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Alfredo R.R. de Souza - A Propósito de T.S. Eliot

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por Alfredo R.R. de Souza



O significado de Thomas Stearns Eliot (1888 - 1965) para a literatura universal é uma questão que hodiernamente dispensa maiores considerações; não há, pois, vertente crítica, seja qual for sua orientação conceitual, que ignore o imenso valor e influência da obra do poeta e dramaturgo anglo-americano. As cadências ásperas e dissonantes; a sintaxe fragmentária e labiríntica; a desconcertante polissemia de acentos verbais; as analogias inusitadas; o complexo sistema intertextual de citações e alusões às mais diversas obras e autores, são hoje elementos plenamente incorporados ao labor poético contemporâneo, inelutáveis conquistas artísticas de nossa época; outrossim, a obra crítica do autor concernente a temas literários, ainda que não desfrute da mesma unanimidade valorativa, é também tida na mais alta conta, mormente em função de sua consistência analítica, erudição criativa e extremo rigor no manejo das fontes. Obras como The Sacred Wood (1920); Shakespeare and the Stoicism of Seneca (1928); The Use of Poetry and the Use of Criticism (1933); Elizabethan Essays (1934); ; On Poetry and Poets (1957) não são, portanto, alvo de maiores controvérsias na atualidade.

O ditoso fado acima esboçado, não obstante, ainda não foi encontrado pela produção ensaística do autor relativa a questões político-sociais. Tendo se definido como “um anglo-católico em religião, um classicista em literatura e um monarquista em política”, Eliot passou a ser considerado pela esquerda acadêmica, dominante em termos de estudos culturais nos dois lados do Atlântico, como uma espécie de duplo esquizofrênico, onde estariam esdruxulamente justapostas duas naturezas pretensamente antitéticas: o ‘revolucionário’ em matéria poética e o ‘reaccionário’ na esfera política. É mister salientar, em primeiro lugar, que não há um a priori ‘par ordenado’ necessariamente conjugando vanguardismo estético e ideológico numa equação permanente; há na história das idéias e das artes numerosos exemplos que desmentem tal assertiva da forma mais cabal: Dante, Calderón de La Barca, Goethe, Coleridge, etc., homens conservadores em lides políticas e inovadores em termos literários; em segundo lugar, devemos sublinhar que a obra poética de Eliot é ‘revolucionária’ no sentido mais recôndito e fecundo do termo, configurando-se como summa dialética e dinâmica da tradição cultural européia e de procedimentos estéticos renovadores; finalmente, é também preciso asseverar que o conservadorismo político está desde sempre presente na literatura eliotiana, e não apenas a partir de sua notória inflexão mística com Ash Wednesday (1930) e Sweeney Agonistes (1932); já em The Wasteland (1922), poema via de regra considerado como ponto culminante da inovação literária eliotiana, estão de todo evidentes as principais linhas de fuga de seu pensamento político: a) a permanente e grave reflexão sobre o contraste entre os valores perenes da civilização ocidental e o esvaziamento progressivo de tal legado nas manifestações religiosas e culturais da modernidade, caracterizadas por uma vacuidade histriônica e neurótica; b) a crítica do pragmatismo militante do homem contemporâneo, ser avesso ao substrato mítico e religioso que lastreia seus alicerces históricos e culturais, em ruptura flagrante com as raízes mais atávicas de sua própria existência; c) a necessidade, no seio do Ocidente, de um amplo processo de ascese espiritual; em The Hollow Men (1925), por seu turno, a indignação flamejante do poeta chega às raias do desespero metafísico, por completo descrente de quaisquer possibilidades de redenção para o Ocidente, sentimento patente em versos tão severos quanto pungentes: This is the dead land / This is cactus land / Here the stone images / Are raised, here they receive / The supplication of a dead man's hand / Under the twinkle of a fading star (III, 40-45). No esteio do supracitado turning point religioso, este profundo desalento progressivamente assumiria contornos mais contemplativos, até converter-se em serena meditação a propósito dos destinos da humanidade, como podemos constatar através da leitura dos Four Quartets (1935-42), pináculo maior da maturidade poética do autor; e é precisamente sobre a contrapartida teórica deste processo que iremos nos debruçar na nota em tela, adotando como balizamento as reflexões de Eliot acerca do declínio do Ocidente, temática presente sobretudo em The Idea of a Christian Society (1940) e Notes Toward a Definition of Culture (1948).

As convicções do poeta a respeito da decadência da cultura ocidental no bojo de uma sociedade caótica e destituída de ideais, universo agonizante e descrente, onde os valores tradicionais foram abandonados em nome de perversões tais como a psicanálise, o materialismo marxista e a filosofia nietszcheana, estão intimamente ligadas a seu medievalismo, isto é, à concepção da Idade Média como auge da civilização européia; neste particular é sem dúvida um pensador caudatário de toda uma linhagem do pensamento conservador dos séculos XVIII e XIX: Edmund Burke, Novalis, Joseph de Maistre, Louis de Bonald, Donoso Cortés, Otto Weininger, etc. De especial relevo no âmbito de nossa análise me parece ser a insigne figura de Georg Philipp Friedrich Freiherr von Hardenberg (1772 - 1801), dito Novalis, que para além do elegíaco hermetismo de seus magníficos Hymnen an die Nacht (1800) e da mística beleza do romance inacabado Heinrich von Ofterdingen (1801), foi também autor do ensaio de teologia política Die Christenheit oder Europa (1799); nesta instigante peça de apologética cristã, o escritor prussiano advoga um retorno à Idade Média, cuja unidade harmônica poderia regenerar uma Europa convulsionada por dissensões políticas e religiosas. A noção de um ‘todo’ uno e coerente, ou seja, de uma cosmovisão passível de articular de forma convergente e coesa as instâncias política, social, religiosa e cultural, bem como de conferir um sentido transcendente e maior à existência, é a perspectiva dominante neste escrito, consoante sua notável abertura nos revela: “Belos, esplêndidos tempos: a Europa era terra cristã, e a Cristandade habitava una este recanto de mundo humanamente configurado...”; esta mesma disposição, conforme veremos a seguir, desempenha um papel precípuo no pensamento eliotiano. 

Para o autor anglo-americano, o ápice da civilização foi indubitavelmente atingido durante a Idade Média, quando a sociedade, a religião e as artes refletiam de forma exemplar um acervo comum de valores e princípios. A síntese cultural que o período medieval logrou alcançar, portanto, transfigura um modelo ideal de comunidade européia, unificando de modo harmonioso a vida no continente em seus mais diversos aspectos; destarte, toda a História ulterior nada mais seria que a ominosa crônica da paulatina degenerescência desse ideal, em processo que tem como marco simbólico inicial a morte de Dante Alighieri (1265 - 1321): a cristandade se decompõe em Estados independentes; a Igreja em seitas e heresias; o conhecimento em saberes especializados; a fé em ceticismo. O termo de tal trajetória seria o Ocidente contemporâneo, ‘terra devastada’ onde o poeta testemunha “a desintegração da cristandade, a deterioração de uma crença e de uma cultura comuns”. Eliot argumenta que não há como assumir uma posição intermediária ou indiferente no tocante a esta tétrica involução, afirmando que “há duas e apenas duas hipóteses sustentáveis a respeito da vida: a católica e a materialista”; assim sendo, ou nos batemos em defesa da ordem augusta e serena da Civitate Dei católica (muito embora Eliot não acreditasse ser exeqüível a restauração tout court da civilização medieval, mas sim de seu espírito norteador, numa perspectiva de cariz ‘restitucionista’ também advogada por figuras como Hilaire Belloc (1870 - 1953), por exemplo), ou então estaremos satanicamente a favor do pesadelo materialista. Qualquer visão de mundo que não se identifique integralmente com um dos pólos supracitados, como toda sorte de teologia protestante, o liberalismo ou o socialismo fabiano, não passa de repulsiva manifestação de hesitação timorata frente ao confronto essencial que nos envolve. 

Malgrado certos elementos de sua teologia política sejam compartilhados por alguns autores de esquerda da mesma época, como o gravurista e poeta inglês William Morris (1852 - 1942), nostálgico das tradições de vida comunitária do medievo, e o escritor e militante anarquista alemão Gustav Landauer* (1870 - 1919), que descrevia o mundo capitalista como um universo corrompido e decadente, “de uma sinistra feiúra”, Eliot se inscreve na linhagem conservadora que já mencionamos, de que também fazem parte autores tão díspares quanto Charles Maurras (1868 - 1952), G.K.Chesterton (1874 - 1936) ou Ezra Pound (1885 - 1972), isto é, na esfera dos que deploram os horrores da modernidade capitalista mas não advogam uma via de superação revolucionária para a mesma; é melhor, pois, encarar como irreversível a decadência do Homem, nos diria Eliot, que imaginá-lo operando exclusivamente ao sabor de sua orgulhosa autoconsciência, de todo alheia aos desígnios salvíficos da Providência. Há, portanto, plena consciência do capitalismo como “desencantamento do mundo” (Weber), mas já não se crê na possibilidade de ‘reencantá-lo’ (o que só poderia ser logrado, em parte, por meio da criação artística) através de um improvável regresso ao orbe integrado e harmônico da cristandade medieval. 

A despeito do significativo orbe de talantes, conceitos e propósitos que as separam, há uma evidente e nítida confluência entre utopias ‘regressivas’ e ‘progressivas’, de que modo que não é descabido especular sobre a viabilidade de um cenário quiçá quimérico, mas que nos é muito caro: a formulação de um ecumenismo político-teológico anticapitalista, capaz de contemplar a um só tempo o ‘ontem’ e o ‘amanhã’.



* Landauer também acalenta, vale sublinhar, grande nostalgia da cristandade medieval: “a cristandade, com suas torres e seteiras góticas (...) com suas corporações e fraternidades, era um povo no sentido mais poderoso e mais elevado da palavra: fusão íntima da comunidade econômica e cultural com o laço espiritual". Ou seja, há também, e isto é sumamente interessante em se tratando de um autor de esquerda, o desejo pelo retorno a uma concepção de sociedade unitária, una, harmônica, onde todas as esferas estão integradas sob a égide de um sentido maior.

Centro de Estudos Multipolares - O que é o Brasil? O Brasil Visto à Luz da Quarta Teoria Política

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Texto produzido pelos membros do Centro de Estudos Multipolares para publicação na revista Katehon



O que é o Brasil? Qual é sua identidade? Há algo como uma nação ou povo brasileiro? Há apenas um Brasil ou vários “Brasis”? Estas são as questões fundamentais que se abrem ao horizonte de qualquer dissidente brasileiro no século XXI. São os problemas propedêuticos que devem ser confrontados antes de se querer embarcar em qualquer projeto político-civilizacional que envolva o Brasil. Porque poucos temas são mais centrais nessa era crítica – que é a da pós-modernidade – do que o da identidade. 

Poderíamos seguir a sugestão do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro que, em sua obra clássica O povo brasileiro (1999), postulou pelo menos quatro brasis: o crioulo (afro), o caboclo, o sertanejo, o caipira e o austral/sulino (gaúchos e gringos) – mas poderíamos ainda, superando sua classificação, falar também de um Brasil litorâneo, interiorano, rural, ameríndio, quilombola, barroco e, inclusive, de um Brasil metropolitano-cospomolita, onde o liberalismo é difuso e onde o modo de produção capitalista, mesmo em seu estágio financista (DUGIN, 2010), encontra-se já consolidado. Fato é que, seja do ponto de vista étnico-racial, seja da perspectiva étnico-geográfica, a composição identitária do Brasil dificilmente poderia ser posta em termos homogêneos ou homogeneizadores – parafraseando o dito de Carl Schmitt, o Brasil não é um universo político, mas um pluriverso. 

193 anos de história política independente, no entanto, não foram suficientes para dar respostas satisfatórias para as questões levantadas acima: eis aí um dos cernes da grande dificuldade em se constituir um projeto civilizacional, aqui, na América Portuguesa. O Brasil, nos últimos dois séculos, já passou pelas mãos de líderes, partidos e facções que representaram, em maior ou em menor grau, todas as três grandes teorias políticas da modernidade (liberalismo, socialismo e nacionalismo, segundo Dugin), e apesar dos variados pontos positivos e negativos distribuídos entre os modos como estas governaram o país, tudo o que foi feito, até então, mostrou-se insuficiente do ponto de vista da multiplicidade identitária que constitui a nação brasileira desde seus primórdios.

E mais: tudo o que foi construído pelos líderes prévios do Brasil, enquanto projeto civilizacional, o foi a partir de algum tipo de simulacro, de paródia. As elites brasileiras das três teorias políticas tentaram impor, verticalmente, algum tipo de visão “ideal” do Brasil. Tentaram construir uma identidade moderna a partir de mistificações, falsificações e superficializações. Mas quando se tenta construir um projeto a partir de um simulacro abstrato de identidade, sobretudo em um território povoado por comunidades dos mais diversos grupos étnicos, raciais, culturas e religiosos, em vários graus de mistura, muitos dos quais organicamente estruturados há gerações, ocorre o inevitável: aniquila-se a diversidade interna em prol de um paradigma oficial, cuja finalidade é “unificar a nação” em um projeto estatal, desenhado por intelectuais desenraizados e, nesse sentido, meros agentes do nomadismo parasitário das elites globalistas e cosmoliberais. 

Todas as três teorias políticas da modernidade são culpadas, em algum grau, da corrosão das comunidades tradicionais brasileiras: o governo varguista, maior representante da 3a Teoria Política no Brasil (3TP), por exemplo, queimou publicamente diversas bandeiras estaduais, suprimindo as identidades regionais em nome de uma suposta unificação nacional, em sua Campanha de Nacionalização; reprimiu ferozmente as colônias germânicas, inclusive, limitando o uso público da língua alemã (ROST, 2008) (WERLE, 2003). Promoveu ainda uma noção vaga e ambígua dos ameríndios como portadores da “verdadeira brasilidade”, opondo estes aos migrantes europeus, mas resguardando um destino comum a ambos – ora, o projeto varguista tinha como prerrogativa a ideia de que próprios povos ameríndios deveriam, futuramente, ser integrados à “nacionalidade brasileira”, abdicando das suas condições aborígenes originais (GARFIELD; COLLEGE, 2000, p. 18). E, a despeito do desenvolvimento econômico e de uma posição desalinhada em relação às potências plutocráticas do mundo, o varguismo, além do que já foi exposto, também pôs o Integralismo e outros movimentos de Terceira Posição na ilegalidade. 

Com a morte de Vargas, abriu-se espaço para governantes vendidos e alinhados com o atlantismo, numa sucessão de fracassos e de desestabilização que culminou com a queda do breve regime Nacional-Trabalhista de João Goulart (o Jango) e com o golpe militar de 1964, cuja violência repressiva era justificada com base em uma suposta revolução comunista que poderia ganhar espaço no país e que, portanto, legitimava seus ditames autoritários.

Apoiado em seu início pela CIA, o governo militar brasileiro fundamentou-se no anticomunismo e patriotismo burguês-chauvinista. Quanto à política externa, no final do regime, é verdade que houve, por motivos pragmáticos, uma relativa diversificação de parceiros intrnacionais buscando aliança com nações não-alinhadas, principalmente durante o governo do General Geisel nos anos 1970. Porém, no plano interno, o regime militar brasileiro não ofereceu um destino  promissor às comunidades orgânicas: pela via da repressão e do genocídio, indígenas das mais diversas etnias foram massacrados: Pataxós da Bahia infectados propositalmente pelo vírus da varíola, os Krenak do Maranhão tendo seus modos de vida arcaicos e tradicionais vinculados a patologias mentais e enviados em massa para reformatórios manicomiais pelos motivos mais torpes, etc etc. 

No plano da 2a Teoria Política (2TP), a questão identitária pode ser posta em outros termos. Grande parte da dificuldade em estabelecer uma identidade brasileira reside no fato de que as alianças geopolíticas do Brasil estabeleceram-se com grupos e nações que pouco têm em comum com nosso próprio destino histórico, como as nações anglo-saxãs (em alianças sempre desvantajosas), na mesma medida em que negligenciaram os laços hispano-ibéricos e latino-americanos. A identidade de uma nação está intimamente relacionada à identidade continental, e, de modo evidente, o Brasil configura-se a partir de uma síntese dual entre os países ibéricos (Espanha e Portugal) e as nações indígenas latino-americanas. Temos laços naturais muito mais fortes com essas nações do que com os anglo-saxões. 

Do ponto de vista das várias possibilidades de uma integração do próprio Brasil (ou dos diferentes Brasis) em um bloco supranacional, teríamos, assim, a proposta bolivariana, representada pelo projeto de Hugo Chávez acerca da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), projeto que potencialmente integraria o Brasil em um grande espaço pautado no antiamericanismo, no socialismo autóctone latino-americano e nas culturas locais de matiz indígenas e católicas.

Potencialmente, poderíamos ainda falar de uma integração continental entre todos os países da América Latina, tal como idealizada por Norberto Ceresole e por Alberto Buela (BUELA, 1999) ou até mesmo de outros projetos, como uma solução hispânico-imperial, baseada na reconstituição do Império de Filipe II e na pretensão de combater, ou até mesmo extirpar definitivamente, a influência inglesa no mundo ou pelo menos nesta parte do orbe (o Império versus o imperialismo, diria Evola). 

Em suma, independentemente do conteúdo político específico de cada proposta integracionista, a união continental e o reforço dos laços econômicos e políticos com as nações alternativas (especialmente com os regimes assistêmicos e antiimperialistas) significa, para o Brasil, não somente a sobrevivência econômica, mas a própria sobrevivência identitária.  

Entretanto, retomar e construir os laços identitários com estes dois grandes espaços exige uma ação de rompimento com o modelo geopolítico atual, o que requereria, primeiramente, agentes político-ideológicos capazes de levar esses potenciais projetos adiante, a despeito das interferências estrangeiras. Não dispomos, no momento, de tal instrumento político. O mais próximo de realizar essa tarefa, na atualidade, foi o Partido dos Trabalhadores (PT), de matiz social-democrata, único projeto de poder coerente em nível de 2TP no Brasil, mas que, sobretudo nos últimos tempos, adotou uma política de conciliação e acabou estabelecendo sua estrutura de ação através do comprometimento com as grandes oligarquias financeiras.

O grupo do BRICS, o qual justamente nos forneceria uma alternativa à clássica aliança com o bloco anglo-saxão, não foi ainda devidamente explorado pelo Brasil. A predileção pelas relações com os EUA mantém-se enquanto o BRICS permanece como escolha secundária. A manutenção dessa linha de política externa vem acompanhada de dois sacrifícios: o primeiro é o da própria emancipação econômica e produtiva; o segundo, o da perda gradativa da identidade cultural, substituída por uma cultura artificial de massas, alheia, externa, imposta, que se manifesta como violência étnica.

Nos últimos quatro anos do governo de Dilma Rousseff, por exemplo, os assassinatos no campo cresceram exponencialmente: lideranças indígenas, camponeses e até líderes religiosos locais tem sido mortos, nas áreas rurais do país, por latifundiários e pistoleiros (CANUTO; LUZ; COSTA, 2014). A taxa de suicídio entre as comunidades indígenas encontra-se hoje acima de média nacional – indicador que está diametralmente relacionado com a anomia, com a industrialização massiva de suas áreas e com a alienação da Terra, ou seja, é um problema de natureza identitária. Tudo isso ocorre sob os auspícios do projeto desenvolvimentista e tecnocrático adotado pelo atual governo de 2TP, que, na prática, consiste em desalojar comunidades regionais de suas moradias em prol da construção de indústrias e hidrelétricas.  

E quanto à 1a Teoria Política (1TP)? Ela teve seu auge no Brasil nos anos 1990 durante o curto governo de Collor (cassado), seguido pelo governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (FHC), estadista plutocrata que privatizou uma parte significativa dos setores econômicos nacionais e que tinha relações tênues com os órgãos deliberativos do globalismo – o Clube Bildeberg, a CIA e as fundações ligadas ao capital filantrópico, tais como a Fundação Ford, relações essas apropriadamente narradas pela historiadora britânica F. Stonor Saunders em seu Who Paid the Piper?. Durante esse período, a Política Externa esteve condicionada a uma visão estritamente economicista, seus defensores argumentando que o Brasil deveria reconhecer a hegemonia econômica dos países capitalistas avançados, como os EUA, o Japão e a Europa Ocidental. Assim, dever-se-ia construir uma sólida relação com estes países, pois seus mercados seriam essenciais para absorver as exportações brasileiras e seus capitais fundamentais para investimento na economia nacional. 

Porém, o processo de privatizações, reformas estruturais e o cumprimento de agendas internacionais, como a assinatura do Tratado de Não-Proliferação Nuclear em 1998 e a aceitação do projeto norte-americano de instituição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) teve graves consequências: o baixo retorno financeiro internacional, a desnacionalização da economia, o aumento do custo de vida, desemprego e desigualdade social. Foi, aliás, esse quadro geral que abriu espaço para a emergência no Brasil de forças políticas e ideológicas carregadas de uma verve “nacional-desenvolvimentista” que advogavam uma política intensa de justiça e inclusão social. Foi nesse contexto que se deu a vitória eleitoral do já citado PT (presidente Lula em 2002, seguido por Dilma Rousseff do mesmo partido). 

Nosso objetivo, aqui, não é nada mais que o de corrigir o velho erro luso-brasileiro de preferir o domínio alienígena anglo-saxão/atlantista ao mesmo tempo em que nega a sua raiz ibérica, constante histórica que pode se ver em episódios como a Revolução de Avis e seu clímax na batalha de Aljubarrota, na qual prevaleceram os interesses da burguesia mercantil apoiada pelo Papa sobre a facção pró-espanhola, ligada à aristocracia. Note-se que era a Espanha (aliada à França), nesse momento, o reino de caráter mais feudal e a vitória da aristocracia teria sido um duro golpe para a classe mercantil. França e Espanha, em termos geopolíticos, representavam a Terra em contraposição ao Mar (Inglaterra, no caso tendo cooptado Portugal). Tal conflito pode ser lido sob a ótica do conflito espiritual entre guelfos e gibelinos, descrito por Julius Evola.

 Tais episódios fazem parte do processo histórico que fez de Portugal um dos primeiros Estados modernos da Europa, Estado esse que fundou um império ultra-marítimo. É essa Portugal que é cantada, em suas contradições, por poetas como Gil Vicente e Camões; uma Portugal dupla: nação das tradições, cristã, heróica e conquistadora e, por outro lado, nação moderna, mercantil e talassocrática. Nação profunda e nação burguesa. Uma gerou a Terra de Santa Cruz. A outra, o pau-brasil.

Aparentemente, prevaleceu por aqui a falsa Portugal, a Portugal inglesa. É nessa última que a nascente nação brasileira, feita em Império, espelhou-se ao trilhar o caminho do endividamento com a Casa dos Rothschild quando buscava financiamento para esmagar as revoltas regionais no período da Regência; ao, juntamente com Albion, travar a guerra com a nação irmã paraguaia e ao massacrar a comunidade camponesa católica de Canudos, batizando com esse sangue a nascente República.

Tal é o saldo de séculos de guerras fratricidas no contexto do processo histórico da nossa construção da modernidade para forjar uma identidade nacional iluminista. O custo dessa empreitada colossal traduz-se na idéia de atraso, eclipse histórico: uma nação que poderia ser a Heartland contrahegemonica, pólo de um levante latino católico e contrarrevolucionário que abalaria as fundações do mundo moderno. Mas assim não foi.

Existe o projeto, nunca realizado, de um Brasil moderno, para inglês ver, no dizer popular. E existem ou jazem, no estratos profundos, vários Brasis reais, enclaves ou ilhas. O pensamento social e as classes dirigentes constroem discursiva e juridicamente o primeiro, por cima das forças arcaicas dos Brasis profundos –  pluriverso de sertões nordestinos, pampas, ribeirinhos amazônicos e Cerrado, rodeados por cidadezinhas rurais, cidades litorâneas, metrópoles e megalópoles. Essa configuração forma uma teia hierarquizada que é a face contemporânea do Brasil arqueomoderno, no dizer duguiniano. Quais caminhos se vislumbram? 

Um possível caminho a ser traçado com base na multipolaridade necessariamente levará em conta alternativas como o já citado grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O BRICS diz respeito não apenas a brasileiros, russos etc, como concerne a todas as pessoas do mundo. Aqui é necessário um pensamento geopolítico.

Se, como vimos, as características identitárias brasileiras necessitam, para sua sobrevivência, de ação, praticidade e de um projeto político, não é menos verdade que tais coisas necessitam de uma referência que as guie. Há uma interdependência entre sobrevivência identitária e projeto político, projeto esse que requer algo no qual se pautar – o “interesse nacional’’. O termo, consagrado na literatura geopolítica, pode parecer vago ou insuficiente para nossos propósitos, mas a missão da geopolítica reside basicamente em produzir uma leitura fiel do interesse nacional, ou em outras palavras, apreender a essência da população com a qual lida, para que esta essência aponte os rumos que as políticas interna e externa devem traçar. 

No campo da política externa, a construção de um mundo multipolar coloca-se assim como o grande parâmetro a ser buscado. A multipolaridade, em termos geopolíticos, pode fornecer maior estabilidade ao sistema internacional, uma vez que o equilíbrio na balança de poder faz com que ataques sejam altamente custosos a quem ataca (em razão da possibilidade de contra-ataques igualmente poderosos). Entretanto, a estabilidade do sistema internacional não é, em si, a única razão para a busca de tal parâmetro, já que é possível argumentar que um mundo bipolar poderia ser igualmente estável, pois também conteria o equilíbrio de forças. Dessa forma, a peculiaridade que o mundo multipolar fornece é que esse equilíbrio de forças ocorreria ao mesmo tempo em que um certo número de pólos de poder manteriam sua soberania e autonomia, isto é, manter-se-iam fiéis a real essência de sua população (DUGIN, 2012).

Assim, a construção da multipolaridade significa, para o Brasil, independência e autonomia em um mundo estável, algo um tanto diferente daquilo que foi vivenciado na Guerra Fria, na qual se podia até admitir existir uma certa estabilidade no sistema internacional, porém a real autonomia e independência brasileira estavam, naquele período, cerceadas pelos EUA, potência que definia de fato os parâmetros de ação do mundo ocidental. Um mundo multipolar oferece ainda uma maior disponibilidade de opções para forjar alianças, acordos, tratados e arranjos internacionais, o que aumentaria o poder de barganha brasileiro, permitindo que o Brasil se encaixasse nos arranjos que melhor refletissem seu interesse nacional.

A semente de uma projeção rumo à multipolaridade na Política Externa brasileira foi lançada a partir do governo do presidente Lula do PT (2003 – 2010).  Os  princípios que guiaram a política do PT remetem àqueles do início dos anos 1960, nos governos dos presidentes Jânio Quadros e do esquedista João Goulart (“Jango”); retomados, note-se, na fase madura do mesmo regime militar que depôs Jango, no governo do presidente Ernesto Geisel nos anos 1970 (Gonçalves, 2010). 

Na busca brasileira por um mundo multipolar exece papel fundamental o já citado grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que surgiu com um caráter bastante informal. Foi citado inicialmente em um estudo do economista Jim O’Neill como o próximo grupo de países a ter grande ascensão econômica e aos quais seria interessante agruparem-se a fim de coordenar seus objetivos comuns.  É digno de nota que a iniciativa de criação do grupo de caráter informal BRIC (que deu origem ao BRICS) partiu em grande parte da Rússia e Brasil, como relata o então chanceler do Brasil Celso Amorim.

O primeiro ponto a se destacar é o status que o BRICS projeta internacionalmente. Os países membros do BRICS vêem-se e projetam-se como potências emergentes. Não como futuras potências imperialistas, que teriam como único objetivo ganhar poder, e sim como representantes de boa parte das reivindicações do Sul geopolítico. Nesse espírito, uma das metas do BRICS é criar alternativas ao modelo das instituições financeiras internacionais, tais como o Fundo Monetário internacional (FMI) e o Banco Mundial (COOPER e FARROQ, 2015). O status internacional que o grupo dos BRICS fornece permite que se crie um contraponto à ordem vigente; que exista uma opção a qual o mundo de menor desenvolvimento possa apoiar como projeto de uma nova ordem internacional. 

A ordem vigente, formada pela relação de poderes do pós-segunda guerra mundial, é uma ordem caduca, não mais capaz de representar a real distribuição de forças do mundo atual. Assim, embora o BRICS ainda não advogue o rompimento com tal ordem, busca uma reforma que traga mais justiça aos países emergentes e em desenvolvimento, adquirindo assim também forte importância simbólica – importância essa que cada vez mais deixa de ser somente simbólica para transformar-se em uma liderança real na busca da multipolaridade.

A informalidade dos BRICS, poder-se-ia alegar, representaria uma fraqueza em sua solidificação. Porém, como argumentam Cooper e Farooq, essa fraqueza pode, em verdade, ser sua força. O caráter informal é justamente a maleabilidade que permite que o BRICS não seja obrigado a tratar de todos os temas, tendo maior enfoque nos objetivos em comum. Se se tentasse incialmente tratar as mais diversas pautas em uma estrutura rígida e formal, tornar-se-ia um tanto difícil alcançar consenso e cooperação. A informalidade abre espaço para unir esforços nos pontos de convergência, respeitando o tempo necessário para que se alcance maior formalidade conforme a consonância de interesses aumente. Ao mesmo tempo, o pequeno quadro de membro do BRICS torna mais dinâmica a construção do consenso (COOPER e FARROQ, 2015). Se é verdade que mesmo entre 5 países coordenar ações não é tarefa fácil, em um grupo que fosse formado por um número muito grande de países, seria de se esperar que houvesse lentidão e imobilidade de ações, pois as divergências seriam extremamente trabalhosas e tomariam muito tempo para se resolver. 

Contudo, é preciso lembrar que o pequeno número de membros não significa a exclusão dos países não membros. Na cúpula de Fortaleza foi explicitada a intenção do BRICS de ter relações cada vez mais sólidas com a América do Sul, África e Ásia de maneira geral. Dessa forma, é razoável pensar que os BRICS podem fazer um papel de ponte e coordenação de diversas organizações Sul-Sul, tais como Mercosul, Unasul, União Econômica Eurasiática, Organização para Cooperação de Xangai (SCO) e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). De qualquer forma, não há razões para rejeitar a ideia de inclusão de novos membros, pois conforme o grupo se solidifica e vive uma nova realidade, abre-se espaço para novas possibilidades. O BRICS pode vir a ser uma das pedras fundadoras de uma nova ordem internacional.

Finalmente, é importante ressaltar o grande salto que foi dado pela formação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do BRICS. O NBD, após algumas disputas internas (como a da China e Índia em busca da sede do banco), finalmente está em processo de conclusão e terá um capital inicial de 50 bilhões de dólares, buscando financiar projetos de engenharia pesada no mundo em desenvolvimento (BRICS. ITAMARATY, 2014). O banco tem uma estrutura de poder equitativa e busca ser uma opção para diminuir a dependência das fontes tradicionais de financiamento, demonstrando intuito em atender também países não membros. Além disso, formado pelo BRICS, o Arranjo de Contingente de Reservas (no montante de 100 bilhões), permite uma maior estabilidade, estabelecendo-se como um instrumento para lidar com crises de liquidez, muitas vezes oriundas dos EUA e Europa. 

A posição brasileira nesse processo é um tanto peculiar. O Brasil está em posição sensível para tratar da relação dos BRICS com a América Latina, ou, em outros termos, dar sustentação para a forma com que a América Latina enquadrar-se-á nessa nova ordem que anseia pela multipolaridade, pela autonomia e pelo respeito às identidades. 

Na esfera da política interna, o cenário político brasileiro neste início do segundo mandato da presidente Dilma Roussef (do PT) tem sua estabilidade comprometida de uma forma não vista desde os anos 90. As dificuldades de Roussef tiveram início já antes do último pleito e, tendo vencido por uma margem apertada o candidato do neoliberal Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a presidente se deparou com uma situação bastante delicada: uma base que vinha gradualmente se rebelando, um Congresso hostil, os efeitos da crise finalmente se fazendo sentir no Brasil e sucessivos escândalos de corrupção envolvendo o seu partido, exaustivamente anunciados de bom grado pela mídia mainstream, são algumas das preocupações que rapidamente se lançaram sobre o governo empossado.

Na tentativa de tranquilizar os ânimos, Roussef já começa o mandato em flagrante contradição com o discurso usado em campanha, nomeando uma conhecida defensora dos interesses da Monsanto no país e representante da criminosa oligarquia rural como Ministra da Agricultura (Kátia Abreu – PMDB), e ninguém menos que Joaquim Levy como Ministro da Fazenda – doutorado em Chicago, durante sua atuação no FMI, entre 1992 e 1999, Levy foi um dos arquitetos dos programas de austeridade que levaram nações como Espanha, Portugal e Irlanda para o buraco na década seguinte. Seguiu-se uma série de medidas impopulares, como o ajuste fiscal que cortou bilhões em verbas públicas de diversos setores para alimentar o saco sem fundo da dívida pública, garantindo lucros recordes aos banqueiros.

A conciliação da elite do PT (2TP) com os interesses dos bancos e do capital especulativo internacional exemplifica como o Brasil aproxima-se da fase pós-liberal de sua história, confirmando os prognósticos de Dugin no livro "A Quarta Teoria Política" e comprovando os fenômenos e processos histórico-ideológicos descritos na obra.

De qualquer forma, o establishment e interesses atlantistas não estão plenamente satisfeitos. O PT continua lhes causando alguma desconfiança e, com a polarização das últimas eleições, estiveram perto demais de otimizar as condições políticas para execução de suas intenções por aqui. Além disso, as manifestações massivas ocorridas em junho de 2013 mostraram que existe terreno fértil no Brasil para uma manobra mais arriscada, de forma que no momento atual assistimos, não sem algum assombro, à escalada do golpismo da direita liberal. 

O descontentamento com relação ao governo Dilma (governo que, note-se, conta com Levy conduzindo a economia) está presente em amplos setores: dos votantes de Aécio Neves, candidato psdbista derrotado, às esquerdas, dos sindicatos e trabalhadores desiludidos com as políticas de arrocho aos acadêmicos que tiveram seus programas de bolsa cortados; de modo que são relativamente poucos os que ainda se dispõem a sair em defesa do governo. 

Buscando instrumentalizar essa insatisfação geral, movimentos liberais recém-surgidos e devidamente financiados por organizações americanas como a  Atlas Network e a rede dos irmãos Koch, espalham ostensivamente propaganda anti-petista por meio das redes sociais visando trazer as pessoas às ruas para pedir a saída de Roussef. O que se vê são manifestações despolitizadas “contra a corrupção” ou ainda a reação da classe média a uma propaganda conspiratória construída, segundo a qual todas as nações latino-americanas que têm se engajado num esforço contrahegemônico seriam, na verdade, parte dum movimento comunista mancomunado com a esquerda internacional e com a promoção de agendas contra a família e religião. O irônico é serem justamente os EUA os principais promotores internacionais de tais movimentos e das revoluções coloridas como mecanismo de homogeneização econômica, social e cultural, impondo valores ocidentais (Huntington) como padrão ideal.

A verdade é que é natural a insatisfação popular com as lideranças petistas. É fato que nos tempos do presidente Lula houve vários avanços, como uma política externa que colocou o Brasil em uma posição de mais soberania e ainda melhorias significativas para a população mais pobre, com a implantação de programas sociais. Rousseff, sua sucessora, não logrou aprofundar esses pontos e foi forçada a ceder terreno. O Brasil continuou acomodado em seu lugar de exportador de commodities, sem grande esforço para o fortalecimento da indústria, nenhum projeto educacional e cultural que provesse a nação de sentido próprio, grande descaso com a defesa nacional e, além disso, a servidão aos mercados e aos credores só fez alimentar ainda mais a sanha destes. O plano educacional proposto pelo governo de Rousseff consiste basicamente na promoção do American Way of Life como paradigma de construção de nação.A grande obra dos governos de Lula e Rousseff, afinal, é a sua contribuição para a construção do Banco do BRICS. Essa ficará para a posteridade.

Diante disso, a principal questão que se coloca para nós brasileiros é determinar que instrumentos restam para permitir uma interpretação mais autêntica e orgânica do Brasil e lançar as bases para um projeto civilizacional que não padeça das mesmas vicissitudes de todos os projetos nacionais prévios? Pensamos que poucos países precisam tanto dos instrumentos gnoseológicos da 4TP quanto o Brasil. A busca pela concretude presente e orgânica de cada povo (ethnos, narod, Dasein/Mitsein) como sujeito político é o que permitirá estabelecer o Brasil como uma casa de vários povos, várias nações interligadas, organicamente coligadas, mas, contudo, autônomas. Unidade na multiplicidade – pluralidade para um destino comum. Separação voluntária em um espaço comum. No mesmo espírito em que escreve Julius Evola acerca da necessidade de uma Jihad interior e uma Jihad exterior, o Brasil precisa de uma luta interna contra uma forma de imperialismo cultural que nasce dentro do próprio país e busca padronizar e nivelar todas as culturas que habitam este território. O Brasil, em suma, precisa de uma multipolaridade interior. E essa luta interna pelas identidades dos povos é a condição de possibilidade que permitirá ao Brasil situar-se também perante os outros povos do mundo como baluarte e exemplo das múltiplas possibilidades da 4TP, bem como de sua superioridade sobre as três teorias políticas modernas anteriores. 

Aleksandr Dugin - Por Que Lutamos na Síria?

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por Aleksandr Dugin



Em 31 de outubro de 2015, o avião civil russo Airbus A321, vôo 7K9268, vindo do resort egípcio Sharm el-Sheikh para São Petersburgo, caiu na Península do Sinai. Todas as 224 pessoas a bordo morreram. Quase todas eram cidadãs russas. O avião esteve no ar por apenas 20 minutos antes de cair. A organização terrorista "Estado Islâmico" (ISIS) reivindicou responsabilidade pela queda imediatamente após o desastre. Os "Soldados do Califado conseguiram atingir alvejar um avião russo na província do Sinai", o grupo declarou. Mais de 220 "cruzados" a bordo foram mortos. O ataque foi um ato de vingança contra a intervenção militar russa na Síria. Especialistas em relações internacionais russos descartaram que tivesse havido um "disparo", mas investigadores creem que uma bomba teria detonado dentro do avião e causado a queda.

A organização terrorista "Estado Islâmico" já havia declarado guerra à Rússia ano passado. E, sendo uma organização terrorista, o ISIS mata civis e se diverte com a morte de civis. Matar civis é a essência do terrorismo. Terroristas matam civis para atingir um objetivo político. Isso também corresponde à natureza do "Estado Islâmico" que nada tem a ver nem com o Islã nem com um Estado. Afinal, a morte de civis inocentes é inaceitável para um muçulmano devoto. Porém, a morte de civis é o preço que a Rússia terá que pagar hoje e, provavelmente, no futuro por sua ajuda militar à Síria. Os terroristas do "Estado Islâmico" veem todos os russos como inimigos - não apenas os militares deste país. Nas redes sociais, certos comentaristas ocidentais também expressaram abertamente seu prazer com a queda do avião.

Mas por que a Rússia fornece ajuda militar à Síria? Primeiro, este é um conflito geopolítico. O front entre atlantistas e eurasianistas passa pela Síria. Após o colapso da União Soviética, um vácuo político foi criado no Leste e no Oriente Médio também. Ali, os EUA perseguiram um projeto focado em destruir Estados nacionais - batizado de "O Grande Projeto do Oriente Médio". Eles destruíram até Estados que haviam se comportado de forma mais ou menos leal para com Washington. Os EUA criam caos para se projetarem como potência hegemônica. Na década de 90, a Rússia era fraca e não reagiu, mas no início do novo milênio, ela lentamente começou a se recuperar. Hoje, Vladimir Putin decidiu se opor ativamente à política americana de caos no Oriente Médio. A ajuda militar da Rússia contra o terrorismo na Síria pode ser vista como um ato de geopolítica eurasianista. A Síria está localizada no centro da batalha entre os representantes de uma ordem mundial unipolar (EUA) e uma ordem mundial multipolar (Rússia).

Mas além disso, precisamos perceber o "Estado Islâmico" como uma ameaça direta à Federação Russa. Esta organização terrorista é um produto da política americana criada para espalhar caos e dar aos EUA - a qualquer momento - um modelo para sua própria intervenção militar, como se pode ver pelo exemplo da Síria. Porém, o "Estado Islâmico" não está presente apenas na Síria e no Iraque, mas também na Ásia Central. Gangues terroristas - que possuem os mesmos financiadores e a mesma ideologia que o "Estado Islâmico" na Síria e no Iraque - também estão ativas no Afeganistão, Tadjiquistão e Uzbequistão perto das fronteiras russas. Estes grupos também operam no norte do Cáucaso dentro da própria Federação Russa. Vladimir Putin entende muito bem que isto é sobre criar condições caóticas usando o "Estado Islâmico" e grupos terroristas similares na Ásia Central e no Cáucaso.

A lógica por trás da intervenção militar russa é, portanto, clara. Se não contivermos o terrorismo criado e apoiado pelos EUA na Síria, nós logo teremos que enfrentá-lo em nossas próprias fronteiras e até mesmo em nossa terra. A Síria é nossa linha externa de defesa. A próxima linha existe no território da União Eurasiana e mesmo dentro da Federação Russa.

Ademais, a intervenção militar russa na Síria, em contraste à, assim chamada, "campanha antiterrorista" liderada pelos EUA, é absolutamente legítima. Moscou opera em sintonia com Damasco, pelo que o governo sírio oficialmente pediu apoio russo. A Força Aérea Russa está trabalhando com o Exército Sírio, enquanto os ataques americanos ocorrem contra a vontade e apesar dos protestos do governo sírio. O Dr. Bashar al-Assad é o presidente legítimo e eleito da Síria, apoiado por mais de 50% da população síria. Isso significa que na Síria nós combatemos ao lado de nossos aliados sírios contra a expansão do "Estado Islâmico".

Devemos ter em mente o que o colapso total da Síria significaria. Isso levaria automaticamente ao colapso de todos os outros Estados muçulmanos na região; mesmo o norte da África seria completamente lançado no caso, como já vimos acontecer na Líbia. Nós podemos, portanto, falar em uma reação em cadeia ou efeito dominó no evento de um colapso da Síria. Isso, por sua vez, significaria que milhões de refugiados e migrantes marchariam para a Europa, porque não haveria mais futuro para essas pessoas no caos total.

O caos criado pelos americanos é assim dirigido não apenas contra o Oriente Médio e a Ásia Central, mas também contra a Europa. Quanto mais caos e desordem no Oriente Médio e no norte da África, mais migrantes irão para a Europa. Isso, por sua vez, levará à desestabilização da infraestrutura social e, portanto, à paralisia política no continente europeu. E aqui nós não devemos esquecer que milhares de terroristas entram na Europa como parte do processo migratório. Caso esta tendência continue, e com a chegada futura de 10, 20 ou mesmo 30 milhões de imigrantes vindo à Europa, isso significaria o fim da Europa. O continente europeu não seria "islamizado" per se, nem um "Califado" seria construído, mas ao invés a Europa afundaria no caos total e seria aniquilada.

Hoje, a Rússia está lutando contra este desenvolvimento, o que também está no interesse da Europa. A Rússia precisa da Europa, e a Europa precisa da Rússia. O colapso da Europa é ruim para a Rússia, e a mesma noção se aplica inversamente, mesmo que isso não seja aceito por muitos governos europeus hoje, que trabalham até contra. Também há algo de continuidade histórica: no passado, a Rússia viu a Europa como um escudo contra o expansionismo turco otomano. A Europa afundando no caos automaticamente significava a Rússia ser ameaçada em suas fronteiras ocidentais e sulistas. Daí, a proteção da Europa está nos interesses da Federação Russa. Para preservar a Europa de cair no caos, hoje a Rússia é o escudo do continente europeu.

Portanto, a Rússia está lutando na Síria em vários níveis: estamos ativamente liderando a luta contra as aspirações globais e hegemônicas dos EUA; estamos protegendo nossos próprios interesses de segurança nacional e eurasiática combatendo os inimigos antes deles se aproximarem de nós; estamos preservando a Europa antes de seu declínio porque tal desenvolvimento também seria danoso para nós.


Aleksandr Dugin - Os Ataques Terroristas em Paris: Lição de Enantiodromia

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por Aleksandr Dugin



Uma série de ataques terroristas em Paris que ocorreu na sexta-feira, 13 de novembro de 2015, pode ser, por muitas razões, um ponto de referência de um novo período da história europeia moderna. Se será ou não é uma questão em aberto, porque tudo depende de como estes eventos serão interpretados pela sociedade francesa e europeia, e que conclusões elas tirarão.

O desenvolvimento de eventos é já conhecido: em diferentes pontos de Paris um grupo bem organizado e coordenado de pessoas gritando fórmulas teológicas islâmicas (Allahu Akbar, etc.) começou a disparar contra civis sentados em bares e cafés naquela tarde que se preparavam para celebrar o fim de semana. Em conjunção, homens-bomba atacaram o estádio parisiense Stade de Paris, onde as seleções francesa e alemã jogavam uma partida de futebol. Ao mesmo tempo, um grupo de terroristas invadiu a casa de shows Bataclan onde um concerto da banda americana Eagles of Death Metal havia apenas começado, e começou a disparar contra a multidão, tomando-os como reféns. Como resultado, quase duzentas pessoas morreram e muitas outras ficaram feridas. O Estado Islâmico disse ser responsável pelos ataques terroristas.

Detalhes e versões do evento serão continuamente atualizados, mas é importante não apenas compreender a distinção, mas também descobrir seu significado.

"Islã" Sociedade do Espetáculo: Bem-Vindos a Nosso Show de Horrores

A organização terrorista ISIS é diferente de outras tendências do fundamentalismo islâmico moderno não apenas pelo escopo de atividade e sucesso em controlar grandes territórios no Iraque e Síria, por redes ramificadas em outros países islâmicos e sua coordenação eficiente, mas em primeiro lugar, por um grotesco arranjo de ações usualmente de natureza terrorista. Suas execuções de reféns são sempre conduzidas como uma peça teatral: a vítima veste o uniforme laranja, os executores cortando a cabeça e zombando do corpo perante a câmera. Operadores profissionais trabalham, luzes precisamente selecionadas e cenas chocantes e bem dirigidas superando filmes hollywoodianos como O Albergue ou vídeos snuff proibidos, onde a violência é real. Cristãos são crucificados em público. Monumentos antigos inestimáveis de culturas médio-orientais arcaicas que são valiosas para toda a civilização são impiedosamente esmagados. Homossexuais são arremessados de telhados e sua execução é cuidadosamente filmada. Mulheres e meninas capturadas são brutalmente estupradas e transformadas em escravas. Crianças de pouca idade são ensinadas a cortar a cabeça de seus ursinhos de pelúcia com uma faca. Novamente, tudo isso é filmado e metodicamente publicado na internet. Os porta-vozes do ISIS acrescentam em seus vídeos ameaças diretas e extremas contra todos os seus oponentes, prometendo que serão mortos, estuprados, desmembrados, escravizados, humilhados e pisoteados, e seu valor transformado em pó. Tudo isso baseado nas ideias islamistas clássicas de persuasão salafista, mas a teologia não parece para o ISIS como um aspecto importante: há algo de diferente em relação ao fundamentalismo islâmico clássico; é o Islã sociedade do espetáculo, um desprezível show de snuff islamista. Nada de pregadores tediosos, teólogos salafistas furiosos, apenas a escavadeira negra da indústria do entretenimento que adotou plenamente aqueles modelos criados pela cultura hollywoodiana moderna com pornografia e horror preponderantes, com todas as características de reality shows.

Isso distingue o estilo do ISIS. É um tipo de pós-modernismo; é o terrorismo fundamentalista pós-moderno. Ele possui mais traços em comum com a cultura visual ocidental do que com as sociedades religiosas tradicionais que o ISIS finge promover enquanto trava sua guerra. A religião é um instrumento, servindo a política, e ainda mais o entretenimento. O ISIS é em primeiro lugar um show, um show horrível. Parece ser exatamente o que os países ocidentais esperavam.

Os ataques terroristas recentes em Paris foram plenamente arranjados dessa maneira. Sexta-feira 13 é o preconceito comum da cultura moderna ocidental; é considerada uma data fatídica, portando má sorte. A série americana sobre o maníaco em uma máscara de hockey Sexta-Feira 13 tornou este portento extremamente notório entre a audiência de massa, a ponto de causar até mesmo o advento de um diagnóstico psiquiátrico específico, cada vez mais amplo, uma fobia da sexta-feira 13. Mas Sexta-Feira 13 só é assustador para pessoas ocidentais: americanos e europeus. Na cultura islâmica não há lenda similar. Não é sem propósito que a data dos ataques terroristas espetaculares foi escolhida assim, isso se encaixa perfeitamente na estratégia da Sociedade do Espetáculo. Você quer que nós te assustemos? Nós vamos fazer pra valer. É a lógica de qualquer filme de terror tentando fingir ser mais real. É difícil imaginar algo mais real do que terroristas cobrindo seus rostos, dirigindo ao redor das ruas de Paris na sexta-feira 13, iniciando sem fim de semana frívolo e disparando contra frequentadores de bares e cafés. É o maníaco fictício Jason Voorhees que veio até você, o homem que se afogou no acampamento Crystal Lake. O maníaco afogado que adotou o salafismo.

O que o ISIS queria dizer? O mesmo que nas ações grotescas anteriores. E o que é isso exatamente? O mesmo que toda a Sociedade do Espetáculo quer dizer: o pós-moderno não possui mais sentido, há apenas sentimentos, e se a sociedade só é provocada pelos sentimentos mais fortes, brutos e radicais como o medo animal, o terror da morte iminente, a queda súbita na situação de humilhação total, etc., pior para ela: nada pessoal, é apenas show business. Sangrento? Mas o que mais eles tem a fazer, se todos os sentimentos mais gentis não tocam mais as pessoas?

Como que as relações públicas sangrentas e o snuff perverso se relacionam ao Islã. Praticamente de maneira nenhuma. O ataque terrorista em Paris não possui uma única pista do conflito religioso ou do choque de civilizações. O ISIS é tão islâmico quanto Freddy Krueger ou Jeepers Creepers. É algo puramente hollywoodiano com um estilo perfeito, um reality show de terror da nova geração.

Enantiodromia do Oriente Médio

O pesadelo de Paris, porém, está inscrito na moldura geopolítica de referência, já que se trata de um episódio dos eventos que ocorrem no Oriente Médio. Há um caos sangrento em continuação, lançado com o apoio dos EUA e da Europa (incluindo a França) para derrubar os regimes estabelecidos da década passada. A derrubada e guerra civil resultante, que vem formalmente sob o slogan de "democracia em aprofundamento" segundo o plano americano do Grande Oriente Médio, foram abertamente anunciadas por Condoleezza Rice, Secretária de Estado dos EUA, em Tel Aviv em 2006. Tudo começou com a Primavera Árabe de 2010 e continua ainda agora. Durante aqueles processos lançados pelos americanos, às vezes acompanhados por invasão direta dos EUA ou de forças da OTAN no mundo árabe, uma série de conflitos políticos e religiosos sangrentos começou em diferentes países: Iraque, Líbia, Iêmen, Egito, Bahrein, Síria, etc. Neste jogo regional complexo os EUA, porém, não apostaram nas forças demo-liberais, que nem mesmo existem na região, mas em fundamentalistas islâmicos com quem a CIA e outras agências americanas de inteligência (em particular, a AID) haviam estado trabalhando desde os dias da Guerra Fria quando foram usados para combater regimes e partidos socialistas pró-soviéticos ou nacionalistas seculares (como o Baath, que governava antes do início dos últimos desenvolvimentos no Iraque e Síria, exatamente onde agora guerras sangrentas eclodem). O fundamentalismo islâmico tem seus principais centros na Arábia Saudita e no Qatar, onde as forças governantes são em geral pró-americanas, praticando uma versão extrema (salafista) de fundamentalismo islâmico (sunita). Forças similares são muito fortes no Paquistão e no Afeganistão.

Washington, portanto, usa o fundamentalismo islâmico para seus próprios interesses de aprofundar a democracia (que demonstra sérias contradições conceituais, que, porém, podem ser ignorados na era pós-moderna) e força seus "parceiros" (vassalos) europeus de vontade frouxa a fazer o mesmo. Mas mesmo com todas as inconsistências lógicas de tal política, é claro que o propósito dos EUA não pode ser o de pôr na cabeça do mundo árabe ou mesmo de todo o mundo islâmico islamistas radicais. Então aqui eis um efeito do pós-modernismo na geopolítica médio-oriental: os americanos, por um lado, apoiando e armando extremistas islâmicos para fazê-los destruir o sistema existente de governo, por outro lado, ativamente os demonizando, os representando como "criaturas diabólicas" e caricaturas sinistras (como a companhia de relações públicas do ISIS). Tal estratégia pode ser chamada de "enantiodromia", quando simultaneamente dois processos ativos e intensivos de direção oposta estão operando. A base americana e as ferramentas no Oriente Médio são coisas descritas simultaneamente por ambos como "puro mal".

