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Kerry Bolton - Soberania Financeira como Pré-Requisito para Soberania Política e Regeneração Cultural

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por Kerry Bolton

Tradução por Victor Cavalcanti



A menos que um Estado-Nação tenha controle sobre seu próprio sistema bancário e financeiro, falar de soberania nacional, tanto por algum movimento ou pelo governo, é vazio. Ainda que o setor bancário seja algo evitado, hoje, por muitos movimentos e pensadores como se fosse algo fora do domínio de preocupação tanto pela Esquerda ou pela Direita. De fato, a Esquerda raramente tocou no assunto, e continua a se recusar a fazê-lo, se contentando com os slogans banais sobre tributação e nacionalização de propriedade. Como o movimento socialista têm mostrado, nacionalização significa pouco e, frequentemente, nada no que diz respeito a garantir soberania financeira e, consequentemente, política. Frequentemente, um chamado “banco estatal”, como o Banco da Reserva da Nova Zelândia ou o Banco da Inglaterra, e muitos outros, dão a aparência de soberania financeira. Na realidade, não significam nada disso. Um banco estatal, como esses que são comuns, há muito tempo, nas sociais-democracias, meramente servem como meios pelos quais o Estado pede emprestado do setor privado e normalmente de setores financeiros internacionais.

Durante a Grande Depressão, bancos centrais eram promovidos como uma panaceia para os altos e baixos e para assegurar estabilidade econômica e financeira. Enquanto Paul Warburg, da dinastia bancária internacional Warburg, tinha previamente redigido a conta para o Banco da Reserva Federal dos EUA – e este era promovido como um “banco estatal” –, no começo da década de 1930, Otto Niemeyer do Banco da Inglaterra, percorria o Império Inglês promovendo a ideia de bancos estatais, como o Banco da Inglaterra. Estes seriam baseados em obrigacionistas privados. Na Nova Zelândia, o Banco da Reserva foi criado em 1933. Esse banco, como todos os bancos centrais do tipo, contudo, meramente serviu como um meio estatal de emprestar de fontes privadas. Historiador de Harvard e Georgetown, o Dr. Caroll Quigley, próximo de círculos governamentais, afirmou que o propósito desses bancos era “formar um sistema financeiro único em uma escala internacional, que manipulasse a quantidade e circulação de dinheiro, de tal forma que eles fossem capazes de influenciar, se não controlar, os governos de um lado e as indústrias de outro."(1)

O parlamentar Louis T. McFadden, que por dez anos serviu como Presidente do Comitê Parlamentar do Banco e da Moeda dos Estados Unidos, e foi também um banqueiro, expôs a natureza do Sistema de Reserva Federal e as operações do sistema internacional de débito e finanças em discursos no Congresso Americano. Em 1932, McFadden afirmou na Câmara, sobre Banco da Reserva Federal:

"Essa instituição maligna tem empobrecido e arruinado o povo dos Estados Unidos, têm levado a si mesma à falência, e praticamente levou à falência o nosso Governo. Ela fez isso através dos defeitos da lei sob a qual opera, através da má administração desta lei pela Reserva e através das práticas corruptas dos abutres endinheirados que a controlam. Algumas pessoas pensam que os Bancos da Reserva Federal são instituições governamentais dos Estados Unidos. Eles são monopólios privados, que predam o povo dos Estados Unidos para seus próprios benefícios e seus clientes estrangeiros; vigaristas e especuladores estrangeiros domésticos; e credores predatórios e ricos".(2)

Experiência da Nova Zelândia

Em 1936, O Governo Trabalhista da Nova Zelândia nacionalizou o Banco da Reserva, comprou os obrigacionistas privados e fez do banco um instrumento da política estatal. Como mencionado, a nacionalização, por si mesma, contudo, significa pouca coisa ou nada, se tal “banco estatal” meramente age como meio para emprestar crédito criado privadamente, e, portanto, meramente escora a dívida acumulada no sistema bancário internacional. O Primeiro Governo Trabalhista da Nova Zelândia foi eleito principalmente por causa da questão bancária. Ao contrário de hoje, as massas do povo entendiam as questões bancárias e financeiras muito mais profundamente do que nossos acadêmicos e economistas atuais. A Grande Depressão deu ímpeto para uma demanda mundial pela reforma bancária, antes da qual homens práticos como C. H. Douglas, na Inglaterra, que formulou a teoria do Crédito Social e ainda antes dele, o inventor Arthur Kitson; Gottfried Feder na Alemanha, que fez uma campanha pela “ruptura da escravidão dos juros”(3) e Silvio Gessell na Áustria, desenvolveram suas ideias sobre reforma bancária, as quais foram largamente aceitas.

