoje seria tão impossível de estabelecer quanto ineficiente. Os Estados nacionais, em termos de fluxos financeiros e troca de bens, não são mais equivalentes à economia internacional. Não foi sempre assim. No passado, o protecionismo era incontestavelmente uma necessidade para países emergentes que quisessem erguer, livres da competição que eles ainda não teriam como enfrentar, indústrias destinadas a confrontar a competição internacional em uma fase posterior. Friedrich List (1789-1846) foi um dos primeiros teóricos desse protecionismo. Para List, que não era antiliberal (suas posições eram claramente distintas das adotadas antes dele por Fichte em O Estado Comercial Fechado), o protecionismo representava um arsenal de medidas transitórias permitindo que se alcance o limitar a partir do qual a competição entre países poderia ser exercida sobre uma base sem distorsões. Ele não estava errado: a ascensão econômica de todos os grandes países industriais, começando por EUA e Japão, se iniciou dentro da moldura de mercados protegidos a partir dos quais estratégias de investimento puderam ser desenvolvidas.

Mas isso não quer dizer que o protecionismo só tenha utilidade temporária, e que ele deveria ser reservado para países que ainda não podem pagar pelo luxo de fazer uso do livre comércio (é sempre indispensável proteger indústrias estrategicamente importantes, por exemplo). Hoje, a questão é sobre estabelecer protecionismo a nível continental europeu. Isso fornece uma resposta ao argumento de que o protecionismo seria então "impossível" porque praticamenten ão há mais produtos estritamente nacionais, por virtude da fragmentação internacional dos processos de produção e da dispersão geográfica da subcontratação, que resulta em uma parte de um carro ou avião ser manufaturada em um país, outra parte em outro país, etc.

Um dique não é uma represa: ele não impede que a água flua, mas permite que seu nível seja regulado. Similarmente, protecionismo não é autarquia. Ele não é o estabelecimento de muros intransponíveis transformando Estados em fortalezas impenetráveis. Em uma Europa primariamente ameaçada por deflação salarial e externalização, o primeiro objetivo do protecionismo seria permitir que a demanda interna se recuperasse. Apenas uma Europa protegida pode reviver a demanda por meio dos salários. Como Jacques Sapir escreve, "aumentar salários sem tocar no livre comércio ou é hipocrisia ou estupidez". Para a Europa, é uma questão de se tornar um espaço de regulação econômica se protegendo dos efeitos mais danosos da globalização econômica e financeira sob a forma de dumping de preços e externalização para países de baixa renda, e de impor uma regra de reciprocidade no comércio internacional.

Apenas um sistema de proteção comercial e de "tarifas compensatórias" podem por um fim à desvalorização e ao subpagamento de trabalho e fazer com que a demanda interna se erga novamente, controlando a troca de bens e serviços de maneira que as economias europeias não sejam mais penalizadas por oportunidades de facto oferecidas a países cujas condições sociais e ambientais de produção diferem radicalmente das nossas. A elevação de salários e a ressurreição da demanda através do consumo só pode ser alcançada pela adoção de medidas de proteção alfandegária, ao mesmo tempo compensando pelas perdas que poderiam eventualmente resultar do fechamento de certos mercados estrangeiros.

Em relação a questões comerciais, pode-se certamente imaginar uma nova tarifa alfandegária comum, mas este sistema corre o risco de se deparar com a dificuldade de fixar o nível exato de tarifas compensatórias no atual sistema de taxas de câmbio flutuantes. As taxas de câmbio entre o dólar, o euro e o yen variam constantemente, e uma tarifa alfandegária sobre produtos importados, portanto, poderia ser rapidamente tornada ineficaz. É por isso que o melhor sistema permanece sendo o recomendado por Maurice Allais, que é o baseado em quotas de importação, as quais poderiam ser possivelmente leiloadas. Do momento em que, por exemplo, manufaturas têxteis chinesas excederem suas quotas de importação, elas teriam que pagar uma certa soma de dinheiro à União Europeia, ou transferir fábricas para a Europa para poder criar empregos aqui. Outra solução poderia ser a de estabelecer um imposto anti-dumping, como já existe para certos produtos (por exemplo, sobre bicicletas importadas da China).

Mas medidas protecionistas não precisam ser reduzidas a tarifas alfandegárias e quotas de importação. Elas também podem incluir leis limitando os investimentos de empresas estrangeiras, subsídios para produtores ou consumidores, desvalorizações, medidas sociais ou fiscais, o estabelecimento de padrões tecnológicos e sanitários, cláusulas de segurança, e por aí vai. Para remediar a heterogeneidade de economias nacionais na Europa, Jacques Sapir também defende um retorno às somas monetárias compensatórias adotadas na década de 60, que permitiriam a criação de um fundo em que necessidades sociais e ecológicas convergiriamno coração da União Europeia.

Finalmente, o protecionismo deve ir além das medidas puramente negativas. Para início de conversa, ajudaria parar com a externalização da produção, já que ter mercados mais perto reduzirá custos e os riscos ambientais que externalizar causa a nível planetário (por exemplo, quase todos os gherkins consumidos na França são hoje produzidos na Índia; morangos chineses são muito mais baratos do que morangos de Périgord, mas 20 vezes mais petróleo é usado para seu transporte!) que pode também permitir um melhor controle de qualidade de produtos. Ele poderia também levar ao estabelecimento de uma autêntica soberania europeia em questões industriais, graças a um reforço de cooperação entre grandes atores industriais, que poderiam concordar com estratégias em comum em questões de produção e conquista de mercados estrangeiros. O protecionismo, em uma palavra, é a adoção de uma preferência pela Comunidade Europeia em todos os campos.