A questão surge: por que isto é feito? Qual é o objetivo americano final? Essa questão possui o sentido mais importante para quem sofre pelo ataque terrorista em Paris, pelo menos para as poucas pessoas na França e na Europa moderna que ainda tem a habilidade de pensar racionalmente e sensivelmente. Agora eles estão sendo mortos impiedosamente em seu próprio território. Podemos perguntar o motivo? Qual é a razão?

Não há resposta evidente. A análise racional leva inexoravelmente à conclusão de que Washington, persistentemente e consistentemente usando sua própria enantiodromia geopolítica, não possui objetivo positivo. Os regimes que foram derrubados com o apoio dos americanos não representavam ameaça direta aos EUA em geral e costumavam concordar com Washington às vezes. Não havia necessidade urgente de os destruir de tal maneira. Especialmente quando a Síria de Assad ou a Líbia de Gaddafi eram muito mais próximas socialmente, culturalmente e axiologicamente dos EUA e da Europa do que os salafistas extremistas. Um fato deve ser reconhecido: os EUA não possuem objetivo positivo, e não são mais capazes de oferecer qualquer coisa ao mundo onde eles ainda são o pólo principal e o centro de poder, eles começam a exportar caos, massacres e guerra civil como um fim em si. Eles não estão interessados no que vai acontecer no futuro, mas no que está acontecendo agora. Isso significa que eles estão tão satisfeitos com o processo de enantiodromia que eles não buscam superar a contradição, mas estão dispostos a agravá-la, tornando o caos um ambiente natural. E neste ambiente, sendo normal, é possível apresentar certos objetivos táticos locais. Como os trotskistas foram ensinados sobre a "revolução permanente", a estratégia moderna de Washington adotou o conceito de "caos permanente". Não há objetivo a conquistar na nova guerra (às vezes chamada "híbrida"). O processo de garantir a guerra é o objetivo.

Os EUA combatem o ISIS da mesma maneira que combatem por ele e junto dele. A Rússia ainda segue ideias "ultrapassadas": ou um ou outro, ou a favor ou contra. Isso explica a política russa na Síria. Ela está lá para derrotar seu inimigo. Moscou não compreende ou não aceita a enantiodromia. A Rússia claramente está "atrasada" no pós-modernismo, se apegando à lógica clássica, inclusive na guerra e na política.

A Europa, incluindo a França, está em uma posição intermediária da geopolítica americana de caos no Oriente Médio. Por um lado, Washington obriga a Europa a seguir sua política (enantiodromia), por outro lado, o exemplo da Rússia, seguindo modelos mais clássicos de lógica, gera sobriedade e retorna as mentes de líderes europeus às questões usuais de objetivos, meios, causa, efeito, equilíbrio de poder, interesses e, finalmente, valores.

O ataque terrorista em Paris no dia 13 de novembro de 2015 é o momento de um radical agravamento de contradições. Os franceses se depararam com o desafio de que eles não podem lutar sob a enantiodromia atlantista existente, ao mesmo tempo, eles não são nem mesmo capazes de descrevê-la corretamente. Isso significa que este ataque não será o último. Paris não será capaz de responder a ele igualmente, porque ele não é capaz de compreendê-lo, nem mesmo descrevê-lo.

Assim o ISIS domina. Afinal, ninguém pode e quer detê-lo. E assim ele continuará, a Sociedade do Espetáculo tem sua própria lógica, a lógica perversa do entretenimento grotesco.

A política doméstica na França está lidando com a mesma enantiodromia pós-moderna que a geopolítica no Oriente Médio. Só que dessa vez ela é também uma dimensão ideológica associada com as ideias do liberalismo.

As ações livres dos terroristas do ISIS realizadas quando do ataque da sexta-feira 13 em Paris estão majoritariamente ligadas à situação que havia se formado na sociedade francesa por causa da imigração em massa, consistindo em pessoas do Oriente Médio e Magreb (principalmente muçulmanos) e agora a "nona onda" de refugiados, rapidamente abandonando as zonas mais sangrentas (Síria, Iraque, Iêmen, etc.). A campanha de relações públicas do ISIS joga lenha na fogueira, já que nem todos os muçulmanos veem algo de bom na paródia de seita extremista, nada mais que serial killers, porém todos conhecem a síndrome de Estocolmo quando reféns sinceramente defendem terroristas. Permitir que imigrantes entrem livremente no território da França e fundem ali seus enclaves sociais (muitas vezes não tendo nada a ver com o estilo de vida e valores dos franceses nativos) demanda a ideologia do liberalismo, dos "direitos humanos", da "sociedade civil", que é a ideologia dominante e oficial da sociedade moderno, não menos que o comunismo na União Soviética. Assim, enquanto se mantiver o status quo da democracia liberal (que ninguém em toda a Europa deseja abandonar ou mesmo pensa em fazê-lo) o crescimento da imigração e a expansão de centros culturais islâmicos estão garantidos. Ademais, europeus nativos (especialmente os franceses), sob o liberalismo dominante, não tem o direito de afirmar sua própria identidade e de demandar respeito para valores europeus por imigrantes (hoje, isso é equivalente a "fascismo"), a assimilação de imigrantes à sociedade europeia é simplesmente excluída já no início. A sociedade europeia em termos de liberalismo possui uma identidade puramente negativa: a Europa moderna não quer ter nada a ver com a velha Europa, Cristandade, nações, Estados, patriarcado, moralidade tradicional, etc. Em contraste, o "europeu"é declarado como tudo que mais se separa de suas raízes.

Contra o pano-de-fundo não apenas do enfraquecimento, mas até mesmo proibição por razões ideológicas da identidade europeia, a imigração (majoritariamente islâmica) cria automaticamente suas próprias políticas e programa de valores religiosos. O programa não tem como ser orgânico e dotado de continuidade histórica, porque o Islã chegou à Europa moderna artificialmente e vindo de diferentes regiões, geralmente com tradições étnicas, culturais e religiosas muito diferentes umas das outras. Assim, os imigrantes islâmicos estão praticamente condenados a arranjar uma pseudo-ideologia não islâmica, mas islamista, não tradicional, mas moderna e mesmo pós-moderna, não natural, mas artificial. Dessa forma, o Islã Sociedade do Espetáculo com a dominação da ideologia liberal na europa é praticamente inevitável, e só pode se tornar mais forte. Isso é garantido: o número de imigrantes só vai crescer, a identidade europeia só vai se enfraquecer e o crescimento do islamismo pós-moderno só vai se acelerar.

Os ataques de Paris seriam simplesmente impossíveis sem um ambiente islamista estável já formado na França, fundado muito antes das ondas atuais de refugiados. É claro, entre os refugiados ativistas do ISIS puderam chegar ao país, e é possível que eles tenham sido os participantes diretos dos ataques. Mas o criadouro para isso foi preparado muito antes, e inicialmente ideologicamente. O liberalismo, encorajando a imigração (isso é abertamente dito por George Soros, um dos seguidores e praticantes mais consistentes do liberalismo) e consistentemente apagando a identidade europeia (sob o pretexto de "antifascismo"), criou todas as condições necessárias.

É realista esperar que após o massacre em Paris a situação mudará? Para fazer isso acontecer, as autoridades francesas teriam que reconsiderar seriamente sua atitude em relação à ideologia dominante: só isso forneceria a base para a regulação da migração e a consolidação dos franceses. Mas isso é simplesmente impossível. Nem Hollande, nem as principais forças políticas da França, com exceção da abertamente iliberal Frente Nacional de Marine Le Pen, desistirá da ideologia liberal sob quaisquer circunstâncias. Assim, até o colapso final do liberalismo na Europa, todos os processos que levaram aos ataques continuarão a se fortalecer. Os riscos não diminuirão, só aumentarão.

O liberalismo europeu levará inevitavelmente à mesma situação que no Oriente Médio. Os EUA estão aprendendo a viver em condições de caos moderado controlado. Não é o suficiente ter um líder leal aos EUA em cada país. É necessário um "aprofundamento democrático". É a reivindicação enantiodrômica. Mas isso parece agora dirigido à Europa também. Como os liberais estão garantidos no poder na Europa, é garantido que haja crescimento dai migração e escalada de conflitos étnicos e culturais. Também é garantido haver crescimento do terrorismo e da popularidade do ISIS pós-moderno. No final, nós temos uma guerra civil na Europa, preparada ativamente agora. Os ataques terroristas em Paris mostram como isso acontecerá. Bashar al-Assad notou corretamente que as experiências francesas de 13 de novembro de 2015 são os mesmos eventos que os sírios tem vivido em anos recentes, só que em escala diferente. Na sexta-feira 13 nós vimos um ensaio do futuro europeu: os franceses celebrando e bebendo em bares no fim de semana e grupos armados de terroristas islâmicos descontrolados disparando contra pessoas. E ninguém deduzirá quaisquer conclusões, ou mesmo ousará descrever a situação adequadamente. Nesse caso, aqueles que são representados hoje como um grupo de maníacos, uma versão islamista de Freddy Krueger, amanhã se tornarão a oposição moderada europeia e os combatentes pelos direitos de minorias pela democracia. É possível que eles terão em suas mãos regiões europeias inteiras, e talvez países inteiros, se os europeus politicamente corretos continuarem bebendo coqueteis, indo a estádios e a concertos de bandas de heavy metal. O mais pesado dos metais é uma bala, voando da cena ao invés de vozes altas de degenerados americanos, sob o grito de "Allahu Akbar!". O mais duro de todos.

Desistam do liberalismo ou encarem os mesmos problemas.

Que lições podemos tirar dessa tragédia?

1 - Estamos vivendo no momento decisivo em que a civilização ocidental se aproxima de seu fim. Atos terroristas como os de 13/11 de Paris mostram isso de forma clara e inequívoca. O Ocidente que conhecemos não existe mais. Ele não pode existir por mais tempo. Era uma vez houve um certo Ocidente. Com valores patriarcais heroicos, identidade cristã, cultura profunda e rica com raízes grecorromanas. O Ocidente de Deus, do homem e da natureza. Não há nada como isso em vistas. As ruínas. A civilização liberal fraca e venenosa, baseada na auto-indulgência e ao mesmo tempo no ódio por si mesmo. Sem identidade, a não ser uma puramente negativa. Povoada por humanos egoístas e envergonhados de si mesmos. Ela não pode ter futuro. Diante de combatentes brutais pós-modernos do ISIS, ela não pode afirmar nada, não pode opôr nada, não pode sugerir nada. O Ocidente não pode mais ser ocidental. Ele está perdendo a si mesmo. Está se afogando. A França não é o pior lugar. Todo o resto da Europa e dos EUA estão da mesma maneira. O Ocidente tem medo. Não do ISIS, de si mesmo, de seu vazio, de seu niilismo. Se o Ocidente sobreviver, não será o mesmo Ocidente que conhecemos. Ou ele se transformará em um clone do Oriente Médio em sangue e fogo e sem saída, ou em um sistema totalitário obcecado com segurança. O ISIS não é o perigo real, ele é um sintoma de máxima decadência. Os vermes não podem causar a morte. Eles vem quando tudo está no fim. Se você negar Aquele que se ergueu dos mortos e salvou o outro, a morte é o verdadeiro fim. Assim, é o dia do juízo final.

2 - Aqueles que entendem a gravidade da situação devem correr e buscar salvação. Há poucos lugares no mundo que tentam escapar do niilismo da Modernidade em sua virada final. A Rússia permanentemente criticada e culpada é um desses lugares. A Rússia está longe de ser um país ideal ou ótimo. Há muitas falhas e pontos fracos. Mas ela resiste. Ela não aceita a porção total do veneno. Ela recusa a se suicidar como o Ocidente o faz. Assim, ela resiste. O conservadorismo russo alerta os russos contra caírem na mesma armadilha: quando você é atacado e assassinado em seu próprio lar e obrigado a sorrir e ficar em silêncio. Hillary Clinton confessou que os EUA conceberam o ISIS, mas que o ISIS escapuliu e enlouqueceu. O Ocidente experimenta com formas suicidas. Ele continuará. A Rússia e alguns outros países lutam para viver e sobreviver ao inevitável Fim do Ocidente. Assim, a Rússia está aberta como um Arco para todos. Ela ama a Europa. Não a de hoje. A outra Europa. A original. Cristã, romana, grega. A Europa Tradicional, povoada por europeus. Como antes, como sempre. Nos tempos antigos, a Rússia foi um escudo da Europa. Agora os papeis se inverteram. A Europa acaba sendo um tipo de escudo da Rússia. Mas dessa vez o escudo não é muito bom. A invasão vem. A Rússia precisa da Europa, e queria que ela fosse um bom escudo. Então há pelo menos alguns interesses comuns, senão valores comuns. A Rússia ficaria feliz em salvar a Europa. Sem isso, é impossível. Eu não julgo se ainda for possível. Mas não obstante, todos precisamos de um front comum. Precisamos lutar até o Fim e com o Fim.

3 - As elites europeias não extrairão conclusões dos tiros e explosões de 13 de novembro em Paris. Mais imigrantes, mais liberalismo, mais paradas gay e políticas de gênero. Mais tolerância. Mais liberalismo. Essa será a resposta. Essas elites são completamente insanas. Se a Europa quiser ser salva, ela precisará de novas. Agora é a hora de lutar a sério pela Tradição, por Cristo, pela Identidade, por restauração da Soberania perdida. As elites liberais insanas são muito mais temíveis e perigosas que o ISIS. Com uma vontade firme não há qualquer dificuldade em vencer o ISIS e deter a agressão e ocupação da Europa. Mas o problema é que o ISIS é a criação da elite liberal. Parcialmente da estratégia geopolítica americana, parcialmente do vácuo natural. O liberalismo é o nome da Morte. Derrubem ele, e ainda poderá haver uma chance. Com ele, não há qualquer chance.



Stephen Lendman - "A Verdadeira História do Clube Bilderberg" e o que eles podem estar planejando agora

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por Stephen Lendman



Por mais de 14 anos, Daniel Estulin tem investigado e pesquisado a ampla influência do Clube Bilderberg sobre negócios e finanças, política global, guerra e paz, e o controle dos recursos globais e seu dinheiro.

Seu livro, "A Verdadeira História do Clube Bilderberg", foi publicado em 2005 e foi atualizado em uma edição de 2009. Ele afirma que em 1954, "os homens mais poderosos do mundo se encontraram pela primeira vez" em Oosterbeek, Holanda, "debateram o futuro do mundo", e decidiram se encontrar anualmente em segredo. Eles se chamaram Clube Bilderberg com uma lista de membros representando um "quem é quem" das elites globais, principalmente da América, Canadá e Europa Ocidental com nomes familiares como David Rockefeller, Henry Kissinger, Bill Clinton, Gordon Brown, Angela Merkel, Alan Greenspan, Ben Bernanke, Larry Summers, Tim Geithner, Lloyd Blankfein, George Soros, Donald Rumsfeld, Rupert Murdoch, outros chefes de Estado, senadores influentes, congressistas e parlamentares, oficiais do Pentágono e da OTAN, membros da realeza europeia, figuras seletas da mídia, e outros convidados - alguns discretamente, segundo relatos, como Barack Obama e muitos de seus principais burocratas.

Sempre bem representadas estão figuras centrais do Conselho de Relações Exteriores, do FMI, do Banco Mundial, da Comissão Trilateral, da União Europeia, e poderosos banqueiros centrais da Reserva Federal, Jean Claude Trichet do Banco Central Europeu, e Mervyn King do Banco da Inglaterra.

Por mais de meio século, nenhuma agenda ou tópico de discussão se tornou público, nem qualquer cobertura de mídia foi permitida. Os poucos convidados do Quarto Estado e seus chefes juram manter segredo. Não obstante, Estulin ingressou em uma "jornada investigativa" que se tornou a obra de sua vida. Ele afirma:

"Lentamente, uma por uma, eu penetrei nas camadas de segredo que cercam o Clube Bilderberg, mas eu não poderia ter feito isso sem a ajuda de 'objetores de consciência' de dentro, bem como de fora, da lista de membros do Clube". Como resultado, ele mantém seus nomes em segredo.

Qualquer fosse sua missão inicial, o Clube é agora um "governo mundial nas sombras...ameaçando tomar nosso direito de dirigir nossos destinos, criando uma realidade perturbadora", fundamentalmente danosa para o bem-estar público. Em resumo, os bilderbergers querem suplantar a soberania nacional individual com um governo global onipotente, controlado por corporações e mantido no lugar pela imposição militar.

"Imagine um clube privado em que presidentes, primeiro-ministros, banqueiros internacionais e generais sentam lado a lado, onde chaperones monárquicos cheios de graça garantem que todos se deem bem, e onde as pessoas que controlam as guerras, os mercados, e a Europa (e a América) dizem o que jamais ousariam falar em público".

Cedo em sua história, os bilderbergers decidiram "criar uma 'aristocracia de propósito' entre a Europa e os EUA para atingir consenso para governar o mundo em questões de política, economia, e estratégia". A OTAN foi essencial para seus planos - para garantir "guerra perpétua e chantagem nuclear" a serem usadas conforme necessário. Então prosseguem ao saque do planeta, alcançam riqueza e poder fabulosos e esmagam toda oposição para mantê-los.

Junto à dominação militar, controlar o dinheiro do mundo é crucial porque com isso vem o controle absoluto como a poderosa família Rothschild entendeu no século XIX. Como disse o patriarca Amschel Rothschild uma vez: "Dê-me o controle do dinheiro de uma nação e eu não me importo com quem faz suas leis".

Os bilderbergers compõem o clube mais exclusivo do mundo. Ninguém consegue comprar ingresso. Apenas o Comitê Diretor do grupo decide quem convidar, e em todos os casos os participantes são aderentes à governança unipolar das elites.

Segundo as regras do Comitê Diretor:

"os convidados devem vir sozinhos; sem esposas, namoradas, maridos ou namorados. Assistentes pessoais (significando seguranças, guarda-costas, protetores da CIA ou de outros serviços secretos) não podem participar da conferência e devem comer em um salão separado. Os convidados estão explicitamente proibidos de dar entrevistas e jornalistas ou divulgar qualquer coisa que ocorrer nos encontros.

Os governos-sede fornecerão segurança geral para manter os penetras longe. 1/3 dos convidados são figuras políticas. Os outros são da indústria, finanças, academia, trabalho e comunicações.

O procedimento dos encontros segue as Regras da Chatham House deixando os convidados livres para que expressem suas opiniões em uma atmosfera relaxada, sabendo que nada dito será citado ou revelado ao público. Os encontros são sempre francos, mas não concluem sempre em consensos".

A participação consiste em convidados anuais (por volta de 80 dos mais poderosos do mundo) e outros convidados apenas ocasionalmente por causa de seu conhecimento ou envolvimento em tópicos relevantes. Aqueles mais valorizados são convidados novamente, e alguns marinheiros de primeira viagem são escolhidos por sua possível utilidade posterior.

O governador do Arkansas Bill Clinton, por exemplo, que participou em 1991. "Ali, David Rockefeller lhe disse porque a NAFTA era uma prioridade do Bilderberg e que o grupo precisava que ele desse apoio. No ano seguinte, Clinton foi eleito presidente", e em janeiro de 1994 a NAFTA entrou em vigor. Vários outros exemplos são similares, incluindo quem é selecionado para posições de governo, militares e outras centrais.

Objetivos do Bilderberg

O grande projeto do Clube é o de "Um Governo Mundial (Corporação Mundial) com um único mercado global, policiado por um único exército mundial, e financeiramente regulado por um único Banco Mundial, usando uma moeda global". Sua "lista de desejos" inclui:

- "Uma única identidade internacional observando um único conjunto de valores";

- Controle centralizado de populações mundiais através de "controle mental"; em outras palavras, controlar a opinião pública mundial;

- Uma Nova Ordem Mundial sem classe média, apenas "governantes e servos", e, é claro, sem democracia;

- "Uma sociedade de crescimento zero" sem prosperidade ou progresso, apenas mais riquezas e poder para os governantes;

- Crises manufaturadas e guerras perpétuas;

- Controle absoluto da educação para programar a mente pública e treinar os escolhidos para vários papeis;

- "Controle centralizado de toda política doméstica e externa"; um único "tamanho de sapato" para todos;

- Usar a ONU como governo mundial de facto impondo uma taxa da ONU sobre os "cidadãos globais";

- Expandir a NAFTA e a OMC globalmente;

- Tornar a OTAN um exército mundial;

- Impor um sistema jurídico universal; e

- "Um Estado de Bem-Estar Social global no qual escravos obedientes serão recompensados e inconformistas serão alvo de extermínio".

Parceiros Secretos do Bilderberg

Nos EUA, o Conselho de Relações Exteriores é dominante. Um de seus fundadores em 1921, Edward Mandell House, era conselheiro-chefe de Woodrow Wilson e dizia-se à época que ele era o real governante de 1913 a 1921. Sob seus olhos o Ato da Reserva Federal foi aprovado em dezembro de 1913, dando aos banqueiros o poder de criação de dinheiro, e a 16ª Emenda foi ratificada em fevereiro criando o imposto de renda federal para fornecer uma fonte de renda para pagar pela dívida governamental.

Desde seu início, o Conselho de Relações Exteriores tem estado comprometido com "um governo mundial baseado em um sistema financeiro global...". Hoje, o CRE possui milhares de membros influentes (incluindo membros na mídia corporativa), mas mantém um perfil público discreto, especialmente em relação a sua verdadeira agenda.

O historiador Arthur Schlesinger Jr. o chamou de "organização de fachada para o coração do Establishment Americano". Ele se reúne em privado e só publica o que deseja que o público saiba. Seus membros são exclusivamente americanos. 

A Comissão Trilateral (discutida abaixo) é um grupo similar que "reúne mediadores globais". Fundada por David Rockefeller, ele também é um importante bilderberger e Presidente Emérito do CRE, organizações que ele continuar a financiar e apoiar.

Seus membros passados atuais refletem seu poder:

- quase todos os candidatos presidenciais de ambos os partidos;

- importantes senadores e congressistas;

- membros importantes do Quarto Estado e seus chefes; e

- oficiais de alto escalão do FBI, CIA, NSA, da defesa e de outras agências governamentais, incluindo estado, comércio, judiciário e tesouro.

De sua parte, "o CFR tem servido como agência de emprego para o governo federal tanto sob democratas quanto sob republicanos". Quem quer que ocupe a Casa Branca, "o poder e agenda do CFR" permanecem imutáveis desde sua fundação em 1921.

Ele defende um Superestado global com a América e outras nações sacrificando sua soberania em prol de um poder central. O fundador do CRE Paul Warburg foi um membro do "truste cerebral" de Roosevelt. Em 1950, seu filho, James, disse ao Comitê de Relações Exteriores do Senado: "Nós teremos um governo mundial, quer vocês queiram ou não - por conquista ou consenso".

Depois, no encontro do Clube Bilderberg em 1992, Henry Kissinger disse:

"Hoje, americanos ficariam ultrajados se tropas da ONU entrassem em Los Angeles para restaurar a ordem; amanhã, eles ficarão agradecidos. Isto é especialmente verdadeiro se lhes fosse dito que havia uma ameaça externa, fosse real ou promulgada, que ameaçasse nossa própria existência. É então que todos os povos do mundo implorarão aos líderes mundiais para que eles os livrem dessa mal...direitos individuais serão voluntariamente entregues em troca da garantia de seu bem-estar oferecida por seu governo mundial".

O CRE planejava uma Nova Ordem Mundial antes de 1942, e "a ONU começou com um grupo de membros do CRE chamado de Grupo da Agenda Informal". Eles rascunharam a proposta original da ONU, a apresentaram a Franklin Roosevelt que então a anunciou publicamente no dia seguinte. Quando de sua fundação em 1945, membros do CRE compunham mais de 40 dos delegados dos EUA.

Segundo o professor G. William Domhoff, autor de Quem Governa a América, o CRE opera em "grupos pequenos de aproximadamente 25, que reúnem líderes das seis categorias conspiratórias (industrialistas, financistas, ideólogos, militares, especialistas profissionais - advogados, médicos, etc. - e trabalho organizado) para discussões detalhadas de tópicos específicos na área das relações exteriores". Domhoff acrescentou:

"O Conselho de Relações Exteriores, ainda que não financiado pelo governo, trabalha tão próximo dele que é difícil distinguir ações do Conselho estimuladas pelo governo de ações autônomas. Suas fontes de renda mais importantes são as maiores corporações e fundações". As Fundações Rockefeller, Carnegie e Ford, só para nomear três, e elas são dirigidas por membros fundamentais.

Parceiros Midiáticos Dominantes

O ex-presidente da CBS Richard Salant (1961-64 e 1966-79) explicou o papel central da mídia: "Nosso trabalho é dar às pessoas não o que elas querem, mas o que decidimos que elas devem querer".

A CBS e outros gigantes midiáticos controlam tudo que vemos, ouvimos e lemos - através da TV, rádio, jornais, revistas, livros, filmes e grandes porções da internet. Seus principais funcionários e alguns jornalistas frequentam reuniões do Bilderberg - com a condição de não reportarem nada.

A família Rockefeller exerce enorme poder, ainda que seu patriarca reinante, David, vá fazer 94 anos em 12 de junho e esteja certamente perto do fim de sua dominância. Porém, por anos "os Rockefellers (liderados por David) adquiriram grande influência sobre a mídia. Com ela, a família adquiriu controle sobre a opinião pública. Com o pulso da opinião pública, eles adquiriram profunda influência sobre a política. E com esta política de corrupção sutil, eles estão assumindo o controle da nação" e agora objetivam dominação mundial total.

O esquema Bilderberger-Rockefeller é tornar suas perspectivas "tão atraentes (camuflando-as) que elas se tornam política pública e podem pressionar líderes mundiais para que se submetam 'às necessidades dos Mestres do Universo'." A "imprensa do mundo livre"é seu instrumento para disseminar "propaganda previamente combinada".

Controle do Gabinete do CRE

"O Ato de Segurança Nacional de 1947 estabeleceu o ofício de Secretário de Defesa". Desde então, 14 Secretários do Departamento da Defesa foram membros do CRE.

Desde 1940, cada Secretário de Estado, com exceção de James Byrnes, foi membro do CRE e/ou da Comissão Trilateral.

Pelos últimos 80 anos, "virtualmente todo conselheiro importante de Segurança Nacional ou das Relações Exteriores foi um membro do CRE".

Quase todos os generais e almirantes de mais alta patente tem sido membros do CRE.

Muitos candidatos presidenciais foram/são membros do CRE, incluindo Herbert Hoover, Adlai Stevenson, Dwight Eisenhower, John Kennedy, Richard Nixon, Gerald Ford, Jimmy Carter (também membro da CT), George H.W. Bush, Bill Clinton, John Kerry e John McCain.

Inúmeros diretores da CIA foram/são membros do CRE, incluindo Richard Helmes, James Schlesinger, William Casey, William Webster, Robert Gates, James Woolsey, John Deutsch, George Tenet, Porter Goss, Michael Hayden e Leon Panetta.

Muitos Secretários do Tesouro foram/são membros do CRE, incluindo Douglas Dillon, George Schultz, William Simon, James Baker, Nicholas Brady, Lloyd Bentsen, Robert Rubin, Henry Paulson e Tim Geithner.

Quando presidentes nomeiam candidatos à Suprema Corte, o "Grupo Especial, Time Secreto" do CRE ou seus conselheiros os avaliam por sua aceitabilidade. Os presidentes, na verdade, são orientados sobre quem indicar, incluindo candidatos à Suprema Corte e da maioria dos tribunais inferiores.

Programando a Mente Pública

Segundo o sociólogo Hadley Cantril em seu livro de 1967, A Dimensão Humana - Experiências em Pesquisa de Política:

"Operações psicopolíticas são campanhas de propaganda construídas para criar tensão perpétua e manipular diferentes grupos de pessoa para aceitar o clima particular de opinião que o CRE busca atingir no mundo".

O escritor canadense Ken Adachi (1929-1989) acrescentou:

"O que a maioria dos americanos crê ser 'opinião pública'é na realidade propaganda cuidadosamente desenhada e redigida para gerar uma resposta comportamental desejada do público".

E o notório acadêmico e ativista australiano Alex Carey (1922-1988) explicou os três desenvolvimentos mais importantes do século XX - "O crescimento da democracia, o crescimento do poder corporativo e o crescimento da propaganda corporativa como meio de proteger o poder corporativo contra a democracia".

Teia de Controle

Inúmeros think-tanks, fundações, grandes mídias e outras organizações importantes são geridos por membros do CRE. A maioria de seus membros vitalícios também pertence ao TC e ao Clube Bilderberg, operam secretamente, e manejam poder enorme sobre questões globais e americanas.

A Comissão Trilateral foi fundada pelos Rockefeller.

Na página 405 de suas memórias, David Rockefeller escreve:

"Alguns até mesmo acreditam que somos parte de uma cabala secreta trabalhando contra os melhores interesses dos EUA, caracterizando minha família e eu como 'internacionalistas' e conspirando com outros ao redor do mundo para construir uma estrutura econômica e política global integrada - um único mundo, digamos assim. Se esta é a acusação, eu sou culpado, e tenho orgulho disso".

Em aliança com o Bilderberg, a CT também "desempenha um papel vital no esquema da Nova Ordem Mundial de usar a riqueza, concentrada nas mãos de poucos, para exercer controle mundial". Membros do CT partilham de opiniões em comum e todas elas estão ligadas a dominação global incontestável.

Fundada em 1973 e sediada em Washington, seus poderesos membros americanos, europeus e asiáticos buscam seu objetivo operativo fundacional - uma "Nova Ordem Econômica Internacional", agora simplesmente uma "Nova Ordem Mundial" governada por elites globais dessas três partes do mundo com membros menores admitidos de outros países.

Segundo o sítio virtual da CT, "cada grupo regional possui um presidente e vice-presidente, que juntos constituem a liderança do Comitê. O Comitê Executivo reúne mais 36 indivíduos dentre os membros", proporcionalmente representando os EUA, a UE e a Ásia em seus primeiros anos, agora ampliado em uma direção global.

Membros do Comitê se encontram várias vezes anualmente para discutir e coordenar seu trabalho. O Comitê Executivo seleciona membros, e a qualquer dado momento 350 deles para um período renovável de três anos. Todo mundo é alguém com conhecimento profundo em negócios, finanças, política, questões militares, ou mídia, incluindo ex-presidentes, secretários de estado, banqueiros internacionais, executivos de think-tanks e fundações, presidentes de universidades e acadêmicos selecionados, bem como ex-senadores e congressistas, entre outros.

Apesar de seus relatórios anuais estarem disponíveis para compra, seus trabalhos internos, objetivos atuais, e operações são secretas - com boa razão. Seus objetivos prejudicam o público, portanto não devem ser revelados. O autor de Trilaterais sobre Washington Antony Sutton escreveu:

"este grupo de cidadãos privados está precisamente organizado de uma maneira que garante que suas perspectivas coletivas tenham impacto significativo sobre a política pública".

Em seu livro, Trilateralismo: A Comissão Trilateral e o Planejamento da Elite para o Gerenciamento Global, Holly Sklar escreveu:

"Figuras poderosas na América, Europa e Ásia permitem que os ricos salvaguardem os interesses do capitalismo ocidental em um mundo explosivo - provavelmente desencorajando o protecionismo, o nacionalismo ou qualquer resposta que coloquem as elites de um país contra as elites de outro, em sua busca comum por domínio global".

O trilateralista Zbigniew Brzezinski (cofundador da CT) escreveu em seu Entre Duas Eras - O Papel da América na Era Tecnocrática:

"pessoas, governos e economias de todas as nações devem servir às necessidades de bancos e corporações multinacionais. A Constituição é inadequada...o velho esquema da política internacional, com suas esferas de influência...a ficção da soberania...claramente não são mais compatíveis com a realidade..."

A CT hoje agora é global, com membros de países tão diversos quanto Argentina, Ucrânia, Israel, Jordânia, Brasil, Turquia, China e Rússia. Em seu Trilaterais Sobre a América, Antony Sutton acredita que o objetivo da CT é colaborar com os bilderbergers e o CRE para "estabelecer objetivos de política pública a serem implementados pelos governos ao redor do mundo". Ele acrescentou que "trilateralistas tem rejeitado a Constituição americana e o processo político democrático". Na verdade, a CT foi estabelecida para responder a uma "crise na democracia" - cujos excessos tinham que ser contidos.

Um relatório oficial da CT estava temeroso sobre "a crescente participação e controle populares sobre instituições sociais, políticas e econômicas estabelecidas e especialmente uma reação contra a concentração de poder do Congresso e do governo local".

Para lidar com isso, o controle midiático era essencial para exercer "contenção do que jornais (e TV e rádio) poderiam publicar". Então, segundo Richard Gardner na edição de julho de 1974 da revista Foreign Affairs (publicação do CRE):

A liderança do CRE deve promover "um esgotamento da soberania nacional, dilapidando-a pedaço por pedaço", até que a própria noção desapareça do discurso público.

O sucesso bilderberger/trilateralista/CRE depende de encontrar "uma maneira de nos fazer render nossas liberdades em nome de alguma ameaça ou crise comum. As fundações instituições educacionais e think-tanks de pesquisa apoiados por essas organizações obrigam financiando supostos 'estudos' que são então usados para justificar cada excesso. As desculpas variam, mas o alvo sempre é a liberdade individual. Nossa liberdade" e muito mais.

Bilderbergers, trilateralistas e membros do CRE querem "um monopólio abrangente" - sobre o governo, o dinheiro, a indústria e a propriedade, que seja "auto-perpetuante e eterno". Em Confissões de um Monopolista (1906), Frederick C. Howe explicou seus trabalhos na prática:

"As regras do grande negócio: consiga um monopólio; deixe a Sociedade trabalhar por você. Enquanto continuarmos vendo revolucionários internacionais e todos os capitalistas internacionais como inimigos implacáveis um do outro, então olvidaremos um ponto crucial...uma parceria entre o capitalismo monopolista internacional e o socialismo revolucionário internacional é para seu benefício mútuo".

No Arquivo Rockefeller, Gary Allen escreveu:

"Ao fim do século XIX, os santuários internos de Wall Street compreendiam que a maneira mais eficiente de adquirir um monopólio era dizer que isso era para o 'bem público' e 'interesse público'."

David Rockefeller aprendeu o mesmo de seu pai, John D. Jr., que aprendeu de seu pai, John D. Sr. Eles odiavam competição e impiedosamente labutaram para eliminá-la - para David em uma escala global através de uma Nova Ordem Mundial.

Nos anos 70 e 80, trilateralistas e membros do CRE colaboraram no "Projeto 1980", a maior iniciativa do CRE a mover eventos globais "rumo a um resultado futuro desejável em particular envolvendo a total desintegração da economia". Por quê? Essa é a pergunta.

Porque por volta das décadas de 50 e 60, crescimento industrial global significava mais competição. Era também um modelo a ser seguido, e "tinha que ser estrangulado no berço" ou pelo menos contido. Na América também, a partir dos anos 80. O resultado foi uma transferência de renda dos pobres para os ricos, o encolhimento da classe média e um plano para sua eventual extinção.

A União Norte-Americana (UNA)

A ideia emergiu durante a administração Reagan no início dos anos 80. David Rockefeller, George Schultz e Paul Volker disseram ao presidente que Canadá e EUA poderiam ser fundidos economicamente e politicamente ao longo dos próximos 15 anos exceto por um problema - o Quebec francófono. Sua solução - eleger um Primeiro-Ministro bilderberger, separar o Quebec das outras províncias, e então tornar o Canadá o 51º estado americano. Quase funcionou, mas deu errado quando um referendo de 1995 sobre secessão foi derrotado - 50.56% a 49.44%, mas não a ideia de fusão.

Em um encontro em 23 de março de 2005, em Waco, Texas, na qual compareceram George Bush, o presidente mexicano Vincente Fox e Paul Martin do Canadá, a Parceria de Prosperidade e Segurança (PPS) foi lançada, também conhecida como União Norte-Americana (UNA). Era um acordo secreto para uma Força-Tarefa Independente da América do Norte - um grupo organizado pelo Conselho Canadense de Executivos, pelo Conselho Mexicano de Relações Exteriores e pelo CRE com os seguintes objetivos:

* Contornar os legislativos dos três países e suas Constituições;
* Suprimir conhecimento ou consideração públicas; e
* Propor uma maior integração política, econômica, social e de segurança americana, canadense e mexicana com grupos secretos de trabalho formados para desenvolver acordos não-debatíveis e não-votados para que sejam imodificáveis e cogentes.

Em resumo, um golpe de Estado corporativo contra a soberania de três países imposto por uma militarização linha-dura para suprimir a oposição.

Caso aprovada, isso criará uma América do Norte sem fronteiras, controlada por corporações, sem barreiras para comércio ou fluxo de capital para os gigantes do mercado, principalmente americanos e muito mais - o acesso americano a recursos vitais, especialmente petróleo e à água potável canadense.

Secretamente, mais de 300 iniciativas da PPS foram construídas para harmonizar as políticas do continente sobre energia, alimentação, drogas, segurança, imigração, manufatura, meio ambiente, e saúde pública, além de militarizar as três nações para garantir a imposição.

A PPS representa outro passo rumo ao objetivo bilderberger/trilateralista/CRE para um Governo Mundial, dando um passo de cada vez. Uma "Europa Unida" era outro, resultado de vários tratados e acordos econômicos:

* A Comunidade Europeia de Aço e Carvão de dezembro de 1951, entre seis nações;
* O Tratado de Roma estabelecendo a Comunidade Econômica Europeia de março de 1957, entre seis nações;
* Também a Comissão Europeia de Energia Atômica por um segundo Tratado de Roma;
* A Corte de Justiça Europeia de outubro de 1957 para resolver disputas comerciais regionais;
* A Associação Europeia de Livre-Comércio de maio de 1960;
* A Comunidade Econômica Europeia de julho de 1967, fundindo as organizações anteriores em uma única organização;
* A União Alfandegária Europeia para abolir alfândegas e estabelecer taxas de importação uniformes entre países da CEE;
* A Unidade Monetária Europeia de 1978;
* O Ato Europeu Singular, de fevereiro de 1986, que revisou o Tratado de Roma, estabelecendo o objetivo de formar um Mercado Comum até 31 de dezembro de 1992;
* O Tratado de Maastricht de fevereiro de 1992, criando a União Europeia em 1 de novembro de 1993; e
* O nome "euro" foi adotado em dezembro de 1995; foi introduzido em janeiro de 1999, substituindo a Unidade Monetária Europeia; euros começaram a circular em janeiro de 2002; eles agoram são a moeda oficial em 16 dos 27 países da UE.

Por mais de meio século, os passos acima custaram aos membros da UE sua soberania "na medida em que de 70 a 80% das leis aprovadas na Europa envolvem apenas carimbar regulamentos já redigidos por burocratas anônimos em 'grupos de trabalho' em Bruxelas ou Luxemburgo".

A UE e a UNA partilham de características em comum:

* Defesa por um porta-voz influente;
* Uma união econômica e, depois, política;
* Segurança linha-dura, e para a Europa, pôr fim a guerras no continente entre países-membros;
* O estabelecimento de uma consciência coletiva para substituir o nacionalismo;
* A dissolução de fronteiras e a criação de um "supragoverno"; um Super-Estado;
* Arranjos secretos para mascarar objetivos reais; e
* A criação de uma moeda comum, eventualmente global;

Passos para uma União Norte-Americana:

* O Acordo de Livre-Comércio de 4 de outubro de 1988 entre EUA e Canadá, finalizado no ano anterior;
* O Encontro Bilderberg de 1991, quando David Rockefeller conseguiu o apoio do governador Bill Clinton para a NAFTA se ele se tornasse presidente;
* Aprovação da legislação da OMC pelo Congresso em 1 de janeiro de 1994, sem debate;
* Na primeira Cúpula das Américas em dezembro de 1994, 34 líderes hemisféricos comprometeram suas nações com um Acordo de Livre-Comércio das Américas até 2005 - até agora não realizado;
* Em 4 de julho de 2000, o presidente mexicano Vincente Fox pediu um mercado comum norte-americano em até 20 anos;
* Em fevereiro de 2001, a Casa Branca publicou uma declaração conjunta de George Bush e Vincente Fox chamada "Proposta Guanajuato"; ela pedia uma parceria de coprosperidade entre EUA, Canadá e México (ou seja, União Norte-Americana);
* Em setembro de 2001, Bush e Fox concordaram com uma "Iniciativa de Parceria para a Prosperidade;
* O ataque de 11 de setembro de 2001 deu cobertura para incluir "segurança" como parte de uma futura parceria;
* Em 7 de outubro de 2001, um encontro do CRE ressaltou "O Futuro da Integração Norte-Americana Após os Ataques Terroristas"; pela primeira vez, "segurança" se tornou parte de uma "parceria para prosperidade" no futuro; também, o Canadá seria incluído em um acordo "norte-americano";
* Em 2002, o Fórum Norte-Americano sobre Integração foi estabelecido em Montreal "para discutir as questões levantadas pela integração norte-americana, bem como identificar novas ideias e estratégias para reforçar a região norte-americana";
* Em janeiro de 2003, o Conselho Canadense de Executivos (composto pelos  150 maiores CEOs) lançou a "Iniciativa de Prosperidade e Segurança Norte-Americana" pedindo integração continental;
* Em abril de 2004, o primeiro-ministro canadense Paul Martin anunciou a primeira política de segurança nacional do país, chamada "Garantir uma Sociedade Aberta";
* Em 15 de outubro de 2004, o CRE estabeleceu uma Força-Tarefa Independente sobre o Futuro da América do Norte - para uma união continental futura;
* Em março de 2005, um relatório do CRE chamado Criando uma Comunidade Norte-Americana pediu integração continental até 2010 "para garantir prosperidade e oportunidade para todos os norte-americanos"; e
* Em 23 de março de 2005, em Waco, Texas, os líderes dos EUA, Canadá e México lançaram a Parceria de Prosperidade e Segurança - também conhecida como União Norte-Americana.

Negociações secretas continuam. O debate legislativo é excluído, e a inclusão e debate públicos estão fora da questão. Em maio de 2005, a Força-Tarefa Independente Sobre o Futuro da América do Norte publicou um relatório de acompanhamento intitulado Construindo uma Comunidade Norte-Americana - propondo uma união de três nações sem fronteiras até 2010.

Em junho e julho de 2005, na República Dominicana - Acordo de Livre Comércio da América Central passou no Senado e na Câmara, que estabelece as regras de comércio aprovados pelas corporações para empobrecer ainda mais a região e avançar mais um passo para a integração continental.

Em março de 2006, o Conselho de Competitividade da América do Norte (NACC) foi criado na Segunda Cúpula da PPS em Cancun, México. Composto pelos 30 maiores CEOs norte-americanos, ele serve como um grupo de trabalho trilateral oficial SPP.

Reuniões governamentais e empresariais secretos continuam, por isso não há maneira de confirmar o status atual da PPS ou se Barack Obama está continuando perfeitamente a agenda de George Bush. Em um artigo anterior, este escritor disse:

Os esforços da PPS pausaram durante a transição de Bush a Obama, mas os planos de "integração profunda" permanecem. O Instituto Fraser do Canadá propôs mudar o nome da iniciativa para Área Regulatória e de Padrões da América do Norte para disfarçar sua verdadeira finalidade. Ele disse que a "marca PPS"é manchada por isso o re-branding é essencial - para enganar o público até que seja tarde demais para que importe.

Os líderes bilderbergers, trilateralistas e do CRE dão apoia como mais um passo em direção à integração global e não vão "parar até que o mundo inteiro está unificado sob os auspícios e o guarda-chuva político de uma Uma Única Corporação, um mundo sem fronteiras de pesadelo comandado pela camarilha mais poderosa do mundo "- composta por membros-chave elitistas dessas organizações dominantes.

Em abril de 2007, o Conselho Econômico Transatlântico foi estabelecido entre a América e a União Europeia para:

* Criar um "órgão governamental internacional oficial" - por decreto executivo;

* Harmonizar os objetivos econômicos e regulamentares;

* Avançar em direção a um mercado comum transatlântico; e

* Dar mais um passo para um Governo Mundial dirigido pelos interesses corporativos mais poderosos do mundo.

Insights sobre a reunião de 2009 do Grupo Bilderberg

De 14 a 17 de maio bilderbergers realizaram a sua reunião anual em Vouliagmeni, Grécia, e de acordo com Daniel Estulin tem planos terríveis para as economias globais.

De acordo com suas fontes pré-reuniões, eles estão divididos em duas alternativas:

"Ou uma prolongada e angustiante depressão econômica que condene o mundo a décadas de estagnação, declínio e pobreza (ou) uma intensa mas mais curta depressão que abra o caminho para uma nova ordem mundial sustentável, com menos soberania, mas mais eficiência."

Outros itens da agenda incluíram:

- "O futuro do dólar norte-americano e da economia dos EUA;"

- Continuar a mentir sobre sinais de fim da recessão e recuperação econômica;

- Suprimir o fato de que os testes de estresse dos bancos foram uma farsa e foram projetados para enganar, não uma avaliação precisa da saúde dos bancos principais;

- Projetar o desemprego nos Estados Unidos como atingindo 14% no final do ano - muito acima de previsões atuais, o que significa que o verdadeiro número será o dobro, no mínimo, com todas as categorias incontáveis ​​incluídos; e

- Um impulso final para conseguir que o Tratado de Lisboa seja aprovado, para uma adoção pan-europeia de regras neoliberais, incluindo maiores privatizações, menos direitos dos trabalhadores e benefícios sociais, comércio de fronteira aberta favorecendo Estados desenvolvidos acima dos emergentes, e uma maior militarização para suprimir liberdades civis e direitos humanos.

Após o encontro, Estulin conseguiu um relatório de 73 páginas sobre o que foi discutido. Ele observou que "Uma das principais preocupações do Bilderberg...é o perigo de que seu zelo para mudar o mundo engendrando caos (em direção) a sua agenda a longo prazo pode fazer com que a situação espirale para fora de controle e, eventualmente, levar a um cenário onde o Bilderberg e a elite global em geral fiquem sobrecarregadas por eventos e acabem perdendo seu controle sobre o planeta."

Estulin também observou algumas divergências consideráveis ​​entre a "linha dura" que quer um "declínio dramático e uma grave depressão, de curto prazo contra outros que pensam que as coisas foram longe demais" para que "a precipitação da cataclismo econômico global" não pode ser sabida previamente, pode ser maior do que o previsto, e pode prejudicar os interesses bilderbergers. Além disso, "alguns banqueiros europeus expressaram grande alarme sobre seu próprio destino e chamaram a atitude em questão de 'insustentável'".

Houve uma combinação de acordo e medo de que a situação continua dramática e que o pior da crise está pela frente, principalmente por causa do nível de endividamento extremo da América que deve ser resolvido para produzir uma recuperação sustentável saudável.

Tópicos também incluiu:

- A criação de um Departamento do Tesouro Mundial e o Banco Central Global, possivelmente em parceria com ou como parte do FMI;

- Uma moeda global;

- Destruição do dólar através do que o analista de longa data do mercado Bob Chapman chama de "um default furtivo da dívida americana, pela continuação de emissões de enormes quantidades de dinheiro e de crédito e no processo desvalorização do dólar", um processo que ele chama de "fraude";

- Um sistema jurídico global;

- Explorar o susto da gripe suína para criar um departamento global da OMS; e

- O objetivo geral de um governo global e o fim da soberania nacional.

No passado, fontes de Estulin se provaram exatas. Anteriormente, ele previu a crise imobiliária e o declínio do mercado financeiro de 2007-2008, precedido pelo tipo de crise financeira desencadeada pelo colapso do Lehman Brothers. Fique atento para mais atualizações dele conforme novas informações vaza sobre o que as elites do poder do mundo tem planejado enquanto avançam.

Gustavo Aguiar e Marcos Vinícios Pereira de Almeida - Manifesto Contra a Crise de Legitimidade dos Direitos Humanos e das Democracias Ocidentais: Uma Crítica à Dogmática Pós-Moderna

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por Marcos Vinicios Pereira de Almeida e Gustavo Aguiar Marinho



"Tolerância e apatia são as últimas 'virtudes' de uma sociedade moribunda". - Aristóteles.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente estudo tem por objetivo preencher a lacuna deixada pelo status quo vigente, com inteligibilidade de ínclitos pensadores, vivos ou mortos. Iremos explanar, por meio da iluminação platônica ou husserliana (entendida aqui, metaforicamente), os problemas centrais da democracia, dos direitos humanos e da racionalidade prática da modernidade caída. 

Ademais, direta ou indiretamente, os problemas centrais nesses temas sempre estão relacionados aos conceitos de 'universalidade', 'neutralidade', 'igualdade', 'vontade' e 'razão', a saber: os conceitos abstratos que fundamentam as ações beligerantes do imperialismo contemporâneo. Destarte, autores como Alain de Benoist, Aleksandr Dugin, Alasdair MacIntyre, Slavoj Žižek, René Guénon, Julius Evola, dentre outros, trabalharam incessantemente, tanto aprioristicamente quanto na práxis, em combater tais abstrações inúteis. 

No limiar do Kali Yuga (Guénon e Savitri Devi), ou mesmo na decadência que tem como resultado; premissas compostas por simulacros de moralidade (MacIntyre), onde o dominador falseia a realidade ao seu interesse (Žižek), teremos como proposta, a superação dos paradigmas modernos (Aleksandr Dugin). Destarte, o estudo é além de tudo uma ação de contribuição teleológica para um fim em comum na luta contra o mundo moderno. 

A PROPÓSITO DOS DIREITOS HUMANOS

1. Genealogia do indivíduo 

É impossível falar de direitos humanos sem mencionar o nascimento do indivíduo. E, para entendermos melhor os fundamentos teológicos e filosóficos do indivíduo, me valerei de partes da obra Para Além dos Direitos Humanos de Alain de Benoist, onde há uma genealogia clara da individualidade ao longo da história, em seu desenvolvimento filosófico e metafísico ao ponto culminante na modernidade.

Ademais, o cristianismo, segundo De Benoist, difere de outras religiões europeias em muitos aspectos, mas a diferença substancialmente relevante nessa genealogia pertine à concepção de salvação, e no fato de que tal salvação possui natureza individual. A ideia de um Deus único, regente a todos, pressupõe uma comunidade universal e igualitária. Santo Agostinho foi muito importante para a fundamentação desse princípio de salvação individual, no que concerne à sistematização teológica: de que a via de acesso entre o homem e Deus acontece por meio da interioridade; ou seja, a importância da interioridade é indispensável para a compreensão do cristianismo e das tradições filosóficas futuras, como o cartesianismo. (1) 

Outro aspecto importante nessa mudança filosófica é o conceito de amor (ágape) no cristianismo. Essa mudança no conceito (pretensamente universal), foi um enquadramento, por assim dizer, no sentido da "tomada do cosmo" (se é que nos permitem esse termo) do que já está no mundo. "O ágape - continua Alain de Benoist - já anuncia a ideia moderna de Benevolência: todos os seres humanos devem ser tratados com um respeito igual ao que sua dignidade lhe dá direito" (De Benoist, Alain, pag. 22). Portanto, essa mudança radical na compreensão do amor irá afetar bastante a ética moderna na sua busca incessante de afirmação duma moral, desde Kant a John Rawls. (2) 

O cristianismo, como religião universal de uma comunidade que engloba toda a humanidade, não tinha o estabelecimento de um funcionamento desta humanidade. É ai que surge, com a Escolástica, a ética aristótelico-tomista como fundamento do bem comum. Além disso, outra passagem histórica importante foi o surgimento da Escola nominalista, precisamente com Guilherme de Ockham, segundo o qual o Ser é 'singular', e nada mais existe além do singular, assim como nos seus escritos políticos, onde só existem indivíduos. Outra discussão importante do Padre Ockham, tese reafirmada por ele próprio, refere-se ao direito de propriedade para os franciscanos, que tinham feito voto de pobreza. As teses filosóficas e teológicas de Ockham tiveram, outrossim, importância significativa na Escola de Salamanca, notavelmente na mudança radical do conceito de 'Ordem divina' para 'Vontade divina' no direito natural. (3)

No século XVI, pela influência dos dois principais representantes da Escola de Salamanca, Francisco de Vitória e Francisco Suárez, a teologia escolástica passa de uma noção de direito natural objetivo, fundamentado na natureza das coisas, a uma noção de direito subjetivo, fundamentados na razão individual. Enquanto afirma a unidade política do gênero humano, o jesuíta Francisco Suárez declara que o fato social e político não se explicitaria pela pura inclinação natural em uma direção sociabilidade: falta um ato de vontade dos homens e um acordo de suas vontades (a mesma ideia será retoma por Pufendord). Francisco de Vitória acrescenta que "o direito das gentes é o que a razão natural estabeleceu entre todos os povos". O direito se torna, então, sinônimos de uma faculdade individual conferida pela lei moral, com um poder moral para fazer. Com o direito subjetivo - assinala Michel Villey - o indivíduo se transforma "no centro e origem do universos" (De Benoist, Alain, p23). 

Essa virada metafísica na moralidade, no direito e na filosofia, viria a ser muito importante para os filósofos contractualistas, como Hobbes, Locke e Rousseau. Hobbes irá beber muito na fonte da razão natural de Francisco de Vitória, assim como Locke. A título de exemplificação, evocamos um excerto da obra Levitã feita por De Benoist, com o escopo de aclarar tal influência: "O direito natural é a liberdade que cada qual tem de utilizar seu próprio poder" (HOBBES, Thomas, capítulo 14). Isto é, o direito outrora objetivo demandado do cosmos extrinsecamente, declinou-se para o direito natural subjetivo moderno, onde tudo é deduzível do sujeito. O mesmo se verifica em Locke, segundo o qual o homem é um ser calculista. (4) 

Uma passagem importante que ilustra muito bem isso é extraída do livro Sources of the Self: The Making of Modern Identity do filosofo comunitarista Charles Taylor. 

Anteriormente se havia formulado este direito quando se dizia existir uma lei natural que proibia atentar contra uma vida inocente. Ambas as formulações parecem proibir as mesmas coisas. Porém, a diferença não reside tanto na proibição como no lugar que ocupa o sujeito. A lei é a quem devo obedecer. Pode me conferir certas vantagens e, em último, caso, a imunidade que assegura que minha vida, igualmente, deva ser respeitada. contudo, estou fundamentalmente submetido à lei. Em vez, um direito subjetivo é aquele cujo o titular pode e deve exercê-lo para atualizar. (5)

Todo desenvolvimento na criação do indivíduo perpassa e subjaz a metafísica da subjetividade e seu aparecimento sistemático e problemático. Primeiro com Descartes, o Cogito ergo sum 'Penso logo existo' como verdade indubitável, dá efeito na separação sujeito-objeto, assim como o poder avassalador da Reforma Protestante, com Lutero e Calvino e sua importância na separação de natureza e cultura na religião cristã. Além disso, Kant foi, também, muito importante para a veracidade do 'Eu': "O eu penso tem de poder acompanhar todas as minhas representações; pois do contrário, seria em mim algo que não poderia de modo algum ser pensado, o que equivale a dizer que a representação seria impossível ou, pelo menos para mim, não seria nada". (6)  

Por outro lado, a contribuição de Kant para a filosofia política moderna não cessa nas obras críticas, mas em seus pensamentos anteriores. As grandes perguntas que deram a ideia para suas obras críticas: 'O que posso conhecer?' (Crítica da Razão Pura), 'O que devo fazer?' (Crítica da Razão Prática) e 'O que eu devo esperar?' (Crítica da Faculdade de Julgar) termina com uma pergunta muito importante, que o pensador pós-estruturalista Michel Foucault, e outros, vão investigar filosoficamente acerca do nascimento das Ciências Humanas, que é 'O que é o homem?'. Nessa questão, Kant atribui status epistêmico ao homem. Esse homem, como objeto do conhecimento, vai, sem sombra de dúvidas, ser o ponto alto da consideração do século das Luzes e da Revolução Francesa; em atribuir ficções constitucionais de direitos inatos ao homem, em sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. 

2. Direito e Moral.  

Em um elogio à cultura indo-europeia, Alain de Benoist escreve aquilo que o Ocidente trouxe de melhor para o mundo: a objetividade. A saída da objetividade se deu, também,  no processo da metafísica da subjetividade. Tudo aquilo que outrora era objetivo, no bem comum, ou mesmo na distribuição do direito objetivo, sem o enquadramento moralista que ganhou na modernidade, foi abandonado no desenvolvimento e fundamentação da abstração do direito individual. "A declaração de direitos (humanos) não são declarações de amor, são, melhor, declaração de guerra". (7) 

Ademais, o universalismo dos direitos humanos é uma máquina de guerra em sua imposição de doutrina contra todas as tradições no mundo, assim, questionar esses direitos equivale a questionar a existência de Deus na era medieval. Segundo Alain de Benoist, os direitos humanos são um dogma religioso, assim como qualquer outro. Uma doutrina que instrumentaliza a tolerância para praticar intolerância demasiada bélica e universalista.

A ideologia dos direitos definiu classicamente "direitos humanos" como direitos inatos, inerentes à natureza humana, dos quais todo homem é portador desde o estado 'estado de natureza', a saber, antes de qualquer relação social (De Benoist, Alain, p. 17). 

Por conseguinte, a doutrina dos direitos humanos se fundamenta em um inatismo abstrato, isto é, o homem detém direito desde o nascimento, direitos subjetivos que veem junto com ele. Há uma diferença demasiada entre essa concepção de direito subjetivo com o direito objetivo de herança greco-romana, ou como De Benoist denomina: "direito natural clássico". O direito natural clássico, a saber, servia para manter uma equidade entre as partes em relação ao bem comum nas comunidades; a justiça no mundo antigo era de menos direito possível. (8)

Ademais, essa passagem importante que distingue o direito natural clássico do direito subjetivo, lembra muito a obra Considerações sobre a França de Joseph de Maistre, onde, há uma crítica feroz à Revolução Francesa (1789-1799) e uma inauguração da tradição contrarrevolucionária europeia em reação às trágicas mudanças morais e políticas da modernidade. Maistre, nessa obra, faz um diagnóstico profético acerca das nulidades das constituições modernas depois da revolução na França, análise esta que se concretizou como profecia nos séculos subsequentes: 

A constituição de 1795, como suas predecessor as, foi feita para o homem. Mas não existe no mundo nada que se posso chamar de homem. Ao longo de minha vida, tenho visto franceses, italianos, russos, etc.; sei também, graças a Montesquieu, que se pode ser persa. Mas, quanto ao homem, afirmo, que em toda minha vida, jamais o encontrei; se ele existe, desconheço-o completamente. 

Existe um único lugar do mundo onde não se possa encontrar um Conselho dos Quinhentos, um Conselho dos Anciões e cinco Diretores? Pode-se propor essa constituição a todas as associações humanas, da China até Genebra. Mas uma Constituição que é feita para todas as nações, não é feita para nenhuma: é uma pura abstração, uma obra escolástica feita para exercitar o espírito, partindo de uma hipótese ideal, e que está destinada ao homem, nos espaços imaginário em que habita. 

O que é uma constituição? Não é a solução dos seguintes problema? 

Dados a população, os costumes, a religião, a situação geográfica, as relações políticas, as riquezas, os bons e maus costumes atribuídos de uma determinada nação, encontra leis que lhe convenham. 

Porém, esse problema nem sequer foi abordado na Constituição de 1795, que só conseguiu pensar no homem. 

Portanto, todas as razões imagináveis concertam-se para estabelecer que o cunho divinos está ausente nessa obra. Trata-se somente de um tema. 

Em virtude disso, já nesse momento, quantos sinais de caducidade!  (9)

Com efeito, nesta passagem escrita por Maistre, fica claro que esse fracasso não se limita à Revolução Francesa, mas se expande no desenrolar da modernidade e na busca ininterrupta pela justificação da moral, como bem lembrado pelo filosofo aristotélico Alasdair MacIntyre em seu livro polêmico After Virtue. Nesta obra, o pensador escocês defende a tese de que a moralidade não existe, a não ser de maneira fragmentária ou simulada como premissas para conclusões absurdas e abstratas na afirmação duma moral racional. Outro aspecto interessante da obra é o diagnóstico do debate infinito e inconclusivo acerca de diversas morais racionais, a saber: é falho pensar em um consenso no debate ético-moral contemporâneo entre premissas e conclusões distintas: "[...] as premissas adversárias são tais que não temos meios racionais de solapar as afirmações uma com a outra..."(MACINTYRE, Alasdair, p. 24).

Não obstante, o caráter anti-histórico das éticas contemporâneas e a falta da impessoalidade se torna cada vez mais visível no processo gradual do fracasso.  Segundo MacIntyre, uma teoria moral importante na contemporaneidade é o emotivismo. Assim, essa teoria moral parte da premissa de que toda frase ética pressupõe uma prática. Por exemplo, a premissa "Isto é bom!" já pressupõe um imperativo: "Eu aprovo; aprove também", segundo um dos mais notáveis autores da metaética emotivista, C. L. Stevenson. Em contraste com Stevenson, MacIntyre afirma que o emotivismo errou em querer ser uma teoria dos significados, criando um circulo vazio. (10) 

Ademais, para MacIntyre, no começo do século XX o filosofo analítico G. E. Moore pensou algo semelhante ao emotivismo em sua obra prima Principia Ethica; o 'bem' passou a ser uma propriedade, assim como o 'amarelo', isto é, um status antinatural. Em seguida, dizer que um ato é certo, é o mesmo que dizer que dos atos alternativos e disponíveis se produz o maior bem. Portanto, a teoria ética de Moore já antecedeu o emotivismo, até mesmo porque a contemporaneidade, em todo o seu fracasso, abraçou, de modo subjacente, o emotivismo, que pode, talvez, ser análogo à metafísica da subjetividade. Em suma, o 'Eu' emotivista é semelhante ao 'Eu' sartriano; isto é, o 'Eu' não substancial, mas como campo de possibilidades, o nada. (11)    

Antes de tudo, o projeto iluminista de justificação da moral deu um passo largo para o declínio até alcançar o emotivismo. Em virtude disso, MacIntyre explora o desenvolvimento dessa justificação da moral pelos autores do século XVII e XVIII. No norte da Europa esse processo foi mais avassalador do que na própria França das Luzes. Um autor muito importante e analisado pelo pensador escocês é o teólogo Søren Kierkegaard, principalmente em sua obra Ou-Ou de herança kantiana, que se opõe frontalmente ao hegelianismo. Assim, na obra de Kierkegaard há uma característica de decisão na escolha entre dois caminhos: o ético ou o estético. Para MacIntyre, o caminho ético é o compromisso eterno, enquanto o estético está comprometido com ações imediatas de prazer (semelhante à ética utilitarista, se é que nos permitem). Contudo, o ético está além da razão, em subsunção exclusiva a princípios que podem ser impessoais. Entretanto, o caráter ambíguo do pensamento de Kierkegaard prejudica a fundamentação dessa afirmação ético-moral. (12)

Além disso, para MacIntyre, Kierkegaard é herdeiro do fracasso kantiano de afirmar a moral racional eliminando os princípios de felicidade e de impessoalidade religiosa; mas Kant, na Crítica da Razão Prática, faz uma autocrítica por ter excluído o aspecto teleológico de sua ética. Ademais, assim como Kierkegaard é herdeiro do fracasso kantiano, Kant é herdeiro do fracasso de Hume, Adam Smith e Diderot em suas buscas pela justificação da moralidade. Hume e Diderot perfilham este entendimento a partir das paixões, Kant pela razão e Kierkegaard, não descartando também as paixões da alma, procura ultrapassar a razão kantiana. Destarte, segundo MacIntyre, a ética aristotélica pensa na transição entre "o homem que ele é" para "o homem como poderia ser se realizasse sua natureza essencial", coisa muito diferente das propostas dos pensadores modernos, e isso está estreitamente conectado com o desenvolvimento das ciências da natureza e da revolução cientifica, no debate sobre a natureza do homem. A título de ilustração, o nascimento do indivíduo tem uma importância crucial para o deslocamento do homem em relação às funções que predominavam na ética aristótelico-tomista até o medievo. (13) 

Teve origem nas formas de vida social às quais dão expressão os teóricos da tradição clássica. Segundo essa tradição, ser homem é desempenhar um conjunto de papéis cada um dos quais tem seu propósito: membro de uma família, cidadão, soldado, servo de Deus. É somente quando se vê o homem como indivíduo, antes e fora de todos os papéis, que o "homem" deixa de ser conceito funcional. (14)

Ademais, uma passagem em que MacIntyre explica bem o desenvolvimento do fracasso dessas afirmações que fundamentaram de maneira perfunctória os "direitos do homem", hodiernamente cognominados "Direitos Humanos". 

Assim, não se trata apenas de não se poder justificar as conclusões morais do modo como antes se fazia, porém a perda da possibilidade na justificativa indica que uma mudança correlativa no significado do jargão moral. Portanto, o princípio da conclusão "sem 'deve'" de premissas "é" torna-se verdade irrefutável para filósofos cuja cultura só possua o vocabulário moral empobrecido que resulta dos episódios que acabo de contar. Aceitar isso como verdade lógica eterna foi sinal de uma profunda falta de consciência histórica que naquele tempo contaminou e ainda hoje contamina demais a filosofia moral, pois sua proclamação inicial, foi, em si, um evento histórico fundamental. Assinala tanto o rompimento final com a tradição clássica e o colapso decisivo do projeto do século XVIII de justificar a moralidade no contexto dos fragmentos herdados, porem, já incoerentes, deixados pela tradição. (15) 

Decerto que, no começo de sua obra, MacIntyre afirmou a existência de fragmentos ou simulacros de moralidade, que autores modernos viriam a herdar e usar como premissas para justificar conclusões éticas com um disfarce de 'neutralização'. Outrossim, é a veracidade da máxima do pensador escocês em que não há homem fora de uma tradição; tradição como um argumento estendido no tempo em constante diálogo interno e externo. (16)

Por outro lado, diferente da explicação de De Benoist sobre o direito, MacIntyre ilustra bem essa simultaneidade do indivíduo, em cuja compreensão subjaz, também, o 'direito' inato no individuo e a doutrina inquestionável desse moralismo. 

É claro que seria um tanto estranho que existissem direitos atribuídos aos seres humanos simplesmente qua seres humanos à luz do fato, que mencionei na minha exposição do argumentos de Gewirth, de que não há expressão em nenhuma linguagem antiga ou medieval que se traduza corretamente pela expressão "direito" até fins da Idade Média: o conceito carece de meios de expressão em hebraico, grego, latim ou árabe, clássico ou medieval. antes de cerca de 1.400, inexistente também no inglês antigo, ou mesmo no japonês até fins de meados do século XIX. Naturalmente, disso não se infere que não existiam direitos naturais nem humanos; segue-se apenas que ninguém podia saber que existiam. E isso suscita pelo menos certas questões. Mas não podemos nos preocupar em responde-las, pois a verdade e simples: tais direitos não existem e acreditar neles é o mesmo que acreditar em bruxas e unicórnios.  (17)

Ademais, o conceito de "direito"é uma ficção, e mais bizarro ainda soa a atribuição de direitos inatos ao homem, como já mostrou De Benoist. Carl Schmitt estava certo quando diagnosticou, e previu, indiretamente, a 'era das neutralizações' totais, o desmembramento de um fracasso moral em um projeto que já nasceu morto. Na simultaneidade do direito, além do homem detentor de direitos inatos, os tentáculos da neutralização e do enquadramento já atribuem direitos desde nascença aos animais domésticos. Nem mesmo os animais escapam à beligerância do politicamente correto e de sua incessante tirania em afirmar a existência de bruxas e unicórnios.

UMA LEITURA CRÍTICO-REFLEXIVA ACERCA DOS LUMINARES DA DEMOCRACIA OCIDENTAL

O intérprete da realidade sócio-política circundante não pode e nem deve abrir mão de lançar um olhar panorâmico à dinamicidade de funcionamento das estruturas de poder que, no mundo globalizado, irradia de macro-sistemas supra-estatais (oligarquias intergovenamentais e blocos de integração) e descem até alcançar os micro-sistemas localizados (Estados-Nação, em terminologia neo-hegeliana). O que choca neste cenário de interconversão do poder soberano em focos estratégicos de dominação a serviço de um esquema imperialista não é nem o fato de sermos governados pelos interesses de hiperpotências transnacionais que já consolidaram sua hegemonia v.g. na Assembleia Geral da ONU, mas o fato de essas potências quererem impor um padrão homogêneo de governabilidade aos países que escapam à sua zona de influência imediata. Uma pesquisa rápida nos revelará de maneira inequívoca o quão pateticamente seduzida e estupidificada está a civilização ocidental pelo “paradigma” do Estado Democrático de Direito, consagrado academicamente pelo frankfurtiano Jürgen Habermas.  

Desde o pós-segunda-guerra, os que tratam a democracia liberal como panaceia oferecem-na como única solução viável para a estabilização do dissenso dentro de um quadro de opções mais ou menos distinguíveis cuja única função é confundir o observador através da técnica da prestidigitação, forçando-o a contemplar no regime democrático, não a utopia irrealizável do reino prometeico da liberdade e da igualdade que sempre foi, mas um programa concretamente articulado  que retira seu fundamento de legitimidade da soberania popular, ou, como insiste Habermas, da “teoria do discurso”, que: 

Conta com a intersubjetividade mais avançada presente em processos de entendimento mútuo que se cumprem, por um lado, na forma institucionalizada de aconselhamentos em corporações parlamentares, bem como, por outro lado, na rede de comunicação formada pela opinião pública de cunho político. (HABERMAS, A Inclusão do Outro – estudos de teoria política, p. 280).

Contudo, a teoria habermasiana não passa de uma tentativa malsucedida de dissolver as concepções liberal e republicana clássica em um procedimento político-deliberativo vocacionado para a oportunização daquilo que o autor denomina “situação ideal de fala”. Habermas acredita piamente na tese de que a via normal para que cidadãos detentores do status de membros de uma comunidade política alcancem o consenso é a fluidez do dissenso nos circuitos institucionais democráticos, sem explicar de maneira satisfatória como isso pode ser efetivamente assegurado. Patenteia-se, assim, a influência dos precursores do giro linguístico-hermenêutico (Lwduing Wittgenstein e John Austin) na elaboração da teoria discursiva do direito. 

Sobre as democracias serem atualmente oferecidas como única solução viável para as questões internas e externas dos Estados soberanos frente ao espectro terrificante do “fundamentalismo”, o filósofo esloveno Slavoj Žižek, um dos mais fervorosos críticos de Habermas, assevera que:

A lógica oculta é evidentemente a mesma que está por trás da escolha imposta: você tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a escolha certa (...) O que é problemático na forma como a ideologia dominante nos impõe esta escolha não é o fundamentalismo, mas a própria democracia: como se a única alternativa ao “fundamentalismo” fosse o sistema político da democracia parlamentar liberal. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, pgs. 19 e 20) 

A opção pelo regime democrático deixa de ser produto espontâneo do exercício de uma faculdade por parte de nações soberanamente constituídas e se torna a imposição de um receituário apriorístico a partir do instante em que cai nas malhas pragmático-retóricas do discurso público, que tende invariavelmente a distorcer a realidade dos fatos em nome da ideologia dominante. Falar em democracia quando não se admite a veiculação do discurso anti-democrático e comina sanções penais a quem ousa proferi-lo é incorrer naquela espécie de contradição que ameaça a própria coerência interna do sistema defendido. Nesta senda, é o edifício democrático seu próprio algoz, na medida em que não reconhece como legítima a soberania de um povo que julga o programa democrático inadequado à persecução de seus objetivos.  

Ora, se a legitimidade do Estado Democrático de Direito dimana da livre associação e articulação discursiva como perfilha Habermas, por que o discurso totalitário, uma vez articulado, haveria de ser perseguido coercitivamente no bojo de uma sociedade pretensamente democrática? Nesse sentido, Julius Evola assevera que 

Por paradoxal que pareça, a “democrática “liberdade de opinião” devia comportar a legitimidade de professar e defender ideias anti-democráticas. Como não é assim, o resultado é um regime asfixiante e tirânico (de resto, são inúmeros os autores a afirmar que há poucos regimes tão intolerantes como os que apregoam a “liberdade”). (EVOLA, Il Fascismo: Saggio di una Analisi Critica dal Punto di Vista Della Destra, p. 92)

Poderíamos cavar ainda mais fundo aguilhoando que a repulsa ao discurso anti-democrático não se origina unicamente dos aparelhos repressivos de controle social numa ebulição althusseriana de perpétua auto-justificação demagógica, mas também da própria sociedade civil mergulhada em um transe hipnótico infundido pela incessante contrafação de inimigos a serem publicamente execrados, toda vez que alguém se atreve a gozar de sua “liberdade” e “igualdade de fala” para se manifestar ou exibir símbolos, signos ou sinais que a patrulha democrata julga impróprios ao contexto de “uma sociedade livre e igualitária”. O maior de todos os vícios do regime democrático é, de longe, o de arrogar para si o monopólio da definição de conceitos indeterminados, como “liberdade” e “igualdade”, atividade que, no fim das contas, traduz-se em abjeta genuflexão hipostática.  

Lastreado em G.K. Chesterton, Slavoj Žižek obtempera que o conforto em assumir uma posição democrática em relação ao “pensamento fundamentalista” se deve ao inconveniente de este último estribar-se em premissas dogmáticas, ao passo que aquela:

Despreza ironicamente todo engajamento integral, toda tomada de partido “dogmática”. Assim, estamos pregando a velha lição de como o significado ideológico de um elemento não está no próprio elemento, mas na forma como ele é “apropriado”, como é articulado numa cadeia? É verdade – com uma condição fatal: a de que devemos reunir a coragem de abandonar a “democracia” como o Significante-Mestre dessa corrente. A democracia é hoje o principal fetiche político, a rejeição dos antagonismos sociais básicos: na situação eleitoral, a hierarquia social é momentaneamente suspensa, o corpo social é reduzido a uma multidão pura passível de ser contada, e aqui também o antagonismo é suspenso. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, pgs.101 e 102) 

Nesse diapasão, a “soberania popular” (em nível infra-estrutural) e os “direitos humanos” (em instância superestrutural) não passam de uma blindagem à máquina de guerra do estabilishment progressista. A inclinação ocidental por esse tipo de regime deflui dos comandos de reoxigenação que ele parece emitir no que tange à eliminação seletiva de células dissidentes com vistas a um ideal de higienização supremacista e altamente profilático. Em suma: as democracias ocidentais absorveram tudo o que de mais teratologicamente insano concorre para a caracterização dos organismos políticos totalitários. Então, não se trata evidentemente de discriminar ambos os modelos a partir de qualificativos binários, como “melhor e pior”, “bom e mal” (como se os defeitos de um eximissem o outro de prestar contas pelas suas próprias imperfeições), mas tão somente de entender as democracias liberais com a re-substancialização do totalitarismo em uma nova perspectiva aparentemente mais tolerável e “aberta para o futuro”, o que acaba por torná-la infinitamente mais perigosa do que qualquer ideologia assumidamente totalitária.

A sentença do romancista britânico Aldous Huxley sintetiza magnificamente o teor das considerações até aqui expendidas: “a ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão”. Não sem certa razão, Aristóteles via na democracia (assim como na oligarquia e na tirania) um desvio das formas de governo tradicionais (monarquia, aristocracia e governo constitucional). O filósofo estagirita percebeu há mais de dois mil anos (no século III a.C.) o que o ocidente pós-moderno se recusa a aceitar: que o regime democrático constitui, par excellence, um vício, e não uma virtude excelsa.  

O patógeno já começa a infectar o organismo biopolítico desde o momento em que fornece o estatuto paradigmático àquilo que, em verdade, não passa de uma ferramenta de desestabilização de unidades políticas mais fragilizadas a serviço da intrusão neocolonialista. Um belo exemplo de “democracia” é o que acontece quando os EUA se auto-legitimam pelo patriot act a bombardearem o Aferganistão sob o (falso) pretexto de se protegerem de ataques terroristas em potencial (abstratos). Jürgen Habermas ignora visivelmente o fato de que, assim como a descoberta do átomo, as democracias ocidentais podem (e são!) utilizadas como armas de destruição em massa, independente da maneira pela qual se dá sua operacionalidade e a despeito de quão nobres possam ser julgadas suas intenções. O fato de essa destruição ocorrer fora do alcance contingente dos meios de comunicação de massa em nada atenua sua gravidade. A contrario sensu, intensifica-a, uma vez que confere a um cenário extremamente problemático a aparência da mais idílica e desejável normalidade. 

Outro defeito condenável dos democratas é o de pretenderem-se melhores e mais justos do que os defensores de regimes cujos porta-vozes não se limitam a reproduzir ambiguidades semânticas (v.g. “isegoria” e “isonomia”), como se o emprego isolado de tais vocábulos significasse alguma coisa fora de seu contexto originário. Curiosamente, o democrata Robert A. Dahl aponta exatamente esse déficit cognitivo no escalonamento hierárquico da guardiania platônica, ideia segundo a qual o governo deve pertencer a um rei-filósofo oriundo da casta dos guardiões. Nas palavras de Dahl:

Boa parte da persuasão da ideia de guardiania vem da sua visão negativa da competência moral e intelectual das pessoas comuns. Mas ainda que essa visão fosse aceita (...), isso não significa que existem guardiões em potencial com conhecimento e virtude definitivamente superiores ou que eles possam ser criados, tampouco que se possa confiar neles para governar em prol do bem público. (DAHL, A Democracia e seus Críticos, p. 100) 

E por que deveríamos confiar nos anseios dispersivos de uma massa fragmentária de indivíduos cuja única semelhança é o fato de partilharem um mesmo espaço de deliberação no processo de tomada de decisões coletivas? O que o professor emérito de ciência política da Universidade de Yale parece ignorar é que a complexidade das discussões que têm sido encetadas em nível global transcende os domínios da política comparada para abranger outras áreas do conhecimento, como, por exemplo, a geopolítica, a sócio-antropologia, as relações internacionais e a etno-sociologia. Pretender diagnosticar questões complexas a partir de falácias lógicas do tipo modus ponens é, no mínimo, desonestidade intelectual, quando não uma necessidade patológica de viver em deliberada auto-ilusão.

Com efeito, os membros de uma comunidade política regida hipoteticamente por uma elite guardiã carecem, individualmente, das condições necessárias para garantir que o rei-filósofo governa com base no estrito cumprimento do Sumo-Bem, porquanto este, segundo Platão, é insuscetível de ser divisado mesmo através de operações cognoscitivas. Todavia, a pergunta a ser feita não é se os governados são dotados de atributos que lhes permitem demonstrar objetivamente a legitimidade soberana dos governantes, mas se possuem a faculdade de reconhecer como legítima a autoridade do titular do poder soberano. Existe um abismo intransponível entre a demonstração (limitada pela neutralidade do ponto de vista do observador externo) e o reconhecimento (que independe de quaisquer critérios de neutralidade objetiva) que nenhuma espécie de “livre associação comunicativa” é capaz de colmatar.

Um dos maiores prejuízos suscitados pela virada linguística para o pensamento ocidental tem a ver com o rechancelamento da pretensão materialista típica da epistemologia cartesiana. Destarte, tanto Habermas quanto Dahl excluem proposições metafísicas do iter procedimental que constrói a plataforma deliberativa, encapsulando hermeticamente a estruturação democrático-discursiva dentro de si mesma. Habermas, que se vangloria por ter superado as premissas da teoria dos sistemas sociais do jus-sociólogo Niklas Luhmann, em verdade, não fez mais do que acatá-la sob pressupostos diversos dos originalmente elencados, na medida em que, condicionando o desdobramento comunicacional do discurso público à autopoiese do racionalismo cientificista, acabou imunizando o regime democrático a considerações de natureza supra-empírica. O discurso teológico, mítico, tradicionalista, gnosiológico e metafísico não seria pacificamente recepcionado pelas instituições democráticas, mas, antes disso, estigmatizado e impugnado de plano como a inexorável encarnação do retrocesso totalitário.  

Slavoj Žižek fulmina impiedosamente as bases da concepção democrática, prelecionando que:

Na Velha República Alemã era impossível uma pessoa combinar três características: convicção (fé na ideologia oficial), inteligência e honestidade. Quem acreditava e era inteligente, não era honesto; quem era inteligente e honesto, não acreditava; quem acreditava e era honesto, não podia ser inteligente. O mesmo não se aplica à ideologia da democracia liberal? Quem finge levar a sério a ideologia liberal hegemônica não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto: ou é estúpido ou um cínico corrompido. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, pgs. 93 e 94)  

E acrescenta mais adiante, com notória jocosidade: 

Portanto, se me permite uma alusão de mau gosto ao Homo sacer de Agamben, quero afirmar que o modo liberal dominante de subjetividade hoje é o Homo otarius: ao tentar manipular e explorar os outros, acaba sendo ele o verdadeiro explorado. Quando imaginamos estar zombando da ideologia dominante, estamos apenas aumentando seu controle sobre nós. (ŽIŽEK, Bem-Vindo ao Deserto do Real, p. 94)  

O grande paradoxo das democracias liberais hodiernas consiste no fato de que, quanto maior o grau de “liberdade” e ”igualdade” abstratamente outorgado aos cidadãos no procedimento de tomada de decisões coletivas, menos “livres” e “iguais” eles se tornam efetivamente, posto acreditarem ter esgotado todas as possibilidades de escolha, além das quais não há absolutamente nada a ser desejado e perseguido como projeto de vida boa. O regime democrático pode ser explicado através da metáfora zizekiana do café descafeinado, que descreve a perpétua inquietação suscitada pela pseudo-realização de um programa irrealizável. 

De todo o acima exposto, evocamos as sábias palavras do professor Alexandr Dugin sobre o fracasso das democracias ocidentais e sobre porque elas devem ser combatidas: 

É-nos dito (através da hipnose e propaganda) que “não pode ser” de outra forma (do que é agora). Ou que qualquer alternativa seria “ainda pior”. Essa melodia familiar diz que “a democracia tem muitos defeitos, mas todos os outros regimes políticos são muito piores, é melhor tolerar o que já está”. Isso é mentira e propaganda política. O mundo em que vivemos, é inaceitável, intolerável, levando-nos à morte inevitável e encontrar uma alternativa para isso é uma condição de sobrevivência. Se não derrubarmos o status quo, não mudarmos o curso do desenvolvimento da civilização, não privarmos do poder, não destruirmos a oligarquia mundial como um sistema e como forças específicas, grupos, instituições, corporações e até mesmo indivíduos, nós vamos nos tornar não apenas vítimas, mas também cúmplices do fim iminente. As “alegações de que “tudo não é tão ruim”, “antes era pior”, “de alguma forma tudo vai ficar melhor”, etc, é uma forma deliberada de sugestão, hipnose, destinada a acalmar os resquícios de consciência livre, independente de análises sóbrias. (DUGIN, Geopolítica do Mundo Multipolar, p. 181)  

CRÍTICA AO REGIME DEMOCRÁTICO SOB A ÓTICA DO TRADICIONALISMO STRICTO SENSU DE JULIUS EVOLA, RENÉ GUÉNON E SAVITRI DEVI

O que nos motivou a buscar respaldo na concepção tradicionalista com o escopo precípuo de desmistificar o regime liberal-democrata foi a esperança de que, ao reinserir pensamentos desta natureza na procedimentalidade do discurso público, possamos quebrar o engessamento da teoria democrática através de seus próprios mecanismos institucionais. Para tanto, é imperioso destacar, desde logo, que tal mister só poderá ser alcançado mediante uma ruptura radical com a comunicabilidade seletiva, que torna a veiculação do discurso de um certo grupo de interesses cinicamente mais “justa e igualitária” do que de outros. A intenção, desde o início, tem sido explicitar a maneira pela qual um sistema de “co-legisladores” que se auto-legitima a si mesmo desperta os ideais mais perversos e ignominiosos em detrimento dos variados tipos de arcabouços civilizacionais e costumes tradicionalmente arraigados, ao ponto de tornar admissível o sacrifício da soberania política de povos inteiros em prol do sonho democrático de um ocidente que carece dos instrumentos hábeis a garantir sua própria sobrevivência na arena geopolítica mundial.     

Em sua célebre Revolta Contra o Mundo Moderno, o barão italiano Julius Evola procede a uma investigação meticulosa acerca da decadência da civilização ocidental, perscrutando as causas que a deflagraram no interior dos mais diversificados ciclos cósmicos. Para os fins do presente estudo, nos limitaremos a realizar uma explanação evoliana acerca do ciclo helênico, no bojo do qual se encontra catalogada a ontogênese do sistema democrático. 

Segundo Evola, o cisma que abalou a configuração aristocrático-sacral das primeiras cidades gregas deu ensejo à progressiva institucionalização de um regime centrado na secularização dos anseios populares. 

Um fermento revolucionário altera a partir das bases as antigas instituições, a antiga concepção do Estado, da lei, do direito e da própria propriedade – e dissociando o poder temporal da autoridade espiritual, reconhecendo o princípio electivo e introduzindo instituições que foram se abrindo progressivamente às camadas sociais inferiores e à impura aristocracia do censo (casta dos mercadores: Atenas, Cumes, etc.), e, finalmente, à própria plebe protegida pelos tiranos populares (Argos, Corinto, Sicyone, etc.) – dá lugar ao regime democrático [no qual] realeza, oligarquia, burguesia e, para terminar, dominadores ilegítimos (...) vão buscar o seu poder [em] um prestígio puramente pessoal e que se apoiam no demos, são estas as fases da involução que, depois de se ter manifestado na Grécia, se repete na Roma antiga e se realiza em seguida em grande escala e de uma maneira total no conjunto da civilização moderna. (EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 344)   

Entretanto, os inconvenientes do princípio democrático não devem ser interpretados como produzindo uma repercussão meramente política, a teor do que inescrupulosamente vêm sustentando os críticos mais contumazes da democracia burguesa ocidental, isso porque o “fenómeno político está estreitamente ligado a manifestações análogas que atingem mais directamente o plano do espírito”. (EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 344)

A redefinição estrutural das instituições que regem funcionalisticamente as relações de poder no seio de um microssistema sócio-político regionalizado (ou no contexto do intercâmbio entre várias comunidades políticas) produz consequências desagregadoras na espiritualidade professada dentro do referido microssistema. Daí o erro grosseiro decorrente da interpretação atomizada do fenômeno político no qual incorre as ciências analíticas ao pretenderem isolar seu objeto de estudo com o afã de apreendê-lo mediante a técnica do desmembramento, herdada das ciências naturais.  

Portanto, para entendermos a dimensão real dos males democráticos, bem como suas principais contribuições para o colapso iminente da civilização ocidental, urge mergulharmos em uma abordagem essencialmente transdisciplinar que, por um lado, não ignore a fenomenologia política em sua totalidade, mas que, por outro, não se atenha única e exclusivamente a ela, trazendo a lume questões de índole escatológica. Somente a partir do instante em que passamos a assumir a existência de uma interpenetração cósmico-simbólica do sistema político com os sistemas esotéricos de base metafísica é que poderemos atacar o âmago da questão livres de pré-conceitos e precipitações reducionistas.   

Nesta ordem de ideias, Julius Evola reputa à democracia helênica o esgotamento da figura arquetípica do herói grego e da desnaturação do conceito hermético (pré-helênico) de imortalidade da alma. 

É assim que nasce e se difunde na Grécia a estranha ideia de que a imortalidade é uma coisa quase normal para qualquer alma de mortal; paralelamente, democratiza-se a noção de herói a ponto de em certas regiões – por exemplo na Beócia – se acabar por considerar como <<heróis>> homens que – como exprimiu argutamente alguém – de heroico não tinham senão o simples fato de estarem mortos. (EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 344 e 345).

Essa descaracterização da espiritualidade típica de sociedades aristocráticas foi e continua sendo nos dias de hoje alimentada pela crença cega em valores seculares, como o humanismo, o cientificismo e o racionalismo, que muito antes do advento do século das luzes podiam ser vislumbrados, ainda que de maneira bastante tímida e residual, nas pólis gregas. 

Mais tarde os deuses, já enfraquecidos pela sua transformação em figuras mitológicas, tornaram-se conceitos filosóficos, ou seja, em abstracções, ou então em objetos de um culto esotérico. A emancipação do indivíduo, em relação à tradição, sob a forma de <<pensador>>, a afirmação da razão como instrumento de livre crítica e de conhecimento profano, derivaram normalmente desta situação. E é precisamente na Grécia que elas se manifestaram, pela primeira vez, de uma maneira característica. (EVOLA, Revolta contra o mundo Moderno, p. 344)   

Todavia, a despeito de sua origem helênica, as democracias modernas não guardam a mínima semelhança estrutural com o modus de organização política das cidades-Estado gregas, uma vez que, assimilado pelos ideais iluministas de matriz europeia, o fenômeno democrático passou a ser compreendido sob um enfoque estritamente quantitativo, voltado para o interesse majoritário, consoante apregoa René Guénon.

Isso leva-nos imediatamente a perceber em que é que está essencialmente errada a idéia segundo a qual a maioria deve fazer a lei (...) A opinião da maioria só pode ser a expressão da incompetência, quer esta resulte da falta de inteligência, ou da ignorância pura e simples. Pode-se fazer intervir, a este respeito, certas observações de “psicologia coletiva” e lembrar notadamente o fato bastante conhecido de que, numa multidão, o conjunto das reações mentais que se produzem entre os indivíduos que a compõem leva à formação de uma espécie de resultante que não está nem sequer no nível da média, mas no nível dos elementos mais inferiores. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 70) 

As objeções de Guénon às premissas estruturantes das democracias ocidentais registradas em Crise do Mundo Moderno devem ser compreendidas à luz do que o autor denomina “metafísica pura”, em relação à qual a selvageria política de uma cotidianidade viciada e reiteradamente fustigada por imperfeições teórico-práticas situa-se muito aquém do nível desejável de reflexão e ponderação, o que acaba repercutindo negativamente na capacidade do sistema de solucionar eventuais conflitos de interesse. Associando a metafísica pura ao motor-imóvel aristotélico, Guénon estabelece uma dissociação radical entre as ciências contemplativas (ou especulativas), voltadas para o logos espiritual inerente a cada sistema religioso e as ciências profanas, de caráter eminentemente positivista/materialista. 

A importância deste desdobramento conceitual reside no fato de que os regimes seculares embasados pelo iluminismo pré-moderno (inclusive – e, sobretudo - a democracia) são incapazes de solucionar de maneira necessária (não-acidental) as polêmicas que ele vive fomentando e retroalimentando monotonamente no desenrolar de um verdadeiro circunlóquio. Questões que já deviam ter sido superadas voltam a emergir no contexto de uma sociedade plúrima, que, exatamente por admitir um sem número de “respostas possíveis”, incorre no embaraço de não responder coisa alguma. Destarte, a ansiedade desencadeada pela busca de soluções abstratas para todos os problemas do mundo torna-se inversamente proporcional à efetiva concreção e aplicação desses prognósticos.   

Como um autoproclamado anti-polemista, Guénon faz gravitar suas elucubrações em torno de uma constelação hermenêutica diametralmente oposta ao cientificismo racionalista. Isso porque, na cosmovisão do autor, o tratamento das ciências profanas e suas ramificações como sistemas cognitivos autossuficientes só poderá resultar em uma “dispersão na multiplicidade”.

As ciências seculares devem ser compreendidas como meros prolongamentos da metafísica pura (fonte de sua unidade e legitimidade), reconhecendo a posição a elas reservada na hierarquia cósmica. Em síntese apertada, porém completa: a metafísica pura “unifica” as ciências vulgares em um agregado coerente, no sentido de fornecer a elas a coesão necessária à adequada otimização de seu potencial cognoscitivo. Portanto, a teoria democrática pode ser impugnada como:

A inversão completa da ordem normal, visto que é a proclamação da supremacia da multiplicidade como tal, supremacia que, de fato, só existe no mundo material. Pelo contrário, no mundo espiritual e mais simplesmente ainda na ordem universal, é a unidade que está no cimo da hierarquia, porque é ela o princípio de onde parte toda a multiplicidade; mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só resta a multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 71) 

O que está implícito no excerto guénoniano é que o elevadíssimo grau de incerteza ofertado pelo regime democrático fá-lo padecer de uma ausência de configuração própria e contornos semânticos específicos, tornando impossível ao hermeneuta ordinário sondar os limites de sua operacionalização na topografia de uma realidade sócio-política extremamente limitada, o que nos forçaria não só a ampliar ad infinitum o rol de considerações crítico-reflexivas acerca de um mesmo objeto como também a buscar respaldo para a resolução de certos conflitos na cosmo-esfera de uma ordem transcendente, alógena ao espaço e ao tempo. É assim que as imperfeições inerentes ao universal pragmático habermasiano o aproximam mais de um auto-encapsulamento impermeabilizante da comunicabilidade cidadã do que de uma via alternativa de estabilização das expectativas de comportamento.  Destarte:

O argumento mais decisivo contra a “democracia” resume-se em poucas palavras: o superior não pode emanar do inferior, porque o “mais” não pode sair do “menos”; isto é de um rigor matemático absoluto, contra o qual nada poderia prevalecer (...) É demasiado evidente que o povo não pode conferir um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso, diga-se de passagem, que só pode ser legitimado pela sanção de alguma coisa superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual. Se for de outra maneira, será apenas uma contrafação de poder, um estado de fato que injustificável por defeito de princípio, e em que não pode haver senão desordem e confusão. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 69)          

Pode-se, a título de esclarecimento, fazer uma homologia entre o papel desempenhado pelo titular do poder soberano em uma aristocracia régia com o funcionamento de um organismo biológico, que tem todos (ou quase todos) os órgãos condicionados pelo bombeamento de sangue oriundo dos movimentos de contração e dilatação (sístole e diástole) do músculo cardíaco. O mesmo ocorre em um grupamento sócio-político devidamente administrado pela figura de um líder central, cujas deliberações refletem a vontade dos governados, sem, contudo, se confundir com ela, como se verifica nas democracias ocidentais de orientação liberal. 

Ao líder hereditário, sístole e diástole de uma comunidade fisiologicamente unificada, deve ser conferida autoridade plena para tomar decisões em nome da coletividade, uma vez que, da mesma maneira que um organismo não escolhe sua saúde coronária, os governados não têm competência para escolher, mediante sufrágio universal, seu guardião. Não compete ao homem médio redefinir a plataforma axiológica do seu espaço de interação, porque se a comunidade da qual faz parte fosse passível de ser alterada idiossicraticamente, então o “fazer parte” sobejaria degenerado, na medida em que este pressupõe a assunção de condicionantes exógenas à vontade de pessoas e/ou grupos específicos. O “fazer parte” não pode ser desmembrado em várias partes do “fazer parte”. Do contrário, o próprio ideal de unificação se dissiparia feito poeira, arrastando consigo o sentido de coerência do holismo comunitário e da própria ordem política concebida como um todo organicamente articulado.  

Os chamados tradicionalistas em sentido estrito são unânimes em afirmar que o ocidente caminha para o seu sepultamento, na medida em que o logos ancestral vai sendo exponencialmente sobrepujado pelo frenesi espasmódico progressista manifesto pelos mais variados segmentos ideológicos da modernidade. A ideologia secular preencheu todos os espaços dantes ocupados pela moral espiritual, trazendo em seu bojo postulados que reinterpretam a si mesmos sob diversos ângulos e perspectivas; é como se todos os filósofos e politólogos desde René Descartes explorassem a mesma ideia de formas diferentes, fazendo com que os erros de outrora se tornem ainda mais acentuados. Por esta razão, os democratas pós-modernos enganam-se redondamente ao creem-se libertos do invólucro dogmático que pairava sobre seus predecessores na modernidade. Tal qual a maldição do Dr. Viktor Frankenstein na crônica de Mary Shelley, o caráter sectário típico das ideologias de massa impregna as democracias contemporâneas de maneira simbiótica. Criador e criatura lutam incansavelmente para se separarem, mas o fato de serem frutos de uma mesma experiência amarra suas vidas a um único e inevitável destino.    

É nesse sentido que Savitri Devi aduz que o homem moderno

É ensinado – nos países democráticos, de qualquer modo – que ele é livre em todos os aspectos; que ele é “um indivíduo, que responde a ninguém, mas somente à sua “consciência” e todo o seu ser, tão completamente de acordo com o padrão, que ele não é mais capaz de reagir de uma forma diferente. E como pode um homem assim falar de “pressão sobre o indivíduo” em qualquer sociedade, seja ela antiga ou moderna! (DEVI, O Relâmpago e o Sol, p. 7)   

Pode-se, ainda, tecer críticas arrasadoras à democracia neoliberal, identificando-a como um dos elementos que caracterizam a (assim denominada pela cosmologia hindu) Quarta Idade, Idade Sombria ou simplesmente Kali Yuga. Conforme o escólio de René Guénon:

A doutrina hindu ensina que a duração de um ciclo humano, ao qual dá o nome de Manvantara, divide-se em quatro idades, que correspondem a fases de um obscurecimento gradual da espiritualidade primordial; são esses mesmos períodos que as tradições da Antiguidade ocidental, por seu lado, designavam como as Idades de Ouro, de Prata, de Bronze e de Ferro. Estamos presentemente na quarta Idade, Kali-Yuga ou “Idade Sombria”, e estamos nela, afirma-se, há mais de seis mil anos, ou seja, desde uma época bastante anterior a todas aquelas que são conhecidas da História “clássica”. Desde então, as verdades que eram outrora acessíveis a todos os homens tornaram-se cada vez mais dissimuladas e difíceis de atingir; aqueles que as possuem são cada vez menos numerosos e, se o tesouro da sabedoria “não humana”, anterior a todas as idades, nunca se pode perder, ele se envolve no entanto em véus cada vez mais impenetráveis, que o escondem aos olhares e sob os quais é extremamente difícil descobri-lo. (GUÉNON, Crise do Mundo Moderno, p. 9)

Savitri Devi corrobora o teor destas elucubrações, acrescentando que a Kali Yuga é

a fase em que a mentira é chamada de “verdade” e a verdade é perseguida como falsidade ou ridicularizada como loucura; em que os expoentes da verdade, os líderes divinamente inspirados, os verdadeiros amigos de sua raça e de toda a vida – os homens como Deus – são derrotados, e seus seguidores humilhados e sua memória caluniada, enquanto os mestres das mentiras são tidos como “salvadores”; a fase em que cada homem e mulher está no lugar errado, e o mundo é dominado por indivíduos inferiores, raças bastardas e doutrinas viciosas, tudo parte integrante de uma ordem inerente de feiura muito pior do que a completa anarquia. (DEVI, O Relâmpago e o Sol, p. 13)   

As considerações de Julius Evola sobre a decadência da civilização ocidental a partir do ciclo helênico reforçam a ideia de que as democracias contemporâneas só poderiam triunfar em um território no qual o humanismo iluminista está profundamente enraizado como fator de ressemantização ontológica da estrutura da realidade, o que torna imperiosa a constatação de que a tradição não pode sobreviver num ambiente em que inexiste uma correspondência recíproca entre o sagrado e o profano, em que esta reciprocidade foi castrada pelo sentimentalismo humanista de tessitura laica ou secular.

O humanismo – tema característico da idade do ferro – já se anunciava através do aparecimento de um sentimentalismo religioso e da dissolução dos ideais de uma humanidade virilmente sagrada. Mas o humanismo abre resolutamente outras vias, em particular na Hélada, com o advento do pensamento filosófico e da investigação física. E a este respeito não se manifesta nenhuma reação tradicional considerável; pelo contrário, assiste-se ao seu desenvolvimento regular, paralelamente ao desenvolvimento de uma crítica laica e antitradicional; foi como que a propagação de um cancro nos elementos sãos e anti-seculares que ainda subsistiam na Grécia. Embora isto corra o risco de ser dificilmente concebível para o homem moderno, é verdade que historicamente a predominância do <<pensamento>> é um fenômeno marginal e recente – mesmo sendo anterior À concepção puramente física da natureza. O filósofo e o <<físico>> não passam de dois produtos degenerescentes surgidos numa fase já avançada da última idade, a idade do ferro.Esta <<descentralização>> que, no decorrer das fases já consideradas, veio a separar gradualmente o homem de suas origens, deveria finalmente fazer dele, em vez de um ser, uma existência, ou seja, <<algo que está de fora>>, uma espécie de fantasma, de tronco, que no entanto terá a ilusão de reconstruir sozinho a verdade, a sanidade e a vida.  (EVOLA, Revolta Contra o Mundo Moderno, p. 347)

É esta atmosfera impregnada de um racionalismo infra-humano na qual vicejam os mais desarrazoados impropérios que vêm sustentando a crença popular em um regime pretensamente superior à própria história, não em termos de uma transcendentalidade imanente, mas no sentido de uma completa intransigibilidade para com doutrinas não alinhadas aos corolários da marcha ocidental rumo ao colapso civilizacional. Não há nada de surpreendente no fato de o regime democrático procurar, desesperadamente, um sentido de autojustificação na historiografia contemporânea, porque este é precisamente o campo em que sua derrota se verifica de maneira mais escancarada. O que se tem não é uma justificação real, historicamente fundamentada, e sim uma aparência de legitimidade, ou uma legitimidade virtualmente imposta pela ruptura da história com a pré-história.

Evocamos o magnífico excerto de Giorgio Agamben para contrastar com o pano de fundo explorado neste tópico, e que resume de maneira grandiloquente a crise moral e espiritual das democracias hodiernas:

Daqui, sobretudo, a singular inquietude do poder exatamente no momento em que se encontra diante do corpo social mais dócil e frágil jamais constituído na história da humanidade. É por um paradoxo apenas aparente que o inócuo cidadão das democracias pós-industrial (o bloom, como eficazmente se sugeriu chama-lo), que executa pontualmente tudo o que lhe é dito e deixa que os seus gestos quotidianos, como sua saúde, os seus divertimentos, como suas ocupações, a sua alimentação e como seus desejos sejam comandados e controlados por dispositivos até nos mínimos detalhes, é considerado pelo poder – talvez exatamente por isso – como um terrorista virtual. Enquanto a nova normativa europeia impõe assim a todos os cidadãos aqueles dispositivos biométricos que desenvolvem e aperfeiçoam as tecnologias antropométricas (das impressões digitais à fotografia sinalética) que foram inventadas no século XIX para a identificação dos criminosos reincidentes, a vigilância por meio de videocâmera transforma os espaços públicos das cidades em áreas internas de uma imensa prisão. Aos olhos da autoridade – e, talvez, esta tenha razão – nada se assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum. (AGAMBEN, O Que é o Contemporâneo, pgs. 49 e 50)  

O CARÁTER RIZOMÓRFICO DAS DEMOCRACIAS CAPITALISTAS SOB O PRISMA DA ESQUIZO-ANÁLIZE DELEUZO-GUATTARIANA

Neste tópico, analisaremos as democracias burguesas à luz da esquizo-análise de Gilles Deleuze e Felix Guattari, apontando as deficiências e contradições subjacentes à tese que preconiza a existência de um “sistema democrático”.  Quer-se, com isto, evidenciar que a expressão “sistema democrático” encerra um oximoro, na medida em que a molecularização dos focos de centralidade e operacionalidade decorrentes da essência mesma do regime democrático vai de encontro a quaisquer pretensões de sistematicidade, colocando em xeque o próprio caráter de reductio ad uno que Robert Dahl, Jürgen Habermas, Norberto Bobbio et caterva procuraram tão obstinadamente imprimir às democracias contemporâneas. Oportuno recordar o paradoxo democrático para uma melhor compreensão da abordagem em tela, qual seja: o de que a persecução de um ideal de abertura para o futuro transforma a democracia em um sistema fechado, mas somente enquanto “corpo sem órgão” nas latitudes movediças de um devir equacionado pela singularidade rizomórfica do Ecúmeno; isto é: sem levar em consideração a outra face da “dupla articulação”, o Planômeno.   

Embora na propaganda democrática a configuração de um regime pautado na veiculação de códigos binários (o sim/não habermasiano) como critério de tomada de decisões no curso do procedimento deliberativo conserve uma aparência de centralidade similar à morfologia estrutural sedentária típica da árvore-raiz, as democracias capitalistas advogam um raciocínio contraposto, a saber: o do livro-mundo nomadológico, na medida em que o discurso democrático erige-se em subproduto de rearranjos de micromultiplicidades produzidas e reproduzidas através de seus próprios mecanismos radiculares. Isso, por si só, já seria mais do que suficiente para desmistificar a ”coesão interna” entre Estado de Direito e democracia e a própria ideia de um “mundo da vida” rigorosamente encarado por Habermas como o espaço de discursividade público-privado. Pode-se afirmar, a partir da fórmula geral do esquizo fornecida por Deleuze e Guattari, que o funcionamento do Estado Democrático de Direito, sincronizado com o “agenciamento maquínico” do iluminismo, consubstancia as “linhas de lobo”, ou “linhas de desterritorizalização”, tornando o mundo da vida habermasiano um deserto povoado, que “se opõe menos aos órgãos do que a uma organização que compõe um organismo com eles. O corpo sem órgãos não é um organismo morto, mas um organismo vivo, e tão vivo e tão fervilhante que ele expulsou o organismo e sua organização”. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, pgs. 41 e 42)    

Ao contrário dos Estados orgânicos, escalonados hierarquicamente e legitimados a partir de uma moralidade transcendente, o sentido de autojustificabilidade dos Estados democráticos constitui, a um só tempo, produto e geratriz da sua operabilidade horizontal. 