O objetivo sendo o de generalizar o princípio de economias autocentradas e "regular as trocas comerciais imaginando grandes zonas geográficas de tamanho suficientemente importante para evitar a criação de interesses pessoais, o risco do protecionismo, ao mesmo tempo fazendo disso um meio de organizar o mundo", há evidentemente uma forte congruência entre um protecionismo organizado a nível continental e o movimento em direção a um mundo multipolar, em que os diferentes polos também desempenham um papel regulador em relação à globalização em processo. O protecionismo, neste sentido, não é apenas uma arma econômica, mas também uma arma política que permite a imposição de fronteiras em uma esfera de influência ou em um bloco cultural e civilizacional. Como Raphaël Wintrebert escreveu, "'A política comercial'é, acima de tudo, política e, portanto, não pode ser reduzida a questões técnicas reservadas para especialistas".

A adoção dessas medidas dificilmente representa algum problema técnico específico. Mas elas se deparam com a total falta de vontade da parte dos líderes europeus. Os mais determinados defensores do livre comércio são encontrados na Comissão Europeia, no coração de corporações multinacionais, no Banco Mundial e no FMI. À parte sua Política Agrícola Comum, a Europa hoje é "o continente do livre comércio em um mundo protecionista". Essa orientação livre-mercantista tem predominado desde o início, já que o Tratado de Roma de 1957 já previa "a eliminação progressiva de restrições ao comércio internacional". O Tratado de Amsterdã de 1997 foi tão longe quanto revogar o único artigo (44[2]) do Tratado de Roma se referindo a "preferência natural". Hoje, a "preferência comunitária"é considerada como contradizendo as cláusulas dos tratados europeus, bem como dos compromissos assumidos perante a OMC. É por isso que a Europa, em anos recentes, tem sido a melhor pupila do livre-comércio defendido pela OMC: no coração da União Europeia, o total de taxas alfandegárias não representa mais que 2% do valor total de comércio (o que, para citar um único exemplo, levou a um déficit comercial em relação a China de mais de 80%). A doutrina oficial da União Europeia é aceitar o desaparecimento de um certo número de indústrias com uso intensivo de mão-de-obra para se concentrar em indústrias de alto valor agregado, mas que empregam poucas pessoas. Sob essas condições, os empregos criados em setores de inovação claramente não podem compensar pelos empregos perdidos nos setores abandonados. É por isso que a UE jamais foi capaz de distinguir claramente entre atividades mercadológicas e não-mercadológicas, ou determinar se ela deve ou não deve se proteger contra competição que se demonstre destrutiva para seus países. Não é surpreendente, então, que sua indústria desaparece a um ritmo constante e que suas classes médias afundam na pobreza.

Emmanuel Todd não hesita em dizer que o futuro ou será protecionismo ou será caos, ou protecionismo após o caos. De sua parte, Jean-Luc Gréau considera que "O retorno de um novo protecionismo é inevitável". Quanto a Jacques Sapir, ele escreve, "Em vista da crise que está se desenvolvendo hoje , a combinação de protecionismo e um retorno a sistemas de controle sobre capitais, do tipo que estabilizaria a conversibilidade de moedas com base em transações comerciais de bens e serviços parece ser a base para qualquer solução, como foi o caso após a crise da década de 30. Mas, como em 1944, tal posição só pode se deparar com a oposição dos EUA... A defesa da soberania econômica não é compatível com os objetivos da política americana... Não pode haver, portanto, reforma e qualquer caminho para fora da crise exceto com base em um confronto com a política americana".

As mentes unânimes da Nova Classe, não obstante, continuarão a trovejar contra o diabo protecionista, regularmente descrito como a "pior das soluções" (Jean-Marie Colombani) e o "veneno mortal da economia" (Claude Imbert). Observando essa unanimidade, Emmanuel Todd considera fácil mostrar que o verdadeiro obstáculo para o protecionismo se encontra em uma mentalidade ideológica que pode ser descrita como libertária-liberal: narcisismo, individualismo, obsessão com dinheiro, e desprezo gritante pelas pessoas. "Para mim", ele declara", o ultra-individualismo não é uma adesão primordial à economia de mercado, à rejeição de todas as barreiras alfandegárias; é uma adesão à ideia do indivíduo como monarca absoluto, à ideia de que é proibido proibir, àquele fenômeno da narcisificação dos comportamentos analisado por [Christopher] Lasch, algo extremamente maciço e difuso ao mesmo tempo... O grande fator negativo é essa atomização, essa narcisificação dos comportamentos, esse preconceito radical contra a ação coletiva". Mas esse individualismo é, na verdade, um indivíduo-universalismo, e o universalismo também está em consonância com o livre comércio na medida em que é classificado sob a ideia de "um mundo sem fronteiras", onde nações serão inevitavelmente "suplantadas". Todd também nota que, "A nível internacional, o universalismo e o antirracismo estão diretamente relacionados à dominação do livre comércio. A ideia de abertura, de superar todas as diferenças, leva a isso".

Legislação protecionista certamente não passa de um corretivo para a, e uma versão da, economia de mercado, não uma alternativa à economia de mercado. Ela não desafia fundamentalmente todas as prerrogativas do capital, ou as relações de poder nas empresas. O protecionismo é, por essa razão, um reformismo. Nas condições atuais, somos levados a ele por uma preocupação de evitar o pior.
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