No fim, todas as formas de simetria vertical (as orientações “de cima para baixo”, hierárquicas) estão sujeitas à destruição e se tornam horizontais. Similarmente, a linha vertical de poder e o Estado se tornam horizontais e assim a antropologia política, empregando essa ou aquela constituição do indivíduo, se dissipa e se dispersa no espaço da poeira rizomática. (DUGIN, A Quarta Teoria Política, p. 109)

É assim que as democracias capitalistas, tal qual o esquizo deleuziano, podem ser descritas como um pseudo-sistema supra-infra-dimensional, na medida em que justapõe seus fragmentos subjuntivos e transcendentes, equalizando-os na expansividade horizontalizada de múltiplos estratos que convergem para um núcleo–pivô auto-replicante. Nas democracias liberais, o homem “é um obstáculo no caminho de si mesmo, ele perturba e incomoda a si mesmo. Um homem cai diante de esquizomanias individuais como foi retratado por Deleuze em “Anti-Édipo” (DUGIN, A Quarta Teoria Política, p. 130) 

Destarte, o regime democrático é simplesmente insuscetível de ser assimilado a partir da arregimentação e concatenação de micrologismos no bojo de uma estrutura fractal criptografada, e o que os democratas vendem como “estrutura” (no sentido arborescente de massa molar), em verdade, não passa de uma pseudo-estrutura (no sentido rizomórfico de matilha molecular) ou imitação do real pelo sobredimensionamento de uma virtualidade esquizoide. É neste sentido que Slavoj Žižek atribui a Deleuze o epíteto de filósofo do virtual:

La primera determinación que se nos viene a las mientes a propósito de Deleuze es que es el filósofo de lo Virtual, y la primera reacción ante eso debería ser oponer la noción de lo Virtual em Deleuze al tema omnipresente de la realidade virtual: lo que le importa a Deleuze no es la realidad virtual sino la realidad de lo virtual (que, en términos lacanianos, es lo Real). Em sí misma la Realidad Virtual es una ideia bastante miserable: la de imitar la realidad, la de reproducir su experiencia em un medio artificial. La realidad de lo Virtual, por otra parte, significa la realidad de lo Virtual como tal, de sus efectos y consecuencias reales. Consideremos un atractor em matemáticas: todas las líneas o puntos positivos que están dentro de su esfera de atracción se le aproximan de manera incesante, pero sin llegar nunca a alcanzar su forma; forma cuya existencia es puramente virtual, no outra cosa que la figura hacia la que tienden líneas y puntos. No obstante, precisamente como tal, lo virtual es lo Real de este campo: el inamovible punto focal en torno al cual circulan todos los elementos. ¿No es esto, lo Virtual, en último término, lo simbólico como tal? Tomemos la autoridad simbólica: para funcionar como una autoridad efectiva, tiene que permanecer como no-plenamente-atualizada, como una amenaza eterna. (ŽIŽEK, Organos sin Cuerpo – Sobre Deleuze y consecuencias, p. 19) 

O termo “ameaça eterna” deve ser compreendido, no contexto democrático, não como coerção panóptico-benthamiana de uma sociedade constantemente vigiada por instituições de controle disciplinar, mas como pressão sinóptica (dispersiva), fonte da irreflexão mediante a qual o consenso cidadão é construído e pseudo-legitimado a partir de seu próprio eixo de estruturação semiológica. Em poucas palavras: a democracia capitalista é o retrato do totalitarismo perfeito, porque invisível, imperceptível, inapreensível e, de conseguinte, indiagnosticável. O fato de a autoridade política não estar plasmada em um centro de poder positivo (posto que, pelo princincípio da soberania popular, é o povo – demos, populus - que se auto-governa) não descaracteriza as democracias como um regime pretensamente despótico. Isso significa apenas que o despotismo passou de um nível macromolecular para um estrato micromolecular.

Quando o absolutismo é fragmentalizado em uma multiplicidade de focos estrategicamente selecionados para exercê-lo nas instâncias parlamentar, administrativa e judiciária, seu grau de repressão e controle é hiperpotencializado, porque impulsionado em filamentos nas válvulas de uma “máquina abstrata, que:

Começa a se desdobrar, começa a se erigir, produzindo uma ilusão que transborda todos os estratos, embora pertença ainda a um determinado estrato. É, evidentemente, a ilusão constitutiva do homem (quem o homem pensa que é?). É a ilusão que deriva da sobrecodificação imanente à própria linguagem. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 79)

A democracia é a personificação daquilo que Deleuze e Guattari chamam de singularidade zero, a dimensão neutral em cuja matriz radicular fluem imperativos de consolidação do devir, que, por sua vez, “se asienta en la fuerza productiva del “esquizo”, esta explosión del sujeto unificado em la multitud impersonal de intensidades deseantes, intensidades que son constreñidas subsiguientemente por lá matriz edípica”. (ŽIŽEK, Organos sin Cuerpo – Sobre Deleuze y consecuencias, p. 48)   

Portanto, não há se falar em uma dicotomia entre os processamentos de macromultiplicidades arborescentes e micromultiplicidades rizomáticas, uma vez que ambos figuram como desdobramentos lineares de uma interpenetração a-epistemológica do sujeito com o objeto do conhecimento. É precisamente neste interregno que a esquizomania democrática se auto-propulsiona comunicativamente através de uma linguagem codificada de “sim e não”, “lícito e ilícito”, ”justo e injusto”, etc. 

Do eixo genético ou da estrutura profunda, dizemos que eles são antes de tudo princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito. Toda lógica da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução. Tanto na Linguística quanto na Psicanálise, ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o reequilíbrio de correlações subjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que sobredecodifica ou de um eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas na árvore. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 21)     

O rizoma, a outro giro, não pode ser interpretado como estrutura na estrita acepção do termo, na medida em que seu caráter cartográfico permite que seja explorado a partir de diferentes perspectivas por diferentes observadores. Portanto, a apreensão rizomática pode ser metaforicamente descrita como a leitura de um mapa: o mapa do decalque. 

O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente (...) Entretanto, será que nós não restauramos um simples dualismo opondo os mapas aos decalques, como um bom e um mal lado? (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, pgs. 21 e 22)   

A resposta negativa para esta pergunta vem acompanhada da seguinte explicação:

O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma em raízes e radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por isto ele é tão perigoso. Ele injeta redundâncias e as propaga. O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma são somente os impasses, os bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação (...) Existem estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz podem recomeçar a brotar em um rizoma. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol.1, p. 22) 
  
Toda essa performance de descodificação e recodificação de estratos que se sobrepõem uns aos outros mediante interestratos para formar paraestratos é presidida por aquilo que Deleuze denomina “mecanosfera”, o organismo transcodificador (ou sobrecodificador) dentro do qual as relações de poder interagem semiologicamente através de uma espécie de metalinguagem universal (anterior à relação significante-significado). “É essa propriedade de sobrecodificação ou de sobrelinearidade que explica o fato de não haver, na linguagem, somente independência da expressão em relação ao conteúdo, mas também independência da forma de expressão em relação às substâncias”. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 78) 

Isso suscita a formulação de um problema, que pode ser assim enunciado: Partindo do pressuposto habermasiano de que as democracias capitalistas operam por meio da linguagem e que esta linguagem está sujeita a um alto grau de risco de dissenso rumo à materialização do consenso, como interlocutores, em sua maior parte destituídos da capacidade de entender a dinâmica de processamento do regime democrático poderiam participar ativamente da construção de significados de objetos dentro deste regime? Ou, mais sucintamente: como uma metalinguagem a-significante poderia gerar significados consensuais se, mesmo entre significados e significantes não há uma simétrica correspondência, como conclui Deleuze em Mil Platôs?   

Como se percebe claramente, o problema da indagação reside antes, e acima de tudo, na impossibilidade de se formular um problema cujo objeto padece de uma sondagem no “plano de consistência” (ou planômeno), plano este que a linguagem não consegue penetrar, exceto sob a forma de desterritorialização. 

O que chamamos de mecanosfera é o conjunto das máquinas abstratas e agenciamentos maquínicos, ao mesmo tempo, fora dos estratos, nos estratos e interestráticos. O sistema dos estratos, portanto, nada tinha a ver com significante-significado, nem com infra-estrutura superestrutura, nem com matéria-espírito. Tais oposições eram maneiras de reduzir a um todos os estratos, ou então de fechar o sistema sobre si, isolando-o do plano de consistência como desestratificação. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 88)   

O que nos torna possível identificar a mecanosfera sobrecodificadora com o regime democrático é precisamente seu duplo grau de articulação. Poderíamos, com Deleuze e Guattari, constatar que as democracias capitalistas são uma lagosta, na medida em que é, por um lado, composta por camadas de segmentos de estratos descodificadores, e, por outro, por um continuum linear que recodifica o Ecúmeno em uma linguagem metaestrática através de um complexo de máquinas abstratas e agenciamentos maquínicos intermediários. Os interlocutores envolvidos no processo político-deliberativo conhecem o primeiro lado da lagosta, mas são completamente ignorantes em relação ao segundo, porque, como ficou assente, a linguagem vai muito além da mera co-respectividade entre significante e significado. 

Destarte, se os interlocutores são incapazes de se comunicarem mediante códigos polifônicos que trazem, em sua própria estrutura recodificadora, uma infinidade de desdobramentos semânticos, é imperativo que também sejam incapazes de exercer um domínio absoluto sobre o objeto compartilhado intersubjetivamente no mundo da vida.  Ao perseguir um ideal de auto-legitimação das democracias capitalistas em que os cidadãos possam se enxergar simultaneamente como autores e destinatários das normas jurídicas, os democratas se olvidam que por trás desta fachada existe um universo de questões não respondidas e/ou problematizadas de maneira deficiente. 

O rizoma tende a se tornar cada vez mais complexo na medida em que o intérprete da realidade sócio-política vai se aprofundando no destrinchamento de aspectos filamentares de sua configuração mecanosférica. Daí ser razoável inferir que os democratas, com o afã de entenderem o funcionamento das instituições democráticas, acabaram abdicando da visão de conjunto, deixando de remeter alguns efeitos centrais a causas mais remotas ou periféricas que, aliás, não podem ser conhecidas sem que se faça menção a outros centros de outras periferias, uma vez que todo e “qualquer código [é] afetado por uma margem de descodificação” (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 67). Nas palavras de Deleuze e Guattari: “da camada central à periferia, depois do novo centro à nova periferia, passam ondas nômades ou fluxos de desterritorialização que recaem no antigo centro e se precipitam para o novo. Os epistratos se organizam no sentido de uma desterritorialização cada vez maior”. (DELEUZE e GUATTARI, Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 67)

Nesse diapasão, quando Habermas aduz que os argumentos veiculam pretensões de validade binária por envolverem a tomada de decisão em termos de sim ou não, ele o faz pegando de empréstimo postulações linguísticas que são de per se defeituosas por pressuporem a inequivocidade da correlação entre significante e significado, o que, consoante ficou assente, não se verifica, porque os códigos linguísticos carregam um potencial descodificador em seu próprio arcabouço semântico. Se, por um lado, podemos dizer que as democracias capitalistas possuem um caráter rizomórfico por operarem a partir de uma justaposição de estratos vocacionados para a estruturação do Ecúmeno, por outro é lícito constatar que, em instância mecanosférica, os metaestratos retiram a linguagem do domínio dos interlocutores, impossibilitando a atribuição de significados a objetos indeterminados. 

Poder-se-ia contra-argumentar, com Habermas e Bobbio, que a atribuição de significados a objetos tem a ver mais com as “regras do jogo” consensualmente estabelecidas pelos participantes da experiência comunicativa do que com o propósito linguístico dos atos de fala orientados para fins de esclarecimento. Mas isso só reforçaria a tese de que o sentido das democracias contemporâneas se esgota em uma assimilação do real por aparelhos virtuais de sobrecodificação nos labirintos rizomórficos do esquizo. Se a psicologia define como loucas pessoas inconscientes de seu estado de loucura, podemos deduzir, por analogia, que os democratas são esquizofrênicos pelo simples fato de desconhecerem a realidade que eles tão apaixonadamente alegam defender. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De todo o acima exposto, conclui-se que a universalibilidade e indeterminabilidade de conceitos como “direitos humanos” e “democracia” têm servido para a legitimação de reiteradas atrocidades no marco de uma pós-modernidade veladamente totalitária, tendência que já havia sido diagnosticada por pensadores da envergadura de Alain de Benoist, Alasdair MacIntyre, Alexandr Dugin e por toda a plêiade de tradicionalistas em sentido estrito, cujo pensamento constitui importante contra-ataque às postulações habermasianas e ao engessamento de discussões acadêmicas nos circuitos institucionais “democráticos”. 

Se, por um lado, o inatismo dos direitos humanos legado ao ocidente pelo século das luzes erige-se como blindagem de hiperpotências globalistas em instância transnacional, a tese que preconiza a existência de um Estado de Direito pretensamente democrático, por outro, vem surtindo efeito análogo em seara nacional. Juntos, funcionam como instrumentos hábeis a garantir a incolumidade da hegemonia pós-liberal na plataforma geopolítica de uma ocidentalidade cada vez mais fragilizada em termos políticos, espirituais, filosóficos e existenciais.

Pode-se, sem exagero, predizer que o ocidente se auto-aniquilará a partir de seus próprios mecanismos de articulação, que operam em nível sub-molecular; e, quando todas as possibilidades de reversão deste quadro catastrófico houverem esgotado, a civilização ocidental já não poderá recorrer ao materialismo, ao humanismo e à razão cartesiana para perpetuar sua auto-legitimação através das eras, tampouco lhe será possível utilizar inimigos externos como bodes expiatórios para a reiteração do seu fracasso ontológico. Ninguém precisará mover uma palha para derrubar as democracias e os direitos humanos de seu pedestal, posto que eles próprios se encarregarão de tal mister.

Destarte, o que era para ser uma guerra de trincheiras entre pólos antagônicos se converte paradoxalmente na neutralização autofágica de um organismo pretensamente superior à própria história, que terminará, mais cedo ou mais tarde, sendo engolido por ela. 


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(1) De Benoist, ALAIN. Para Além dos Direitos Humanos. Editora Austral, Porto Alegre, 2013. (2)Idem. 
(3)Idem. 
(4)Idem
(5)Sources of the Self: The Making of Modern Identity, Harvard University Press
(6)Kant, IMMANUEL. Crítica da Razão Pura, Livro II, Cap 2, Editora Vozes. 
(7)De Benoist, ALAIN. Para Além dos Direitos Humanos. Editora Austral, Porto Alegre, 2013. 
(8)Idem. 
(9)De Maistre, JOSEPH. Considerações sobre França, Editora Almeida. 
(10)MacIntyre, ALASDAIR. Depois da Virtude: um estudo em teoria moral. Editora EDUSC. 
(11)Idem. 
(12)Idem. 
(13)Idem. 
(14)Idem. 
(15)Ibidem. 
(16)Idem. 
(17)Idem. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGFRÁFICAS

DE BENOIST, Alain. Para Além dos Direitos Humanos. Editora Austral: Porto Alegre, 2013.
TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of Modern Identity. Harvard University Press.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, Livro II, Cap. 2, Editora Vozes.
DE MAISTRE, Joseph. Consideações sobre França. Editora Almeida.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude: um estudo em teoria moral. Editora EDUSC.
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político. Petrópolis: Vozes, 1992.
MACINTYRE, Alasdair. Justiça de Quem? Qual Racionalidade?. Edições Loyola: São Paulo, 1991.
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. Edições Loyola: São Paulo, 2002.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-Vindo ao Deserto do Real. Boitempo Editorial: São Paulo, 2003.
ŽIŽEK, Organos sin Cuerpo – Sobre Deleuze y consecuencias. Pre-Textos: Luis Santángel, 2006.
EVOLA, Julius. Il Fascismo: Saggio di una Analisi Critica dal Punto di Vista Della Destra. Versila: São Paulo, 2014.
DAHL, Robert. A Democracia e seus Críticos. Martins Fontes: São Paulo, 2012.
DUGIN, Alexandr. Geopolítica do Mundo Multipolar. Editora Austral: Curitiba-PR, 2012.
DUGIN, Alexandr. A Quarta Teoria Política. Editora Austral: Curitiba-PR, 2012.
EVOLA, Julius. Revolta Contra o Mundo Moderno. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1989.
GUÉNON, René. Crise do Mundo Moderno. Clube do Tarô: São Paulo, 2007.
DEVI, Savitri. O Relâmpago e o Sol. ATWA Brasil: 2011.
AGAMBEN, Giorgio. O Que é o Contemporâneo. Argos: Chapecó, 2009.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1. Editora 34: São Paulo, 1995.


Arthur Lima - A Quarta Ideologia

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por Arthur Lima

Texto para trabalho da disciplina de Introdução ao Direito do curso de Ciência Política da UNB



Com o fim da Guerra Fria, a vitória dos Estados Unidos levou a ideologia liberal a ascender como a ideologia dominante no mundo levando ao fim do mundo bipolar e iniciando o mundo unipolar. O sistema econômico internacional torna-se mais liberal e há uma enorme difusão do sistema democrático. 

As ideologias derrotadas, o fascismo e o comunismo, mesmo que ainda possuam apoio atualmente, se rastejam mais do que vivem. Além disso, partes dessas ideologias se misturaram com as ideias liberais após a Guerra fria (exemplo da direita e esquerda consumista, liberal economicamente e individualista). Francis Fukuyama em sua obra “O Fim da História e o Último Homem” argumentou que o advento do sistema liberal democrático americano foi o sinônimo do fim da evolução histórica humana, o fim da história política. 

Fukuyama defendeu sua tese na crença de que não haveria mais teorias ideológicas com forças a se opôr ao liberalismo. O que não era esperado era um nascimento de uma nova ideologia, a Quarta Via Política.

A Quarta Via Politica foi idealizada por Alexander Dugin, filósofo, ativista e cientista político russo, já participou de diversos movimentos indentitários e nacionalistas. Dugin é reconhecido também como um dos principais ideólogos do Eurasianismo. Em sua obra, Dugin apresenta uma nova solução contra o liberalismo, uma ideologia tradicionalista, antiglobalista e multipolar.
      
O liberalismo como inimigo

Dugin inicia com críticas ao liberalismo, mostrando os motivos de sua vitória perante as outras duas ideologias do século XX. Dentre as três ideologias modernas, o liberalismo foi aquele que se adequou melhor ao mundo moderno, mostrou-se aquele que se opõe aos regimes totalitários das duas ideologias modernas (os regimes soviético e alemão). Entretanto, a vitória do liberalismo mostrou que ele não é aquele que se opõe ao totalitarismo, e sim o terceiro totalitarismo. Dugin tocou em um ponto interessante, com a chegada do mundo unipolar, a ideologia liberal se espalhou para todas as dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais. Diferentes sociedades foram bombardeadas pelos preceitos liberais e suas ideologias, povos que não possuíam conceitos como o de indivíduo sofreram drásticas e forçadas mudanças. O indivíduo está acima de tudo na visão liberal, com isso ele se sobrepõe à sociedade, sua cultura, valores e todas as conquistas e construções desta. Não existe mais uma sociedade, existem indivíduos reunidos, perdidos e sem identidade, vivendo uma vida ao estilo ocidental. Aqueles povos que resistem são mal vistos, e alguma hora recebem a visita da democracia liberal e se rendem ao sistema.

César Garavito expõe bem um caso da intervenção estadunidense na Colômbia. Os Estados Unidos, por meio da USAID (Agencia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), financiaram a tentativa de uma reforma no sistema judicial e penal colombiano ao modelo estadunidense. A USAID investiu mais de 3 milhões de dólares no sistema e no seu fortalecimento e assim manter mais uma zona de controle norte-americano.

Os Estados Unidos investiram nos regimes militares latino-americanos, como foi exposto no documentário “O Dia que durou 21 anos” (no caso do Brasil) e na obra “A Doutrina do Choque” aonde Naomi Klein mostrou os danos sociais das politicas neoliberais nos países latino-americanos, além de suas relações com grandes grupos árabes no Oriente Médio eu seu interesse estratégico na rica zona de petróleo. Isso prova como os Estados unidos e o seu regime liberal, travestido de democracia, que impôs sua cultura e seus interesses perante outras nações em nome da falsa liberdade, são o terceiro totalitarismo. 
   
A questão do conservadorismo 

A Quarta Teoria Politica é uma teoria que se encontra além das três teorias modernas por estar além da modernidade. Para superar o liberalismo ela propõe seguir além da modernidade e da pós-modernidade. Críticos da quarta teoria questionam como é possível um movimento revolucionário de caráter tradicionalista e conservador, assim Dugin lança a pergunta “o que é conservadorismo?”, desse questionamento, ele nos apresenta três tipos de conservadorismo: conservadorismo liberal, conservadorismo tradicional e o conservadorismo revolucionário.  

O primeiro conservadorismo, o de cunho liberal, é o conservadorismo daqueles que dizem “sim” às mudanças liberais e o avanço do mundo moderno unipolar, mas de uma forma desacelerada. O conservador liberal acredita nos preceitos liberais da modernidade, mas para os preceitos da pós-modernidade é um pouco cedo. Entretanto, ele não negará a pós-modernidade e seus danos, eles de qualquer forma ocorrerão. 

Os conservadores tradicionais são aqueles que negam completamente a modernidade e a pós-modernidade, não apenas suas teorias e caráter liberal, mas tudo vivido nela. O conservador tradicional deseja voltar ao mundo tradicional, antes do moderno.  É o conservadorismo retrógado, e perigoso, não apenas pelo simples fato de negar a ciência, a filosofia, os avanços do tempo, ele pretende voltar a um mundo aonde começava a doença do liberalismo, é viver o problema todo de novo. 

O terceiro conservadorismo, o Conservadorismo Revolucionário é aquele que mais chega perto a Quarta Teoria Politica. Os conversadores revolucionários são aqueles que negam os preceitos liberais do mundo moderno, mas também negam um retrocesso, sabem da necessidade de seguir além, logo não nega a modernidade por completo, como a ciência e seus avanços. O conservadorismo revolucionário é crítico ao fascismo, ideólogos como Julius Evola já fizeram obras criticando o sistema, além de terem participado de movimentos antifascistas. O que o caracteriza como conservadorismo é sua defesa das identidades nacionais, culturais e morais dos diversos povos, algo que se encaixaria na visão multipolar. 


A Quarta Teoria é conservadora por defender que as nações devem proteger seus valores e identidade culturais e nacionais. É importante notar quando se diz nacional e não patriota, aonde não necessariamente temos casos de identidade cultural ou nacional de um povo, exemplo de países sem identidade formada como Panamá e nações sem país como a Catalunha. Em um mundo multipolar os diferentes pólos de influencia se relacionariam, mas manteriam suas identidades, seus valores e leis, como disse Dugin “Se trabalharmos juntos, afirmando fortemente nossas diferentes identidades, seremos capazes de encontrar um mundo equilibrado, justo e melhor, um Grande Mundo em que qualquer digna cultura, sociedade, fé, tradição e criatividade humana encontrarão seu próprio e merecido lugar”.

Aleksandr Dugin e Sheikh Imram Hosein - Encontro e Diálogo Interreligioso: Aliança de Muçulmanos e Cristãos Ortodoxos

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por Aleksandr Dugin e Sheikh Imram Hosein



O 1 de julho de 2013 marca o encontro e o início de uma colaboração entre dois intelectuais ilustres; Aleksandr Dugin, teórico russo de confissão cristã ortodoxa, Doutor em História das Ciências e Doutor em Ciência Política; e o Sheikh Imran Nazar Hosein, erudito islâmico especializado em escatologia islâmica, filósofo, e doutor em estudos econômicos.

Esta reunião em Moscou é o resultado de um convite recebido por um grande número de intelectuais russos, para o trabalho mútuo e o estabelecimento de um novo diálogo interreligioso entre a comunidade cristã ortodoxa e o mundo muçulmano. Portanto, esta ligação entre muçulmanos e cristãos ortodoxos, inspira e permeia suas duas escatologias, islâmica e cristã, ou seja, a unificação dos dois pólos principais atualmente resistentes a um único inimigo em comum, a chamada "Ordem atlantista neoliberal" por alguns e, "Aliança sionista judaico-cristã” para outros.

Por que a Rússia?

Os Cristãos Ortodoxos de hoje são originarios do Império Bizantino, conhecido no Islã sob o nome Rum.

Os Rums (ou cristãos bizantinos) foram mencionados no Alcorão, precisamente na Sura Rum ("Os romanos"). Ademais, aqui eles são divididos em dois pólos diferentes de cristãos. Cristãos católicos no Ocidente, que escolheram Roma (Vaticano) como sede, e os cristãos ortodoxos orientais, que optaram por Constantinopla (hoje Istambul), e mais especificamente, a Catedral de Santa Sofia, como sede.

Esta Catedral funcionou por muito tempo como sede da ortodoxia cristã, até a queda do último imperador bizantino, Constantino XI Paleólogo, quando Constantinopla é conquistada pelo sultão otomano Mehmet II. Sendo a sede da Ortodoxia, a antiga Catedral de Santa Sofia foi transformada em mesquita pelos otomanos; os cristãos ortodoxos mudam sua sede para o Patriarcado de Moscou, que assim se torna a nova sede do cristianismo ortodoxo. 

A primeira sede da ortodoxia cristã, a antiga Catedral de Santa Sofia, finalmente é transformada em um museu a mando de Mustafa Kemal, após a queda do Império Otomano.

Isso faz com que a Rússia se torne o berço atual do Cristianismo Ortodoxo.

Hoje, e desde a queda da União Soviética e do comunismo, e ao final de um longo período de Guerra Fria, a Rússia mostra um retorno claro e significativo para o cristianismo ortodoxo. Essa mudança se reflete em todos os níveis da sociedade russa, incluindo o governo, demonstrando um compromisso significativo com os valores do cristianismo ortodoxo.

A sociedade russa não é uma sociedade secular, comparada com as outras sociedades ocidentais. (Ver a conferência: “Christianisme et politique” de Aleksandr Dugin). 

E isso é o que reafirma a Rússia agora como uma forte ressitência contra o polo atlantista ocidental, e a aliança sionista.

E é bem nesse sentido que os muçulmanos, pelo menos aqueles que entenderam, e os cristãos ortodoxos, estão unidos na mesma resistência contra o mesmo inimigo, o pólo ocidental sionista.

Deve-se notar, que para resistência e a luta comum entre cristãos ortodoxos e muçulmanos, contra a fúria e a opressão do sionismo, o braço armado do Dajjal (Anticristo), que é de extrema importancia que os representantes destas duas religiões unam os seus esforços mútuos contra este opressor universal da humanidade.

Da teoria à prática

Isso faz com que os muçulmanos e os cristãos vejam a necessidade de formar uma aliança contra a Nova Ordem Mundial. O Profeta (que a paz e as bênçãos de Allah estejam com ele) profetizou que uma aliança entre cristãos e muçulmanos iria começar na luta contra um inimigo em comum.

Ademais, os muçulmanos devem saber absolutamente à luz do Alcorão, do Profeta e das profecias e tendo em conta os acontecimentos históricos e geopolíticos, como identificar um bom aliado, um aliado profetizado! O verdadeiro cristão aliado do muçulmano é aquele que luta contra o opressor, o mesmo impostor, o mesmo blasfemo, o mesmo inimigo universal, o sionismo!

ستصالحون الروم صلحا آمنا وتغزون أنتم وهم عدوا من ورائكم
الراوي: حسان بن عطية المحدث: الألباني المصدر: صحيح أبي داود الصفحة أو الرقم: 2767
خلاصة حكم المحدث: صحيح

"Vocês (muçulmanos) fará certamente uma aliança segura com Rum, combatiréis e venceréis juntos contra o inimigo comum que os persegue! Profeta Maomé paz e bênçãos sobre ele".

Allah revela no Alcorão como reconhecer sinais que proíbem uma aliança. Refere-se a um grupo de cristãos e um grupo de judeus que se aliaram entre eles. Esta aliança efetivamente realizada em agosto de 1897 (no Congresso Sionista), depois de milhares de anos de animosidade entre cristãos e judeus. Os cristãos nunca perdoaram os judeus pelo evento da Cruz. Esta aliança subversiva entre cristãos e judeus não teria sido possível sem a criação do movimento sionista, cujo objetivo era a criação do Estado impostor de Israel, e que todos nós sabemos que é para ser a sede do Anticristo. Deus também adverte os muçulmanos contra as consequências da adesão a esta aliança, o que inevitavelmente leva a perda da participação na comunidade do Profeta (que a paz e as bênçãos de Allah estejam com ele).

"Você que têm fé (em Deus), não tome judeus e cristãos como aliados (que) sejam (eles mesmos) aliados entre si. E se algum de vocês os levarem como aliados, então vão se tornar um deles. Deus não se dirige aos ímpios". (Alcorão, Sura al-Maa'idah, v.51)

Em outras palavras, aquele que se liga à aliança sionista judaico-cristã, torna-se imediatamente um deles, como Allah nos diz neste verso. Será agora parte dessa aliança e não fazerá mais parte da Comunidade do Profeta (que a paz e as bênçãos de Allah estejam com ele).

Enquanto nem todos os cristãos e judeus sejam sionistas, já que a aliança sionista é composta por um grupo de judeus e cristãos estreitamente aliados sob a bandeira do sionismo, também deve ser notado que os muçulmanos não são todos necessariamente anti-sionistas! Ele que faz amizade com a aliança sionista judaico-cristã, torna-se um deles, diz o Alcorão! (Ver artigos recentes sobre este assunto em Inglês: We have no beef with Israel, Syrian Islamist rebel group says)

Portanto, agora temos dois Rums. A Rum ocidental católica com sede em Roma (o Vaticano), com os países cristãos que se aliaram ao sionismo. E a Rum do polo cristão-ortodoxo do oriente com sede em Moscou, e que se opõe firmemente ao sionismo.

É importante para os muçulmanos identificar qual dessas duas Rums é um bom aliado nestes últimos tempos, "uma aliança sem risco", como já dizia o Profeta.

Eleger a Rum do pólo ocidental cristão sionista é tornar-se um de seus aliados, como é o caso de hoje em dia na maioria dos governos muçulmanos, mais cedo ou mais tarde, os muçulmanos sofrerão a traição de Rum sionista ocidental.

Isto torna de vital importancia que, hoje, os muçulmanos têm que levar a sério (e não literalmente) e estudar o Alcorão e todas as profecias do Mensageiro (que a paz e as bênçãos de Allah estejam com ele) e com isso estudar história, a fim de compreender os desafios das implicações presente e futuras.

O Dia do Juízo final não será quebrado por um muçulmano que traiu as ordens que Allah - o Altíssimo - deu no Alcorão!

"Agora você deve saber escolher o lado certo da história!" .

- Sheikh Imran Nazar Hosein

"Estamos firmemente nos opondo a qualquer tipo de confronto entre as diferentes crenças religiosas ... guerras e tensões interreligiosas que trabalham para uma causa: o estabelecimento do Reino do Anticristo, que tenta dividir todas as religiões tradicionais para impor a sua própria pseudo-religião , uma paródia da escatologia".

- Prof. Aleksandr Dugin - o livro A Quarta Teoria Política.


Kerry Bolton - A Rússia de Spengler

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por Kerry Bolton



Teria sido fácil para considerar Oswald Spengler, autor do epocal O Declínio do Ocidente (volume um foi publicado no verão de 1918) como  um russófobo. Ao fazê-lo o papel da Rússia no desenrolar histórico dessa era para a frente poderia ser facilmente desprezado, oposto ou ridicularizado por adeptos de Spengler, enquanto na Rússia seus insights sobre morfologia cultural seriam compreensivelmente mal vistos como partindo de um nacionalista alemão eslavófobo. Porém, enquanto Spengler, como muitos outros da época posterior à revolução bolchevique, considerasse - parcialmente a Rússia como o líder asiatizado de uma "revolução colorida" contra o mundo branco, ele também considerava outras possibilidades.

A "Alma" da Rússia

Spengler considerava os russos como formados pela vastidão da planície terrestre, como inatamente antagônicos à Máquina, como enraizados no solo, como irrepreensivelmente camponeses, religiosos e "primitivos". Porém, quando Spengler escreveu sobre essas características russas ele estava fazendo referência aos russos como um povo ainda juvenil, em contraste ao Ocidente senil. Daí o russo "primitivo" não é sinônimo da "primitividade" como popularmente compreendida àquela época em relação a povos tribais "primitivos". Nem deve ser isso confundido com a percepção hitlerista do "eslavo primitivo" incapaz de construir seu próprio Estado.

Para Spengler, o "camponês primitivo"é a fonte da qual uma raça retira seus elementos mais saudáveis durante suas épocas de vigor cultural. A agricultura é a fundação de uma Alta Cultura, permitindo que comunidades estáveis diversifiquem o trabalho nos especialismos dos quais a Civilização procede.

Segundo Spengler, cada povo possui sua alma, uma concepção alemã derivada do Idealismo de Herder, Fichte, etc. Uma Alta Cultura reflete esta alma, seja em sua matemática, música, arquitetura; tanto nas artes como nas ciências físicas. A alma russa não é idêntica à alma faustiana ocidental, como Spengler a chama, ou à alma "magiana" da civilização árabe, ou à clássica dos helenos e romanos. A Cultura Ocidental que foi imposta sobre a Rússia por Pedro o Grande, que Spengler chama de Petrinismo, não passa de um verniz.

A base da alma russa não é o espaço infinito - como no imperativo faustiano do Ocidente (Spengler, 1971, I, 1983), mas sim a planície ilimitada (Spengler, 1971, I, 201). A alma russa expressa seu próprio tipo de infinitude, ainda que não o do ocidental que se torna até escravizado por sua própria técnica ao fim de seu ciclo vital. (Spengler, 1971, II, 502) (Ainda que poderia ser dito que o sovietismo escravizou o homem à máquina, um spengleriano citaria isso como um exemplo de petrinismo). Porém, civilizações seguem seu próprio curso de vida, e não se pode ver as descrições de Spengler como juízos morais, mas sim como observações. O encerramento para a Civilização Ocidental segundo Spengler não pode ser o de criar ainda mais formas grandiosas de arte e música, que pertencem à época juvenil ou "primaveril" de uma civilização, mas dominar o mundo sob uma mandato tecnocrático-militar, antes de decair no esquecimento como civilizações mundiais anteriores. É após este declínio ocidental que Spengler aludiu à próxima civilização mundial sendo a da Rússia.

A arquitetura russa ortodoxa não representa o infinito na direção do espaço que está simbolizado pelas torres das catedrais góticas da Alta Cultura do Ocidente, nem o espaço fechado da mesquita da Cultura Magiana, (Spengler, 1971, I, 183-216) mas a impressão de assentar-se sobre um horizonte. Spengler considerava que esta arquitetura russa "não era ainda um estilo, apenas a promessa de um estilo que despertará quando a verdadeira religião russa despertar". (Spengler, 1971, I, p.201) Spengler estava escrevendo sobre a cultura russa como um forasteiro, e ele mesmo reconhecia as limitações disso. É, portanto, útil comparar seus pensamentos sobre a Rússia com os de russos notáveis.

Nikolai Berdyaev em A Ideia Russa afirma o que Spengler descreve:

"Há aquilo na alma russa que corresponde à imensidão, à vagueza, à infinitude da terra russa, a geografia espiritual corresponde com a física. Na alma russa há um tipo de imensidão, uma vagueza, uma predileção pelo infinito, tal como a que é sugerida pela grande planície da Rússia". (Berdyaev, 1).

"Socialismo Russo"

No que concerne a alma russa, o ego e vaidade do homem e cultura ocidentais estão ausentes; a persona busca crescimento impessoal no serviço, "no mundo-irmão da planície". O Cristianismo Ortodoxo condena o "Eu" como "pecado". (Spengler, 1971, I, 309) O conceito russo de "nós" ao invés de "Eu", e de serviço impessoal à vastidão da própria terra implica outra forma de socialismo distinto do marxismo. É talvez neste sentido que o stalinismo procedeu segundo linhas às vezes antitéticas ao bolchevismo pensado por Trótski et al. (Trotski, 1936)

Um comentário de uma visitante americana à Rússia, Barbara J. Brothers, parte de uma delegação científica, afirma algo similar à observação de Spengler:

"Os russos possuem um senso de conexão consigo e com outros seres humanos que simplesmente não é parte da realidade americana. Não é que a competitividade não existe; a questão é que simplesmente sempre parece haver mais consideração e respeito pelos outros em qualquer dada situação".

Do ethos tradicional russo, intrinsecamente antitético ao individualismo ocidental, incluindo suas relações de propriedade, Berdyaev escreveu:

"De todos os povos no mundo, os russos possuem o espírito de comunidade; no mais alto grau o modo de vida russo e as maneiras russas são desse tipo. A hospitalidade russa é uma indicação desse senso de comunidade". (Berdyaev, 97-98)

Taras Bulba

A literatura nacional russa partindo de 1840 começou a expressar conscientemente a alma russa. Primeiramente, o Taras Bulba de Nikolai Vasilievich Gogol, que junto com a poesia de Pushkin fundou uma tradição literária russa; isto é, verdadeiramente russa, e distinta da literatura anterior baseada na alemã, na francesa e na inglesa. John Cournos fala disso em sua introdução a Taras Bulba:

"A palavra falada, nascida do povo, deu alma e asa à literatura; apenas vindo à terra, à terra nativa, lhe foi permitido voar. Vindo da Pequena Rússia, a Ucrânia, com sangue cossaco nas veias, Gogol injetou seu próprio vírus saudável em um corpo fraco, soprou seu próprio espírito viril, o espírito de sua raça, em suas narinas, e deu ao romance russo sua direção até o dia de hoje.

Taras bulba é um conto sobre a formação do povo cossaco. Nessa formação popular o inimigo exterior desempenha um papel crucial. O russo foi formado fundamentalmente como resultado de batalhas ao longo de séculos contra tártaros, muçulmanos e mongois".

Sua sociedade e nacionalidade eram definidas pela religiosidade, como as do Ocidente pelo Cristianismo Gótico durante sua época "primaveril", em termos spenglerianos. O recém-chegado a um Setch, ou aldeia permanente, era saudado pelo Chefe como um cristão e como um guerreiro: "Bem-vindo! Você crê em Cristo?" - "Sim", respondia o recém-chegado. "E você crê na Santíssima Trindade?" - "Sim" - "E você vai à igreja?" - "sim". "Agora faça o sinal da cruz". (Gogol, III)

Gogol retrata o desprezo que se tinha pelo comércio, e quando o comércio havia penetrado entre os russos, ao invés de ser mentido confinado a não-russos associados ao comércio, isso é considerado como um sintoma de decadência:

"Eu sei que a ignomínia encontrou seu caminho para nossa terra. Os homens só se importam em ter suas pilhas de grãos e feno, e seus rebanhos de cavalos, e que seu hidromel possa estar seguro em seus porões; eles adotam, sabe-se-lá que costumes muçulmanos. Eles falam de forma desprezível com suas línguas. Eles não se importam em falar seus reais pensamentos com seus compatriotas. Eles vendem suas próprias coisas a seus próprios camaradas, como criaturas desalmadas em um mercado... . Que eles saibam o que irmandade significa em solo russo!"(Spengler, 1971, II, 113)

Aqui podemos ver um socialismo russo que está a um mundo de distância do materialismo dialético adumbrado por Marx, o sentimento místico de "nós" forjado pela vastidão das planícias e pelo imperativo de irmandade acima da economia, imposto por aquela paisagem. O sentimento de missão de mundo da Rússia possui sua própria forma de messianismo, seja expressa pela Ortodoxia cristã ou pela forma não-marxiana de "revolução mundial" sob Stálin, ou ambas em combinação, como sugerido pela reaproximação posterior entre Stalinismo e a Igreja a partir de 1943 com a criação do Conselho para Assuntos da Igreja Ortodoxa Russa (Chumachenko, 2002). Em ambos os sentidos e mesmo nas formas embrionárias tomando lugar sob Putin, a Rússia é consciente de uma missão mundial, expressa hoje no papel da Rússia em forjar um mundo multipolar, com a Rússia tendo um papel principal na resistência ao unipolarismo.

O comércio é preocupação para estrangeiros, e as intrusões trazem com elas a corrupção da alma russa e de sua cultura em geral: na fala, na interação social, no servilismo, solapando a "irmandade" russa, o sentimento russo de "nós" que Spengler descreveu. (Spengler, 1971, I, 309)

A irmandade cossaca é retratada por Gogol como o processo formativo na construção do povo russo. Este processo não é um biológico, mas espiritual, transcendendo até o laço familiar. Spengler similarmente tratou a questão racial mais como uma de alma do que uma de zoologia. (Spengler, 1971, II, 113-155) Para Spengler a paisagem era crucial para determinar o que se torna "raça", e a duração de famílias agrupadas em uma paisagem particular - incluindo nômades que possuem uma extensão definida de deslocamento - formam "um caráter de duração", que era a definição spengleriana de "raça". (Spengler, II, 113) Gogol descreve este processo formativo "racial" entre os russos. Longe de ser um nacionalismo racial agressivo, é uma irmandade mística em expansão sob Deus:

"O pai ama seus filhos, a mãe ama seus filhos, os filhos amam seu pai e mãe; mas isto não é como aquilo, irmãos. A besta selvagem também ama sua prole. Mas um homem pode se relacionar apenas por similaridade de mente ao invés de sangue. Tem havido irmandades em outras terras, mas nunca nenhuma irmandade tal como a que há em nosso solo russo". (Gogol, IX)

A alma russa nasce no sofrimento. O russo aceita o destino da vida a serviço de Deus e de sua Pátria. Rússia e fé são inseparáveis. Quando o velho guerreiro Bovdug é mortalmente ferido por uma bala turca suas palavras finais são exortações à nobreza do sofrimento, após o que seu espírito alça voo para se unir a seus ancestrais. (Gogol, IX) A mística da morte e do sofrimento pela Pátria é descrita na morte de Taras Bulba, quando ele é capturado e executado, suas palavras finais sendo de ressurreição:

"Aguardem, o tempo virá quando vocês aprenderão o que é a fé ortodoxa russa! O povo já o fareja longe e perto. Um czar surgirá do solo russo, e não haverá poder no mundo que não se submeterá a ele!". (Gogol, XII)

Pseudomorfose

Um elemento significativo da morfologia cultural de Spengler é a "Pseudomorfose Histórica". Spengler traçou uma analogia a partir da geologia. Quando cristais de um mineral estão embutidos em uma camada de rocha, onde "fissuras e rachaduras ocorrem, a água se infiltra, e os cristais são gradualmente trazidos para fora de modo que no devido tempo apenas seu molde oco permanece". (Spengler, II, 89)

"Pelo termo 'pseudomorfose histórica' eu proponho designar aqueles casos em que uma Cultura estrangeira mais velha jaz tão massivamente sobre a terra que uma Cultura jovem, nascida nessa terra, não consegue respirar e falha não só em atingir formas de expressão puras e específicas, mas até mesmo em desenvolver sua própria consciência plena de si. Tudo que emerge das profundezas da alma jovem é lançado nos velhos moldes, sentimentos jovens se endurecem em obras senis, e ao invés de se empinar em seu próprio poder criativo, ele só pode odiar o poder distante com um ódio que cresce até se tornar monstruoso". (Ibid.)

Uma dicotomia tem existido por séculos, começando com Pedro o Grande, de tentativas de impôr um verniz ocidental sobre a Rússia. Isso é chamado de Petrinismo. A resistência a essas tentativas é o que Spengler chamou de "Velha Rússia". (Spengler, 1971, II, 192) Spengler também descreveu essa dicotomia.

Nikolai Berdyaev escreveu em termos similares aos de Spengler: "A Rússia é uma seção completa do mundo, um Leste-Oeste colossal. Ela une dois mundos, e dentro da alma russa dois princípios estão sempre engajados em uma luta - o oriental e o ocidental". (Berdyaev, 1).

Com a orientação da política russa na direção do Ocidente, a "Velha Rússia" foi "forçada a uma história falsa e artificial". (Spengler, II, 193) Spengler pensou que a Rússia havia sido dominada pela cultura ocidental tardia:

"Artes e ciências de um período tardio, iluminismo, ética social, o materialismo das cidades globais, foram introduzidos, ainda que neste tempo pré-cultural a religião fosse a única língua pela qual o homem compreendia a si e ao mundo". (Spengler, 1971, II, 193)

Em 1863, escrevendo para Dostoievski, Ivan Sergyeyevich Aksakov (fundador do grupo "Eslavófilo" anti-petrinista) notou que "A primeira condição de emancipação para a alma russa é que ela deve odiar Petersburgo com toda sua força e toda sua alma". Moscou é santa, Petersburgo satânica. Uma lenda popular apresentava Pedro o Grande como o Anticristo.

O ódio do "Ocidente" e da "europa"é o ódio por uma Civilização que já havia atingido um estágio avançado de decadência no materialismo e buscava impôr sua primazia pela subversão cultural ao invés dep elo combate, com sua perspectiva urbanita e monetarista, "envenenando a cultura ainda não nascida no ventre da terra". (Spengler, 1971, II, 194) A Rússia era ainda uma terra em que não havia burguesia e nenhum sistema de classes verdadeiro, mas apenas senhor e camponês, uma visão confirmada por Berdyaev, escrevendo: "As várias linhas de demarcação social não existiam na Rússia; não havia classes preponderantes. A Rússia nunca foi um país aristocrático no sentido ocidental, e igualmente não havia burguesia". (Berdyaev, 1)

As cidades que emergiram vomitaram uma intelligentsia, copiando a intelligentsia do Ocidente Tardio, "ávidos por desvendar problemas e conflitos, e abaixo, um campesinato desenraizado, com todo aquele pesar e ansiedade metafísicas...perpetuamente nostálgicos pela terra aberta e odiando amargamento o mundo cinzento e pétro no qual o Anticristo os havia tentado. Moscou não tinha alma adequada". (Spengler, 1971, II, 194) Berdyaev ressalta de forma similar sobre o petrinismo da classe superior que "a história russa era um conflito entre Oriente e Ocidente dentro da alma russa". (Berdyaev, 15)

Messianismo Russo

Berdyaev também afirma que enquanto o petrinismo introduziu uma época de dinamismo cultural, ele também colocou um fardo pesado sobre a Rússia, e uma desunião de espírito. (Ibid.) Porém, a Rússia possui seu próprio senso religioso de Missão, que é tanto universal quanto a do Vaticano. Spengler cita Dostoievski que escreveu em 1878 que "todos os homens devem se tornar russos, primeiro e fundamentalmente russos. Se a humanidade geral é o ideal russo, então todo mundo deve em primeiro lugar se tornar russo". (Spengler, 1963, 63n) A ideia messiânica russa encontrou uma expressão de força Os Possuídos de Dostoiévski, onde, em uma conversa com Stavrogin, Shatov diz: 

"Reduzir Deus ao atributo de nacionalidade?...Ao contrário, eu elevo a nação a Deus... O povo é o corpo de Deus. Cada nação é uma nação apenas na medida em que tenha seu próprio Deus particular, excluindo todos os outros deuses na terra sem qualquer reconciliação possível, desde que creia que por seu próprio Deus ele conquistará e expulsará todos os outros deuses da face da terra... A única nação 'portadora de Deus'é a nação russa..." . (Dostoievski, 1992, Parte II:I:7,265-266)

Spengler viu a Rússia como estando fora da Europa, e mesmo como "asiática". Ele até mesmo via um renascimento ocidental vis-à-vis a oposição à Rússia, que ele considerava como liderando a "revolução colorida" contra os brancos, sob o manto do bolchevismo. Porém também havia outros destinos que Spengler viu no horizonte, que haviam sido previstos por Dostoievski.

Uma vez que a Rússia houvesse derrubado suas intrusões estrangeiras, ela poderia olhar com outra perspectiva sobre o mundo, e reconsiderar a Europa não com ódio e vingança mas em parentesco. Spengler escreveu que enquanto Tolstoi, o petrinista, cuja doutrina foi precursora do bolchevismo, era a "Rússia passada", Dostoievski era a "Rússia vindoura". Dostoievski como representante da "Rússia vindoura""não conhece" o ódio da Rússia pelo Ocidente. Dostoievski e a velha Rússia são transcendentes. "Seu poder apaixonado de viver é suficientemente compreensivo para abarcar todas as coisas ocidentais também". Spengler cita Dostoievski novamente: "Eu tenho duas pátrias, Rússia e Europa". Dostoievski como o portador de uma alta cultura russa "passou para além tanto do petrinismo como da revolução, e de seu futuro ele olha para trás por sobre elas com ode longe. Sua alma é apocalíptica, desejosa, desesperada, mas de seu futuro ele está certo". (Spengler, 1971, II, 194)

Para os "Eslavófilos", dos quais Dostoievski era um, a Europa é preciosa. O Eslavófilo aprecia a riqueza da alta cultura europeia, ao mesmo tempo que percebe que a Europa está em um estado de decadência. Berdyaev discutiu o que ele considerou uma inconsistência em Dostoievski e nos eslavófilos em relação a Europa, mas uma que é compreensível quando consideramos a diferenciação crucial de Spengler entre Cultura e Civilização:

"Dostoieviski chama a si mesmo de um eslavófilo. Ele pensava, como o fazia também um grande número de pensadores sobre o tema da Rússia e da Europa, que ele sabia que a decadência estava se estabelecendo, mas que um grande passado existe nela, e que ela fez contribuições de grande valor para a história da humanidade". (Berdyaev, 70)

É notável que enquanto essa diferenciação entre Kultur e Zivilisation é atribuída a uma tradição filosófica particularmente alemã, Berdyaev comenta que ela estava presente entre os russos "muito antes de Spengler", ainda que derivando de fontes alemães:

"É de ser notado que muito antes de Spengler, os russos traçaram a distinção entre 'cultura' e 'civilização', que eles atacaram a 'civilização' mesmo quando permaneciam apoiadores da 'cultura'. Essa distinção na verdade, apesar de expressa em uma fraseologia distinta, seria encontrada entre os eslavófilos". (Ibid.)

Dostoievski era indiferente ao Ocidente tardio, enquanto Tolstoi era um produto dele, o Rousseau russo. Imbuídos com ideias do Ocidente tardio, os marxistas buscavam substituir uma classe governante petrina por outra. Nenhuma das duas representava a alma da Rússia. Spengler observou: "O verdadeiro russo é o discípulo de Dostoieviski, ainda que ele possa não ter lido Dostoievski, ou qualquer outro, não, talvez porque ele não possa ler, ele é ele próprio Dostoievski em substância". A intelligentsia odeia, o camponês não. (Ibid.) Ele eventualmente derrubaria o bolchevismo e qualquer outra forma de petrinismo. Aqui nós vemos Spengler inequivocamente afirmando que a civilização pós-ocidental será russa:

"Aquilo pelo que esse povo desassentado anseia é sua própria forma vital, sua própria religião, sua própria história. O Cristianismo de Tolstoi foi um equívoco. Ele falava de Cristo, mas queria dizer Marx. Mas ao Cristianismo de Dostoievski os próximos mil anos pertencerão". (Ibid.)

Sobre a verdadeira Rússia, como Dostoievski a expressou, "nem uma única nação já foi alguma vez fundada sobre princípios da ciência ou da razão". (Dostoievski, 1872, II:I:VII)

À época em que Spengler publicou A Hora da Decisão em 1934 ele concluiu que a Rússia havia derrubado o petrinismo e as vestimentas do Ocidente tardio, e ainda que ele chamasse a nova orientação da Rússia de "asiática", ele disse que ela era "uma nova Ideia, e uma ideia com um futuro também". (Spengler, 1963, 60) Esclarecendo, a Rússia olha para o "Oriente", mas enquanto o ocidental assume que "Ásia" e Oriente são sinônimos de mongol, a etimologia da palavra "Ásia" vem do grego Aσία, ca. 440 a.C., se referindo a todas as regiões a leste da Grécia. (Ibid. 61) Durante seu tempo Spengler viu que na Rússia,

"raça, língua, costumes poulares, religião, em sua forma presente...todos ou qualquer um deles pode e será fundamentalmente transformado. O que vemos hoje, então, é simplesmente o novo tipo de vida que uma vasta terra concebeu e irá fazer emergir presentemente. Não é definível em palavras, nem está seu portador consciente disso. Aqueles que tentam definir, estabelecer, ditar um programa, estão confundindo a vida com uma frase, como o faz o bolchevismo governante, que não é suficientemente consciente de sua própria origem cosmopolita, racionalista e euro-ocidental". (Ibid.)

Na Rússia Spengler já via em 1934 que "de marxismo genuíno há pouco, excetuando nomes e programas". Ele duvidava que o programa comunista seja "realmente levado a sério ainda". Ele via a possibilidade dos vestígios de bolchevismo petrino serem derrubados, para ser substituído por um tipo oriental "nacionalista" que atingiria "proporções gigantescas". (Spengler, 1963, 63) Spengler também se referiu à Rússia como paradoxalmente o país "menos perturbardo pelo bolchevismo", (Ibid., 182) e sugeriu que a "face marxiana só foi trajada para benefício do mundo exterior". (Ibid., 212) Uma década após a morte de Spengler a direção da Rússia sob Stálin havia perseguido definições mais claras, e o bolchevismo petrino havia se transformado da maneira que Spengler previu. (Brandenberger, 2002)

Conclusão

Como na época de Spengler, como séculos antes, continuava a existir duas tendências na Rússia: a Russa Antiga e a Petrina. Nem um, nem o outro espírito domina atualmente, ainda que sob Putin a Velha Rússia lute para ressurgir. Spengler em uma palestra publicada para a Convenção de Negócios Reno-Vestfaliana em 1922 se referiu ao "antigo, instintivo, difuso, inconsciente e subliminar impulso que está presente em todo russo, não importa o quão metodicamente ocidentalizada sua vida consciente possa ser - um anseio místico pelo Sul, por Constantinopla e Jerusalém, um espírito cruzado genuíno similar ao espírito que nossos ancestrais góticos tinham em seu sangue, mas que dificilmente podemos apreciar hoje". (Spengler, 1922)

O bolchevismo substituiu uma forma de petrinismo por outra forma, limpando o caminho "para uma nova cultura que algum dia surgirá entre Europa e Ásia. É mais um início do que um começo". O campesinato "algum dia se tornará consciente de sua própria vontade, que aponta em uma direção totalmente diferente". "O campesinato é o verdadeiro povo russo do futuro. Ele não se permitirá perverter ou sufocar". (Ibid.).

Spengler, o antimarxista arquiconservador, seguindo a tradição alemã de realpolitik, considerava a possibilidade de uma aliança russo-alemã em seu discurso de 1922, o Tratado de Rapallo sendo um reflexo dessa tradição. "Um novo tipo de líder" despertaria na adversidade, para "novas cruzadas e conquistas lendárias". O resto do mundo, repleto com um anseio religioso, mas que cai sobre chão infértil, está "rasgado e cansado suficiente para lhe permitir subitamente assumir um novo caráter sob as circunstâncias adequadas". Spengler sugeriu que "talvez o próprio bolchevismo mude dessa maneira sob novos líderes". "Mas a Rússia silenciosa e profunda" voltaria sua atenção para o Oriente Próximo e Extremo, como um povo de "grandes extensões interiores". (Ibid.)

Ainda que Spengler postulasse os ciclos orgânicos de uma Alta Cultura passando pelas fases vitais de nascimento, vigor, maturidade, velhice e morte, deve-se ter em mente que um ciclo de vida pode ser perturbado, abortado, rompido ou acometido por doença, a qualquer momento, e findar sem se realizar. Cada um tem sua analogia na política, e há muitos russófobos ávidos por aleijar o destino da Rússia com contaminações políticas, econômicas e culturais. O bloco soviético caiu por contágio interno e externo.

O que Spengler previu para as possibilidades da Rússia, ainda a realizar sua missão histórica, messiânica e de escopo mundial, pode agora estar se desabrochando se a Rússia conseguir aparar pressões de dentro e de fora. A revogiração da Ortodoxia é parte desse processo, como o estilo de liderança de Putin, distinto de um Ieltsin, por exemplo. Do que quer que a Rússia seja chamada externamente, seja monárquica, bolchevique ou democrática, há uma Rússia interior - eterna - que perdura e aguarda a sua hora no palco histórico mundial.

Referências

Nikolai Berdyaev, The Russian Idea, MacMillan Co., New York, 1948

D Brandenberger, National Bolshevism: Stalinist culture and the Formation of Modern Russian National Identity 1931-1956. Harvard University Press, Massachusetts, 2002

T A Chumachenko, Church and State in Soviet Russia, M. E. Sharpe Inc., New York, 2002

H Cournos,‘ Introduction’, N V Gogol, Taras Bulba & Other Tales, 1842, http://www.gutenberg.org/files/1197/1197-h/1197-h.htm

Dostoyevski, The Brothers Karamazov, 1880

Dostoyevski, The Possessed, Oxford University Press, 1992

Spengler, Prussianism and Socialism, 1919

Spengler, ‘The Two Faces of Russia and Germany’s Eastern Problems’, Politische Schriften, Munich, 14 February, 1922

Spengler, The Hour of Decision, Alfred A Knopf, New York, 1963

Spengler, The Decline of The West, George Allen & Unwin, London, 1971

Leon Trotsky, The Revolution Betrayed: what is the Soviet Union and where is it going?, 1936

Alain de Benoist - O Reino de Narciso

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por Alain de Benoist



"A sociedade adotou integralmente, sem o menor limite e sem o menor contrapeso, os valores femininos"; com estes termos expressou recentemente seu parecer o pediatra Aldo Naouri. Dessa feminização temos já testemunhos: a primazia da economia sobre a política, do consumo sobre a produção, da discussão sobre a decisão, o declínio da autoridade em proveito do "diálogo", também a obsessão com a proteção das crianças (ademais da sobrevaloração da palavra da criança), a exibição em praça pública da vida privada e as confissões íntimas nos "reality shows" da TV, a moda do "humanitarismo" e da caridade midiática, pôr ênfase constante sobre os problemas da sexualidade, da procriação e da saúde, a obsessão com as aparências, do querer agradar e do cuidado de si mesmo (também a assimilação da sedução masculina à manipulação e a "doença"), a feminização das profissões (docência, magistratura, psicologia, operadores sociais), a importância das tarefas da comunicação e dos serviços, a difusão das formas redondas na indústria, a sacralização do matrimônio por amor (um oxímoro). 

A moda da ideologia vitimística, a multiplicação das "células de contenção psicológica", o desenvolvimento do mercado da emotividade e da compaixão, a nova concepção da justiça que faz dela um meio não para julgar com absoluta equidade, mas para fazer pesar a dor da vítima (para lhe consentir "elaborar o luto" e "se reconstruir"), a moda da ecologia e dos "remédios doces", generalizar os valores de mercado, a sacralização do "casal" e dos "problemas de casal", a predileção pela transparência e pela mistura de conceitos, sem esquecer o telefone celular como substituto do cordão umbilical, o progressivo desaparecimento do imperativo na linguagem corrente e finalmente a globalização, que tende a instaurar um mundo de fluxos e refluxos, sem fronteiras nem pontos de referência estáveis, um mundo líquido e amitótico (a lógica do Mar e também a da Mãe).

Depois da ríguda cultura dos anos 30, nem tudo foi negativo nessa feminização, claro; mas se precipitou excessivamente no sentido inverso.

Para além de ser sinônimo de desvirilização, desembocou no cancelamento simbólico do papel do Pai, confundindo os papeis sociais masculino e feminino. 

A generalização da condição salarial e a evolução da sociedade industrial provocaram que hoje os homens não contem com tempo para dedicar a seus filhos, o Pai, progressivamente, foi reduzido a um papel econômico e administrativo.

Transformado em "papai", tende a se converter em um simples sustentáculo afetivo e sentimental, provedor de bens de consumo e executor da vontade materna, e ao mesmo tempo um assistente social familiar, um enfeito de cozinha, destinado a trocar panos e promover passeios.

Não obstante, o Pai simboliza a lei, referente objetivo que se alça por cima da subjetividade familiar. Enquanto a mãe expressa, antes de mais nada, o mundo dos afetos e das necessidades, o pai tem a função de cortar o vínculo de união entre a criança e a mãe. Fazendo funcionar a terceira instância que impulsiona a criança a sair da onipotência narcisista, consentindo-lhe o encontro com seu contexto sócio-histórico e o ajuda a se colocar dentro de um mundo em transformação. Assegura "a transmissão da origem, do nome, da identidade, da herança cultural, da tarefa a desenvolver", como escreveu Philippe Forget. Servindo de ponte entre a esfera familiar privada e a pública, limitando o desejo por intermédio da Lei, ele se revela indispensável na construção da identidade. Em nosso tempo os pais tendem a se converter em "mães como as outras". Para usar as palavras de Eric Zemmour "também eles querem ser portadores do Amor e não mais apenas da Lei".

Pois bem, a criança sem pai deve realizar um enorme esforço para acessar o mundo simbólico. Na busca de um bem-estar imediato sem obrigá-lo a afrontar a Lei, a dependência dos bens torna-se naturalmente seu modo de ser. 

Outra característica da modernidade tardia é a confusão entre as funções masculinas e femininas, que faz dos progenitores sujeitos perdidos na confusão dos papeis não distinguindo na névoa os pontos de referência. 

Os sexos são complementares-antagônicos, o que quer dizer que se atraem e se combatem simultaneamente. A indiferença sexual, buscada na esperança de pacificar as relações entre os sexos acaba fazendo desaparecer aquelas relações. Confundindo identidades sexuais (não há mais que duas) com orientações sexuais (pode haver uma multidão), a reivindicação da homoparentalidade (que retira à criança os meios de identificar sua parentela e nega a importância da filiação em sua construção psíquica) se reduz a solicitar ao Estado a fabricação de leis, para convalidar costumes adquiridos, legalizar uma pulsão ou dar uma garantia institucional a um desejo, todas funções que não lhe competem.

Paradoxalmente, a privatização da família se produz paralelamente com a invasão de parte do "aparato terapêutico" de técnicos, especialistas, conselheiros e psicólogos. Essa "colonização do mundo vivido" efetuada com o pretexto de racionalizar a vida quotidiana, reforçou simultaneamente a medicalização da existência, retirando responsabilidade dos progenitores e a capacidade de supervisão e controle disciplinar ao Estado. Em uma sociedade em dívida perpétua em relação com os indivíduos, em uma república oscilante entre comemoração e compaixão, o Estado assistencial, aprisionado na gestão lacrimejante das misérias sociais pelo trâmite de sua caricatura sanitária e de assistência social, se transformou em um Estado maternal, protetor, higienista, distribuidor de mensagens de "ajuda" a uma sociedade reclusa em um curral.

Essa sociedade dominada pelo matriarcado mercantil se indigna hoje com o "machismo" da periferia metropolitana e se surpeende ao se ver desprezada.

Tudo isso não é mais que a forma exterior de um fato social, por trás do qual se dissimula a desigualdade salarial e as mulheres violentadas.

A dureza, apagada do discurso público, retorna com mais força, a violência social se desencadeia sob o horizonte do Império do Bem.

A feminização das "elites" e o papel adquirido pelas mulheres no mundo do trabalho não o converteram em mais afetuoso, tolerante, amante do próximo, só mais hipócrita. A esfera do trabalho assalariado obedece, sempre, somente às leis do mercado, cujo objetivo é acumular retornos lucrativos, ao infinito, sobre os investimentos efetuados. O capitalismo, se sabe, constantemente impulsionou as mulheres a trabalharem com o fim de exercer uma pressão para rebaixar o salário masculino.

Cada sociedade tende a manifestar dinâmicas psicológicas que se podem observar, também, a nível pessoal. Ao fim do século XIX se advertia com frequência a histeria, ao início do século XX, a paranoia. Nos países ocidentais, a patologia mais corrente hoje parece ser um narcisismo de civilização, que se expressa em particular na infantilização dos cidadãos, em uma existência imatura, em uma ansiedade que leva muitas vezes à depressão. Cada indivíduo toma como objetivo e como finalidade de tudo, a busca de si mesmo aproveita a vantagem sobre o sentido da diferença sexual, sua relação com o tempo se limita ao imediato.

O narcisismo produz uma obsessão de autogeração, em um mundo sem lembranças nem promessas, no qual passado e futuro se encontram igualmente desdobrados sobre um eterno presente no qual cada um se assume assim mesmo como objeto do próprio desejo, pretendendo escapar às consequências de seus atos. 

Eric Paulson - Bio-História

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por Eric Paulson



Bio-História é o estudo da história informada pela biologia. A bio-história compreende a biologia humana e o ambiente natural como agentes que moldam eventos históricos (1).  Ainda que a bio-história não seja reconhecida pela American Historical Association como uma categoria separada no âmbito da disciplina, o termo é usado pelos estudiosos, incluindo historiadores acadêmicos.

As Raízes da Bio-História

As raízes intelectuais da bio-história podem ser traçadas desde o desenvolvimento da biologia evolutiva no final do século XIX. Seus antecedentes podem ser encontrados na geografia humana, na Escola dos Annales, na história ambiental, e na sociobiologia. A historiografia tradicional do século XIX estava preocupada principalmente com os feitos dos reis, papas e generais. Mas no início do século XX, a teoria da evolução estava influenciando o trabalho de muitos historiadores, geógrafos e cientistas sociais. Em 1901, o presidente da American Historical Association, Charles Francis Adams (irmão de Henry, que também serviu como presidente da AHA), declarou que o conhecimento da teoria de Darwin, "foi a linha divisória entre nós [historiadores contemporâneos] e os historiadores da velha escola"(2). Geógrafos como Ellsworth Huntington desenvolveram idéias sobre o determinismo racial e ambiental que mais tarde foram descartados, mas jamais refutados (3). Um ano depois de Huntington publicar Civilização e Clima, Madison Grant saiu com sua história racial da Europa (4). No entanto, no anos seguintes o campo nascente da bio-história foi estrangulado no berço pela antropologia boasiana e outras forças intelectuais e políticoas, tais como a Escola de Frankfurt (5).

Uma força contrária anti-liberal foi a Escola dos Annales, desenvolvido na França durante o período entre guerras. Liderados por Lucien Febvre e Marc Bloch, os Annalistes procuraram escrever o que chamaram de "história total" (6). Para conseguir isso eles adotaram uma abordagem interdisciplinar que incorporasse a geografia e as ciências sociais e físicas em seu trabalho. Isso era especialmente verdadeiro para Fernand Braudel, um estudante de Febvre, que liderou a segunda geração de Annalistes depois da guerra. Braudel acreditava que era necessário para os historiadores considerar os seres humanos como organismos vivos, e não perder de vista "a realidade biológica do homem." (7)

Começando na década de 1970 e 80 a história ambiental se transformou em um grande subcampo dentro da disciplina. Isso ajudou a situar o homem histórico no contexto do mundo natural, e estabeleceu o ambiente, tanto o natural como o modificado pelo homem, como um agente da história. À primeira vista, poderia parecer que os historiadores ambientais provavelmente cairiam no lado ambiental do debate meio-ambiente versus hereditariedade. Alguns sim, como Jared Diamond discutido abaixo. Mas porque o ambiente é um grande fator na equação evolutiva, é lógico para os historiadores ambientais serem receptivos à teoria darwiniana. Como Alfred Crosby, o decano dos historiadores ambientais americanas coloca, "A ideologia da história ambiental é, na sua raiz, biológica." (8) Ainda assim, muitos historiadores se preocupam com o temido rótulo do "determinismo biológico". Em janeiro de 2001 Edward O . Wilson, fundador da sociobiologia, dirigiu-se à 115ª conferência anual  da American Historical Association em Boston. Ele causou uma grande celeuma quando ele previu que a próxima geração de historiadores usaria a ciência biológica para responder a muitas das questões mais importantes da história (9).

Exatamente 100 anos (1901-2001) separar os pronunciamentos de Adams e Wilson, ambos previram que a biologia iria revolucionar o estudo da história. No entanto, o progresso tem sido lento. Não vai ser surpresa para os leitores deste jornal que a relutância dos historiadores em desafiar a ortodoxia ideológica do igualitarismo tem sido um obstáculo à integração da biologia, especialmente o estudo da variação humana, na historiografia.

Bio-História Sem Raça

A maioria dos historiadores que incorporaram a biologia em seu trabalho também se esforçaram para separar o conceito de raça da idéia de seres humanos como entidades biológicas. Um desses contorcionistas é Robert McElvaine, um professor de história na Millsap College (10). Segundo McElvaine, "a bio-história procura iluminar aspectos da história através de uma melhor compreensão da natureza humana - os traços fundamentais e predisposições que todos os humanos compartilham e que nos tornam iguais" (11). McElvaine limita a sua consideração às características que todas as pessoas compartilham. Mas não são as diferenças pelo menos tão interessantes e relevantes como as semelhanças? Se um historiador escrevesse uma história econômica do mundo ele poderia começar por referir características que todos os sistemas econômicos compartilham, mas certamente isso serviria apenas como ponto de partida para um estudo de como os sistemas se diferenciam.

Outra versão truncada de bio-história pode ser visto na obra de Jared Diamond. Diamond, um acadêmico não-historiador judeu, escreve sobre agência histórica e é crítico da historiografia acadêmica. Sua crítica se justifica na medida em que muitos historiadores acadêmicos negligenciam o nexo de causalidade em suas pesquisas. Em Armas, Germes e Aço Diamond, estabelece uma explicação igualitária para ascendência ocidental baseada no determinismo ambiental (12). Ele está preocupado que as teorias racistas que explicam domínio ocidental, embora oficialmente desacreditadas, mantenham seu controle do imaginário popular, de modo que "os ocidentais continuam a aceitar explicações racistas, privada ou inconscientemente" (13). Diamond acha essas explicações "repugnantes", mas no passado ele foi incapaz de oferecer uma refutação satisfatória para elas. "Até que tenhamos uma explicação convincente, detalhada e consensual para os amplos padrões da história, a maioria das pessoas continuará a suspeitar que a explicação racista biológica está correta afinal. Este parece ser, para mim, o argumento mais forte para escrever este livro".(14) Tendo apresentado os seus argumentos, Diamond conclui Armas, Germes e Aço, com uma sugestão para uma grande mudança na metodologia historiográfica. Ele apela para o desenvolvimento d "história humana como uma ciência, a par com ciências históricas reconhecidas como astronomia, geologia e biologia evolutiva." (15)

Em particular, muitos historiadores acadêmicos se ofenderam com as críticas de Diamond de que sua disciplina carece de rigor científico; outros descartaram seus comentários como os de um diletante que não entende seu campo. Ele, porém, não é facilmente ignorável. Seus dois livros mais recentes sobre bio-história ambiental tornaram-se bestsellers. Eles são anunciados em revistas de história e vendidos em conferências de história. Ele agora é um intelectual público entrevistado na NPR e similares. Ironicamente, a ciência que Diamond insta os historiadores a abraçar pode acabar minando sua ideologia anti-racial.

Em seu segundo livro, Colapso, (16) Diamond dedica vários capítulos para a ascensão e queda dos nórdicos da Groenlândia, os escandinavos que colonizaram a ilha no final do século X. Por meio milênio eles ganharam a vida naquele remoto posto avançado da civilização ocidental. Na época das viagens de Colombo a Groenlândia Nórdica havia desaparecido. Não há nenhum registro escrito do que aconteceu com eles, mas historiadores e arqueólogos concordam que a Pequena Idade do Gelo (cerca de 1300-1750) desempenhou um papel em sua morte. A Groenlândia foi colonizada durante o Período Quente Medieval (800-1250). Os nórdicos construíram uma economia baseada no pastoreio, caça e comércio, principalmente com a Islândia e a Noruega. Uma vez que o clima esfriou, a criação de gado já não era possível, e gelo sufocava as rotas de navegação, o que dificultou o comércio. Os assentamentos nórdicos morreram lentamente e foram substituídos por inuits (esquimós). Diamond escreve que, se os nórdicos tivessem sido flexíveis o suficiente para adotar a cultura dos inuit, incluindo uma dieta de peixes além de mamíferos marinhos, eles poderiam ter sobrevivido. Mais do que qualquer outra coisa, foi a recusa obstinada daos nórdicos em abandonar o pastoreio que levou à sua queda. Se os nórdicos tivessem se integrado fisicamente e culturalmente com os inuit, como Diamond propunha, eles teriam, naturalmente, deixou de ser nórdicos. Além deste fato óbvio, existem fortes dúvidas de que esse caminho estava aberto para eles.

A Relevância da Raça

Os historiadores ambientais agora percebem que as expansões e contrações demográficas dos povos ao longo da história, muitas vezes tem sido moldadas por fatores biológicos e ambientais (17). Se Diamond houvesse consultado o Imperialismo Ecológico de Alfred Crosby antes de escrever Colapso ele poderia ter chegado a uma conclusão diferente sobre a Groenlândia Nórdica. Crosby cunha o termo neo-europeus para descrever os povos europeus que se instalaram fora de suas terras natais do Velho Mundo. Ele sugere que os neo-europeus não poderiam dominar demograficamente novos territórios a menos que e até que eles fossem capazes de modificar o ambiente físico para atender suas necessidades bio-culturais. Para prosperar, os neo-europeus precisavam estabelecer um regime agrícola misto. Para sobreviver, eles precisavam, pelo menos, sustentar seus animais domesticados. Crosby escreve: "Os neo-europeus eram descendentes, culturalmente e, muitas vezes geneticamente, de indo-europeus...um povo que estava praticando agricultura mista com uma forte ênfase no pastoreio 4.500 anos antes Columbo (18). Desde seu início as sociedades indo-europeias tem sido pastorais. É provável que depois de 2.000 gerações, as sociedades europeias não podessem satisfazer as suas necessidades nutricionais sem seus animais doméstico (19). Em um livro anterior, Crosby observou que, mesmo um pobre camponês irlandês necessitava de "um pouco de leite", além de batatas, "para manter uma família calorosa (20)".

A alegação de Crosby de que os europeus precisavam de seus animais para sobreviver está em linha com a descoberta da mutação da tolerância à lactose que permite que a maioria dos europeus para digiram o leite enquanto adultos, diferentemente da maioria dos asiáticos, africanos e ameríndios. A mutação surgiu aproximadamente no mesmo tempo que a cultura indo-européia começou nas estepes do sudeste da Europa. Este é um exemplo do que  sociobiologistas chamam de co-evolução gene/cultura. A disponibilidade de produtos lácteos, juntamente com fontes alternativas limitadas de nutrição evoluíram na capacidade de digerir leite durante toda a vida. Dada a falta de variedade na dieta da Groenlândia Nórdica, produtos lácteos poderiam ter se tornado um imperativo nutricional. Por nem mesmo considerar a possibilidade de que os nórdicos não pudessem satisfazer suas necessidades nutricionais sem animais domésticos, Diamond revela um ponto-cego analítico produzido por sua ideologia igualitária rígida . Somente ao ignorar as diferenças genéticas entre etnias poderia Diamond ter defendido que os nórdicos adotassem a dieta livre de produtos lácteos do inuit.

Então, o que aconteceu com a Groenlândia Nórdica? É improvável que eles simplesmente morreram de fome. É provável que, como as condições se deterioraram, os nórdicos mais jovens e mais enérgicos tenham emigrado de volta à Islândia e à Noruega, e a população velha e decrépita remanescente morreu. Cerca de 200 anos depois de terem abandonado a ilha, os nórdicos retornaram na forma de colonizadores dinamarqueses. Assim, a lição da Groenlândia Nórdica não é a que Diamond queria que aprendêssemos (ou seja, os benefícios da assimilação racial/cultural), mas sim que em momentos de estresse social extremo uma retirada e re-unificação estratégicas poderiam ser o melhor curso para sobrevivência (21).

Raça e Ecravidão nas Américas

A obra de Alfred Crosby é um exemplo de como bio-história geneticamente ligada  tem, ao longo das últimas décadas, pingado na historiografia mainstream. Há outros exemplos. Imunidade e resistência a doenças também têm sido um tópico importante na bio-história. Estes desempenharam um grande papel no estabelecimento da escravidão africano na América. Os historiadores têm sido particularmente interessados em como a escravidão tornou-se estabelecida nas colônias britânicas muitos séculos depois da instituição ter morrido nas ilhas britânicas.

Durante o início do século XVII os ingleses começaram a colonizar o continente norte-americano e o sul do Caribe. Inicialmente, os plantadores usavam trabalho escritural inglês e irlandês em suas propriedades. Esses trabalhadores não eram livres, mas eles também não eram escravos. Por exemplo, durante a década de 1630 o plantador pioneiro Sir Henry Colt usava trabalhadores ingleses para estabelecer suas plantações em São Cristóvão. Em 1631, ele escreveu para casa pedindo "mais de quarenta servos" para expandir seus campos (22). Presumivelmente, se ele queria mais trabalhadores ingleses, os já presentes eram, pelo menos, adequados à tarefa de limpar as florestas tropicais para o plantio - trabalho pesado em sob calor escaldante. No entanto, dentro de cinqüenta anos da carta de Colt, a força de trabalho de São Cristóvão tinha sido transformada de branca para negra. Em parte, isso foi devido a uma relativa escassez de trabalhadores brancos e a disponibilidade de escravos negros (23). Havia também, no entanto, fatores biológicos envolvidos nesta mudança.

Quando os europeus conquistaram e se estabeleceram no Novo Mundo, eles encontraram terras ricas em recursos com relativamente baixa densidade populacional (24). Grande riqueza poderia ser produzida se o trabalho pudesse ser encontrado. Em regiões tropicais e subtropicais, os trabalhadores eram frequentemente escravos africanos. As explicações para esta escolha tem mudado ao longo do tempo. No século XVII, os europeus consideravam negros como selvagens pagãos necessitados da civilização cristã e especialmente adequados para trabalho servil. No século XX, os historiadores marxistas europeus viam os europeus como pessoas especialmente intolerantes e gananciosas que exploravam os vulneráveis africanos. Este ponto de vista estava implícito em The Peculiar Institution de Kenneth Stampp, uma história da escravidão americana escrita no auge da mentalidade "raça é apenas superficial". De acordo com Stamp, "os negros são, afinal, apenas homens brancos com pele negra, nada mais, nada menos (25)". Menos de uma década depois de Instituição Peculiar de Stampp, Philip Curtain documentou que fatores epidemiológicos estiveram envolvidos na seleção de trabalho escravo africano (26). Na década de 1980, pelo menos, alguns historiadores reconheceram que características fisiológicas, epidemiológicas e  nutricionais dos negros da África Ocidental lhes deram uma vantagem adaptativa como trabalhadores nos trópicos. Em uma mudança considerável do pronunciamento de Stampp o historiador afro-americano Kenneth Kiple argumentou que, "negros e brancos de fato diferem por natureza, em muitos aspectos importantes", e que cientificamente, "raça continua a ser um conceito viável (27)".

É agora amplamente aceito que características físicas, tais como a pele escura, um grande número de glândulas sudoríparas, e outros "traços negróides" são adaptações para a atividade física em ambientes quentes, úmidos e ensolarados (28). Além disso, a doença inexoravelmente selecionou os negros para o trabalho nos trópicos (29)". Os dois principais patógenos peculiares ao Velho Sul foram febre amarela e malária falciparum. Duas aflições menores foram bouba e tênias. Estas infecções são de origem africana e afetaram europeus e ameríndios de forma desproporcional (30). Assim, uma vez que escravos africanos e doenças africanas tivessem sido introduzidos nas Américas, estas últimas reforçaram a decisão de usar aqueles.

Outro fator racial que favoreceu o uso de escravos africanos foram suas necessidades nutricionais mais baixas. Animais domésticos geralmente não prosperam nos trópicos. Isto é particularmente verdadeiro para o gado leiteiro (31). Este é de pouca importância para as pessoas de ascendência africano ocidental, porque após a infância eles não têm a capacidade de digerir leite devido à intolerância a lactose (32). De fato, os africanos ocidentais têm tradicionalmente subsistido com uma dieta muito baixa em proteína. Assim, "mesmo a dieta miserável de escravos nas Américas era superior (ou, pelo menos, mais rica em proteína) a de seus primos africanos (33)". A capacidade dos africanos para sobreviver em uma dieta de baixa proteína desprovida de produtos lácteos os ajudou a subsistir, onde os trabalhadores brancos contratados não podiam. Com o tempo, "a América das plantations tornou-se uma extensão dos ambientes nutricionais e epidemiológicos da África (34)". Porque a África Ocidental é "a casa das doenças mais perigosas do homem e das áreas mais nutricionalmente empobrecidas do mundo", os africanos ocidentais tinham as adaptações físicas para sobreviver ao calor abrasador, juntamente com os "rigores nutricionais e epidemiológicos que os aguardava" nas plantations americanas (35).

Em resumo, o processo que estabeleceu a escravidão africana nas colônias anglo-americanas começou com uma escassez de mão-de-obra branca que levou alguns plantadores a importar escravos africanos. Esses escravos trouxeram com eles doenças africanas que tiveram um impacto desproporcional sobre os brancos e índios, que não tinham sido previamente expostos a elas. O trabalho africano ocidental também foi capaz de subsistir com menos comida e roupas do que os trabalhadores brancos. Além disso, os trabalhadores brancos eram contrários a labuta ao lado de escravos negros. Brancis se tornavam rebeldes e improdutivos em grupos de trabalho mistos. Assim, uma vez que alguns plantadores tomaram a decisão de importar mão-de-obra negra, fatores ambientais, genéticos, culturais e econômicas levaram à substituição de brancos com negros como trabalhadores de campo em plantações coloniais inglesas.

Perspectivas para a Bio-História

A agência de características epidemiológicas, nutricionais e outras fisiológicas geneticamente baseadas de etnias desde há muito, pelo menos parcialmente, embora com relutância, tem sido aceita pela historiografia oficial. Mas o que dizer de características psicológicas, incluindo a inteligência? Em Compreendendo a História Humana Michael Hart interpreta o passado em termos de apenas estas características (36). Sua obra ainda não tem atraído muita atenção, muito menos aceitação de historiadores acadêmicos. Mas, embora os historiadores acadêmicos tenham evitado a questão da inteligência média grupal, um livro recente de Gregory Clark, Um Adeus às Esmolas, sugere que as diferenças no comportamento de base genética podem explicar a Revolução Industrial que ajudou a aumentar o conhecimento, riqueza e poder do Ocidente (37).

Para Clark, professor escocês de economia da Universidade da Califórnia, a Revolução Industrial foi o divisor de águas na história da humanidade. Todas as sociedades pré-industriais foram pegas em uma armadilha malthusiana em que qualquer ganho na capacidade produtiva levou a um aumento da população que negou o aumento da riqueza. Assim, enquanto a população humana aumenta, o padrão de vida para a maioria, medido por indicadores como o número de calorias consumidas, não se levanta. Com a chegada da industrialização, a produtividade aumentou muito mais rápido do que a população, elevando o padrão de vida para quase todos na sociedade. Curiosamente, em seu prefácio Clark compara seu livro ao de Diamond Armas, Germes e Aço. Ambos são grandes histórias que procuram explicar a ascensão do Ocidente (referido por Clark e outros, como a "Grande Divergência"). Enquanto fazendo perguntas um tanto similares, Clark e Diamond chegam a respostas muito diferentes. Em contraste com a explicação ambiental/geográfica de Diamond, Clark traz o darwinismo social ao século XXI com o uso de cliométrica (38).

Os historiadores há muito tempo tem questionado por que a Revolução Industrial começou quando e onde ela começou: fins do século XVIII e início do século XIX na Inglaterra. Clark acredita que séculos de estabilidade econômica e política, bem como crescimento populacional lento conjutado com "a fecundidade extraordinária dos ricos e economicamente bem-sucedidos" levou à "a incorporação dos valores burgueses na cultura e talvez até mesmo na genética da Inglaterra." (39) Na relativamente estável e pacífica Inglaterra pré-industrial os educados e industriosos tendiam a prosperar e ter famílias numerosas. Oportunidades econômicas, no entanto, foram tão limitadas que a maioria das crianças dos ricos decaíam socialmente. Como resultado, eles estenderam suas características culturais e genéticas para as classes mais baixas. O estabelecimento de uma sociedade burguesa na Inglaterra é outro exemplo co-evolução gene/cultura. No início da Inglaterra moderna "as características da população foram mudando através da seleção darwiniana." O resultado foi que "a cultura de classe média se propagou em toda a sociedade através de mecanismos biológicos". (40) Enquanto Clark não afirma que os ingleses não eram mais inteligentes do que os outros povos, ele acredita que os valores e comportamentos com base genética estiveram no centro da Revolução Industrial e da ascendência ocidental. Na mente popular evolução é algo que ocorreu no passado distante, levou milênios para ser concluída, e foi realizado pelas forças da natureza. A pesquisa de Clark aponta que a evolução humana continua a ocorrer durante tempos históricos, que uma mudança significativa pode levar séculos em vez de eras, e evolução pode ser impulsionada pelo ambiente cultural, bem como o ambiente natural.

Em A Explosão de 10.000 Anos da Universidade de Utah os antropólogos Gregory Cochran  e Henry Harpending adaptaram algumas das idéias de Clark para um contexto global, e um cronograma que se estende por toda a história do Homo Sapiens (41). Os autores acham que os diversos grupos populacionais têm evoluído diferenças genéticas durante o tempo histórico. Algumas dessas diferenças genéticas deram vantagens competitivas para os grupos que os possuem. Assim a "mudança biológica tem sido um fator chave que conduz a história." (42) Talvez a tese mais interessante de Cochran e Harpending é que, em vez de acabar com a evolução humana, a civilização moderna tem realmente acelerado o seu ritmo.

Conceitos como "darwinismo social" e "determinismo biológico" têm sido usados ​​para censurar aqueles que aplicaram teorias biológicas para a história e as ciências sociais. Durante décadas a hostilidade da esquerda tem desencorajado, obstruído, ou obscurecido pesquisa acadêmica para o que hoje chamamos de bio-história. No entanto, com o trabalho de estudiosos como Clark, Cochran e Harpending nós podemos finalmente estar vendo os avanços na historiografia previstas por Adams e Wilson. É cada vez mais claro que o caminho para uma maior compreensão do nosso passado e do presente deve incluir o estudo da diversidade biológica humana.

Notas

1 - Uma definição mais formal de bio-história é: "Uma abordagem de ecologia humana que enfatiza a interação entre processos biofísicos e culturais. Seu ponto de partida é o estudo da história da vida na Terra; e os princípios básicos da evolução, ecologia, fisiologia e, e as sensibilidades dos seres humanos, o surgimento da aptidão humana para a cultura e sua importância biológica. Ela está particularmente preocupada com a interação entre os processos culturais e sistemas biofísicos, tais como os ecossistemas e as populações humanas". Susan Mayhew, “Biohistory,” A Dictionary of Geography (Oxford: Oxford University Press, 2004), 56.

2 - Charles Francis Adams, “The Sifted Grain and the Grain Sifters,” American Historical Review 6 (1901), 199.

3 - Ellsworth Huntington, Civilization and Climate (New Haven: Yale University Press, 1915). Uma das teorias de Huntington foi que ao longo do tempo climas tropicais e subtropicais tem um efeito enervador sobre aqueles que ele chama de "teutões".

4 - Madison Grant, The Passing of the Great Race, or The Racial Basis of European History (New York: Charles Scribner's Sons, 1916).

5 - "O triunfo da escola boasiana da antropologia sobre o darwinismo nos primeiros anos do século 20 foi um divisor de águas na história intelectual do Ocidente - em efeito mais ou menos obliterando o que tinha sido um meio intelectual darwiniano próspero." Kevin MacDonald, “Ben Stein's Expelled: Was Darwinism a Necessary Condition for the Holocaust?,” The Occidental Observer, December 1, 2008, http://www.theoccidentalobserver.net/articles/MacDonald-BenStein.html.

6 - Bloch era um judeu que pode ter tido sentimentos ambivalentes sobre seus correligionários. Muitos o consideravam um patriota francês. Bloch fugiu para o território de Vichy em 1940, onde, como um notável erudito, ele continuou a ensinar sem ser molestado. Ele e sua família tiveram oportunidades de se mudar tanto para os Estados Unidos como para as Antilhas Francesas. Ele decidiu ficar na França e em 1943 entrou para a resistência. Em 1944 ele foi capturado pelos alemães e fuzilado.

7 - Fernand Braudel, On History, trans. Sarah Matthews (Chicago: University of Chicago Press, 1980), 105-6. Braudel também participou na Segunda Guerra Mundial. Com a queda da França em 1940 Braudel, então  um oficial do exército francês, se tornou prisioneiro de guerra e passou cinco anos em cativeiro alemão. Durante este tempo, sem notas ou materiais de referência, ele escreveu sua dissiertação sobre a região mediterrânea.

8 - Alfred W. Crosby, “The Past and Present of Environmental History,” American Historical Review 100 (1995), 1189.

9 - Gareth Cook, “Wilson Rattles Historians with 'Bio-History' Theories,” Boston Globe, January 16, 2001, F3.

10 - A maior contribuição de McElvaine para a bio-história é Eve's Seed: Biology, the Sexes, and the Course of History (New York: McGraw Hill, 2001), uma história mundial desde uma perspectiva feminista.

11 - Robert S. McElvaine, “The Relevance of Biohistory,” The Chronicle of Higher Education 49, October 18, 2002, B11.

12 - Jared Diamond, Guns, Germs, and Steel: The Fate of Human Societies (New York: Norton, 1997).

13 - Diamond, Guns, Germs, and Steel, 19.

14 - Diamond, Guns, Germs, and Steel, 25.

15 - Diamond, Guns, Germs, and Steel, 408.

16 - Jared Diamond, Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed (New York: Viking-Penguin, 2005).

17 - Para um estudo global ver Alfred W. Crosby, Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe, 900-1900 (New York: Cambridge University Press, 1986). PAra um estudo de caso do mesmo fenômeno na Nova Inglaterra ver William Cronon, Changes in the Land: Indians, Colonists, and the Ecology of New England (New York: Hill and Wang, 1983).

18 - Crosby, Ecological Imperialism, 172.

19 - Ward H. Goodenough, “The Evolution of Pastoralism and Indo-European Origins,” George Cardona, Henry Hoenigswald, and Alfred Senn, eds., Indo-Europeans and Indo-European Origins (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1970), 252-65.

20 - Alfred W. Crosby, The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492 (Westport, Conn.: Praeger, 2003), 183.

21 - As conclusões de Diamond sobre os nórdicos groelandeses ecoam os argumentos de Thomas McGovern que escreveu, "Podemos criticar os nórdicos por manterem uma perspectiva conservadora, estratificada, eurocêntrica...[que escolheu] a preservação da pureza étnica às custas da sobrevivÊncia". “The Demise of Norse Greenland,” in William Fitzhugh and Elisabeth Ward, eds., Vikings: The North Atlantic Saga) Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press, 2000), 338.

22 - Richard S. Dunn, Sugar and Slaves: The Rise of the Planter Class in the English West Indies, 1624-1713 (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1972), 9. Ainda que ele não enfatize fatores biológicos, Dunn documenta a transição de trabalhadores brancos para escravos negros no Caribe inglês.

23 - As áreas agrícolas da África Ocidental tinham uma economia escravista e um enorme comércio escravagista que antecedia a exploração europeia. Começando no século XV, os europeus se conectaram a este comércio escravagista africano.  See John Thornton, Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680 (New York: Cambridge University Press, 1992).

24 - O número de ameríndios pré-contato está em disputa. Qualquer seja o número, a população foi bastante reduzida pela introdução de doenças do Velho Mundo nas Américas.

25 - Kenneth M. Stampp, The Peculiar Institution: Slavery in the Ante-Bellum South (New York: Vintage Books, 1989), vii.

26 - Philip D. Curtin, “Epidemiology and the Slave Trade,” Political Science Quarterly 82 (1967): 190-216. Por séculos foi sabido que negros eram menos suscetíveis a certas doenças que brancos. A razão para isso não pôde ser explicada até o advento da medicina e genética modernas.

27 - Kenneth F. Kiple and Virginia Himmelsteib King, Another Dimension to the Black Diaspora: Diet Disease, and Racism (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), xii, xiv.

28 - Kiple, Another Dimension, 5.

29 - Kenneth F. Kiple, The Caribbean Slave: A Biological History (Cambridge University Press, 1984), 4.

30 - Albert E. Cowdrey, This Land, The South: An Environmental History, rev. ed. (Lexington: University of Kentucky Press, 1996), 83. Kiple, Caribbean Slave, 7.

31 - Cowdrey, This Land, This South, 77.

32 - "Uma alta frequência de intolerância a lactose...caracteriza os africanos ocidentais e seus descendentes, os deixando incapazes de consumir muito leite" - Kiple, Another Dimension, 11.

33 - Kiple, The Caribbean Slave, 23.

34 - Kenneth Kiple, “A Survey of Recent Literature on the Biological Past of the Black,” in Kenneth Kiple, ed., The African Exchange: Toward a Biological History of Black People (Durham: Duke University Press, 1988), 8.

35 - Kiple, The Caribbean Slave, 5.

36 - Michael Hart, Understanding Human History: An Analysis Including the Effects of Geography and Differential Evolution (Augusta, GA.: Washington Summit Publishers, 2007) was reviewed in TOQ vol.7, no.4.

37 - Gregory Clark, A Farewell to Alms: A Brief Economic History of the World (Princeton: Princeton University Press, 2007).

38 - Após fazer uma crítica ligeira ao darwinismo social, Clark segue escrevendo que "os insights de Darwin de que enquanto a população fosse regulada por mecanismos malthusianos, a humanidade estaria sujeita à seleção natural estavam profundamente corretos" (A Farewell to Alms, 122). Cliometrics, broadly defined, is the use of statistics in historical research.

39 - Clark, A Farewell to Alms, 11.

40 - Clark, A Farewell to Alms, 259.

41 - Gregory Cochran and Henry Harpending, The 10,000 Year Explosion: How Civilization Accelerated Human Evolution (New York: Basic Books, 2009). Entre outras descobertas, Cochran e Harpending fornecem evidência dando suporte para a crença de Crosby, expressada 25 anos antes, de que o gado doméstico, especialmente o leiteiro, desempenhou um papel fundamental na expansão indo-europeia.

42 - Cochran and Harpending, The 10,000 Year Explosion, 67.

Amarílis Demartini & Caimmy de Sá - O Ensaio de Golpe da Direita Globalista no Brasil

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por Amarílis Demartini & Caimmy de Sá



Após os primeiros meses do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, intensos ataques à sua gestão começaram a ser disparados pela oposição e logo adquiriram o semblante de golpismo. Aécio Neves, recém-derrotado nas eleições, assumiu o papel de garoto propaganda das manobras e FHC veio à tona conclamar seus partidários. Logrou-se até derrubar alguns peemedebistas de cima do muro e convocar manifestações que, se não foram bem o que se esperava, conseguiram encher avenidas por todo o país e gerar apreensão. Em meados do ano já cogitávamos seriamente a possibilidade de que o governo do PT fosse derrubado, trazendo algo ainda pior do que o seu “neodesenvolvimentismo” alinhado com os usurários1, e essa impressão se intensificou na última semana com a aprovação de um pedido de impeachment pelo presidente da Câmara dos Deputados. Mas, apesar de tudo, ficamos com a sensação de que a concretização das ameaças não será tão simples.

Uma pista de qual seria a ponta solta da trama golpista está na série de declarações públicas contra a derrubada da presidente, vindas de notórios representantes dos interesses atlantistas2, de bancos a órgãos de mídia3. Se o povo já não se levantar com o ímpeto necessário para defender o governo após o “pacote de maldades”, outros atores – os quais na democracia ocidental são, obviamente, muito importantes: os próprios beneficiários das medidas de austeridade, isto é, os credores do Estado – podem vir a evitar a sua derrocada. As questões que se colocam, então, e às quais tentaremos buscar respostas, são: por que a finança globalista, já estando em uma posição vantajosa com o PT, alimentou a possibilidade de golpe? Como se explicam os recentes desenvolvimentos dessa ofensiva? Quais são as possíveis estratégias por trás deles? E, mais importante, qual a posição mais adequada a ser tomada nessa conjuntura por aqueles que, como nós, buscam um Brasil soberano?

Achamos que as respostas estão em boa parte nas condições políticas particulares do Brasil. Dentre as dezenas de partidos políticos ativos, poucas são as figuras interessantes, com projetos diferentes e condizentes com a nossa realidade, e essas poucas (poucas mesmo) são quase sempre desconhecidas do grande público. As instituições políticas no geral e aqueles que as compõem são alvo de desanimador (embora compreensível) descrédito por parte da população, e se é verdade queestaestá insatisfeita com o PT, o PSDB não goza de maior prestígio. Assim, o jogo democrático torna-se para o brasileiro cada vez mais um amontoado propagandístico sem capacidade representativa, sofremos com a carência de líderes e ideias autênticas, enquanto, por outro lado, isso se traduz num movimento de maior acirramento e envolvimento das pessoas com questões políticas, especialmente por parte dos jovens. Isto caracteriza uma tendência à instabilidade, que poderia muito bem resultar favorável para uma dissidência organizada, mas que carrega em si uma alta dose de imprevisibilidade. Tendo isso em mente, passemos a analisar os meios aventados para um golpe.

O Golpe Militar

A sanha oposicionista parecia tanta, que chegou a ser considerada por muitos a ideia de uma intervenção direta das Forças Armadas no plano político federal. É bem verdade que existem grupos de oligarcas nacionais que trabalham para isso desde a derrubada do Regime Militar, os quais se agitam esperançosamente a cada momento de efervescência política no Brasil e se tornam mais impacientes a cada ano do Partido dos Trabalhadores no poder. Entretanto, estes elementos da burguesia interna vêm perdendo forças mesmo dentro das corporações militares, seu poder de mobilização é débil e estão já obsoletos para influenciar decisivamente os funcionários do governo americano, que ingenuamente consideram seu parceiro.Isso porque ao longo do regime militar essa oligarquia foi suplantada pelo aparelho midiático e a presençade corporações multinacionais agindo com muito mais liberdade no cenário político brasileiro. Embora ela mantenha sua influência local em alguma medida, o imperialismo pode agora, quase sempre, dispensar o emprego de intermediários nas questões de interesse externo. Tal situação apenas se agravou durante a vigência do neoliberalismo pós-Constituição de 1988.

Analisando as condições históricas, parece-nos que um golpe nos moldes de 64, ou seja, perpetrado pela intervenção direta das forças armadas, dificilmente se repetiria. No tempo de João Goulart não havia margem para uma alternativa democrática, legal ou institucional, que representasse um alinhamento com o poder anglo-americano que naquele momento exigia colaboração de todos os países da América, iniciando a Operação Condor com aval e apoio de setores políticos, militares, e associações civis ligadas, diretamente ou não, aos interesses da burguesia (e podemos citar com certa importância no caso brasileiro, a Opus Dei, a Maçonaria e outros círculos do tipo).

Naquela situação, além do Ministério da Fazenda nas mãos de um economista do naipe de Celso Furtado, tínhamos um Darcy Ribeiro, ambos expoentes da corrente trabalhista. Não só isso, como se tinha um nacionalista feroz no governo do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que estava disposto a reunir e convocar todo o III Exército a uma guerra anti-imperialista que se daria em solo brasileiro. Ou seja, a perspectiva de instaurarem-se projetos nacionalistas que poderiam vir a contrariar ou se indispor com os EUA era algo muito palpável, mesmo porque, no contexto de então, muito pouco era preciso para ser alvo de suspeitas.

Com a vitória do modelo estadunidense sobre a antiga União Soviética, a ordem bipolar da Guerra Fria desmoronou e os representantes do Ocidente puderam avançar em muito com suas expectativas de uma ordem unipolar, sabendo que países que buscassem se livrar da sua influência não teriam mais outra potência à qual recorrer para sua sustentação no cenário geopolítico. Nós, na Ibero-América, logosentimos os efeitos da nova postura dos EUA e da onda neoliberal que se sucedeu. Hoje no Brasil, temos um defensor de grandes conglomerados financeiros ocupando a pasta da economia, o governo faz privatizações, concessões, e até apoia na ONU a demonização do governo sírio de Assad.

A própria oposição política, que caracteriza o maior veículo da ameaça golpista contra o PT, não gostaria de dividir seu protagonismo com os militares e correr o risco de ver o sistema democrático liberal enfraquecido. Para os atlantistas estrangeiros, tampouco é desejável que se abale esse sistema que tem garantido tão bem seus interesses no nosso continente – um fechamento político nas mãos das Forças Armadas poderia significar maior investimento na área de defesa, mudança de atitude com relação à cultura e até arroubos patrióticos, o que para aqueles seria puro retrocesso.

Além disso, dentre os oficiais do Exército já são poucos os que aspiram a meter-se pela política, a atitude legalista é enfatizada na instituição desde as primeiras lições e a discussão ideológica desencorajada. Isso vem em boa parte do fato de que os militares sofrem até agora as amargas consequências do antigo golpe, em um duplo sentido. Por um lado, há uma política que tende a condenar os militares não como traidores da Pátria (que de fato foram), mas como violadores dos "direitos humanos", política que leva a processos, sindicâncias, assédio e ações vexatórias vindas de movimentos de esquerda (principalmente, mas não só de esquerda).  A Comissão da Verdade, criada por Dilma Rousseff e pautada por uma moral "humanitária",quase nada falou do papel representado pelo empresariado envolvido com multinacionais nas manobras que levaram ao colapso de Jango, mas trouxe uma série de incômodos ao meio militar e poderia ter sido bem pior, se fossem instaurados processos criminais tal como certos movimentos cobravam. Digamos que as recentes provocações certamente irritaram muitas pessoas ligadas à caserna brasileira, mas ao invés de incitar a uma reação revanchista,fizeram essas pessoas quererem manter-se longe de dores de cabeça por algum tempo.

Por outro lado, o próprio processo de golpe instalou uma cultura de despolitização das Forças Armadas ao distanciá-las do amplo debate público. No momento que precedeu o golpe, era comum ver os militares divididos entre grupos nacionalistas, comunistas e liberais filo-atlantistas. Com a vitória da ala liberal através do golpe, os elementos militares pertencentes aos outros dois campos foram purgados do aparato de defesa, levando à hegemonia de um único grupo e, por consequência, à despolitização. Basta pensarmos na exclusão de Ivan Cavalcanti Proença e Nelson Werneck Sodré, respectivamente um nacionalista e um comunista.

O Golpe Institucional

A forma mais cômoda para um golpe da direita contra Dilma seria a via institucional, jurídica ou parlamentar. Isso poderia acontecer através da anulação das eleições, o que foi tentado quando Gilmar Mendes, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) requisitou a investigação das contas de campanha da chapa eleita, alegando o possível uso de dinheiro proveniente do esquema de corrupção da “Lava Jato”4. Mas o pedido foi arquivado pelo procurador-geral eleitoral, que alegou falta de indícios suficientes e expiração do prazo para a entrada com recursos. Desde então, Mendes vem tentando outros caminhos para invalidar o pleito, masaté agora nenhum logrou progresso.

Outra forma de atacar pela via institucional é através da abertura de processos de impeachment, e Eduardo Cunha (deputado eleito pelo PMDB e presidente da Câmara) finalmente aceitou um pedido depois de ter recebido uns 15 deles. Os antecedentes deste acontecimento envolvem toda uma trama de denúncias e negociações políticas que vem se desenvolvendo entre o governo e sua base, pressionada pela oposição. Já em setembro havia sido criado um movimento congressista oficial pelo impeachment unindo deputados oposicionistas e os rebeldes da base, ao que a bancada governista reagiu com um movimento “anti"-Cunha vem sendo acuado por investigações de corrupção e lavagem de dinheiro, e o fato de o PT ser o principal partido que pretende levar adiante o processo de cassação que corre contra ele no Conselho de Ética certamente influenciou sua ação de ataque à presidência.

Para que o processo de impedimento da presidente tenha sucesso, é necessário que seja analisado por uma comissão parlamentar especial e aprovado na Câmara por mais de dois terços dos deputados, com o que Dilma Roussef seria afastada por 180 dias, assumindo o vice-presidente Michel Temer (PMDB). A partir daí, o processo se encaminha ao Senado e, havendo a condenação de dois terços dos senadores, Dilma deixa a função. Entretanto, essas maiorias não são fáceis de conseguir, pois exigiriam uma ruptura total da base com o governo e aqui vemos a necessidade de falar do principal componente dela, o PMDB.

O chamado Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) protagoniza a situação politicamente escorregadia e imprevisível na qual nos encontramos. A sigla representa o maior partido do país, o qual tem sido essencial para o que se convencionou chamar “governabilidade”: sem nunca ter elegido um presidente, a legenda está profundamente arraigada em todo o aparelho estatal, influencia toda decisão abrangente e é afamada por seu oportunismo. Dilma vem negociando com o PMDB constantemente, os favoreceu na nomeação dos ministérios, mas ainda assim o partido mostra-se pouco interessado em colaborar e nenhuma declaração de apoio contra o impeachment veio até agora, nem sequer do vice-presidente Michel Temer, de quem Roussef disse esperar “integral confiança”. Muito pelo contrário, uma embaraçosa carta de Temer à presidente foi divulgada na mídia essa semana, e Eliseu Padilha, homem próximo àquele, acaba de pedir demissão do Ministério da Aviação Civil. O partido ainda lançou, no final de outubro, um documento contendo críticas às políticas econômicas dos petistas e reforçando seu compromisso com o liberalismo econômico. Porém, não seria surpresa nenhuma se esta organização grande, ideologicamente débil e com tantos interesses conflitantes, acabasse dividida, o que inviabilizaria os planos golpistas.

O cenário de golpe institucional é possível, mas lhe falta respaldo de importantes setores. O ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto, entre outros especialistas do Direito Constitucional, manifestou-se anteriormente ressaltando que não há base jurídica para um impeachment. Há também diversas entidades de pressão popular que se mantêm do lado do governo, pela sua ligação histórica com o Partido dos Trabalhadores. A capacidade de apaziguar as demandas classistas dos trabalhadores tem sido, na verdade, um dos pontos positivos para o capital nos anos de PT, mas também vem gradualmente se desgastando. Apesar de toda a insatisfação que as medidas deste mandato têm suscitado entre os seus apoiadores mais à esquerda (ou simplesmente mais conscientes), em uma situação de golpe da direita, provavelmente eles iriam às ruas e não seriam facilmente reprimidos. O mesmo não se pode esperar dos partidários da oposição.

O que é que está acontecendo?

A disputa pelo Estado que nos aparece na forma básica de PT versus PSDB se digladiando corresponde a projetos concorrentes, em ambos os quais atores econômicos saem ganhando e o país sai perdendo, mas um deles se destaca como potencialmente mais nocivo do que o outro. Este se caracteriza pela alternativa deliberadamente atlantista encabeçada pelo PSDB.

É notório que o governo petista tem cedido terreno ao grande capital e garantido seu lucro em detrimento do nosso desenvolvimento (não apenas econômico, mas também cultural e moral), quando não abertamente, por seu envolvimento em práticas de corrupção que, além de constituir alta traição em si mesmas, tornam nosso Estado vulnerável aos ataques do interesse globalista.  O escândalo da Petrobrás, por exemplo, não obstante se tenha tornado um “escândalo” com um empurrãozinho da influência externa e da mídia sua serviçal, resultou na desvalorização da nossa principal estatal, com a venda de ativos a investidores privados e a abertura do precedente para maiores concessões do pré-sal a gigantes internacionais. Esta perda é incalculável para o Brasil.

Se, no entanto, o capital internacional tem avançado sobre os bens brasileiros e o setor financeiro tem quebrado sucessivos recordes de lucro por aqui5, o fato é que nunca se dão por satisfeitos e sabem que estariam em situação mais vantajosa com o PSDB no poder. Esta afirmação é corroborada pela análise dos financiamentos de campanha das últimas eleições6. O PT aparece atrás do PMDB, como o terceiro colocado com relação ao montante arrecadado e uma receita total de $385,993,122.54, enquanto o PSDB, campeão de arrecadação, tem um total de $629,323,035.76. Ao sondar-se a proveniência das doações, nota-se a aberta preferência do setor bancário e de serviços financeiros pelo PSDB. Ora, qualquer um que esteja a par da importância da geopolítica para se compreender o mundo atual e agir nele, sabe que o setor bancário não é simplesmente mais um braço qualquer do capital7, servindo como o principal instrumento de submissão das nações pelo projeto liberal globalista. É quando a atuação dos bancos é rechaçada por governos resistentes que o atlantismo passa a lançar mão de outros tipos de intervenção, suscitando guerras e “revoluções laranjas”, como vimos recentemente na Líbia, na Síria e em um bocado de outras nações, nesses tempos de ofensiva da unipolaridade.

No Brasil, bem menos que isso foi necessário para incomodar aqueles que se sentem os donos do mundo: a presença dos bancos estatais na nossa economia vem irritando os banqueiros. Ao disponibilizar linhas de crédito acessíveis, a Caixa Econômica Federal tirou deles uma fatia importante do mercado, e isso se traduziu em ataques à instituição, ao que o governo respondeu sinalizando a privatização 8. O BNDES, ainda mais incômodo por financiar os grandes projetos do PAC, foi o alvo seguinte, com a abertura de uma CPI debaixo de intensas críticas da mídia. Além disso, outras movimentações do governo também contribuíram para exasperar os financistas, são algumas delas: a intenção de não mais operar com o manejo da taxa SELIC, que beneficiava os bancos; a sanção da lei de superávit primário que privilegia as empreiteiras em detrimento daqueles; a taxação sobre o lucro dos bancos que, ao estender o ajuste fiscal aos mais ricos, aumentaria em 3 a 4 bilhões a arrecadação estatal; e o esforço para reestabelecer a CPMF.

Como toda ação que leve ao desabono de empresas nacionais abrirá espaço para o capital internacional, e ainda com base nos financiadores do PSDB e o projeto de enfraquecimento do aparelho estatal ao qual esse partido se propõe, podemos afirmar que a disputa política entre PT e PSDB reflete em boa medida a disputa levada a cabo entre capitais internos e externos, não se limitando ao setor financeiro. Com isso, temos de onde saíram, em termos econômicos, os incentivos ao golpismo e não há dúvidas de que foram seguidos de perto pela intrusão política e ideológica dos EUA 9.

Então, por que duvidamos do sucesso da empreitada golpista?

1 - Em parte, pelo fracasso da oposição em conseguir apoio popular e político. As bases impulsionadas pelos think-tanks americanos e que lideraram as manifestações de rua anti-PT tem se enfraquecido, sofrendo seguidos rachas por discordâncias entre os líderes e também porque setores mais propensos ao conservadorismo, usados como idiotas úteis pelos liberais, têm começado a ressentir-se 10. Por mais que a população esteja descontente com a crise financeira e desaprove a administração de Dilma Roussef, não há indícios de um movimento massivo e disposto a sair às ruas pelo impeachment.

2 - Além disso, as medidas de austeridade impostas pelo Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, garantirão que o Brasil continue pagando as dívidas regularmente, com os juros abusivos de sempre, subsídios para o agronegócio, a deterioração dos direitos trabalhistas para a burguesia industrial (turbinada pela imigração direcionada pelos capitalistas aos munícipios industriais) e a alegria do setor exportador com a alta vertiginosa do dólar. Sendo assim, para o capital atlantista pode ser mais seguro evitar a instabilidade e tentar manter os níveis de insatisfação das massas contra Dilma para serem usados em uma derrota eleitoral em 2018.

Temendo o trunfo Lula, a oposição emplacou ainda certas alterações legislativas que inviabilizariam o financiamento da campanha petista, já prejudicado de todo modo pelo desmonte dos esquemas com empreiteiras. Nesse sentido, os oposicionistas sofreram uma derrota com a aprovação do fim do financiamento de empresas nas campanhas. De toda forma, a ofensiva liberal não está derrotada e o Brasil precisa de um movimento que não se acue diante dela para livrar-se do jugo imperialista de uma vez por todas. A nós está muito claro que esse movimento não virá do PT.

Conclusão

Queremos deixar claro que repudiamos o PT, por toda sua condescendência para com o globalismo no campo da economia e também pela adoção de um programa completamente afeito às piores degenerações liberais nos âmbitos social e cultural, com grande prejuízo para a tradição brasileira. Entretanto, em política a neutralidade é impossível e pretender refugiar-se nela é apoiar um ou outro lado, conscientemente ou não. Com a crise política instalada no Brasil este ano, vimos partir tanto de círculos da extrema-esquerda quanto de nacionalistas o reforço ao coro golpista anti-PT por vários motivos. Essa atitude pode ser fruto de legítima revolta, mas, no momento, não ajuda o Brasil, nem a classe trabalhadora brasileira.

Não estamos dizendo, com isso, que o governo petista (especialmente o de Dilma Rousseff e ainda mais nesse segundo mandato) seja minimamente contra-hegemônico. Por muito do que dissemos nesse texto, é evidente que não é esse o caso. A questão que faz com que nos oponhamos à derrubada do governo é a falta de qualquer alternativa que ofereça melhores perspectivas no curto prazo – o fiasco nacional que é o sistema partidário atual não acabará sem trabalho árduo e revolucionário, de conscientização, desconstrução e conquista de espaços. A ascensão de figuras do PSDB ou PMDB, partidos que não se preocupam em manter sequer uma imagem de resistência, representaria uma vitória ainda maior para o capital financeiro por aqui, causando danos que, mesmo com a construção de uma alternativa realmente dissidente não poderiam ser reparados sem muita dificuldade. O PT, por querer manter-se no poder, sabendo que não tem a confiança do atlantismo e que pode perder o apoio das próprias bases militantes, fica na defensiva e para isso precisa amparar-se em algumas das posições que serão importantes para retomar uma política soberana. A postura do PT contra a pilhagem do aparelho e empresas estatais é fraca demais para impedir a rapina, mas ela não seria nem encontrada com a oposição no poder, e o processo seria acelerado. Talvez, tentando ser otimistas em uma situação bem pouco propícia a isso, poderíamos pensar que uma pressão vinda das ruas lograria uma postura mais incisiva do governo. Foram formadas frentes de esquerda com esse propósito, ainda que por um viés com o qual temos muito desacordo11.

Assim, reafirmamos nossa ruptura com toda a política moderna, com as direitas e as esquerdas, mas sem nunca tirar os pés do chão. Porque queremos uma revolução real, será preciso saber valer-se de tudo o que puder se tornar um recurso contra o inimigo e agir no mundo que ele mesmo construiu para implodi-lo. Assim, buscamos no momento de crise a oportunidade para inserir no debate público nacional uma opção autêntica pautada pela Quarta Teoria Política12 e não por falsas dicotomias como petismo ou anti-petismo, dicotomias essas calcadas na modernidade a ser ultrapassada e que podem distrair tanto dos pontos fundamentais sobre os quais devemos estar atentos quanto do poder real de escolha que temos.

Notas:

1 - As aspas são porque a versão de que os governos de Lula e Dilma foramneodesenvolvimentistas é contestável. Falta à política petista uma série de características centrais do desenvolvimentismo de Celso Furtado, do qual a versão “neo” procederia. Furtado tinha em vista a soberania nacional, através da internalização das decisões políticas e econômicas, portanto, a condescendência atual para com as instâncias estrangeirasjá seria uma contradição, daí a ironia. Para maiores detalhes referentes ao questionamento de tal tese, conferir:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-66282012000400004&script=sci_arttext

2 -  “Atlantismo” é um termo importante para nós. Ele foi sucintamente definido por Aleksandr Dugin da seguinte forma:
“Atlantismo – termo geopolítico significando:
- sob o ponto de vista histórico e geográfico, o setor ocidental da civilização mundial;
- sob o ponto de vista estratégico-militar, os países membros da OTAN (em primeiro lugar, os EUA);
- sob o ponto de vista cultural, a rede unificada de informações criada pelos impérios midiáticos Ocidentais;
- sob o ponto de vista social, o ‘sistema de mercado’, afirmado como sendo absoluto e negando todas as formas diferentes de organização da vida econômica.”
Texto completo e traduzido em: http://evrazia.info/article/4436

3 - Aqui podemos citar Itaú, NY Times, Globo, entre outros.
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/08/1672332-nao-ha-motivos-para-tirar-dilma-do-cargo-diz-presidente-do-itau-unibanco.shtml
http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/impeachment-sem-evidencia-concreta-traria-dano-diz-new-york-times.html
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/08/em-editorial-surpreendente-globo-pede-sustentacao-ao-governo-dilma.html

4 - Esta Operação mereceria um texto inteiro e é certamente a antessala da estratégia golpista.

5 - http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2015/08/mesmo-diante-de-crise-lucro-dos-bancos-nao-para-de-crescer.html

6 - Devemos os créditos dessa análise e outros dados, referentes à conjuntura econômica, ao artigo de Pablo Polese (Mestre em Sociologia pela UNICAMP, doutorando em Serviço Social pela UERJ e UFRJ) no blog esquerdista Passa Palavra.

7 -  Ao que parece, a maior parte dos marxistas se esforça para ignorar peremptoriamente este fato.

8 - http://www.valor.com.br/politica/3833616/vou-abrir-o-capital-da-caixa-mas-processo-demora-adianta-dilma

9 - http://mundo.sputniknews.com/americalatina/20150414/1036371835.html

10 - Por exemplo, o desentendimento entre “libertários” e “liberais” no Instituto Mises Brasil, e entre o Movimento Brasil Livre e os seguidores de Olavo de Carvalho, etc.

11 - É o casoda Frente Brasil Popular e da Frente Povo Sem Medo. Embora essas iniciativas tenham muitas pautas válidas, infelizmente, se desviam do foco e valem-se de um discurso de cunho liberal em questões não econômicas, defendendo degenerações absolutamente impopulares, como é comum às esquerdasnos nossos dias.

12 - Quem não conhece os fundamentos da Quarta Teoria Política, neste vídeo pode ver uma breve explicação do Professor Aleksandr Dugin com legendas em português: https://www.youtube.com/watch?v=YpRykFhRlIA

Gustavo Aguiar - A Superação do Eros Hedonístico em Direção a uma Metafísica do Sexo

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por Gustavo Aguiar



O advento do século XIX trouxe consigo uma erupção vulcânica de clamores ávidos pelo desmantelamento de instituições tradicionais, que, tendo expulsado os últimos resquícios de sacralidade e indecomponibilidade (dantes pré-requisitos de constituição do vínculo matrimonial), sobejaram acroamaticamente desnaturadas. A família, outrora concebida como a célula mater de uma comunidade tipicamente pré-contratual, foi, de longe, a estrutura mais afetada pela imposição do dogma positivista e seus consectários materialistas, ao ponto de podermos, com o escólio de Zygmunt Bauman, inferir a obstetrícia de um amor líquido, caracterizado pela flexibilidade ou mobilidade dos padrões de sociabilidade e interação:

“Com a nova fragilidade das estruturas familiares, com a expectativa de vida de muitas famílias sendo mais curta do que a de seus membros, com a participação em determinada linhagem familiar tornando-se rapidamente um dos elementos “indetermináveis” da líquida era moderna e com a adesão a uma das diversas redes de parentesco disponíveis transformando-se, para um crescente número de indivíduos, numa questão de escolha – e uma escolha, até segunda ordem ,revogável -, um filho pode ser ainda “uma ponte” para algo mais duradouro. Mas a margem a que essa ponte conduz está coberta por uma neblina , ninguém sabe ao certo que tipo de margem iria se revelar, nem se da névoa emergiria uma terra suficientemente firme para sustentar um lar permanente. Pontes que levam a lugar nenhum, ou a nenhum lugar em particular: quem precisa delas? Para quê? Quem perderia seu tempo e seu bom dinheiro para planejá-las e construí-las?” (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre as fragilidades dos laços humanos, p. 28)

Uma das consequências mais desagregadoras da banalização do liame familial para o esteio de uma sociedade ancorada em critérios rígidos de tradição e ancestralidade é a insuficiência axiológica inerente a um eros estritamente passional, volátil e efêmero, que se notabiliza pela imediatividade da satisfação das necessidades libidinais. “Democatiza-se”, por assim dizer, o impulso hedonístico de cariz utilitário, e o sexo torna-se uma ferramenta a disposição de espíritos inferiores, diversamente do que se passava nas sociedades aristocráticas, onde podemos abstrair, no tocante à prática sexual, todo um cerimonial de comunhão com o sagrado. Não são raros os exemplos de rituais de magia sexual oriundos dos mais diversificados segmentos da linhagem esotérica.

Contudo, no horizonte instável deste Admirável Mundo Novo, a sexologia, reivindicando para si o estatuto da mais insípida cientificidade, se limita a fornecer explicações gerais de natureza bio-psicológica acerca dos benefícios de uma vida sexualmente ativa, sem atentar para os pormenores metafísicos que tornam essa prática verdadeiramente transcentente sob vários aspectos, razão pela qual o sucesso de teorias pseudo-científicas como a psicanálise freudiana ganham cada vez mais espaço nos círculos intelectuais de inclinação burguesa e demo-liberal. Nesse sentido, Patrick Valas aduz que “os sexólogos tiraram da filosofia o termo “libido” (traduzido como apetite, desejo, aspiração, volúpia). Qualificando-o como libido sexualis, eles superpõem esse termo ao de “instinto sexual”.  Por sua vez, Freud tira esse termo dos sexólogos para dar-lhe uma nova definição. É difícil encontrar em sua obra um sentido unívoco para a libido, através das diferentes etapas das suas elaborações, mas ele sempre faz dela um componente essencial da sexualidade”. (VALAS, Patrick. As Dimensões do Gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo, p. 10)

Ainda a propósito da sexologia, Julius Evola assevera que “o enquadramento da sexologia ressente-se, num período mais recente e até nos atuais tratados com pretensões «científicas», da herança do materialismo do século XIX, que teve por premissas o darwinismo e o biologismo, ou seja, uma imagem completamente deformada e mutilada do homem. Do mesmo modo que, segundo estas teorias, o homem teria derivado do animal por «evolução natural», também a sua vida sexual e erótica era exposta em termos de um prolongamento dos instintos animais, e explicada, no seu fundo último e positivo, pelas finalidades puramente biológicas da espécie. Assim, afirmou-se também neste domínio a tendência moderna de reduzir o superior ao inferior, de explicar o superior pelo inferior — no caso presente, o humano pelo fisiológico e animal” (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 14).

O perigo da redução do eros a uma dimensão puramente hedonística induz ao equívoco de termos que, forçosamente, considerá-lo o centro magnético das relações sexuais, como se valesse por si e em si mesmo, independente de um fator extrínseco  que o legitimasse no espaço e no tempo. Em Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, Arthur Schopenhauer designa a prole de um casal sob o epíteto de “gênio da espécie”. Para ele, o elo de afetividade que liga um parceiro ao outro durante o coito é insuficiente para justificar a estabilidade de uma relação sexual, sendo, portando, um aspecto contingente de sua constituição fisiológica. 

O fundamento último do intercurso sexual é, em Schopenhauer, o impulso de procriação. O gozo, ao revés, não passa de “uma ilusão voluptuosa (...) que mistifica o varão, fazendo-o crer que encontrará nos braços de uma mulher, cuja beleza lhe agrada, um gozo maior do que nos braços de uma outra qualquer; ou, que direcionada exclusivamente para um único indivíduo, convence-o com firmeza que a sua posse lhe daria uma felicidade extrema. Em conseqüência, presume empregar esforço e sacrifício em favor do próprio gozo, enquanto isso acontece apenas para a conservação do tipo regular da espécie, ou em favor de uma individualidade bem determinada que deve chegar à existência, e que só pode provir de tais pais”. (SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, p. 19)

Nesse contexto, a influência do darwinismo no pensamento de Schopenhauer reveste-se de clareza meridiana, sobretudo se considerarmos que, tendo em vista a parturição de uma prole fenotipicamente idealizada, o varão buscaria sempre se relacionar sexualmente com uma parceira detentora de “ingredientes” biológicos dos quais ele, enquanto indivíduo, prescinde para a “neutralização mútua de duas individualidades que está em pauta [e] exige-se que o grau determinado de masculinidade do homem corresponda exatamente ao grau determinado de feminilidade da mulher, suprimindo-se com isso aquelas unilateralidades de modo preciso. Assim, o homem mais masculino procurará a mulher mais feminina e vice versa, e justamente desse modo cada indivíduo procurará quem lhe corresponda no grau de sexualidade”. (SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte, pgs. 29 e 30)

O substrato darwinista reside na lei de sobrevivência do mais forte, que ,transplantada para o terreno do eros passional, significa que os mais belos devem ter primazia na seleção para a prática do coito, posto ser a beleza o único traço imediatamente perceptível em um ambiente de disputa pelo protagonismo da reprodução da espécie. Sobreleva destacar a primazia da beleza somática em detrimento até mesmo das virtudes contemplativas (v.g. o intelecto), um dos pontos-chave para a compreensão do amor passional sob a perspectiva schopenhaueriana. 

Entretanto, por mais sedutora que se nos afigure a proposta de Schopenhauer sobre um potencial “Gênio das espécies”, ela, ainda assim, peca por não conseguir explicar o fato de existirem, em nosso meio, tantos seres imperfeitos a despeito do homem, em seu rastreamento inconsciente por um ideal de perfectibilidade cada vez mais acentuado, almejar parceiros que lhe correspondam biologicamente. Se, por um lado, é compreensível que o filósofo frankfurtiano tenha elegido as gerações vindouras como fonte de legitimidade do ato sexual (afinal, tal concepção, se rigorosamente analisada, nos reconduzirá aos princípios da potência e do ato, balizadores da metafísica aristotélica, também presentes, ainda que sob outra nomenclatura, na ontologia heideggeriana), por outro, essas coordenadas soam demasiadamente perfunctórias sob um ponto de vista esotérico, habituado a julgar as coisas a partir de uma posição superior.
                                                                         
Nas palavras sempre lúcidas de Julius Evola, “poderemos, ainda, citar numerosos casos em que uma atração intensa, mesmo «fatal», se gerou entre seres que de forma alguma representam um optimum para fins de procriação conformes à espécie; por isso, o impulso schopenhauriano, mesmo relegado para o inconsciente, surge-nos relativa ou totalmente inexistente. Trata-se, pois, de algo diferente: com base na teoria finalística mencionada, deveria em rigor encontrar-se uma sexualidade reduzida nos exemplares menos nobres da espécie humana, e no entanto é neles que, embora sob formas primitivas, ela é maior, sendo tais exemplares os mais fecundos. Poderia, de fato, dizer-se que o «gênio da espécie», com as suas manhas ocultas e as suas armadilhas, é bastante inábil e precisa muito de se aperfeiçoar, ao considerarmos que através do amor físico o mundo está povoado essencialmente de subprodutos da espécie humana”. (EVOLA, Julius, Metafísica do Sexo, p. 23)

Em outras palavras: a assunção da influência abstrata de um gênio da espécie sobre todo o processo de seleção natural através da prática do coito carece de verificação empírica, visto que, pela experiência crua, as estirpes inferiores são as que mais indiscriminadamente se relacionam entre si, ao ponto de, no marco de uma hodiernidade cada vez mais decadente e esclerótica, ser possível falar numa espécie de “monopolização” libidinal dos meios de somatização do prazer vertido em gozo puro e simples. Isso explica como práticas outrora condenáveis como o incesto, a pederastia e a promiscuidade se tornaram, em nossos dias, amplamente difundidas e até mesmo incentivadas por novelas, telejornais e outros setores estratégicos da mass media. “Ao desviar o exame do domínio dos dados da consciência para o âmbito da experiência, uma observação assaz banal dir-nos-á que no domínio do sexo se produz qualquer coisa de parecido com o que se passa no domínio alimentar. Um homem que não seja primitivo não escolhe ou prefere simplesmente os alimentos que o organismo pode considerar como os que melhor lhe convêm, isto sucede não porque o homem seja «depravado» mas simplesmente porque é homem”. (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 22)

A todas as considerações até aqui expendidas, soma-se a dinâmica de funcionamento do mercado global em uma sociedade capitalista e obteremos, como resultado, a degeneração do eros contemplativo de procedência helênica em um eros passional (do grego pathos, que significa doença), incapaz de dialogar com instâncias exteriores ao estágio avançado de seu definhamento vegetativo. É de rematada estupidez (pra não dizer de uma violação frontal ao bom senso) insistir na tese de que a crença cega no progresso repercutiu única e exclusivamente nas searas em que a tecnologia de produção e reprodução das técnicas de industrialização estiveram presentes. A sociedade industrial colonizou não só os meios e formas de vida, mas também aqueles aspectos mais íntimos da existência humana, dentre eles, a sexualidade.

De todo o acima exposto, pode-se fazer intervir, a título de curiosidade, elucidações  pertinentes ao universal simbólico do sexo, em consonância com doutrinas das religiões extremo-orientais, reflexões que escapam aos limites positivistas de uma análise rigorosamente causal-naturalista. Nesse sentido, a preocupação central das mencionadas correntes metafísicas volta-se para o reconhecimento da unidade estática por trás de uma ordem de multiplicidades dinâmicas que desfilam perante a intuição sensorial. Este é o denominador comum em todas as crenças do Extremo Oriente, consoante se extrai da seguinte passagem: “Não existe doutrina metafísica e tradicional completa, que tenha considerado a Díade como supremo ponto de referência da sua visão do mundo. A tradição do Extremo Oriente conhece, como já assinalamos, para além do yin e do yang, a <<Grande Unidade>>  - Tai-i ou Tai-ki. Plotino fala do Um superior e anterior à dualidade divina de novo e vÂn, de ser e da potência-vida. O tantrismo conhece o Nirgûna-Brahman ou um outro princípio equivalente para além da díade Çiva-Çâkti, etc. Este ponto de referência superior impede que se reconheça uma dignidade igual aos dois princípios. O princípio masculino, o yang, Çiva ou o ser como elemento da díade, reflete o Um, o ser transcendente; representa e incorpora este Um no processo da manifestação universal, na relatividade, na corrente das formas (em Plotino, na qualidade de Logos). Quanto à «natureza», podemos dizer em termos teológicos que não constitui um princípio que seja coexistente com Deus, mas que deriva de Deus e tem, portanto, uma «realidade secundária»”. (EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo, p. 156)


O Uno, princípio estático da virilidade urânico-solar se sobressai ao múltiplo como representação lunar de uma feminilidade dinâmica e fragmentária, principalmente em sociedades de índole patriarcal, em que o sentido de coerência da práxis sexual decorre da suprema síntese orgânica de elementares heterogêneos. Somente a partir destes pressupostos é que podemos deduzir a existência de uma harmonia entre ambos os extremos, que atinge seu apogeu no instante do gozo. Portanto, o gozo não seria nem uma ilusão provocada pelo gênio das espécies, conforme assinala Schopenhauer, nem uma sensação puramente biológica através da qual dois sujeitos compartilham um prazer essencialmente hedônico e utilitarista, mas algo mais elevado na hierarquia espiritual: o momentum de externalização da comunhão com o sagrado em sua etérea unidade. 


REFERÊNCIAS: 

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2004.

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Amor e Metafísica da Morte. Martins Fontes: São Paulo, 2000.

VALAS, Patrick. As Dimensões do Gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2001.

EVOLA, Julius. Metafísica do Sexo. Edições Afrodite: Lisboa, 1976.

Martínez de Pisón - A Montanha Simbólica

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por Martínez de Pisón

Tradução por Maurício Oltramari



Resumo

A montanha contém valores de notável profundidade cultural em seus significados. Estão propostos como exemplos expressivos: 1º, o caráter analógico de determinados conteúdos da própria montanha e da aproximação ao seu sítio e à sua altitude; 2º, o sentido metafórico do vulcão na grande literatura europeia; 3º, o marcado símbolo espiritual da ascensão em nossa literatura; e 4º, a intensa interpretação religiosa de algumas montanhas da Ásia. Cabe, pois, ao interesse geográfico fixar-se e aprofundar-se em tais conteúdos, ainda que não estejam formalizados em seu restrito território como componentes do sentido das paisagens. Portanto, se o pensamento geográfico estabeleceu como limite de seu interesse específico um ponto prévio a esses conteúdos, o que ficaria amputado é o próprio conceito de paisagem.

A montanha análoga

Há valores visíveis; explícitos nas paisagens, que convivem com outros ocultos, invisíveis, frequentemente tanto ou mais significativos. Estes requerem perscrutar aquilo que não está à vista. A condição oculta da paisagem é uma referência necessária de valor e determinadas paisagens ficam ás vezes estreitamente enlaçadas a essa carga simbólica. Assim, no valor oculto da ascensão reside o símbolo espiritual de seu itinerário e do encontro com o alto. O olhar se lança desde uma perspectiva que por acaso pode encontrar-se melhor nas bibliotecas e nos museus do que no próprio terreno. Há novelas que exploram esse mundo simbólico expressamente, como A montanha análoga, de Daumal, uma alegoria do diálogo interior com a natureza, cuja realidade é melhor que a fantasia, O Odor da Altitude, de Jouty, que remete inclusive ao inalcançável e inexpressável, mesclando a ascensão real e a espiritual pela paisagem própria do estranho, aonde a valia moral conta mais que a capacidade física, porque o cume verdadeiro não se corresponde com o cume material. Significam não só enlaces com aspectos sublimes da realidade senão mais concretamente com a cultura, ou com alguns de seus componentes específicos: por exemplo, o inexpressável da montanha envolve com Senancour, ou a mística da ascensão com suas metáforas poéticas. E assim sucessivamente. Estão sendo invocados aqui, com clareza para quem transite por esses mundos, ainda que sem dizê-lo, órbitas próprias das letras e das artes.

Porém, a ascensão da montanha real é sempre o percurso de uma paisagem, o percurso apropriado ao declive e à rugosidade naturais, no qual é preciso um trato direto com a paisagem, que opõem sua resistência e oferece suas possibilidades. Em todo o processo de ascensão se sopesam as forças e habilidades do ascensionista com as forças estáticas e dinâmicas da montanha.

Ao mesmo tempo, não é menos verdadeiro que há, ademais, uma constante experiência espiritual que pode tomar uma expressão religiosa, inclusive mística, presentes na literatura alpina de modo abundante. Mas a relação entre montanha e religião é ampla, mais ampla que o alpinismo, e tem suas raízes no mais antigo e profundo de nossa cultura. O Himalaya é chamado por isso a morada dos deuses. O Monte Kailash, no Transimalaia tibetano, tem um caráter religioso em si mesmo e como objeto de peregrinação esse caráter é ainda mais intenso e vigente, estendido a budistas, hinduístas e bon. O forte simbolismo destas montanhas e de seus chorten ou stupas, principalmente no budismo tântrico, adquire uma dualidade significativa da montanha como templo e do templo como montanha. A forma do chorten, além de seu sentido geral como túmulo e ponto de devoção, tem significados cósmicos estratificados da terra ao céu, de modo que sua base corresponde à terra e se refere a um tipo de saber, o da identidade, seu domo central é símbolo da água e do saber ver, seu mastro faz referência ao fogo e ao saber discriminar, sua culminação significa o ar e o saber dos atos, e finalmente os símbolos solar e lunar que o completam evocam o éter e a sabedoria da lei. O chorten é, pois, também um símbolo do eixo ancorado no solo, e que se lança ao céu. O nosso Teide foi considerado pelos clássicos como “trono dos deuses” e talvez como eixo do mundo entre os aborígenes. E sem falar do alcance cultural tão intenso dos signos mitológicos do Olimpo ou do Parnaso. A outra grande raiz da relação montanha e religião em nossa cultura procede dos conhecidos acontecimentos bíblicos do Monte Sinai. O Símbolo religioso da ascensão é, portanto, explícito, e prosseguiu em diversas propostas ascéticas ou místicas. A subida é então exposta como um método religioso e uma das maneiras de realizar a viajem da prova que leva à iluminação ou à revelação, que não são o mesmo. O ermitão significa genericamente o desejo de retirada, de afastamento na natureza e de adentrar-se na montanha, porque esta proporciona amplamente ambos requisitos: natureza e solidão. Desprovida destas a montanha deixa de ser, portanto, desde um ponto de vista simbólico e não só naturalista, um bem maior.

As raízes universais das relações entre altitude, montanha, ascensão e experiência religiosa possuem muitas de suas chaves catalogadas. Algumas, por Samivel, com a capacidade de sugestão tão característica desse escritor da montanha alpina, e com as numerosas referências eruditas que ele era capaz de aportar, nesse caso sobre as múltiplas modalidades que adotam as concepções religiosas da montanha na história e na geografia. Ao abordar o simbolismo da altitude demonstrava Samivel a associação primária entre o baixo -com menos- e o alto -com mais-. A altitude e a verticalidade, escrevia, são geralmente qualificadas positivamente, de tal modo que à altitude correspondem conceitos de transcendência e à ascensão, de progresso e crescimento. No alto se encerram signos do que é bom e leve, do que vence o peso, do celeste; o espiritual ascende; em contrapartida, a matéria pesa e a vida precisa lutar contra o peso. A elevação é, portanto, uma qualidade e o cume é o seu êxito, a vitória sobre os obstáculos materiais mediante um esforço, sua recompensa moral. Tudo isso sacraliza a montanha e a sua ascensão. É o esforço que consegue a entrada em um domínio alheio e aberto entre linhas aéreas -sugestão do infinito-, em espaços grandes, no distanciamento progressivo do basal e de seus labirintos. De modo que a dualidade baixo-alto se polariza em dois ambientes contrapostos, o alto como cenário de natureza, solidão e individualização; e o baixo como mecanizado, massificado e gregário. Tudo isso são modelos culturais. Mas o baixo também é o terreno, o mundano, o subterrâneo, inclusive o infernal e, em contrapartida, o alto é o celeste e o divino. Sem distanciar-nos, vemos o mesmo em culturas populares, em misteriosos ambientes exóticos, em difíceis poetas místicos ou no próprio Dante.

Ademais, está claro que há um sentido moderno da ascensão, impregnado de valores científicos, artísticos e exploratórios, que banham culturalmente e ideologicamente o ato de ascender à montanha. Na Espanha é o que aconteceu, em sua melhor versão, sobretudo por influência da Instituición Libre de Enseñanza (“Instituição Livre de Ensino”) no excursionismo, com sua qualidade particular. A soma de ambos os modelos e sentidos constitui o produto cultural que o alpinista recebe e mantém. Não vamos mais nos estender sobre esse aspecto, que requer um tratado próprio. Portanto, agora vamos nos concentrar em três exemplos muito característicos do simbolismo herdado e às vezes esquecido. Não são os únicos, mas são suficientemente expressivos para revelar a existência e a importância do lado imaginário de toda a montanha e, por derivação, irão auxiliar-nos na busca de outros aspectos simbólicos que pesam na cultura. Trata-se, portanto, de um percurso fugaz pela outra vertente da geografia dos objetos, que suponho também ser geografia, como transitar pelo lado oculto da lua, naturalmente, considerando que ela seja redonda e não plana.

Primeiro exemplo: a erupção como metáfora.

Vamos começar com a raiz, com a origem simbólica da montanha no antro do fogo e do cataclisma. Não é exato, evidentemente, só é parcialmente verdade, mas assim tem sido prazeroso a mais de um poeta. Um caso é o de Gabriel e Galán, quem em Gredos escrevia: “Te engendrou trepidante o terremoto / [...] a terra te pariu de suas entranhas, / rugindo de dor em seu seio rompido. / [...] E transpiraste em teu alentar imenso / espirais soberbas / que cegaram o éter de fumo denso. / e tua louca infância, brava e ardente / envolveu-se em fraldas / que eram manto de lava incandescente...”. Não explicaria dessa forma a origem de Gredos, evidentemente, mas a licença poética nos serve perfeitamente para entrar no tema.

Nossa cultura nasceu junto ao vulcão. Os grandes mitos clássicos se associaram em casos como esse, com naturalidade no geográfico e com lógica no dinâmico, às formas vulcânicas e às destruições próprias das erupções. É o que se conhecia empiricamente nas forças terrestres presentes no mundo mediterrâneo e é o que transmitiram os escritores a seus contemporâneos e aos tempos posteriores. Logo se transportaram também no espaço ao aplicar-se por distintos descobridores em parte ao atlântico e ao continente americano. Vieira e Clavijo propôs, a modo de exemplo, “se as Ilhas Canárias foram parte da Atlântida de Platão”. A marca da cultura mediterrânea estendendo-se pelo Globo também estava composta por suas antigas considerações míticas e naturalistas, logicamente.

As referências a vulcões na mitologia clássica são, como se sabe, abundantes: nada mais explícito que Efestos ou Vulcano, deus do fogo profundo, como principio tanto criador como destruidor. A ativa proximidade do Etna, do Vesúvio, de Vulcano, entre outros vulcões, fará habitual sua presença na literatura, por exemplo, em Homero, Hesíodo, Lucrécio, Virgílio, e algumas de suas ideias iriam persistir até o Renascimento como explicação dos fenômenos telúricos, como no caso dos breves, porém insistentes, discursos expressados por Aristóteles com respeito aos terremotos e vulcões. As fúrias atribuídas aos Titãs no antro desde o século VIII antes de Cristo, o alento do Titã enterrado no submundo das sombras, nas profundas câmaras de castigo, serão as forças do Etna, vinculando contendas próprias dos homens, agigantadas, aos deuses e às forças naturais. E, ao ar livre, outro gigante elevado até que sua cabeça desapareça na altitude, o Atlante castigado, também haverá de suportar o céu sobre seus ombros. É, em suma, a figura do vulcão completo, com as raízes no inferno e sua cúspide celeste. O eixo, a coluna inquieta e viva do universo. A erupção, a força convulsa de sua base, é uma titanomaquia. De modo que, nesse drama –pois a terra é entendida dramaticamente-, a cratera central do Etna foi algo mais que o abismo em direção ao interior da Terra, o que já é inquietante: foi a órbita esvaziada do olho do ciclope. A via vertical, profunda, até a residência das fráguas nas cavernas, aonde se escutam as marteladas dos ciclopes. Deste modo, em nossa raiz a paisagem era pura força. Perto estava, não esqueçamos, do Vesúvio ameaçante, a paisagem imediata era o perigo. Podem ler Plínio o Jovem se acreditam que exagero.

Porém, como sabemos, há duas tradições culturais nossas acerca dos vulcões: aparte da cultura clássica está a bíblica, também alegórica, que se soma às anteriores raízes com sua própria intenção e seu âmbito, como chave de conhecimento, símbolo ou parábola bem influentes e que inclusive se estenderam por muito tempo na cultura popular (não agora, pois duvido que alguma dessas duas raízes possua um grande número de adeptos nesse momento). Tais lugares, clássicos e bíblicos, passaram a ser chaves, modelos de referência na linguagem cultural e ritos de viagem. Tal modelo cultural, como antes apontei, será levado com os europeus até a América, à Filipinas e aos arquipélagos, de modo que sua extensão não chegou a ser universal mas quase conseguiu. Ainda que não só em nosso continente e em suas prolongações culturais, mas em todas as partes, os vulcões foram interpretados a partir de conteúdos religiosos, e só é preciso dar uma volta pelo mundo habitado para acumular notas sobre essas atribuições, aqui nos bastará recordar agora dois cenários.

De um lado, em outras ocasiões destaquei como a Teofania da revelação a Moisés no Sinai parece descrever uma erupção: suas trovoadas, o estrondo, a nuvem densa que cobria o monte, o fogo ardente que abrasava o cume, “fumegando por haver descendido a ele o Senhor em meio às chamas”, o fumo que subia como se fosse de um forno. A imagem do vulcão em atividade. No momento culminante da revelação, portanto, o cenário reclama a força telúrica e o aparato do vulcão. E, por outro lado, na destruição de Sodoma não faltam tampouco ressonâncias aos efeitos destrutivos de algumas erupções. Além disso, as erupções serviram repetidamente, primeiro, para insistir no mesmo ensinamento: a interpretação do desastre natural como castigo divino aos pecadores. E, segundo, para evocar o inferno, cuja imagem se concretiza nas crateras incandescentes, nos piroclastos e na lava ígnea. Um autor espanhol piedoso muito conhecido chegou a pensar no final do século XVI se aquilo que se via em certas crateras ativas da América poderia ser realmente o fogo do inferno, e não lhe faltaram partidários. Para outros, de espírito mais prático, a dúvida residia em descobrir se tal magma era ou não ouro derretido. Como é compreensível, esse aspecto atraiu um número maior de pessoas dispostas a obter amostras e analisá-las. É evidente que ninguém pode comprovar com certeza suas respectivas hipóteses.

Mas sigamos até o âmago. Quando Dante ascende em sua viagem literária à montanha dos antípodas figurada como o Purgatório, diz que se trata do “monte que ao céu mais se eleva em meio às águas”. Na viagem ao Inferno, Ulisses havia contado que em sua navegação atlântica avistou tal montanha: “uma montanha obscura pela distância e tão alta como nunca havia visto outra”. A importância do clássico Atlas parece evidente, e a companhia de Virgílio se enlaça com a raiz cultural, mas a montanha é sobretudo uma referência com conteúdo ascético cristão e a moral localizada na sombra de uma referência imprecisa na época de uma alta montanha erguida sobre o oceano. E como sua culminação leva ao possível acesso ao Paraíso, tudo se reúne, a raiz profunda cuja entrada é uma caverna que acessa os andares do Inferno até o centro da Terra, enquanto a montanha imprecisa de maneira oposta leva até às nuvens e ao céu na altitude. Essa geografia sem fundamento orográfico, baseada nas máximas clássica e religiosa de interpretação simbólica da montanha é, no entanto, um fundamento clássico de nossa cultura. Como essa montanha imaginária elevada no Atlântico tem todas as probabilidades de estar baseada em uma imagem geográfica um tanto apagada do Teide, própria do século em que foi escrito o poema, podemos nos permitir aceitá-la seguramente entre os vulcões e suas metáforas.

Mais tarde há outras traduções literárias deste tipo e há uma que possui suficiente envergadura para que ao menos possamos mencioná-la brevemente nesse texto. Trata-se da aparição de imagens vulcânicas no Fausto de Goethe, em oposição alegórica com as paisagens alpinas. Os Alpes alegres mostram o pulso da vida como um ensinamento, enquanto o antro infernal, do fogo eterno com o “acre denso do enxofre”, provém da demolição, dos escombros da montanha, de modo que aqui, mais uma vez, mas a seu próprio modo, o vulcão desolado é novamente metáfora do Diabo, mas nesse caso porque nada conhece da maneira esperançosa de ver o mundo. Século após século, a montanha volta a ser, de uma maneira ou outra, repetidamente tanto rocha como metáfora.

Não deixa de ser agradável e instrutivo passear pelas geografias de Homero, de Dante ou de Goethe. Deveria o geógrafo abster-se disso?

Segundo exemplo: a metáfora espiritual

Parece-nos conveniente dedicar aqui mais uma vez, de maneira breve, ao menos para quem não haja lido nossos velhos trabalhos, uma referência especial à imagem tradicional que possui em nossa literatura o símbolo da ascensão. Essas questões possuem, com efeito, sua medula literária fortemente arraigada em nossas letras, concretamente em São João da Cruz, e em seu centro a Subida do Monte Carmelo, obra escrita entre 1578 e 1582. A referência geográfica ao Monte Carmelo se remonta aos ermitões da época das Cruzadas, instalados no século XII na franja deste monte, situada em Haifa, próximo ao mar e que alcança os 600 m. de altitude. Logo, a visita ao Monte Carmelo foi sendo incluída de modo habitual no caminho dos peregrinos à Terra Santa, entre os lugares de Jerusalém, Nazaré e São João do Acre. Mas tudo isso não é mais que um ponto de arranque. Trata-se, mais uma vez, no que elegemos aqui, uma geografia simbólica, de grande entidade literária, que joga com seus elementos como se fosse uma base real, mas evidentemente com absoluto distanciamento de uma análise ou de um guia alpino.

A subida, o escrito do poeta, tem uma boa parte de seu sentido gravitando na montanha como metáfora espiritual. Esta obra contém um sistema de chaves expressado por todos os meios: desenho, comentários, poesia e prosa. A ascensão é utilizada como símbolo com intenção explicitamente ascética e mística, ainda que tais atributos acabem por impregnar a ascensão real com caracteres sublimados. São João fala da ascensão simbólica, e a ascensão real se contagia com tais símbolos.

O gráfico que acompanha o texto permite hoje, que se faça inclusive uma leitura montanhista dos valores espirituais da ascensão ou uma leitura religiosa de seus valores montanhistas ou uma leitura literária de seus valores poéticos. O croqui do santo está exposto como um esquema de ascensão moderno, com as vias de escalada em direção ao cume e seus comentários, como poderia ser um bosquejo alpinista. Além disso, o croqui foi desenhado pelo próprio escritor, inicialmente de modo esquemático, ainda que logo os carmelitas o tornaram mais elaborado nas edições sucessivas, com maior realismo, mas sem variar as bases topográficas fundamentais nem o percurso nem as intenções espirituais do santo poeta.

O desenho está composto sobre uma citação do Evangelho: “que restrita é a porta e quão estreita é a senda que conduz à vida eterna”. O croqui representa, por isso, o itinerário gráfico da ascensão, com suas chaves espirituais. Uma observação geográfica de seus componentes internos nos permite decompô-lo em andares sucessivos. De baixo para cima, eles são: Colinas basais, com caminhos e senda. Montanhas desnudas intermediárias. Montes com árvores espalhadas. Escarpa pronunciada e elevada. Colina superior com arbustos. Cume arredondado. Iniciemos a marcha: na base do monte há três caminhos possíveis, o do “espírito imperfeito”, o do “espírito errado” e o da “senda estreita da perfeição”, a via difícil, a escalada monte acima, fora dos caminhos trilhados. Cada qual tem seu guia de itinerário e possui seu valor e recomendação. Em suma, o caminho central é o correto, a chave do monte, mas tal caminho está justamente onde não há caminho, só a senda estreita. Despojado de superficialidades, consistirá no essencial. O piso intermediário alcançado tomando somente a direção correta é a montanha desnuda. Pela senda estreita se chega aonde não há nada. A via de escalada se adentra e atravessa o “monte-nada” e se dirige diretamente ao cume, e o desenho adverte “já por aqui não há caminho”. E acrescenta, “que para o justo não há”. A leitura espiritual é a da solidão interior. Mas a leitura da ascensão é a da rota diretamente pela montanha desnuda como quadro de realização pessoal, com suas exigências de negação, esforço, risco e renúncia. A isso se segue uma faixa superior de árvores com uma escarpa. As virtudes desta parte do percurso são, entre outras, fortaleza, prudência e temperança. As referências virtuosas se tornam abundantes e sem elas não haveria passagem em tal ponto. Desde o ponto de vista religioso são essas virtudes sustento e alcance. Desde o ponto de vista da escalada parecem objetivos, e também assistências e condições daquele que ascende em sua relação entre a fortaleza própria, a vinculação reta com sua equipe e a resistência do lugar. Ao término superior da escarpa fica a depuração espiritual transpassando o obstáculo. Como culminação, por cima da escarpa, estão finalmente uma colina superior e o cume. Na ampla colina elevada e suspendida “só mora a glória e honra de Deus”. É o fim buscado, a meta, a união com Deus, o estado de perfeição e, de certo modo, a recompensa moral do escalador. Isto é, se consegue um sentido espiritual explícito e máximo.

Essa leitura montanhista da “subida” de São João que acabamos de fazer contém um valor literário e teológico oculto, geralmente inconscientes, mas com frequência bastante latente nos valores habituais da ascensão do monte. Conhecê-lo, portanto, só esclarece acerca das qualidades escondidas em nossos atos, insólitos e rituais, e de nossas paisagens. E São João conclui: “dessa maneira, desnudo, encontra o espírito quietude e descanso... no centro de sua humildade”. Por isso escreveu: para evitar que as almas não entendam “por falta de guias idôneos e corretos, que as levem até o cume”. Deste modo manifesto, São João executa a primeira “guia” de ascensão a uma montanha em língua espanhola, guia sem dúvidas profundamente espiritual e simbólica, nem prática nem geográfica, mas cuja luz transcende no “como ir”, tanto a Deus no religioso, com voz direta, como à montanha no profano, como eco cultural. Ou a ambos simultaneamente.

Podemos nos permitir ler, então, só as guias de por onde ir e não de como ir? Os significados profundos das coisas nos escaparão ou não, mas depende do quão importante é isso para nós; tudo reside, portanto, na trama do enredo teórico do geógrafo, de maneira que só se crivem dados territoriais ou que sua ferramenta permita passar também os símbolos e conteúdos que constroem a profundidade das paisagens.

Terceiro exemplo:

Quando se viaja e quando se lê aprende-se que, no âmbito em que temos discorrido, as montanhas sagradas se estendem pelo mundo inteiro. Tomavam ou tomam diversos modos religiosos, naturalmente, e por isso convém observar igualmente os cumes distantes, em outras cosmogonias tradicionais. Antes apareciam em quase todas as culturas e ainda seguem sendo invocadas e cultuadas em montanhas distantes e símbolos devotados a elas encontram-se inclusive nas que estão próximas. Na Ásia estão presentes frequentemente, mas são encontradas igualmente na África, na América, em ilhas distantes. São montanhas sagradas, algumas tão famosas como o Everest, o Kilimanjaro ou o Monte Fuji. Entretanto, montanhas europeias muito significativas, como o Aneto e o Cervino, que são estritamente sagradas, concluem com uma grande cruz superior cujo simbolismo é evidente. E há certas montanhas que adquirem caráter sagrado de modo especialmente intenso, como ocorre com o monte Kailas, no Tibet.

Porém, na ampla continuidade geográfica entre o Tibet e Qinghai, por cima dos altiplanos que vão do Himalaia ao Kunlun, se estendem as cordilheiras de outras montanhas que participam de similares modos de entendimento e de expressão religiosa, como nas digitações do Kunlun e os sistemas transversais de Hengduan. Entre elas há um translado de conceitos e rituais, ainda que invocados de maneira particular ou conformando representações de deidades específicas. O modelo é o Kailas, como pilar do mundo cujo topo sagrado é intocável, mas há muitas outras que constituem centros espirituais de similar intensidade. Entre elas, no espaço mencionado, devemos unir ao Kailas (6.714 m.), no Transimalaia, ao menos o Meili ou Kawakarpo (6.740 m.) e ao Gongga Shan (7.556 m.), ambas na cordilheira Hengduan, e ao Amne Machin (6.282 m.) no extremo oriental do Kunlun. Há mais pela região, porém, não tão intensamente consideradas, na atualidade, como montanhas sagradas e inclusive divinas. Ao possuir características simbólicas tão profundas, ao menos as mencionadas devem ter seu lugar neste escrito, ainda que de maneira concisa.

Tanto no Tibet como em Qinghai há uma profusão de templos, em geral templos budistas que se encontram ativos. Alguns, como o de Kumbum ou Taersi, é um monastério de lamas de grande entidade, indicador de sua potência real na sociedade local, de sua influência espiritual e de sua persistência apesar das inúmeras tempestades da história recente da China. No entanto, além destes centros monásticos, as próprias montanhas são núcleos de religiosidade, com suas duras peregrinações ao redor dos montes que atraem a numerosos fiéis. Nem todas essas marchas ou “koras” são de idêntica exigência física: algumas são tão pequenas que só supõem uma volta ao redor de um chorten; algumas são de distância média, por exemplo, ao redor do monastério de Kumbum; algumas são grandes, como ao redor de uma montanha, que pode ter grandes desníveis, alcançar altitudes elevadas e, como a do Amne Machin, prolongar-se por 180 km de percurso. De modo derivado, em função da carga espiritual da montanha podem aparecer também monastérios locais, altos, isolados, em um vale alto do maciço Meili, em uma elevada plataforma junto ao Gongga Shan ou ao pé do Amne Machin, que são os centros espirituais dessa montanha tutelar, desse deus protetor feito montanha.

Entretanto, essa inserção da montanha na paisagem geral não é tudo. Os tibetanos leem suas paisagens de amplos horizontes também com referências espirituais, e de fato estão repletos de lugares santos e simbólicos que ordenam os espaços com significados transcendentes. O território tibetano é entendido mediante constantes dualidades: o alto e o baixo, cume e vale, sombra e luz, casa e porto, e nele há uma série de símbolos espirituais que o enriquecem de ordem e de centros significativos. Esses centros ou lugares principais que concentram valores e a partir dos quais se dividem os demais, são frequentemente montanhas com características divinas. O Kailas inclusive ordena o mundo inteiro, reúne a geografia mítica da Ásia e agrupa os espíritos de meio continente. É um formidável relevo, um indivíduo geográfico sobressaliente, pilar do mundo, é fonte de águas que se dispersam por tal continente em todas as direções, é o centro de uma mandala expressiva da harmonia do cosmos, está composto por quatro faces invioláveis que guardam os espíritos do solo e que possuem portas imaginárias para o mundo subterrâneo aonde habitam forças complementárias, e seu vértice se prolonga no céu em uma pirâmide inversa, intangível morada dos deuses. Ademais, cada detalhe, cada recordação, cada caminho, cada pedra, cada contraforte possui um significado religioso próprio. Essas montanhas não são, portanto, simplesmente conglomerados amontoados e abertos pela erosão glacial pleistocena; essas montanhas condensam o espírito complexo da espiritualidade da Ásia.

As peregrinações que circundam ao redor das montanhas são realizadas por centenas, inclusive milhares de fiéis hoje em dia, que podem remontar a colinas situadas a mais de 5.000 m. de altitude. Normalmente são feitas a pé, às vezes a cavalo, em certas ocasiões com prosternações contínuas. Deixam oferendas, repetem mantras, dão voltas no moinho de orações, atiram ao ar estampas do cavalinho do vento ou sopro de vida à galope, estendem bandeiras com as cores do céu, das nuvens, do sol, da água e da terra, impressas com preces e imagens de cavalos, que são agitadas pelos ventos da colina, rodeiam no sentido da esquerda os túmulos de pedra, que possuem o gravado: “Om Mani Padme Hum”.

Além da kora do Kailas, as mais renomadas são as do Kawakarpo e do Amne Machin. Kawakarpo é em realidade um deus benevolente, porém zeloso de seu retiro nas alturas e aqueles que o veneram não desejam que seus recintos, gelos e cumes sejam perturbados e nem profanados por estranhos. Ele é representado armado sobre um cavalo branco e é o dono do trovão. Igualmente, a divindade do Amne Machin é equestre, vigiando do alto com sua família divina, e protegendo aos pastores de yaks que vivem a seus pés. Conta-se que quem contemple o pico do Gongga Shan (só o podem ver os corações puros) ficará limpo de pecados e sua vida será então como um renascimento. Tais montanhas personificam, portanto, um “poder tutelar”, são a encarnação de uma divindade, de modo que cada uma é uma montanha-deus individualizada, ainda que todas possuam características similares.

Na origem desta doutrina está também a ideia tão comum da montanha cósmica, o eixo do mundo ou, ao menos, da região circundante. Sabemos que é próprio de diversas culturas o princípio do eixo do mundo aplicado a montanhas concretas, destacadas e inacessíveis, colunas do céu e centros de organização espiritual das coisas do território, mas a força que adquire esse conceito no Tibet é bastante especial. Este papel, similar ao do Kailas em escala regional, foi atribuído, por exemplo, ao Amne Machin pelos goloks que habitam seus flancos. Segundo as suas tradições, sua culminação tocaria a lua e o sol enquanto sua raiz se afundaria na profundidade subterrânea. É portanto, como a figura de um chorten gigantesco. Esse eixo, tão alto, iria cobrir-se de cristal que serviria de relicário gigantesco do deus denominado Machin Pomra, que estaria pelas cumes acompanhado por centenas de seus irmãos, concretizados fisicamente pelos cumes secundários repartidos profusamente por todas as suas arestas. É possível, portanto, fazer um mapa da família divina.

Logicamente, ideias tradicionais semelhantes de sacralização das montanhas se estendem pela cordilheira de Kunlun, aonde também reaparece outro eixo cósmico, dessa vez com sentido geográfico e fundo espiritual. No cume, já celeste, habitaria “O Uno”, imortal, ou em outras ocasiões, a deusa da imortalidade, ou ali se guardariam as espadas protetoras que vencem aos maus espíritos. O fato é que isso também é uma montanha paralela que eu vejo, e é a mesma que vê quem está ao meu lado. O que ocorre é que, se faço um esforço, eu posso também entender a sua montanha sem esquecer a minha.

Enfim, há nessas montanhas uma geografia religiosa muito intensa própria desses lugares, razão pela qual emigraram as ilusões, fazendo-se locais, mas não são diferentes das ilusões universais dos homens, decantadas em histórias, lugares e personagens individuais. A montanha dirige o espaço no interior dos homens. A paisagem é entendida então por suas histórias, por suas vontades, por suas respostas, em um tecido que se plasma em comportamentos. Ao protetor dos homens, ao deus-montanha, lhe corresponderá enfrentar ao tenebroso. A ti, o respeito. Tudo isso e muito mais ensinam as montanhas simbólicas, muito além de sua materialidade tangível.

Se trataria então de abarcar todos os conteúdos? Se uma parte dos homens, quando aceita valores espirituais na paisagem, vive mais perto dos que estão ocultos, mas se movem em ativos fios invisíveis, do que daqueles que poderiam decantar apreços culturais de outra ordem, aonde deveria se deter então o pensamento do geógrafo? Eu intentaria chegar até o fundo. Creio que, depois do que foi dito, me acompanham razões muito boas.

Bibliografía

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MARTÍNEZ DE PISÓN, E. (2009): “Valores escondidos de los paisajes. Calidades ocultas de la ascensión a la montaña”, en MARTÍNEZ DE PISÓN, E. y ORTEGA CANTERO, N., eds. (2009): Los valores del paisaje. Madrid,
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Aleksandr Dugin - Princípios e Estratégia da Guerra Vindoura

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por Aleksandr Dugin



Para falar a verdade, a guerra começou. A guerra tem "começado". Esta guerra, que é a mais importante agora, é o confronto de duas civilizações: a civilização terrestre, representada pela rússia, e a civilização marítima, representada pelos EUA. É um impasse entre um sistema comercialista, e uma civilização heroica, entre Cartago e Roma, Atenas e Esparta. Porém, em certos momentos ela alcança uma fase "quente". Nós estamos neste momento novamente. Estamos à beira da guerra, e uma também já existe. Porém, esta guerra pode se tornar a maior e, talvez, a única batalha de nossas vidas, a qualquer momento. Como os principais jogadores - EUA e Rússia - são potências nucleares, a guerra envolve todas as nações do planeta. Ela possui toda chance de se tornar o fim da humanidade. Obviamente, isso não está garantido, mas tal desfecho não pode ser excluído.

O plano espiritual do grande conflito é compreendido em termos e contextos especiais. Aqui, o equilíbrio de poder está sempre a favor da Luz, apesar da posição dos fieis. Porém, ao nível estratégico pode parecer um pouco diferente. Os papeis na guerra não são simétricos. A Rússia está em uma posição mais fraca, mas tentando recuperar seu status de ator global. Ela busca apenas restaurar seu poder regional potencial para exercer sua influência livremente nas áreas próximas a suas fronteiras. Porém, isso é inaceitável para os EUA, que, apesar de tudo, permanecem com a hegemonia global e se recusam a perder a monopolaridade voluntariamente.

Se levarmos em consideração o pano-de-fundo espiritual da guerra se tornará claro que a escuridão não permite que a luz exista em qualquer proporção, ela só se acalmará quando for capaz de combater a luz por todo lugar, não apenas globalmente, mas também localmente. Um raio é suficiente para transformar a escuridão em trevas. Sem a luz, ela pode fingir ser qualquer coisa. Há uma conclusão importante: as ambições globais do Ocidente tecnocrático-materialista moderno, o próprio globalismo, não são uma contingência, mas a essência da força com a qual lidamos. É ingênuo assumir que você pode negociar com o diabo, ou enganá-lo. Você só pode vencer. Essa é a lei da guerra espiritual. Hoje, um ataca e o outro defende. Portanto, a guerra está quase no território russo, na área de seus interesses nacionais diretos. Ao mesmo tempo, a Rússia tenta ir além de suas fronteiras; a guerra é defensiva para ela. Atualmente, ela só tem objetivos regionais. Porém, o poder nuclear global a impede de atingi-los. Isso complica a situação e eleva o conflito a um nível global. Em qualquer coisa, a Rússia é atacada e se defende. Isso é importante.

Agora vamos nos voltar para as frentes da guerra.

Primeira Frente: Síria

Desde o início do conflito sírio, Moscou tem apoiado Assad, que foi atacado por Washington, Europa Ocidental e pelos proxies americanos no Oriente Médio: Arábia Saudita, Catar e Turquia. Cada um dos países, porém, seguia seus próprios interesses. A ferramenta para derrubar Assad eram grupos islâmicos radicais: ISIS, Al Qaeda (a Frente Al-Nusra), etc. Porém, a Rússia tornou-se plenamente envolvida em operações militares apenas em 2015, quando um Assad exausto pediu por apoio militar aberto. Neste caso, Moscou recebeu aliados, representados pelo eixo xiita: Teerã - Iraque xiita - e o Hezbollah libanês; eles não apenas cooperam, mas até lutam lado-a-lado. O mundo xiita é estritamente anti-americano, mas ao mesmo tempo, ao nível regional, se opõe ao financiamento sunita saudita e catari de grupos salafistas extremistas.

Na Primeira Frente, a Rússia enfrenta os EUA e os países da OTAN, não diretamente, mas indiretamente. Os próprios países ocidentais estão em guerra com o ISIS, como eles dizem, mas em verdade apoiam vigorosamente os grupos islâmicos radicais que querem derrubar Assad. As mesmas táticas foram usadas para derrubar Gaddafi na Líbia.

Ademais, a presença de jihadistas salafistas no Iraque, bem como do Talibã no Afeganistão, parece justificar a presença continuada de tropas americanas. Portanto, a Primeira Frente é um desafio vital para a Rússia: ela combate indiretamente os EUA e OTAN, e quase abertamente Turquia, Arábia Saudita e Catar. Portanto, a guerra na Síria não pode ser considerada como uma operação antiterrorista ordinária: ademais, os salafistas agora controlam a maior parte da Síria, possuindo uma impressionante quantidade de apoio direto e indireto. Mas a Rússia é a potência nuclear. Portanto, seu envolvimento na guerra síria mudou dramaticamente a situação, trazendo-a do nível local ao nível global. Com seu envolvimento, ela colocou muito em jogo. Agora isso não é apenas um problema de Assad, seus inimigos são forçados a lutar contra a Rússia. Não obstante, o oposto também é verdadeiro: a Rússia desafio não apenas a rede extremista do ISIS e da Al-Nusra, mas a hegemonia americana e o salafismo médio-oriental, com sua base importante nas monarquias do petrodólar no Golfo. Isso é importante: como Moscou compreende a seriedade da situação da Primeira Frente, e quão longe está disposta a ir em um cenário muito difícil, com uma coalizão impressionante do outro lado. Afinal, os EUA e OTAN estão ali, não importa o que digam.

Segunda Frente: Turquia

Se envolvendo cada vez mais na guerra síria, a Rússia se depara, como é evidente, com a Turquia - que está essencialmente ocupando o norte da Síria, habitada por tribos turcomanas, e começou um conflito militar com os curdos sírios. Erdogan tem estabelecido uma aliança com o rico Catar por um longo tempo, financiando grupos salafistas (como a "Fraternidade Muçulmana" no Egito) e começou uma luta ativa contra Assad. Portanto, quando o exército russo na Síria começou a bombardear as posições dos salafistas no norte da Síria, ela se envolveu em um conflito direto com Ancara. A derrubada do avião militar e o assassinato brutal dos pilotos russos foi apenas um pretexto para a escalada da tensão. Quando a Rússia começou a atuar de forma decisiva e a se envolver no conflito, não havia outro rumo, a guerra com a Turquia se tornou um evento muito real.

Então há a ruptura das relações comerciais, a proibição do turismo e a expulsão de companhias de construção da Turquia, que na esfera econômica é o ataque mais forte e doloroso, que levou a perdas e vários bilhões de dólares. Ancara está ameaçando constantemente fechar o Bósforo para navios russos, o que seria cortar uma artéria vital para tropas russas em Latakia.

Os turcos enviaram, em semanas recentes, uma parte considerável de suas tropas da fronteira com a Grécia para a fronteira com a Síria, e isso pode ser considerado como preparação para uma invasão militar. Todos esses fatos ampliam fortemente o risco de uma nova guerra turco-russa. Quão provável isso seria? É mais provável do que já foi alguma vez no século XX e nas primeiras décadas do século XXI. A Segunda Frente já está aberta. Quando um conflito direto vai começar, ninguém pode dizer com certeza. Teoricamente, isso poderia acontecer a qualquer momento. Aqui novamente, vale a pena lembrar que a Turquia é um Estado-membro da OTAN, e que ela coordena suas ações na Síria com Washington. Isso significa que a Rússia enfrentará a coalizão ocidental (com os EUA na liderança) atuando no lado turco em uma nova guerra potencial, como na Guerra da Crimeia. Assim novamente, um conflito regional obviamente teria impacto global. Isso é especialmente verdadeiro porque na Turquia há uma base militar nuclear americana. Seria difícil uma guerra direta com a Turquia não ser o início da Terceira Guerra Mundial.

A Terceira Frente: Ucrânia

A reunificação da Crimeia com a Rússia não é reconhecida por ninguém no mundo. A RPD (República Popular de Donetsk) e a RPL (República Popular de Lugansk) são uma ferida sangrenta com status desconhecido. A posição de Poroshenko em Kiev é bastante instável, e uma mudança real na situação econômica e social na Ucrânia em geral, até mesmo teórica, é impossível. Portanto, em um certo momento, Kiev só tem um caminho: uma nova rodada de tensão e escalada no leste, e mesmo uma invasão da Crimeia.

Se a Ucrânia enfrentasse a Rússia nessa situação, isso seria suicídio para Kiev.

Porém, nós devemos levar em consideração os EUA e a OTAN. O Ocidente estava por trás do golpe de Estado do inverno de 2014. Ademais, em algum momento, um ataque contra a posição consolidada dos militantes novorrussos e mesmo na Crimeia, pelo exército ucraniano, é bastante possível mesmo por razões ucranianas domésticas, ainda mais no contexto da lógica do confronto global entre Rússia e EUA.

É importante notar que todas as três frentes estão situadas perto das fronteiras russas, na área que separa Eurásia e Rússia, o espaço continental da Heartland, de seus territórios ocidentais. É a área em que civilizações do Oriente e do Ocidente se encontram. Usualmente, disputas por estes territórios iniciam guerras mundiais e conflitos globais. Todas as três frentes estão em antigos territórios otomanos, já que a Rússia ganhou a Nova Rússia e a Crimeia dos turcos, e a Síria era parte do Império também. Anteriormente, essas haviam sido áreas do mundo ortodoxo-bizantino. Portanto, as três frentes possuem um enorme sentido histórico e civilizacional.

Agora vamos olhar para os problemas domésticos da Rússia. Há três frentes também.

Quarta Frente: Terrorismo Salafista na Rússia

As estruturas em rede do Islã radical, ligadas a Arábia Saudita, Catar e Turquia há muito tem estado dispostas na Rússia, tanto no norte do Cáucaso como em outras regiões. Conforme o influxo de população muçulmana em cidades russas e na capital continua, as redes se espalham e amarram todo o espaço russo. Elas não estão limitadas a áreas densamente povoadas por muçulmanos, mas expandem ativamente sua zona de influência em outros ambientes sociais. Usando uma variedade de problemas domésticos, o Islã sunita radical se tornou razoavelmente popular como uma alternativa à agenda ideológica oficial incoerente e letárgica de Moscou e seus representantes puramente conformistas nas regiões. Isso alimenta a preparação e treinamento de grupos terroristas e de ramos diretos do ISIS.

Se os serviços especiais se tornam tecnicamente menos envolvidos com a tarefa de dissuasão grupoa, o plano estratégico e o programa mais ideológico para combater o fenômeno não existirão, o que ao longo do tempo só tornará a Quarta Frente mais importante. A Quarta Frente foi de fato o foco nas campanhas da Primeira e Segunda Guerras da Chechênia; a vitória na Segunda foi alcançada apenas após se usar uma linha patriótica linha-dura na política doméstica.

Quaisquer novas tentativas de enfraquecer o discurso nacional automaticamente fortalece as tendências centrífugas e os grupos extremistas. A Quarta Frente está aberta e em operação, mas a escala dos problemas que ela causa não sabemos. Sem semear pânico entre a população, os serviços de segurança ocultam das pessoas comuns a quantidade de ataques terroristas evitados e outras medidas preventivas, que, na verdade, é impressionante mesmo hoje. Como os EUA e seus centros estrangeiros, os proxies americanos no Oriente Médio, apoiam a Quarta Frente, nós podemos esperar apoio financeiro sério e, mais importantemente, o apoio de uma nova escalada.

 Quinta Frente: Quinta Coluna

Esta frente é uma rede de forças de oposição cujo núcleo consiste nos liberais pró-americanos que sonham em retornar à década de 90, o período do saque óbvio da Rússia e da venda de todos os seus bens para clientes estrangeiros, bem como da onipotência das elites liberais que possuem, como sua bucha-de-canhão, os nacionalistas radicais e neonazistas russos insatisfeitos com as autoridades russas e sua política passiva perante a migração e a ausência completa ou inarticulação da ideia nacional.

Os liberais sozinhos não são suficientes para organizar protestos de grande escala, assim os nacionalistas radicais russos desempenham um papel de apoio massivo na coalizão. Porém, os liberais pró-americanos são o centro principal para coordenar esforços e tomar grandes decisões, e são responsáveis pelo contato com Washington.

Os próprios EUA apoiam oficialmente o movimento "democrático", dando a ele somas substanciais de seu orçamento. Porém, o financiamento de outras fontes, menos evidentes, da Quinta Coluna da Rússia são muito maiores do que os dados abertos demonstram. Na Praça Bolotnaya, na primavera de 2012, a Quinta Coluna mostrou o que podia fazer. No caso do agravamento das consequências das sanções e possíveis conflitos militares, a Quinta Frente pode se tornar um fator significativo no enfraquecimento da Rússia. Ela está preparando uma facada pelas costas que pode ser decisiva se a ineficiência do sistema administrativo (e nada mostra que ele será mais eficiente no futuro próximo) continuar. Sob certas circunstâncias, seções de pessoas comuns desapontadas podem se unir à Quinta Frente, criando uma ameaça séria.

Sexta Frente: Liberais Pró-Ocidente e Agentes de Influência no Governo

Este grupo foi recentemente chamado de Sexta Coluna. São os liberais e pró-ocidentais que se integraram ao poder no novo milênio ou permanecem lá desde a década de 90, aceitando as novas regras do jogo. Em contraste com a Quinta Coluna, os representantes da Sexta Coluna são formalmente leais às autoridades, e inquestionavelmente obedecem e agem em um espírito de total conformidade. Porém, a Sexta Coluna segue a ideologia ocidental, vendo os EUA e a OTAN como a vanguarda do tipo humano progressista, com a economia sendo guiada exclusivamente através de métodos e abordagens liberais. Muitas vezes, as fortunas e famílias de altos funcionários russos estão em países ocidentais. Nessa situação, lealdade e patriotismo contido ocultam a sabotagem consistente da orientação sobre soberania nacional e a implementação de estratégias econômicas, administrativas e de informação, levando, eventualmente, à desmoralização da sociedade, uma economia enfraquecida e mais desideologização populacional. A Sexta Frente consiste em uma sabotagem sistemática, deliberada e muito habilidosa do renascimento russo, a contenção e substituição genuína da reforma patriótica, criando simulacros e falsificações eficientes. A Sexta Coluna não é diferente em sua ideologia da Quinta, já que ela também está orientada para o Ocidente, mas ela o esconde, preferindo atacar o regime de dentro, não de fora. Ademais, tal como a Quinta Coluna, a Sexta Coluna é controlada desde um centro externo, de Washington, ainda que isso seja mais sutil e dotado de nuances do que com a Quinta Coluna. O Conselho de Relações Exteriores (CFR) coordena a Sexta Coluna de forma que a estrutura esteja quase oficialmente representada nos níveis mais altos do governo russo. Em geral, este tipo consiste em uma grande parte do "governo liberal" bem como de um segmento significativo de outras instituições do governo.

Agora vamos nos colocar nos sapatos dos estrategistas americanos. A escalada das relações dos EUA-OTAN com a Rússia é óbvia. Moscou se comportou como uma potência regional soberana nos casos da Ossétia do Sul e da Abkhazia em 2008, da Crimeia e Nova Rússia em 2014 e finalmente da Síria em 2015 e se necessário, usará esse poder para insistir em seus interesses nacionais em certas áreas. É incompatível com a continuação da hegemonia americana que ainda é global. Moscou teria que construir sua política em acordo com Washington e com a OTAN e, é claro, essas ações não apaziguariam a força das sanções. Portanto, apesar da cortesia superficial e da retórica liberal, a Rússia está fora do controle ocidental. Isso é um fato. E Washington deve de alguma forma responder a isso. Se isso for admitido, seria equivalente à negação da hegemonia. Mas no evento de declínio, o Império Americano não se deterá necessariamente nas fronteiras que ele ainda controla firmemente hoje. Encorajados pelos sucessos dos russos, podemos querer olhar para a força dos americanos. Portanto, na posição dos estrategistas de Washington, seria lógico ativar todas as seis Frentes. Especialmente porque, em todos os seis casos, a América não superará a si mesma: mesmo o pior resultado não causaria seu colapso fatal, já que ela está protegida por uma vasta zona europeia, norte-africana, seguida pelos Oceanos Atlântico e Pacífico no oeste (especialmente já que não há atividades russas em seu lado oriental). Ademais, será bem razoável sincronizar os golpes contra a Rússia de todos os lados: militantes na Síria, apoiando a Turquia, fazendo Kiev começar uma nova rodada de combates (e mesmo atacar a Crimeia), influenciando as estruturas terroristas salafistas domésticas da Rússia, apoiando a Quinta Coluna (encontrando a ocasião social apropriada) e colocando mais sanções para encorajar a Sexta Coluna a sabotar de forma mais ativa e eficiente.

Ao mesmo tempo, seria igualmente lógico por um lado manter e talvez até fortalecer as sanções, reduzir os preços do petróleo em alguns pontos, e, ao mesmo tempo, começar atacando a liderança russa com trollagens conciliatórias como "o Ocidente te ajudará", "os terroristas são um problema comum" (comum porque alguns lutam com eles, e outros os apoiam) e "o principal problema é a China" (deixem os russos negar seu arsenal nuclear, e nós os protegeremos, colocando nossos mísseis nucleares em seus territórios) etc.

Porém, a simples estimativa analítica oculta algo muito sério. Guerra. Uma verdadeira com mares de sangue, chamas, tortura, sofrimento e dor. A guerra em que estaremos envolvidos. E, como as três frentes estão fora da Rússia, é provável que a guerra em territórios estrangeiros estará acompanhada por guerra civil. Isso, porém, nós sabemos muito bem da história.

Estratégia Vitoriosa: Inimigo Interno

Imaginemos que nós, muito objetivamente, estimamos os riscos, e nossa análise está correta. O que deve a Rússia fazer em tal situação? Ao travar a guerra ou pelo menos ao estarmos próximos dela, nós não devemos reagir apenas situacionalmente, mas também ter um plano para como travar a guerra e vencê-la. É bastante lógico ter o desejo de vencer, não é? Agora é importante encontrar uma maneira de como alcançá-lo, mesmo que apenas na teoria.

É óbvio que só se pode travar guerra efetivamente com um inimigo externo se a sociedade está bastante consolidada e mobilizada internamente. É desejável estar mentalmente preparado para a guerra. Para fazê-lo, as pessoas devem compreender quem é o inimigo e quem não é, e, mais importantemente, por que este é o caso e não é de outra forma. Você não deve demonizar o inimigo no início da guerra. A imagem do inimigo deve ser formada com antecedência e deliberadamente.

Portanto, a primeira tarefa para alcançar a vitória seria uma campanha completa para criar uma imagem inteiramente negativa, monstruosa e satânica dos Estados Unidos e do Ocidente em geral. Portanto, o Ocidente é o lugar em que o diabo reside. É o centro dos tentáculos capitalistas globais. É a matriz da perversão cultural degeneradora e da posse feroz da falsidade e do cinismo, violência e hipocrisia. A Rússia já faz isso, mas como a Sexta Coluna é a responsável pela propaganda anti-ocidental, ela é uma caricatura ou algo miserável e muito pouco convincente. É esta sabotagem que descreve a essência da Sexta Frente. Seus "soldados" não se recusam a obedecer às ordens do governo, até pedindo mais e mais, mas sua execução se tornou uma farsa, estultificando e sutilmente desacreditando todas as iniciativas. Propaganda esquisita e pouco sincera não raro gera o efeito contrário. Portanto, ao criar as imagens do inimigo americano e seus satélites (que nós de fato temos que combater), seria lógico acusar aqueles que pensam exatamente dessa maneira e puni-los com máxima clareza e cogência para as massas adormecidas. Enquanto isso, os agentes de influência ocidental recebem o encargo de criticar o Ocidente. com resultados previsíveis. Tal abordagem é incompatível com a "estratégia para a vitória" e deve ser reconsiderada (se a Rússia quiser ter pelo menos uma chance de vencer na guerra vindoura).

Do primeiro ponto nós movemos logicamente para a próximo. É importante desmantelar as estruturas da Sexta Coluna tão rapidamente quanto possível, removendo os liberais e os pró-ocidentais de todas as posições centrais. Junto com isso, o liberalismo na economia será abolido, o que permitirá:

* O estabelecimento de controle nacional sobre o Banco Central.
* Se afastar do dólar no comércio exterior para qualquer moeda de reserva diferente (como o yuan).
* A conquista da soberania financeira plena.
* A condutibilidade de mobilização da economia no tempo de guerra.
* Em paralelo, é necessário formar o Comitê Nacional para a Comunicação Social que irá reconstruir o trabalho de informação de acordo com as necessidades de emergência.

A eficiência da atividade puramente destrutiva da Quinta Coluna está amplamente ligada à eficiência da sabotagem da Sexta Coluna. A Quinta e a Sexta Frentes estão inextrincavelmente ligadas. Portanto, a destruição do poder de Sexta Coluna vai enfraquecer drasticamente a Quinta Coluna cujos líderes, em situações de emergência, poderiam ser ou internados (a propósito, as medidas de prisão domiciliar já foram administradas a alguns deles), ou expulsos. Claro, quaisquer meios legais da disseminação liberal ou de propaganda nacionalista destrutiva.

A Quarta Frente é um problema, já que o Estado não possui políticas étnicas e nacionais. No momento, só existe a mesma Sexta Coluna ou os burocratas cognitivamente inadequados. É por isso que os verdadeiros desafios da imigração descontrolada e tensões étnicas e religiosas são aprovados pela burocracia com slogans vazios e sem sentido, para a sociedade russa, de "sociedade civil" e "tolerância". Sem um sistema coerente de estratégia étnica e nacional contra o extremismo islâmico e o terrorismo, as questões na Rússia não serão resolvidas. Algumas medidas de segurança não são suficientes; ela precisa eliminar ou alterar permanentemente o ambiente social. Operações de força contra o fundamentalismo terrorista devem ser correlacionados em escala, incluindo um modelo ideológico de política étnica e nacional.

Estratégia Vitoriosa: Inimigo Externo

Ucrânia - a Terceira Frente - deve-se estar pronta para provocações armadas de Kiev e para repeli-las. Mais cedo ou mais tarde, a Rússia terá que resolver radicalmente a questão novorrussa pois contar com o fato de que Kiev vai cair por si ou vai abandonar a sua política pró-americana e anti-russa é um pouco irresponsável. Para proteger eficazmente a Criméia e resolver o problema do Donbass, todo o espaço da Nova Rússia deve ser libertado, e, se a guerra é inevitável, Moscou terá apenas uma tarefa - ganhar o mais rapidamente possível e da forma mais eficiente possível. Criar uma zona russa amigável de Odessa para Kharkov, seja criando de Estados independentes ou incluí-los em parte das terras russas, é o objetivo que poderia ser considerado como uma vitória. O destino da Ucrânia Central e Ocidental não tem grande valor.

Em relação à Segunda Frente turca, ali, além do desenvolvimento operacional militar que é a tarefa da liderança militar e não pode ser discutidos por analistas, a Rússia deve prestar atenção a dois fatores principais: a oposição política ao regime de Erdogan que, na circunstância atual, tornou-se um aliado natural, e o problema fundamental para a Turquia, os curdos. Ambos os fatores são cruciais para o sucesso no conflito russo-turco. É extremamente importante realizar propaganda anti-turca na sociedade russa, constantemente salientando que os EUA e seus apoiantes (Erdogan) são responsáveis ​​pela escalada do conflito na região, e que Moscou não considera os turcos como seu inimigo histórico. Portanto, quaisquer paralelos com a guerra russo-turca, mesmo nos casos internos, só vai unir os turcos com Erdogan e fortalecer o inimigo. Em contraste, o apoio aos políticos turcos que não compartilham pontos de vista de Erdogan do neo-otomanismo poderia ser decisivo. Ao mesmo tempo, é claro, a Rússia deverá intensificar a cooperação com os curdos, pois é uma força imponente na Turquia.

Finalmente, a Primeira Frente, na Síria. Nós não a colocamos acidentalmente no final da "estratégia vitoriosa". A forma de confronto mais aguda é sempre a mais prático e cheio de detalhes técnicos e militares. No entanto, ela sempre depende dos elementos da sociedade, e dos sucessos locais - no ambiente externo, muitas vezes global.

Vimos que a Rússia tem um importante aliado regional, o mundo xiita, que é representado principalmente pelo Irã e pelo Hezbollah libanês. Estes são "irmãos de armas" russos, e ela deve fazer o seu melhor para aprofundar a aliança. Obviamente, não são só os russos que entendem o seu valor, mas até mesmo as forças pró-americanas na Rússia e no Irã, então eles vão tentar fazer todo o possível para trazer a divisão entre os aliados. Isso deve ser cortado pela raiz, pelo menos, na Rússia, e concisa esclarecido nas negociações com os xiitas.

Em seguida, os russos precisam do apoio político, preferencialmente militar e econômico, dos países do clube multipolar planejado, BRICS. A China desempenha um papel especial lá, preferindo não vir para a frente da oposição dos Estados Unidos, mas estando pronta para apoiar Moscou, permanecendo à margem. Muitas coisas na Síria agora dependem das relações Moscou-Pequim, e ela precisa de atenção máxima.

A Rússia não tem chance de fazer dos países europeus os seus aliados de pleno direito na Síria, na medida em que a influência dos Estados Unidos sobre eles é muito grande. No entanto, qualquer distanciamento de Washington pelas potências europeias (especialmente França, Alemanha e Itália) ao lado de diferenças na OTAN serão muito úteis para Moscou. Se a Europa tiver que continuar a crescer a sua onda de partidos e movimentos da direita conservadora, que geralmente são leais à Rússia, ela irá reforçar significativamente a sua posição na Síria. A propaganda russa na Europa durante a guerra tem particular importância.

Como na Síria, a Rússia enfrenta forças abertamente apoiadas pela Arábia Saudita e Catar. Como o Catar está envolvido no acidente de avião com turistas russos sobre o Sinai, a Rússia deve prestar especial atenção para a desestabilização máxima desses regimes. Sob certas circunstâncias, um ataque direto ao Catar e apoio militar para os Houthis no Iêmen, bem como para os xiitas no Bahrein, não pode ser excluída. O convite das tropas russas no Iraque e no Líbano pelos respectivos governos é estrategicamente crucial; ele vai ajudar a travar uma guerra em grande escala contra as principais bases dos terroristas do ISIS e quebrar sua conexão de infraestrutura com a Turquia e os países do Golfo.

Em geral, a Rússia já está em guerra no Oriente Médio, por isso deve ser reconhecido como um fato consumado que, usando todo o arsenal de meios disponíveis, em primeiro lugar, as redes de inteligência que visam promover, usando formas diferentes, interesses russos na região tais como informacionais, econômicos, ideológicos, etc, devem urgentemente ser revividos.

O último argumento nessa esta guerra vai envolver armas nucleares russas, que, graças a Deus, os reformistas liberais da década de 90 não conseguiram destruir. É senso comum não usá-las nunca. No entanto, isso não significa que elas não podem impor restrições graves no principal inimigo da Rússia, os Estados Unidos da América. Temendo destruição completa, os Estados Unidos vão ter de jogar contra a Rússia respeitando certas regras.

Sétima Frente. Americanos Contra o Governo Federal

Além disso, em termos dos Estados Unidos, é importante abrir a Sétimo Frente. Na verdade, os EUA têm muitas pessoas que estão insatisfeitas com a elite dominante que professa a ideologia globalista, arrastando os EUA em guerras sangrentas, destruindo a identidade cristã europeia tradicional. A Nova América, onde nada resta dos próprios Estados Unidos, e que serve os interesses da oligarquia financeira global que não tem cultura ou identidade, destrói a Velha América. Por isso, o apoio ao tradicionalismo dos EUA e do conservadorismo da identidade americana é uma tarefa importante para a Rússia. Seu aliado nos EUA é o povo americano. Além disso, muitas contradições têm se acumulado na esfera social, nas relações inter-étnicas.

A maioria da sociedade americana não aceita a degeneração moral. O governo federal usa cada ocasião conveniente para começar a abolição da segunda emenda da Constituição que permite que os norte-americanos mantenham e portem armas. As proporções crescentes da população latina, em sua maioria católica, trazem para o público americano uma nova identidade que não é hostil à Rússia. A Rússia deve participar ativamente na luta pela influência na sociedade americana, fortalecendo a explicação da posição espiritual da Rússia na guerra, mostrando que russos e americanos têm um inimigo comum: a elite satânica maníaca que usurpou o poder e está levando toda a humanidade, incluindo os americanos, para a inevitável catástrofe. Os resultados da elite são evidentes: todo o Oriente Médio já está coberto de sangue, eles não são mais capazes de estabelecer qualquer ordem, a elite globalista (o CFR, os neocons, os representantes da oligarquia financeira internacional de Wall Street) implantam em todos os lugares apenas o caos, devastação, morte e dor. A destruição de tal câncer da humanidade é uma questão para o mundo inteiro, incluindo os americanos, que não são apenas os seus instrumentos, mas também vítimas.

Onde Está a Cidade?

Está longe de ser fácil de ganhar neste jogo. Como o nome deste jogo é a Grande Guerra. No entanto, quando a Grande Guerra vem, ela só pode ser evitada através da escravidão e do reconhecimento deliberado como perdedor. A história russa não teve tais momentos. Por mais que pareça difícil, de alguma forma os russos lidaram com ele.

Nós não estamos falando apenas sobre o confronto geopolítico, sobre a redistribuição de esferas de influência ou do cumprimento de interesses nacionais. Trata-se de algo muito mais profundo e mais importante.

Todas as religiões têm uma seção que trata do fim dos tempos e da batalha final. Os cristãos, assim como os judeus e os muçulmanos, associam os eventos do ciclo com a Grande Guerra. Além disso, invariavelmente, todas as três religiões descrevem o Oriente Médio como o lugar da Grande Guerra, como o campo de Armageddon e os territórios vizinhos. Para os muçulmanos, Damasco, Mesquita Omíada, é considerada como o lugar onde a Segunda Vinda de Cristo será realizada. Portanto, a guerra na Síria tem francamente um sentido escatológico. Afinal de contas, a Síria é uma parte da Terra Santa, onde o Salvador pisou no chão. Para os judeus, esperando a iminente chegada de Mashiach, a escalada da violência em suas fronteiras, em áreas críticas para a existência de Israel, tem um significado escatológico. Os protestantes americanos, dispensacionalistas, veem a última batalha como a invasão do exército do norte, de Gog (entendido como a Rússia) à Terra Santa. Finalmente, os monges de Athos e santos gregos, como Cosmas Aeolian [1] ou São Paisios do Monte Athos, repetidamente previram o lançamento de tropas russas e o colapso de Constantinopla e da Turquia. Assim, Santo Arsênio de Capadócia em Faras disse aos fiéis que eles vão perder sua terra natal, mas em breve irão encontrá-la novamente: "As tropas estrangeiras virão, em Cristo crerão, a língua eles não saberão ... Eles vão perguntar: Onde está a cidade? "[2] Entende-se como referência para o exército russo se aproximando de Constantinopla. Em uma de suas conversas São Paisios disse:

"- Saiba que a Turquia vai entrar em colapso. Haverá dois anos e meio de guerra. Seremos vitoriosos porque nós somos ortodoxos..

- Gerontius, nós toleramos danos na guerra?

- Hey, no máximo, um ou dois da ilhas serão tomadas, mas vamos retomar, e Constantinopla. Você vai ver, você vai ver! "[3]

Recentemente, um ou dois anos atrás, todas essas predições teriam causado apenas um encolher de ombros, que conto de fadas! Mas...hoje: sangue está sendo derramado no Oriente Médio; há operações militares nos arredores de Damasco; os russos não estão apenas presentes, mas lutam na Terra Santa; o conflito com a Turquia já começou e não se pode excluir que ele vai levar a uma guerra real. A partir de uma perspectiva escatológica, é hora de voltar para os lugares santos, a Terra Santa, Constantinopla e Kiev. A afirmação de que não estamos vivendo no Fim dos Tempos agora parece não científica. Como Ancião Paísio disse: "Você vai ver, você vai ver". Então, vamos ver.

Assim, onde está a cidade?

Aleksandr Dugin - A Quarta Teoria Política: Ser ou Não Ser

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por Aleksandr Dugin

Tradução por Breno Costa



Hoje o mundo é dominado pela impressão de que a política terminou - ao menos a que nós conhecemos. O liberalismo emplacou um combate tenaz contra seus inimigos políticos que propunham receitas alternativas - o conservadorismo, a monarquia, o tradicionalismo, o fascismo, o socialismo e o comunismo - para finalmente vencer todos no final do século XX. Parecia lógico supor que a política se converteria em liberal e que todos os adversários do liberalismo na periferia começariam a repensar suas estratégias e a construir uma nova frente: a periferia contra o centro, segundo a teoria de Alain de Benoist. Porém, no começo do século XXI, tudo seguiu um caminho diferente.

O liberalismo, que sempre tem buscado a minimização da política, decidiu, depois de sua vitória, eliminar por completo a política. Provavelmente para não permitir a formação de uma alternativa política e eternizar o seu reino ou, simplesmente, devido ao esgotamento da agenda política em razão da ausência de inimigos, que, segundo Carl Schmitt, são necessários para a formação de uma posição política. Em qualquer caso, o liberalismo tem conduzido a um recuo na política. Assim, o liberalismo se transforma, passando desde o nível das ideias, dos programas políticos e das declarações, passando ao nível das coisas e ingressando no miolo da realidade social, convertida em liberal, não a partir de um ponto de vista político, mas de uma maneira cotidiana, normal. 

A partir desse ponto de inflexão na história, todas as ideologias políticas que haviam se combatido ferozmente entre si através dos séculos perderam sua atualidade. O conservadorismo, o fascismo e o comunismo, assim como suas variedade marginais, fracassaram, enquanto que o liberalismo, triunfante, converteu-se na vida vida cotidiana, no consumismo, no individualismo, no estilo pós-modernista de ser sub-político e fragmentado. A política converteu-se em biopolítica e passou do nível individual ao nível sub-individual. Portanto, parece haver deixado a cena não somente as ideologias derrotadas, mas, também, a política como tal, incluindo a política liberal. Precisamente por essa razão é tão difícil a formação de uma alternativa. Os oponentes do liberalismo encontram-se em uma situação difícil: o inimigo triunfante evaporou, desapareceu; lutam contra o vácuo. Como fazer política quando não existe Política? 

Só há uma solução: Rechaçar as teorias políticas clássicas, tanto as derrotadas como as triunfantes, demonstrar imaginação, compreender as realidades do novo mundo global, decifrar corretamente os desafios do mundo pós-moderno e criar algo novo, além das batalhas políticas do século XIX e XX. Este enfoque é um convite para desenvolver uma Quarta Teoria Política além do comunismo, do fascismo e do liberalismo.

Para avançar no desenvolvimento desta Quarta Teoria Política, é necessário:

- Modificar a interpretação da história política dos últimos séculos, adotando novos pontos de vista, além do quadro dos clichês ideológicos habituais das velhas ideologias;

- Dar-se conta da estrutura profunda da sociedade global que aparece diante de nossos olhos;
- Decifrar corretamente o paradigma da era pós-moderna;

- Aprender a não opor-se a uma ideia política, a um programa ou a uma estratégia, mas ao estado das coisas "objetivo", ao tecido social apolítico da (pós) sociedade fraturada;

- Por último, construir um modelo político independente propondo um caminho e um projeto em um mundo de becos sem saída e de infinita reciclagem das mesmas coisas (pós-história segundo J. Baudrillard).

O presente trabalho se dedica a isso e ao desenvolvimento de uma Quarta Teoria Política mediante o exame das três primeiras teorias políticas, assim como das ideologias próximas a elas, o nacional-bolchevismo e o eurasianismo. Não se trata de um dogma ou de um sistema pronto de um projeto acabado. É um convite à criação política, à exposição de intuições e de hipóteses, à análise das novas condições. Por fim, é um intento de reinterpretação do passado. 

Nós não concebemos a Quarta Teoria Política como um trabalho de um só autor, mas como uma tendência de um amplo espectro de ideias, estudos, análises, previsões e projetos. Todas as pessoas que pensam segundo essa perspectiva podem contribuir com algumas de suas ideias. E um número crescente de novos intelectuais, filósofos, historiadores, cientistas e pensadores estão respondendo a esta convocação.

É sintomático que o livro do grande intelectual francês Alain de Benoist, Contra o Liberalismo, publicado em russo pelas edições Amphora, tem o subtítulo de Rumo a uma Quarta Teoria Política. É provável que os defensores da velha direita, assim como os defensores da velha esquerda e, provavelmente, os liberais, tendo em conta a mudança qualitativa em sua plataforma política, onde a política se evapora, tenham muito o que dizer sobre este tema. 

Para o meu país, a Rússia, a Quarta Teoria Política tem, entre outras coisas, uma importância prática considerável. A integração com a comunidade mundial é experimentada pela maioria dos russos como um drama, como uma perda de sua identidade. Na década de 1990, a ideologia liberal se vê quase totalmente rechaçada pela população russa. No entanto, por outro lado, a intuição sugere que o retorno às ideologias políticas não-liberais do século XX - o comunismo e o fascismo - é pouco provável em nossa sociedade, sendo que estas ideologias historicamente demonstraram serem incapazes de resistir ao liberalismo, sem mencionar o custo moral do totalitarismo.

Portanto, para preencher o vácuo, a Rússia necessita de uma nova ideia política. O liberalismo não é adequado, enquanto que o comunismo e o fascismo são inaceitáveis. E se, para alguns, é uma questão de livre eleição, de realização da vontade política, que sempre se pode dirigir tanto à afirmação como à negação, para a Rússia é uma questão de vida ou morte, a questão eterna de Hamlet.

Se a Rússia decidir "ser", significaria automaticamente criar uma Quarta Teoria Política. Do contrário, só permaneceria "não ser" e sairia lentamente da arena histórica, para dissolver-se em um mundo que não é criado e gestionado por nós.

Isaque Santos - Mao Tsé-Tung: Realpolitik e Revolução

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por Isaque Santos



«Na posição concreta de Mao reúnem-se diversos tipos de hostilidade, que se elevam até atingir a hostilidade absoluta. O racismo contra o explorador branco colonial; a luta de classes contra a burguesia capitalista; a hostilidade nacional contra o invasor japonês da mesma raça; a hostilidade há muito resultante das guerras civis encarniçadas e crescentes contra o próprio irmão de nacionalidade – tudo isto não se paralisava ou se relacionava reciprocamente, como seria de imaginar, mas, pelo contrário, confirmava-se e intensificava-se numa posição concreta. Estaline conseguiu, durante a II Guerra Mundial, aliar a guerrilha telúrica nacional à luta de classes do comunismo internacional. Mao precedeu-o em muitos anos. Também prosseguiu, na sua consciência teórica, a fórmula de Lenine da guerra como consequência da política» - Carl Schmitt, Theorie des Partisanen.

Mao Tse-tung foi uma figura singular dentro do movimento comunista. Tendo frequentado, em sua juventude, os círculos tradicionalistas da Escola de Estudos de Wang Fu Qi, em 1917, publicou um enigmático artigo intitulado A Study of Physical Education– texto repleto de citações de Confúcio, onde se encontram considerações sobre a importância dos exercícios e do aprimoramento físico na formação guerreiro-militar e na saúde da nação.  

Seus escritos políticos e, em especial, sua Teoria das Contradições, refletem aquilo que se poderia denominar de realpolitik marxista: existem contradições inerentes não só aos fatos políticos e sociais, mas também a toda estruturação ontológica da realidade. Em seu Sobre a Contradição, Mao afirma:

«A universalidade ou caráter absoluto da contradição tem um duplo significado: primeiro, que as contradições existem no processo de desenvolvimento de todos os fenômenos; segundo, que no processo de desenvolvimento de cada fenômeno, o movimento contraditório existe desde o princípio até ao fim».

No entanto, partindo do pressuposto básico a cerca da universalidade e da imanência da contradição, não se pode simplesmente concluir que toda contradição seja inerentemente idêntica e equivalente em seus respectivos planos; assim, Mao afirma: 

«No problema da luta dos contrários está incluída a questão de saber o que é o antagonismo. A nossa resposta é que o antagonismo constitui uma das formas, e não a única forma, da luta dos contrários.
Na história da humanidade o antagonismo entre classes existe como expressão particular da luta dos contrários. (...) Certas contradições revestem o caráter dum antagonismo aberto, outras não. Segundo o desenvolvimento concreto dos fenômenos, certas contradições, primitivamente não antagônicas, desenvolvem-se em contradições antagônicas, enquanto outras, primitivamente antagônicas, desenvolvem-se em contradições não antagônicas».

Ora, uma vez assumido que nem toda contradição é política e ontologicamente antagônica e sendo o antagonismo apenas uma das modalidades da contradição absoluta, Mao desloca a dialética das classes sociais e a insere nas categorias analíticas das Contradições Antagônicas e da Contradição Não-Antagônicas e, assim, formula um modo específico de interpretar o marxismo em termos mais amplos, formal e realisticamente estruturados a partir de circunstâncias históricas e políticas particulares e que admitem antagonismos, inimizades e hostilidades mais amplas – ora entre o campesinato e o latifúndio; ora entre a nação e o invasor nipônico; ora entre o indígena sino-mongol e o colono branco-europeu; ora entre a civilização chinesa e a civilização ocidental. A inimizade política, para nos expressarmos de modo schmittiano, cinge-se, no pensamento político de Mao Tse-tung, a partir de diversas tonalidades que podem se manifestar em contradições de classe, em lutas raciais, em antagonismos intra e extra nacionais e em embates civilizacionais e geopolíticos na arena das relações internacionais. E assim como na perspectiva de Carl Schmitt – onde o hostisé definido nos termos formais de uma inimizade pública –, a categoria maoísta das Contradições Antagônicas não pressupõe, em absoluto, quais serão as substâncias políticas constitutivas destas mesmas contradições – antes, tais substâncias devem ser delineadas em termos realistas, na situação concreta da inimizade: a hostilidade pública contra o imperialismo japonês, para mencionarmos um exemplo histórico, aglutinou os comunistas chineses e os nacionalistas do Kuomintang– a despeito de suas ideologias de base e a despeito da arrastada guerra civil travada por e entre ambos – em uma batalha comum, em um núcleo politicamente condicionado de amizade pública contra um inimigo igualmente público.

Foi a partir desta compreensão básica, ainda, que a Revolução Chinesa, com Mao, promoveu e introduziu o modo de produção conhecido como Fanshen– o contar com as próprias forças: tratou-se de um modelo produtivo que, recapitulando as antigas tradições comunitárias chinesas e fundado sobre o princípio da reforma agrária e da cooperação nacional orgânico-produtiva, implicou na destruição do latifúndio, na redistribuição de terras e na formação de comunidades produtivas autônomas de pequenos e médios camponeses (que passaram a ocupar 90% das terras aptas ao cultivo) com o objetivo de garantir a subsistência destes grupos e de aumentar as receitas produtivas do Estado: neste sentido, admitia-se que agremiações econômico-produtivas diversas, das mais ricas as mais pobres, a despeito das contradições de classe inerentes entre elas, cooperassem em prol do bem comum da nação: eis aí o cerne daquilo que se poderia chamar de cooperativismo maoísta – cooptar diferentes classes; alocá-las em um mesmo processo revolucionário geral; desaburguesar o pequeno proprietário e retirar a mera condição de proletário do camponês pobre, criando uma gestalt dialeticamente perene, no genuíno espírito do ethos confuciano, mediada e plasmada politicamente em torno do Estado socialista e da propriedade socialista dos meios de produção.

Cabe ainda ressaltar que Mao, além de marcadamente anticapitalista e antiburguês, foi também uma figura antiliberal, comprometida com o combate ao liberalismo em suas formas espirituais mais sutis. Em seu texto Contra o Liberalismo, Mao enumera cerca de onze comportamentos e atitudes típicas do liberalismo, dentre as quais estão o individualismo, o egoísmo pequeno-burguês, a falta de disciplina, a insubmissão hierárquica, além da tolerância burguesa e do caráter excessivamente passivo do liberalismo – contra o qual Mao contrapõe a atividade revolucionária.

«O liberalismo rejeita a luta ideológica e preconiza uma harmonia sem princípios, o que dá lugar a um estilo de vida decadente, filisteu, e provoca a degenerescência política de certas entidades e indivíduos (...). O liberalismo é a passividade. Objetivamente, serve o inimigo (...)». 

Assim considerado, o pensamento de Mao Tse-tung – o maoísmo – pode bem ser identificado como a menos moderna das teorias marxistas. Se é possível estabelecer graus de distanciamento e de aproximação em relação aos paradigmas da modernidade no que diz respeito às três teorias políticas modernas (liberalismo, socialismo e fascismo), também é possível fazer semelhante consideração sobre as diversas subdivisões internas a tais teorias. É deste modo que se pode considerar o liberalismo clássico (Terceiro Estado) como sendo menos moderno que o neoliberalismo ou que o pós-liberalismo (Quinto Estado). Ou o nacionalismo místico-ortodoxo da Guarda de Ferro romena como menos moderno que o populismo mussoliniano – que chegou a pôr organizações esotéricas na clandestinidade. Do mesmo modo, o maoísmo, pelo seu manuseio realista das contradições como atualização da psicologia confuciana e, acima de tudo, pelo seu caráter telúrico, camponês e guerreiro – a guerrilha telúrica como elite vermelha concreta, na expressão de Carl Schmitt – pode ser considerado menos moderno em relação ao trotskismo ou até mesmo ao leninismo e ao stalinismo. 

É certo que a prática política de Mao contou com erros e pode ser criticada desde uma perspectiva política identitária, por exemplo, quando reprimiu as formas tradicionais de religiosidade chinesa durante a Revolução Cultural. No entanto, também houveram aspectos notadamente positivos em sua prática. Mao, com sua linha de massas, conseguiu, junto ao Partido Comunista, erradicar o vício nas drogas em poucos anos, a partir de uma política de execução de grandes traficantes e da repressão ao consumo, algo muito distinto das propostas legalizacionistas e filo-oligárquicas das esquerdas liberal-libertárias ocidentais. 

Mao também preservou – talvez inconscientemente – certos aspectos do simbolismo solar e imperial chinês na estrutura estético-doutrinária da Revolução Cultural. Em seu artigo Para aprofundar a grande revolução cultural proletária, Mao sustenta, recapitulando a noção sino-tradicional da simetria entre o Imperador e o Sol, que «O desenvolvimento de todas as coisas depende do Sol e o fazer a revolução depende do pensamento de Mao». Além do mais, sua Teoria das Contradições, além do que já assinalamos, pode bem ser considerada, com as devidas ressalvas, como uma versão moderna e uma atualização da dialética dos contrários Taoísta, assim sua noção de heroísmo revolucionário, exposta em seu Livro Vermelho, pode ser considerada como uma atualização marxista do ethos guerreiro tradicional. 

Em suma, o maoísmo configura-se de um modo de encarar o político repleto de idiossincrasias locais e de formas narrativas e compreensivas embebidas em um complexo psico-cultural de fundo e de natureza tradicional. A China contemporânea pós-maoísta, mesmo que internamente dominada por elites liberais, assume hoje um papel importante na correlação de forças e nas contradições da ordem internacional – ao lado de países como a Rússia e o Irã. Pode-se dizer seu lugar na história está hoje em aberto: ela pode tanto sucumbir a uma forma aberta de liberalismo e de capitalismo predatório e parasitário, como pode, a sua maneira, alcançar suas pretensões socialistas. Seja como for, poucos discordarão que o futuro da política internacional se não depende, ao menos passa, para o bem ou para o mal, do Império do Meio. E se tivermos sorte, o que hoje se chama de República Popular da China alcançará, junto às demais nações antiimperialistas, os meios para levar o mundo a uma verdadeira Lex Pluriversalis, a uma configuração global multipolar, tal como décadas atrás enunciara Mao poeticamente:

«Se o céu fosse o meu poiso, puxaria  
da espada  
E cortar-te-ia em três pedaços:  
Ofereceria um à Europa,  
Outro à América,  
Guardando, porém, um para a China,  
E a Paz dominaria o Mundo».
 
Bibliografia:

Schmitt, Carl. Teoria da Guerrilha: observações para esclarecimento político. Lisboa: Arcádia, 1975.
Pomar, W. O Enigma Chinês: capitalismo ou socialismo. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1987.
Tse-tung, Mao. Política. FERNANDES, F. (org.). Rio de Janeiro: Ática, 1982.
___________. Selected works of Mao Tse-tung: Vol. I e II. Oxford: Pergamon Press, 1965.
Quaderni del Veltro, 1973. Maoismo e Tradizione. Disponível em (em português): <> 

Leonid Savin - A Globalização para Bem dos Povos: Perspectivas da Nova Teoria Política

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por Leonid Savin



A questão da globalização, que se começou a analisar ativamente na década de 90 do século passado, continua atual, fato comprovado pelos desenvolvimentos na arena global. Por trás das tentativas das corporações transnacionais e de diversos projetos mundialistas se descobrem não só o afã do lucro, mas também de controle e domínio mundial. A origem é uma filosofia política que bebe das fontes da Grécia Antiga, onde originariamente se deram os dispositivos que posteriormente se adotaram e se interpretaram como indiscutíveis. Concordando inteiramente com uma série de argumentos de Jacques Derrida sobre que "o modelo ideal e eufórico da globalização, como um processo de abertura de fronteiras que faz o mundo mais homogêneo, deve se discutir com seriedade absoluta e extrema atenção. E isso não é apenas porque a homogeneização indicada - onde ela foi levada a cabo ou assim se supõe - tem um anverso e um reverso (de risco aterrorizante, muito óbvio para mim para perder tempo em sua descrição), mas porque a homogeneização visível muitas vezes escondidos em outras formas antigas e novas de desigualdade ou hegemonia (que eu chamo de homo-hegemonização), devemos saber reconhecê-las em suas fisonomas novas e combatê-las "[1], destacaremos apenas de passagem alguns marcos diretamente relacionados com as questões da globalização.

A primeira onda de globalização está relacionada com a época de grandes descobertas anteriores à Primeira Guerra Mundial. A segunda, de 1947-1991, é a época do mundo pós Yalta e da Guerra Fria. A terceira começou nos anos 90 e continua até o momento atual gerando uma infinidade de efeitos, como a virtualização da economia, a relocalização, a emergência de sociedades em rede. Embora o historiador americano Hopkins, junto do editor da publicação "Foreign Policy", Moises Naim [2], afirmam que a globalização já tinha começado já em tempos do pré-modernismo com a migração dos povos, esta declaração - que toma em conta o significado das tradições, ritos e religiões que tinham as pessoas da pré-modernidade - não parece convincente. Quão justamente assinalou Luke Martell, examinando o espectro completo de modelos de globalização e das novas escolas e ensinamentos relacionados a ela, que a globalização neste contexto histórico não significa internacionalização [3]. Vários pesquisadores agora assinalam que a onda reversa da globalização, com origem nos países em desenvolvimento, promove as mudanças econômicas nessas regiões e produz o desequilíbrio dos sujeitos da política mundial, e que, se esta tendência continuar, pode conduzir a consequências imprevisíveis. É provável que discordem de mim os partidários da teoria do caos e fundamentem que tais mudanças são intrinsecamente inerentes a um sistema complexo e dinâmico, como é, certamente, qualquer Estado, e tanto mais o são os blocos e uniões. No entanto, o caos controlado também pode ser usado como um instrumento da globalização do qual se valem os estrategistas do Ocidente em prol de seus interesses, coisa que propôs o diplomata americano Steven Mann nos anos 90 do século passado [4].

Era necessário recordar as três ondas de globalização para que possamos realizar certa comparação com as três teorias políticas. Em um ou outro período dominaram determinadas ideologias, apoiadas não só na violência revolucionária, mas mais ainda em uma plataforma político-filosófica. No último século observou-se que três ideologias fundamentais estavam lutando entre si, disputando exclusividade e dominação. Primeiro apareceu o liberalismo, que considera sujeito da história o indivíduo desembaraçado do complexo da herança cultural e das relações intersociais. Em reação ao sistema capitalista burguês, expresso pelo liberalismo, apareceram o comunismo e o marxismo. Finalmente apareceu o fascismo, e o nacional-socialismo como uma versão daquele, mas foram os primeiros a desaparecer do cenário internacional imediatamente após a derrota da Alemanha em 1945. Em 1991, após a queda da URSS, o mundo soube da derrota da segunda teoria, que pretendia ser universal (embora em algumas regiões, por exemplo, na América Latina, o marxismo foi modificado e na sua nova forma, demonstrou a sua eficácia), e por um tempo se impôs a vitória do liberalismo [5]. Em relação a tudo isso o embate das três teorias se dava no marco da época do modernismo, fato que assinalou magnificamente o filósofo húngaro Georg Lukács em seu livro "O Fim do Século XX e o Fim do Modernismo."

Hoje, na era do pós-modernismo, nos encontramos com a onda da globalização relacionada com o liberalismo, que afirma o primado da economia sobre outras esferas; portanto, seria lógico tocar alguns modelos e planos alternativos que estão do outro lado da economia, mas que em grande parte a pré-determinam.

Definitivamente, entre os modelos comportamentais e econômicos existe uma relação de forma inequívoca. O ethos de um povo determinado, ligado a dispositivos conceituais, influencia na formação de modelos de comportamento social e de regime económico. Por exemplo, a economia islâmica nega o crescimento percentual, fato observado pelo filósofo russo Vladimir Soloviev falando sobre o princípio do "trabalho saudável" no Islã. Na Ortodoxia a economia, em primeiro lugar, é domostrói (economia doméstica na velha Rússia ou oikonomía na Grécia antiga). De acordo com a doutrina cristã, as pessoas que, mesmo depois do pecado devem continuar a ganhar o pão com o suor do seu rosto, "cooperam com o criador" sem duvidar de sua vontade. Tais opiniões foram distorcidas pelo protestantismo e Max Weber [6] mostrou de forma convincente que grande parte da economia de mercado liberal atual é construída sobre a base da ética protestante. Ernst Schumacher desenvolveu a doutrina absolutamente única da "economia budista", propondo novos princípios em relação ao trabalho e, com razão, indicando que "os economistas, da mesma forma que outros especialistas, sofrem de cegueira metafísica" [7].

Mesmo abstraindo-se das várias crenças religiosas, contra as quais lutaram representantes de determinadas ideologias políticas, os arquétipos e o inconsciente coletivo permanecem. Carl Gustav Jung sintoniza com Max Weber sobre a crítica do liberalismo, embora o faça como um psicólogo. "O Mundo sem símbolos do protestante levou a um sentimentalismo doentio no início, em seguida, a um agravamento dos conflitos morais" [8]. A questão não é apenas de distúrbios sexuais e psicológicos que analisava o cientista suíço. Os arquétipos e símbolos estão totalmente inscritos no modelo econômico. O pesquisador norte-americano Bernard Lietaer argumenta que o atual sistema monetário e financeiro mundial baseia-se no arquétipo patriarcal, onde o dinheiro é um meio de acumulação [9]. Ao mesmo tempo os outros arquétipos há muito que estão deprimidos e, portanto, devido a este desajuste, se produzem booms financeiros, falências, quebras do mercado de ações e outros desastres. Na história, no entanto, tem operado outro arquétipo, com base no princípio matrifocal - Egito Antigo, Idade Média, etc. - onde o dinheiro agia segundo o princípio da moratória e era um meio de troca. Até agora, infelizmente, não há uma extensa pesquisa relacionada à influência dos arquétipos nas teorias econômicas heterodoxas desenvolvidos nos séculos XIX e XX, que são uma alternativa ao atual sistema central enraizado no projeto político concreto. Mas várias dessas teorias se apoiam em experimentos práticos, por exemplo o projeto de dinheiro de Silvio Gesell, o qual produziu um efeito colossal que influenciou diretamente o bem estar das comunidades. Os sistemas "dinheiristas" condicionais LETS [10], Time Dollar [11], WIR [12], sendo instrumentos de crédito mútuo e, naturalmente sem juros, todavia representam um modelo maravilhoso de economia solidária dentro da sociedade.

No Japão existe a "moeda de saúde", que é medida em horas de trabalho e pode ser usada em programas de saúde pública do Estado. A eficácia de tais sistemas tem sido observada por pesquisadores contemporâneos. Mesmo aplicando mecanismos econômicos e bancários, no mundo há muitos exemplos dessa abordagem de distribuição de meios e investimentos, que não se inscrevem nos esquemas liberais. Por exemplo, organizações tais como Triodos Bank (Holanda), Cultura Bank (Noruega), La Nef (França) e outros, se manejam com princípios éticos muito claros que podem ser resumidos com a frase comum de anti-globalistas "as pessoas são mais importante do que os lucros ". Além disso, vários especialistas e analistas tem proposto esquemas de estabilização econômicas baseadas no princípio da democracia direta. Bello Walden, analista sênior do Instituto Focus on the Global South, de Bangkok, propõe as seguintes formas de superar a globalização por meio da economia:

1 - A produção para o mercado interno, em vez do externo, deve ser o centro de gravidade da economia novamente.

2 - Na economia deve se dar o princípio da subsidiariedade.

3 - A política comercial deve proteger a economia local a partir do impacto econômico destrutivo de estruturas corporativas e dos preços baixos.

4 - A política industrial deve regenerar e fortalecer o setor manufatureiro.

5 - As tarefas de longo prazo, destinadas a uma justa distribuição de renda, podem criar um mercado interno forte para assumir o papel de âncora econômica e criar recursos financeiros locais para investimento.

6 - A correção do crescimento econômico vai aumentar a qualidade de vida, e maximizando a abordagem objetiva irá reduzir o desajuste relacionado com o ambiente circundante.

7 - A elaboração e propagação de tecnologias ecologicamente favoráveis na indústria e na agricultura devem ser estimuladas.

8 - A tomada de decisões estratégicas sobre a economia não pode ser deixada apenas nas mãos de tecnocratas e marqueteiros. Pelo contrário, deve-se introduzir a possibilidade de que assuntos tais como o desenvolvimento da indústria, a parte do orçamento do Estado alocados para a agricultura, etc., sejam produto de discussão democrática e eleições.

9 - A sociedade civil deve continuar e monitorar continuamente o setor privado e o Estado. Isso deve ser institucionalizado.

10 - A propriedade deve ser transformada em uma "economia mista", o que inclui cooperativas comunitárias, empresas privadas e empresas estatais, mas exclui as corporações transnacionais.

11 - As organizações globais centralizadas do tipo FMI ou Banco Mundial devem ser substituídas por outras, construídas não de acordo com o princípio do livre comércio e da mobilidade de capitais, mas nos princípios de uma cooperação que - nas palavras de Hugo Chávez, descrevendo o projeto ALBA  - "supere a lógica do capitalismo." [13]

É importante também aplicar à globalização a análise social. A metodologia de Jean Baudrillard [14] nos permite observar como os mercados financeiros especulativos conduziram à criação de simulacros econômicos que minaram a vitalidade dos sistemas sociais. Não menos interessante é o modelo de Georges Bataille, mostrando como a concorrência econômica, característica do modelo liberal, está diretamente ligada ao risco de guerra. O sociólogo francês observa que o excesso de energia, que é transformado em riqueza, deve ser gasto no desenvolvimento do sistema. Caso contrário, se a energia não é removido a tempo, inevitavelmente, ela é utilizado para produzir desastres.

Ao tema que investigamos devemos acrescentar o fato de os entusiastas da globalização, dos US e da Europa Ocidental, apontavam que a interação estreita entre países e povos, que propiciem os processos de unificação das normas e homogeneização de culturas, deve conduzir a uma baixa probabilidade de conflitos; no entanto, o parto de novos modelos levou a novas formas de guerra [15]. E agora o sujeito ativo dos conflitos resultam ser não apenas os Estados, mas as corporações transnacionais, ONGs, sindicatos, grupos religiosos, agrupamentos criminosos criminais e partidos políticos. O bellum omnium contra omnes de Hobbes se espalhou pelo mundo, enquanto que os EUA pretendem exercer a função de Estado absoluto.

Na crise atual do sistema liberal, da qual são testemunhas a crise financeira de 2008, o reconhecimento da sua inadequação pelos economistas reconhecidos, e as iniciativas dos vários países em termos de reformar a ordem mundial, corresponde mudar o enfoque das ciências que afetam a formação da cosmovisão da elite futura para práticas socioculturais que, para além da sua importância, por um longo tempo não receberam a atenção de grande política. A crise ecológica que se aproxima, que ocorre sobre um fundo de crescente auto-consciência política de muitos povos aborígenes - que antes haviam sido removidos da tomada de decisões (do socialismo boliviano Sumak Kawsay com projetos indígenas latino-americanos a tentativas africanas de libertar-se da escravidão neoliberal) - também pode contribuir para esses processos. A mudança de raciocínio deve ser complexa, com uma ativação de camadas arquetípicas permitindo a atrofia dos memorandos velhos e a instalação de fundamentos de uma nova ordem mundial onde, em um marco de florescente complexidade, se codesenvolvam sociedades de abundância estável.

Tal como já observamos no início, há uma série de dispositivos filosóficos que estabeleceram uma determinada direção no desenvolvimento das ciências, os quais foram tomados como algo rígido que não pode ser submetido à crítica. O paradigma científico do Iluminismo produziu um racismo gnoseológico euro-ocidental que foi projetado sobre outros povos, países e continentes. Aqui também se pode tomar em conta o fato de que o corpus da filosofia da Grécia antiga veio para a Europa Ocidental através do mundo árabe, e foi submetido a distorções, mas poucos foram aqueles que se atreveram a repensar os fundamentos da existência. Sobre isto é um exemplo a herança de Martin Heidegger, cujos trabalhos, mais além de sua relativa complexidade, podem servir como base para o desenvolvimento de uma nova teoria universal. Este é um processo que deve ser realizado também a partir da perspectiva da desconstrução para dissipar as estratificações especulativas e os envelhecidos mecanismos de construção sócio-política.

Pode-se dizer, em conclusão, que depois das três teorias políticas (liberalismo, marxismo e fascismo) e depois das três ondas de globalização (substituição de três sociedades - tradição, modernismo e pós-modernismo, e também de modelos econômicos) se faz indispensável para a elaboração de uma nova teoria política que conforme uma quarta onda, qualitativamente distinta das anteriores, onde o sujeito ativo fundamental do mundo. Enquanto isso, é importante a formação de uma oposição e um movimento que se baseie no princípio "anti", a elaboração de um anti-credo construtivo que, de acordo com o pensamento de Zbigniew Brzezinski, possa destruir o domínio global dos EUA [16]. Nesta teoria, ou como chama o filósofo francês Alain de Benoist "o Quarto Nomos da Terra" [17], os sujeitos da história devem ser as pessoas no seu processo puro de existência, com toda a riqueza de suas relações culturais mútuas, tradições, especificidades étnicas e cosmovisões. No cujo caso os modelos alternativos e das tentativas de muitos analistas, especialistas e opositores da globalização ocidental (que tem os EUA na liderança) poderão encontrar uma ampla aplicação.

Notas

1. Jacques Derrida. A Globalização, a Paz e o Cosmopolitismo. Cosmópolis № 2 (8), M., 2004, c.126.

2. Naim, Moises. Think Again: Globalization, Foreign Policy, March/April 2009.

3. Martell, Luke. The Third Wave in the Globalisation Theory. International Studies Review, 9, 2, Summer 2007, p 177.

4. Mann, Steven. Theory of Chaos and Strategic Thought, Parameters, Vol. XXII, Autumn 1992, p.62.

5. Alexander Dugin. A Quarta Teoria Política. San Petersburgo. de. Amfora. P.10-11.Año 2009.

6. Max Weber. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Ivano-Frankivsk 2002.

7. Schumacher E. F., Small Is Beautiful: Economics as if People Mattered. Anthony Blond Ltd., London, 1973.

8. Carl Gustav Jung, Michel Foucault. A Loucura da Matriz. Moscou: Penguin Books, 2007. P.99 .

9. Bernard Lietaer. A Alma do Dinheiro. Moscou: Olimp AST: Astrel de 2007.

10. http://ru.wikipedia.org/wiki/LETS

11. http://www.timebanks.org/

12. http://www.wir.ch/index.cfm?DC86BF333C1811D6B9950001020761E5&o_lang_id=1

13. Bello Walden B. The Virtues of Deglobalization. http://www.fpif.org/fpiftxt/6399

14. Jean Baudrillard. Crítica da Economia Política do Signo. Moscou: Biblion. 2004. O Intercâmbio Simbólico e a Morte. Tomsk: Dobrosvet, 2009.

15. Georges Bataille. A Parte Maldita. Moscou: Ladomir de 2006, sec. 116-118.

16. Zbigniew Brzezinski. O Dilema dos EUA. Dominação global ou liderança global? Moscou: Relaciones Exteriores.

17. Alain de Benoist. Contra o Liberalismo. A Quarta Teoria Política. Amphora. P.18 .

Gustavo Aguiar - O Capitalismo como Regime Significante do Signo sob o Viés Esquizoanalítico

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por Gustavo Aguiar



“Este gênio encerrado em seu calabouço infame,
Este grito, este esgar, espectros cujo enxame
Sempre aos ouvidos seus, rebeldes turbilhona,

Homem sempre a sonhar que o horror não abandona,
Eis teu emblema, alma de frêmitos obscuros,
Que o Real asfixia em seus quatro muros!”

- Charles Baudelaire (Les Fleurs du Mal)

Volta e meia somos assaltados por sentenças estarrecedoras que pintam o capitalismo industrial como um “mal necessário”, algo de que não podemos fugir sem que parcela significativa da nossa existência seja pulverizada, despedaçada, e, por maior que seja a vontade de nos rebelarmos contra a tirania do deus-mercado, ela é sempre apaziguada pelo despotismo da mais-valia existencial. Até que ponto vale a pena trabalhar para a manutenção desse estado de coisas? O quão baixo nós, sedentários, pessoas presas ao solo, ao território de origem, precisaremos descer na escala da irreflexão para que nos sintamos suficientemente tiranizados pelos parasitas integrantes daquilo que Bauman oportunamente denominou elite móvel extraterritorializada? Vale a pena se “nomadizar” ao sabor de interesses puramente materialistas? Esses interesses serão em algum momento satisfeitos, ou será que a tirania do capital especulativo foi convenientemente arquitetada para nos catapultar em direção ao horizonte inalcançável do eterno devir?

Procuraremos as respostas para essa saraivada de indagações nos três principais condutores semióticos da esquizoanálise deleuzo-guattariana, quais sejam: 1) o que descreve, em linhas gerais, a dinâmica de funcionamento do regime significante do signo, em cujo contexto inseriremos o capitalismo industrial, evidenciando de que modo ele consegue se impor despoticamente sobre a polivocidade semiológica dos demais regimes significantes, e em que medida ele depende do “supliciado” (classes subprivilegiadas) para se auto-perpetuar mediante a assiduidade cúltica dos “sacerdotes” (burgueses, pequeno-burgueses e lumpemproletariado). 2) o que descreve a dinâmica de funcionamento da mecanosfera ou rizosfera a partir de um conjunto de máquinas abstratas e agenciamentos maquínicos que desempenham, respectiva e sucessivamente, as funções diagramática e maquínica, dois componentes essenciais da pragmática esquizoanalítica. 3) o que descreve o núcleo autopoietico dos agenciamentos coletivos como vetor matricial do procedimento heterogenético de multiplicação de subjetividades, e como isso prescreve um paradigma ético-estético infinitamente superior ao tecno-cientificismo, fonte de legitimidade do primado do grande Capital em prejuízo ao primado da criatividade.  

Gilles Deleuze e Félix Guattari não são o que poderíamos chamar de filósofos na estrita acepção do termo, até mesmo porque a filosofia, tendo se convertido em um ramo dentre outros no tronco da burocracia acadêmica (à qual Guattari, um autodidata, nunca chegou a pertencer), perdeu, há muito, seu caráter transdisciplinar. O núcleo da proposta contida em obras como Mille plateux: Capitalisme et schizophrénie e Caosmose: um novo paradigma estético consiste justamente em resgatar esse sentido de transdisciplinaridade, fornecendo um diagnóstico passível de ser aplicado em várias disciplinas, e não somente à psiquiatria, de onde ela se originou. Em Mille plateux, Guattari, em parceria com Deleuze, constrói um verdadeiro aparato conceitual que viria, mais tarde, a confluir para a fundamentação de Caosmose, sua obra-prima. Passaremos, doravante, a percorrer as páginas de ambos os escritos com o intuito de deles extrair o que for relevante para os fins da presente investigação.

Antes de explicar porque identificamos o sistema capitalista como um regime significante do signo, impende sublinhar os aspectos gerais do significante, buscando extrair deles uma definição compacta. Nos dizeres de Deleuze e Guattari:

“O regime significante do signo é definido por oito aspectos ou princípios: 1) o signo remete sempre ao signo, infinitamente (o ilimitado da significância, que desterritorializa o signo); 2) o signo é levado pelo signo e não cessa de voltar (a circularidade do signo desterritorializado); 3) o signo salta de um círculo ao outro, e não cessa de deslocar o centro ao mesmo tempo que se relacionar com ele (a metáfora ou histeria dos signos); 4) a expansão dos círculos é sempre assegurada por interpretações que fornecem o significado e fornecem novamente significante (a interpretose do sacerdote); 5) o conjunto infinito dos signos remete a um significante maior que se apresenta igualmente como falta e como excesso (o significante despótico, limite de desterritorialização do sistema); 6) a forma do significante tem uma substância, ou o significante tem um corpo que é Rosto (princípio dos traços de rostidade, que constitui uma reterritorialização); 7) a linha de fuga do sistema é afetada por um valor negativo, condenada como aquilo que excede à potência de desterritorialização do regime significante (princípio do bode emissário); 8) é um regime de trapaça universal, ao mesmo tempo nos saltos, nos círculos regrados, nos regulamentos das interpretações do adivinho, na publicidade do centro rostificado, no tratamento da linha de fuga”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, pgs. 56 e 57) 

Ao contrário do que se poderia imaginar, o capitalismo não constitui um centro de poder positivo de onde emanam outros centros, nem um princípio econômico em torno do qual os demais regimes significantes deveriam gravitar ; é ele produto significante de phylum (fluxos) maquínicos, tanto quanto sua antítese, a economia planificada. A diferença entre ambos é que o grande Capital, como regime de significante do signo que remete sempre ao signo em uma espécie de procedimentalidade tautológica obstaculiza pré-linguisticamente a possibilidade dos códigos emitidos pelos demais regimes percorrerem a totalidade dos estratos (platôs) que compõem a rizosfera. É que, uma vez emitidos (desterritorializados ou descodificados), os códigos passam pelo crivo de uma série de aparelhos ou máquinas incumbidas de promoverem sua recodificação. Contudo, o capitalismo industrial parece possuir a tendência de inibir a virtualidade dos phylum transportadores de codificações heterogêneas. Nas palavras de Félix Guattari, “a escolha do Capital, do significante, do Ser, participa de uma mesma opção ético-política. O Capital esmaga sob sua bota todos os outros modos de valorização. O significante faz calar as virtudes infinitas das línguas menores e das expressões parciais. O Ser é como um aprisionamento que nos torna cegos e insensíveis à riqueza e à multivalência dos Universos de valor que, entretanto,proliferam sob os nossos olhos. Existe uma escolha ética em favor da riqueza do possível, uma ética e uma política do virtual que descorporifica, desterritorializa a contingência, a causalidade linear, peso dos estados de coisas e das significações que nos assediam”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 41) 

Podemos nos reportar à metáfora do bode emissário para abstrair os contornos operacionais dessa hegemonia capitalística sobre os demais Universos de referência nos seguintes termos: O totem de um regime significante do signo que, como vimos, remete infinitamente a si mesmo, é representado, em seu momentum de reterritorialização interpretativa, por “traços de rostidade”, haja vista que “o rosto é o ícone próprio ao regime significante, a reterritorialização interior ao sistema. O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que dá a substância do significante, é ele que faz interpretar, e que muda, que muda de traços, quando a interpretação fornece novamente significante à sua substância. Veja, ele mudou de rosto. O significante é sempre rostificado”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 54) A multiplicidade de rostos que o deus-déspota (regime significante) arrogou, a priori, a si mesmo, se revela através da “interpretose” do sacerdote. O sacerdote manipula a imagem de deus conforme lhe é conveniente por meio de sua atividade interpretativa. Tal nos permite enxergar o burguês, o pequeno burguês e o lumpemproletariado como sacerdotes par excellence em uma sociedade capitalista altamente globalizada, em que essas três classes, nomadizadas, desterritorializadas, se fundem em uma única e mesma elite móvel, hegemônica e ciberespacial. O deus-déspota possui, ainda, um contra-corpo, representado pela figura do supliciado (classes subprivilegiadas), de cujo sacrifício o significante se retroalimenta autopoieticamente. O supliciado é, em última instância, “(...) aquele que perde seu rosto, e que entra em um devir-animal, um devir molecular cujas cinzas espalhamos ao vento. Mas diríamos que o supliciado não é absolutamente o termo último; é, ao contrário, o primeiro passo antes da exclusão”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 55) A exclusão propriamente dita é encarnada pela figura do bode emissário, aquele que, transpondo a linha de fuga do signo significante, excede o grau máximo de desterritorialização suportado pelo deus-déspota, de maneira ainda mais arrojada do que seu contra-corpo seviciado, reprimido e martirizado. “Ele [o supliciado] se suplicia, fura seus olhos, depois vai embora. O rito, o devir-animal do bode emissário mostra-o bem: um primeiro bode expiatório é sacrificado, mas um segundo bode é expulso, enviado para o deserto árido. No regime significante, o bode emissário representa uma nova forma de aumento da entropia para o sistema dos signos: está carregado de tudo o que é ‘ruim’, em um dado período, isto é, de tudo o que resistiu aos signos significantes, de tudo o que escapou às remissões de signo a signo através dos círculos diferentes; assume igualmente tudo aquilo que não soube recarregar o significante em seu centro, leva consigo tudo o que transpõe o círculo mais exterior. Encarna, enfim, e sobretudo, a linha de fuga que o regime significante não pode suportar, isto é, uma desterritorialização absoluta que esse regime deve bloquear ou que só pode determinar de forma negativa, justamente porque excede o grau de desterritorialização, por mais forte que este já seja, do signo significante (...) Vocês nunca terão escolha senão entre o eu do bode e o rosto de deus, os feiticeiros e os sacerdotes”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo eesquizofrenia, vol. 2, pgs, 55 e 56)

Em uma sociedade de produção, a figura do bode emissário poderia muito bem servir para designar os anseios revolucionários em provocar uma espécie de ruptura com o sistema dominante, a fuga dos domínios hermenêuticos dos sacerdotes e feiticeiros. Contudo, a globalização, consoante aduz Zygmunt Bauman em Globalização: As consequências humanas, marcou o período de transição para o paradigma da sociedade de consumo, na qual o consumidor “(...) é uma criatura acentuadamente diferente dos consumidores de quaisquer outras sociedades até aqui. Se os nossos ancestrais filósofos, poetas e pregadores morais refletiram se o homem trabalha para viver ou vive para trabalhar, o dilema sobre o qual mais se cogita hoje em dia é se é necessário consumir para viver ou se o homem vive para poder consumir. Isto é, se ainda somos capazes e sentimos a necessidade de distinguir aquele que vive daquele que consome”. (BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas, pgs. 88 e 89) Em outras palavras: a sedentarização das classes subprivilegiadas, ou a execução do bode sacrificado no ritual macabro dos sacerdotes, vai de encontro ao seu anverso: a elite consumidora que, justamente para eternizar a tirania espacio-temporal do deus-déspota, o destinatário de seus tributos, precisa estar em constante mobilidade, criando sempre novos itinerários na medida em que haure os velhos. Desnecessário acrescentar que as chances dos despossuídos reivindicarem sua emancipação no contexto de um paradigma social tipologicamente consumidor se tornam praticamente nulas, o que transformaria o bode emissário em uma representação aérea, flutuante, destituída de sujeito especificado. Acontece que não estamos em busca de um sujeito, mas de um método capaz de oferecer uma fuga do sistema sem que seja necessário aboli-lo. Antes de apontar este método, vejamos como funciona o processo que acabamos de descrever metaforicamente, e através de quais máquinas ele se torna efetivamente operacionalizável. As informações de que dispomos até o presente momento dizem respeito à desterritorialização e reterritorialização dos códigos enquanto estruturas linguisticamente comunicáveis do significante do signo, e que a fórmula geral do regime significante é, conforme síntese de Deleuze e Guattari: “o signo remete ao signo, e remete tão somente ao signo, infinitamente”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 50) Mas de onde sai o signo antes de percorrer todo esse trajeto e pelo crivo de qual ordenação ele passa antes de se reterritorializar, de adquirir uma nova compleição ou rostidade? É o que, doravante, procuraremos responder.

Deleuze e Guattari denominam mecanosfera (ou rizosfera) o agregado de agenciamentos maquínicos, que, por sua vez, efetuam máquinas abstratas. São basicamente essas duas estruturas encarregadas de transportar (fazer circular) o conteúdo enunciativo de um estrato ao outro, razão pela qual se localizam em uma dimensão interestrática, de descodificação, de tal sorte que “os signos não constituem apenas uma rede infinita, a rede dos signos é infinitamente circular. O enunciado sobrevive ao seu objeto: o nome, a seu dono. Seja passando para outros signos, seja posto em reserva por um certo tempo, o signo sobrevive a seu estado de coisas como a seu significado, salta como um animal ou como um morto para retomar seu lugar na cadeia e investir um novo estado, um novo significado do qual é extraído mais uma vez”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 52) Denomina-se “plano de consistência” (ou planômeno) a estrutura produtora de continuums de intensidade que irá regenciar os phylum desterritorializantes. E aqui já podemos vislumbrar a quais critérios estariam submetidas as funções diagramática e maquínica, levadas a cabo, respectivamente, pelas máquinas abstratas e pelos agenciamentos coletivos de enunciação. “A máquina abstrata ora se desenvolve no plano de consistência cujos contínuos, emissões e conjugações constrói, ora permanece envolvida num estrato do qual ela define a unidade de composição e a força de atração ou preensão. O agenciamento maquínico é completamente diferente, se bem que em estreita relação: primeiro ele opera as co-adaptações de conteúdo e expressão num estrato, assegura as correlações biunívocas entre segmentos de ambos, pilota as divisões do estrato em epistratos e paraestratos; depois, de um estrato ao outro, assegura a relação com o que é subestrato e as correspondentes mudanças de organização; finalmente, ele é voltado para o plano de consistência porque efetua necessariamente a máquina abstrata em tal ou qual estrato, entre os estratos e na relação destes com o plano. Era preciso um agenciamento, por exemplo a bigorna do ferreiro mencionada pelos Dogons, para que se fizessem as articulações do estrato orgânico.  É preciso um agenciamento para que se faça a relação entre dois estratos. Para que os organismos se vejam presos e penetrados num campo social que os utilize: as Amazonas não têm que cortar um seio para que o estrato orgânico se adapte a um estrato tecnológico guerreiro, por exigência de um terrível agenciamento mulher-arco-estepe?” (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia,vol. 1, p. 87)

Toda essa performance, eivada de uma certa complexidade funcional, ocorre na superfície de estratos que não pertencem a níveis ou instâncias diferentes de singularização, e sim a um mesmo terreno, a uma mesma base ou plataforma, é dizer: a um mesmo plano de consistência incumbido de converter signos e partículas (partigos, na terminologia deleuzo-guattariana) em compostos orgânicos que viriam a formar os contornos semânticos do Ecúmeno, o outro lado da “lagosta”, no qual não nos aprofundaremos por fugir às latitudes do objeto em tela. Todo esse percurso virtual define o módulo de organização do fractal, do capitalismo como regime significante do signo, que, consoante verificamos, sempre sobrevive ao seu significado. É como se o signo passasse “por cima” do significado durante esse procedimento. Em Caosmose, Guattari chega à conclusão de que os agenciamentos maquínicos não só podem funcionar como de fato funcionam como agenciamentos coletivos, aplicáveis, em igual medida, a paradigmas sociais, e é nesta conjuntura sócio-econômica que o capitalismo logra dinamizar-se e hiperxomplexificar-se, até alcançar a hegemonia absoluta, tornando-se um regime semiótico autossuficiente. Importante frisar que a semiótica significante funciona paralelamente a outras espécies de regimes semióticos, que podem ser: semiótica pré-significante, semiótica pós-significante e semiótica contra-significante.

Resta ainda esmiuçar, neste segundo ponto, as funções diagramática e maquínica, executadas pelas máquinas abstratas e pelos agenciamentos maquínicos. Deleuze e Guattari se reportam a Noam Chomsky para postular os quatro componentes funcionais essenciais da pragmática esquizoanalítica, quais sejam, nesta ordem de ocorrência: componente gerativo, componente transformacional, componente diagramático e componente maquínico. “O conjunto da pragmática consistiria em fazer o decalque das semióticas mistas no componente gerativo; fazer o mapa transformacional dos regimes, com suas possibilidades de tradução e de criação, de germinação nos decalques; fazer o diagrama das máquinas abstratas colocadas em jogo em cada caso, como potencialidades ou como surgimentos efetivos; fazer o programa dos agenciamentos que ventilam o conjunto e fazem circular o movimento, com suas alternativas, seus saltos e mutações”. (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, p. 91)

O componente gerativo é típico da correlação de semióticas híbridas, concretamente articuladas sob a forma de proposição ou enunciação, cujo conteúdo depende topograficamente do regime no bojo do qual será veiculada (significante, pré-significante, pós-significante ou contra-significante). Um mesmo enunciado pode obter conotações e denotações completamente diferentes em diferentes regimes de subjetivação. O componente transformacional, típico das semióticas puras, realiza o translado de um enunciado para outros regimes semiológicos, possibilitando, em contrapartida, que um determinado regime absorva elementos suscetíveis de tradução no que couber. O componente diagramático, apontado por Deleuze e Guattari como o estudo das máquinas abstratas sob a perspectiva das matérias física e semioticamente “não formadas” secreta potências linguisticamente mirabolantes, pertencentes “(...) tanto [a] regimes muito rebuscados, metafóricos e imbecilizantes, quanto [a] gritos-sopros, improvisações ardentes, devires-animais, devires-moleculares, transsexualidades reais, continuums de intensidade, constituições de corpos sem órgãos...” (DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 2, pgs. 91 e 92) E, por último, temos o componente maquínico, levado a cabo por agenciamentos que efetuam as máquinas abstratas; que organiza, concatena ou semiotiza o conteúdo abstratamente veiculado. É o agenciamento que planifica os estratos, que os fazem corresponder ao plano de consistência.

Procederemos agora a uma última distinção antes de explicar como o capitalismo garante sua hegemonia industrial sobre os demais regimes semióticos, ditos “inferiores”. Félix Guattari toma de empréstimo do biólogo Francisco Varela duas expressões que serão empregadas no contexto maquínico (não-biológico) para evidenciar as mutações das subjetividades produzidas no seio do organismo que acabamos de descrever. São elas: alopoiese e autopoiese, e podem ser apreendidas nos seguintes termos:

“Francisco Varela caracteriza uma máquina como o ‘conjunto das inter-relações de seus componentes independentemente de seus próprios componentes’ (...) Ele distingue dois tipos de máquinas: as ‘alopoiéticas’, que produzem algo diferente delas mesmas, e as “autopoiéticas”, que engendram e especificam continuamente sua própria organização e seus próprios limites. Estas últimas realizam um processo incessante de substituição de seus componentes porque estão submetidas a perturbações externas que devem constantemente compensar. De fato, a qualificação de autopoiética é reservada por Varela ao domínio biológico; dela são excluídos os sistemas sociais, as máquinas técnicas, os sistemas cristalinos etc. – tal é o sentido de sua distinção entre alopoiese e autopoiese. Mas a autopoiese, que define unicamente entidades autônomas, individualizadas, unitárias e escapando às relações de input e output, carece das características essenciais aos organismos vivos, como o fato de que nascem, morrem e sobrevivem através de phylum genéticos”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 50)

A constatação de que a autopoiese carece dos atributos imprescindíveis para a caracterização dos organismos biológicos levou Guattari a relacioná-la aos agenciamentos maquínicos sob um viés simultaneamente ontogenético e filogenético próprio “de uma mecanosfera que se superpõe à biosfera”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 50) Para Guattari, o núcleo maquínico do agenciamento coletivo (que, como analisamos, efetua ou semiotiza a máquina abstrata) é, a princípio, um núcleo autopoiético. Em seara filogenética, as máquinas se proliferam historicamente mediante rizoma; elas se auto-reproduzem evolutivamente em várias direções através de vetores ou paradigmas sociais distintos. É assim que estruturas relativamente simples, como, por exemplo, o brinquedo de uma criança do império chinês, desencadeiam o auge da produção de máquinas a vapor nos países da Europa setentrional. Neste ponto, basta lembrarmos do efeito borbololeta desenvolvido pela teoria do caos, segundo o qual o bater de asas de uma borboleta pode interferir no curso natural dos acontecimentos, e, quiçá, provocar um furação no outro lado do mundo. “É no cruzamento de universos maquínicos heterogêneos, de dimensões diferentes, de textura ontológica estranha, com inovações radicais, sinais de maquinismos ancestrais outrora esquecidos e depois reativados, que se singulariza o movimento da história. A máquina neolítica associa, entre outros componentes, a máquina da língua falada, as máquinas de pedra talhada, as máquinas agrárias fundadas na seleção dos grãos e uma protoeconomia aldeã...” (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 51)

Todavia, a dimensão ontogenética nos revelará que a protomáquina não evolui em ritmo programado, ela não faz rizoma de si mesma observando um padrão de desdobramento sincrônico, mas uma dispersividade “heterocrônica”, motivo pelo qual ela às vezes se perde no curso de seu encadeamento rizomático, no desabrochar de sua metamorfose, ou nos ecos de sua orquestra polifônica. “Essas virtualidades diagramáticas fazem-nos sair da caracterização da autopoiese maquínica por Varela em termos de individuação unitária, sem input nem output, e nos levam a enfatizar um maquinismo mais coletivo, sem unidade delimitada e cuja autonomia se adapta a diversos suportes de alteridade. A reprodutibilidade da máquina técnica, diferentemente da dos seres vivos, não repousa em sequências de codificação perfeitamente circunscritas em um genoma territorializado. Cada máquina tecnológica tem seus planos de concepção e de montagem mas, por um lado, estes mantém sua distância em relação a ela e, por outro lado, são remetidos de uma máquina a outra, de modo a constituir um rizoma diagramático que tende a cobrir globalmente a mecanosfera”. (GUATTARI, Féliz. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 53)  

O núcleo autopoiético das máquinas industriais na conjuntura de uma sociedade globalizada, a partir de cuja inter-relação heterocrônica com complexos maquínicos estruturalmente diferenciados ela consegue se impor despoticamente sobre eles, obstaculiza o potencial criativo de regimes de subjetividade não condizentes com seus imperativos de rostificação ou reterritorialização. É como se o capitalismo tivesse o “poder” de congestionar os poros do esquizo que se-lhe afiguram, de uma forma ou de outra, desfavoráveis, por onde escapam as ramificações ou derivações do rizoma, subordinando o funcionamento da mecanosfera ao seu alvitre. A oferenda do primeiro bode realizada pelos sacerdotes (é dizer, a sedentarização, o confinamento espacial dos despossuídos pelas classes abastadas) confere cada vez mais mobilidade e poder de locomoção à elite consumidora. O ziguezaguear dos agentes itinerantes detentores desse privilégio aquisitivo perfaz a hegemonia do significante (o deus-déspota), que já não precisa mais se alimentar de sacrifícios de bodes. Ele agora metaboliza velocidade, deslocamento, mobilidade ao mesmo tempo em que procura desesperadamente barrar, ou, pelo menos, limitar ao máximo, o alcance da linha de fuga do segundo bode, o bode emissário.

O deus-déspota, como já sabemos, é o capitalismo. Mas quem seria o bode emissário? Ora, o próprio núcleo autopoiético do agenciamento maquínico, encarregado de fazer proliferar oscilações nos continuums de intensidade, radicularizando universos de referência movediços que se traduzirão em subjetivações heterogenéticas. Ele estava tão perto de nós que não podíamos enxergá-lo, mas agora que estamos familiarizados com ele, podemos não só enxergá-lo como também sentir a realidade que partilhamos sendo engolida pela virtualidade do eterno devir autopoieticamente engendrada; sentimos a propulsão do impulso criativo sendo buscada fora do regime significante. Mas esse núcleo autopoiético deve ser encarado sob condições diversas das estabelecidas pelo cientificismo, que apresenta a biosfera como o grau máximo de desterritorialização do significante do signo, olvidando que além dela existe um horizonte virtual de infinitas possibilidades que se estende até a mecanosfera, fonte de todo o devir-criativo; afinal, é a virtualidade que atrai a estrutura da realidade para perto de si, e não o contrário. Nos dizeres de Guattari:

“A autopoiese maquínica se afirma como um para-si não humano através de focos de protossubjetivação parcial e desdobra um para-outrem sob a dupla modalidade de uma alteridade ecossistêmica “horizontal” (os sistemas maquínicos se posicionando como rizoma de dependência recíproca) e de um alteridade filogenética (situando cada estase maquínica atual de encontro a uma passadificada e de um Phylum de mutações por vir). Todos os sistemas de valor – religiosos, estéticos, científicos, ecosóficos... – se instauram nessa interface maquínica entre o atual necessário e o virtual possibilista. Os Universos de valor constituem assim os enunciadores incorporais de compleições maquínicas abstratas compossíveis às realidades discursivas. A consistência desses focos de protossubjetivação, portanto, só é assegurada na medida em que eles se encarnem, com mais ou menos intensidade, em nós de finitude, de grasping caósmico, que garantam, além disso, sua recarga possível de complexidade processual. Dupla enunciação, então, territorializada finita e incorporal infinita”. (GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético, p. 66)

Depreende-se, portanto, que a tirania do capital especulativo se retroalimenta a partir da emissão de imperativos de mobilização a serem recepcionados por uma elite nômade extraterritorializada, em flagrante supressão de outros sistemas ou universos de valor, de outros focos produtores de subjetividade que se originam na teia caósmica da heterogênese. Ao reivindicar a hegemonia global sobre os demais regimes semiológicos, o capitalismo industrial deixa transparecer sua tendência inibitória, despótica e anti-criativa, esmagando sob sua bota quaisquer meios e modos de expressão que não contribuam, direta ou indiretamente, para o agigantamento de seu influxo totalitário, para a limitação ou enquadramento da virtualidade, responsável pelo desdobramento das cadeias rizomáticas, pela fabricação genuína de ramificações tuberculares.  Para além da mecânica diagramático-maquínica das máquinas abstratas e dos agenciamentos coletivos de enunciação, para além do continente assombrado do deus-déspota, a mecanosfera prolonga-se ao infinito, fornecendo continuamente possibilidades heumenêuticas mais complexas do que a interpretação realizada pelos sacerdotes e feiticeiros em proveito do único deus que conhecem: o deus-mercado. A caosmose surge como um paradigma ético-estético de superação ao tecno-cientificismo homogeneizante. 

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências Humanas. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1999.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. editora 34: São Paulo, 1995

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, vol 2. editora 34: São Paulo, 1995.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Editora 34: São Paulo 2012.  

Aleksandr Dugin - Iniciantes Absolutos

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por Aleksandr Dugin



1 - David Bowie, o Iniciado

David Bowie é conhecido como músico e ator; poucas pessoas sabem que ele é membro de uma organização iniciática que adere aos princípios do "Caminho da Mão Esquerda" e à "Thelema". Portanto, não é surpreendente que suas canções, vídeos e designs estéticos possuem uma dimensão oculta.

Sua canção "Absolute Beginners" (Iniciantes Absolutos) - é um exemplo típico desse tipo de mensagem em múltiplos níveis onde a estética emocional e psicológica externa oculta um núcleo esotérico secreto.

2 - Falsificação

"Absolute Beginner" - literalmente "iniciante absoluto" - uma frase que contem dentro de si uma contradição lógica completa. O que é absoluto não "inicia", porque algo verdadeiramente absoluto não possui início ou fim, não surge ou desaparece. E inversamente, o que tem um início essencialmente não é absoluto, mas relativo. É uma questão filosófica.

Há já uma controvérsia em um nível puramente quotidiano: uma tentativa de "recomeçar" por parte de nossos contemporâneos, seu protesto fraco e inexpressivo contra sua própria degeneração, envelhecimento, estonteamento, contra o pano-de-fundo de uma civilização que rapidamente vai se congelando, onde ninguém se opõe ou tenta se opôr à entropia, é algo extremamente questionável. As crianças, como Hesíodo predisse, já nascem hoje com cachos acinzentados e desde o berço almejam lavar carros e abrir contas bancárias. Todos os sinais do fim da Idade do Ferro. Que "novo início" há aqui? Um absoluto também.

O próprio Bowie, apesar de sua inteligência e talento, dificilmente poderia afirmar ser seriamente uma alternativa. Ele fascina exatamente como um decadente, como aprofundado em uma perversão narcisista perturbadora, como um esquisitão melancólico anglossaxão, mas certamente não como um heroi ou portador do "novo". Não há nele qualquer "absoluto" ou "início", mas sim o odor exótico da decomposição da carne, envolvida em bugigangas globalistas.

Iniciante Absoluto é um conceito tomado por David Bowie do arsenal de doutrinas gnósticas. Ele inspirou uma boa canção e um clip estranho.

3 - Doutrina da Estrela

Iniciante Absoluto, aquilo que não é e não pode ser, é porém o eixo do proibido, o conhecimento heroico que é partilhado por meio de uma corrente secreta. Através da imagem estática banal da metafísica, no fundo do relativo mutável, no topo do constante absoluto, a vontade paradoxal especial de certos devotos verão no risco para a mente e para a vida uma perspectiva excitante. Há algo que corta através do dualismo lógico e religioso - há um Início Eterno, um raio misterioso que está "fechado" de um lado e "aberto" no outro. Nesse raio todas as grandes proporções e o encontro dos três mundos perdem seu significado. Cima e baixo se invertem, o incrível e impossível casamento do céu e do inferno ocorre, sobre o qual escreveu o gênio Blake.

A isso se dá o nome de "Doutrina da Estrela".

Os seguidores "thelemitas" do francês Rabelais e do inglês Crowley (nomeadamente deles Bowie tomou emprestado o conceito da música, ele próprio sendo membro da OTO) acreditam que "todo homem e toda mulher é uma estrela". A personificação da finitude e da relatividade, um claro perdedor tipológica, termina sua história repleto da vulgaridade do Banco Mundial e do Mercado Global, imitação biológica aberta do ser angélico puro e orgulhoso - o homem da outra mão ("thelêmica"), carregando dentro de si uma "estrela", um raio de gelo. Através da confusão miserável de sua pequena e frágil alma pulsa uma luz estranha, impossível, estonteante.

É a luz de um Início Absoluto, aquele que não pode ser.

4 - Raios Negros

O solo foge sob os pés. Os valores tradicionais se degeneram e se profanizam de tal forma que não há mais como confrontar o apático niilismo. Conservadorismo e progresso, as duas faces do mesmo processo de degeneração. De uma outrora vibrante história restam a fome, a luxúria e a polícia. Todos os sinais indicam que estamos muito longe do Início. Seja velho ou novo. A paixão está completamente exaurida.

O que tem em mente, os "thelemitas", cujas ideias perturbadoras estão longe do otimismo "new age" e dos teósofos aposentados, quando eles dizem que cada uma das "estrelas" possui a possibilidade paradoxal de "um novo início"? É claro que essa não é qualquer "iluminação" vulgar, "descoberta da verdade", etc. Olhe para esses "convertidos" de todas as religiões e cultos, um olhar amedrontado, lampejos de uma feliz estupidez, gestos estranhos, corpos claramente doentios por dentro... eles se afastam, sibilando e em convulsões, sem conquistar nada.

O raio negro da estrela thelêmica desliza por uma trajetória diferente. Ela não está fixa a partir de fora, ela não é apreendida por ferramentas familiares. Ela deliberadamente assusta e repele, disfarçando-se (provocativamente) em trajes antinômicos. Ela rapidamente abandona aquele que quer enquadrar a inspiração intitiva transfiguradora em um sistema. Ela não pode ser institucionalizada. Mas ela sempre e absolutamente tremeluz em seu ritmo aeônico contra a vontade dos ciclos e da massa concentrada das eras sombrias. Ela própria escolhe formas e corpos para se manifestar, buscar por ela é inútil, sua escolha é arbitrária e espontânea, não depende de méritos, virtudes ou feitos, é indiferente a "perspectiva moral" e avanços em exercícios de respiração. Início Absoluto sem sexo, idade, ocupação, posição. Rasgando como uma navalha o véu da tola pilha de átomos, um despertar cristalino.

5 - Alternativa Traída

A questão é, de fato, central. Sem futuro, não é apenas uma tese grotesca cativante de movimento juvenil, que agora já perdeu completamente o fôlego. A tese do "fim da humanidade", desenvolvida por Francis Fukuyama, na verdade é o mesmo, apenas tomado em uma nota otimista. A exaustão é a principal descoberta da pós-modernidade. O triunfo da simulação, a alegria doentia. Predadores maliciosos da mentira eletrônica estupram tanto a realidade que acabarão sua manipulação social na campanha de máquinas insanas. No fim, toda a literatura fantástica do século XIX se tornou lugar-comum técnico no século XX, o mesmo podemos esperar do século XXI. Especialmente quando consideramos que a maioria dos principais escritores de ficção científica (de Jules Verne a Lovecraft) foram membros de poderosas organizações esotéricas ativamente envolvidas em dar a aparência já posta à civilização.

Nenhum dos escritores de ficção científica e futuristas prevê um "Novo Começo". As previsões são terríveis, quanto mais distante o futuro é, mais horrível ele parece. E o homem se apressa no narcisimo não-salvífico, sob a colcha de fórmulas claramente espúrias e consoladoras. Enquanto isso, abutres coloridos pairam sobre o colapso dos banqueiros e da TV. Encantadores de corpos. Acreditar em mitos televisivos é se tornar um idiota, não acreditar é ficar louco de solidão (todos ao seu redor acreditam). No star in sight, nenhuma estrela à vista.

O sistema soviético reagiu de forma muito indiferente e tosca à tentativa desesperada da "nova esquerda" de oferecer uma ideologia alternativa à ordem burguesa, por meio de uma modernização (e revisão) das doutrinas anticapitalistas tradicionais. Preguiçosos apparatchiks ignoraram as tentativas desesperadas de inconformistas de irromper com um projeto positivo. Já então, percebendo a derrota inevitável do sistema soviético, a "nova esquerda" se voltou para o esoterismo, para o gnosticismo, as outras disciplinas (não-ortodoxas para esquerdistas).

A "Nova Direita" se desenvolveu em uma trajetória similar, tendo rejeitado o chauvinismo, a xenofobia e a orientação mercadológica da "velha direita" e descobrindo para si os valores da revolução e do socialismo. Mas os partidocratas soviéticos (futuros "democratas" ou "comunistas do PCFR") acusaram o "novo", tanto da direita como da esquerda, de "niilismo", enquanto eles próprios rapidamente afundavam o país em pântanos de "reformas" e traições nacionais. Novamente, como milhares de vezes na história, os verdadeiros niilistas acusaram de niilismo os que buscavam superar o niilismo.

O resultado foi triste. Sem a ajuda de Moscou, "novatos" inteligentes e honestos, porém impotentes, foram esmagados pelo Sistema. Debord cometeu suicídio, Foucault e Deleuze morreram no obscurantismo. Os outros se degeneraram em "policiais do pensamento" (Bernard Henri Levy, Glucksmann, Habermas e outros vermes). Sem o doloroso espírito da revolta flamejante, a própria Moscou escorregou para os braços do Governo Mundial.

Em tudo, sem qualquer Início, qualquer sugestão, qualquer chance. Na melhor das hipóteses, pessimistas inteligentes esperam que o desastre iminente será suave, como uma eutanásia. O que, em princípio, todos os "democratas" e "patriotas" tem contra o "homem unidimensional" de Marcuse? Como "os muitos" no início do "Zaratustra" de Nietzsche ansiando pelo "último homem", todos os setores de nossa sociedade colocariam o "homem unidimensional" no comando da "coalização governamental".

E as músicas de Bowie seriam ouvidas por ex-jovens (agora já na casa dos trinta), bebericando Heineken.

6 - Fim da Ilusão

Sem Alternativa, sem Novo Início. Nada fora (tudo ao redor é falso). Nada dentro (as forças da alma foram esfriadas). Não obstante, as vinhas da ira estão maturando e as redes de conspiração estão se tecendo, uma conspiração global contra esse presente odioso.

É uma conspiração da Estrela. Em qualquer idade, em qualquer lugar, em qualquer estado, em qualquer momento, em qualquer situação, em qualquer posição, "todo homem e toda mulher" pode começar, pode abrir o Início Absoluto, ser perfurado pelo Raio Negro, sem fim, passando pelos ciclos e eras em oposição a toda lógica, toda predisposição externa, todo sistema causal. Qualquer impulso vital, qualquer busca apaixonada, qualquer estado estridente pode subitamente transbordar, se tornado excessivo, desenfreado. Ganância e generosidade, ascetismo e devassidão, ciúme e lealdade, raiva e ternura, doença e saciedade, podem se tornar um Início Absoluto, um terrível acorde trovejante de uma Nova Revolução, uno e indivisível, direita e esquerda, exterior e interior.

Só é imperativo não permitir que após o ápice venha uma nova recessão. A intensidade só deve se elevar, após o clímax deve vir um clímax ainda maior, o superaquecimento das individualidades deve incendiar o mundo exterior com o fogo da rebelião, rebelião que é (segundo Sartre) o único poder capaz de salvar o homem da solidão.

O Início Absoluto é independente da objetividade, porque ele não tem noções de "cedo" ou "tarde", "aqui" e "lá". Melhor ainda se não houver "nada a oferecer, nada a tomar".

O fim do ciclo é, no fim das contas, o fim de uma ilusão, como disse Guénon.

A canção de Bowie acomapnha a leitura do "Livro da Lei" (Liber Al vel Legis), o amargor do absinto, que Crowley chamava de única substância iniciática entre as bebidas alcoólicas ("Deusa Verde"), um rebote inesperado de ero-comatismo, fanatismo belo e doloriso da célula política extremista, sombra acidentalmente caída, como uma Cruz Celta.

O Início Absoluto está à distância de uma mão (esquerda).
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