O Governo Trabalhista da Nova Zelândia esteve entre os mais bem sucedidos em suas reformas bancárias, principalmente graças ao icônico político Trabalhista John A. Lee, um veterano de guerra de um braço só, que estava determinado a manter as promessas do Partido Trabalhista, apesar das tentativas de comprometê-las feitas por fabianos ortodoxos como o Ministro da Finança, Walter Nash. Desde 1933, após a Conferência do Partido Trabalhista, o partido adotou uma polícia pelo total e completo controle das “máquinas financeiras da nação”. Lee apontou que em outros países (Inglaterra e Austrália) onde o Trabalhismo tinha assumido o poder, eles recusaram-se a tomar tais medidas no que diz respeito às máquinas financeiras, e suas políticas ao lidar com a Depressão não deram em nada (4). Nos nove pontos sobre finança que saíram da Conferência do Partido em 1933, a primeira demandava “imediato controle pelo Estado de todo o sistema bancário. O Estado deve ter exclusiva autoridade na questão de crédito e circulação”. A questão de crédito seria baseada nas necessidades produtivas do país (5).

A função do Banco estabelecida na Seção 1 da Lei do Banco da Reserva era “regular e controlar o crédito e a moeda na Nova Zelândia” para o “bem estar econômico e social da Nova Zelândia”. O Banco assinaria embaixo de qualquer empréstimo que o Governo desejasse fazer, e o Tesouro tinha o poder de emprestar do Banco da Reserva o montante completo da renda estimada para o ano. O Banco também tinha o completo controle sobre a posse do câmbio da libra esterlina, o que Lee explicou como sendo de “vital importância” para controlar o “movimento internacional de capital financeiro gangster que pode ocorrer em tempos de emergência política” e pode “prejudicar o crédito externo de um país”. A subseção 3, cláusula 18 da Lei deu ao Governo autoridade sobre as operações dos bancos comerciais e eles respondiam ao Estado (6).

O sucesso da Nova Zelândia foi mais evidente e durou mais tempo na criação do crédito estatal do Banco da Reserva, emitido com 1% de juro, para o financiamento do programa estatal de habitação. Este programa não apenas proveu casas bem-construídas em seções de um quarto de acre com alugueis baixos, onde era habitual para as famílias plantarem suas próprias hortas e frequentemente criarem aves domésticas, como também a construção e o spin-off do programa proveu trabalho para 75% dos desempregados da Nova Zelândia. Uma injeção massiva de crédito estatal na economia significou que não havia dívida acumulada pelo Estado ou pelo povo, e que foi feito, além disso, sem causar inflação.

O Banco da Reserva também emitiu crédito estatal com baixos juros para a indústria de laticínios, e os lucros feitos pelo Estado nestes avanços foram relocados para um Fundo Consolidado voltado para a agricultura (7).

Em um documento do Governo, “Habitação Estatal na Nova Zelândia”, o projeto era explicado como se segue:

"Crédito do Banco da Reserva: para financiar suas propostas, o Governo adotou o método um pouco incomum de usar crédito do Banco da Reserva, reconhecendo, portanto, que o fator mais importante em custos de habitação é o preço do dinheiro – o juro é a porção mais pesada de um aluguel comum. O recém-criado Departamento (Ministério das Obras) foi, portanto, capaz de obter o uso dos fundos à menor taxa possível de juro, a taxa sendo de 1% para os primeiros 10 milhões de libras avançados, e um por cento e meio em próximos avanços. As somas avançadas pelo Banco da Reserva não foram registradas ou assinadas por outras instituições financeiras. Essa ação moldou a intenção do Governo de demonstrar que é possível para o Estado usar o crédito do país para beneficiar o próprio país. Essa medida pioneira pelo Governo Trabalhista, financiar um largo projeto estatal inteiramente com crédito estatal, foi bem sucedida sem ser acompanhada por inflação ou qualquer outro efeito colateral contrário nos quais os economistas ortodoxos insistiriam que aconteceria". (8)

A Nova Zelândia não foi a primeira nem a última nação a inaugurar um sistema bancário soberano, embora tenha durado pouco. Em Alberta, Canadá, ao mesmo tempo, um partido de Crédito Social foi eleito, e apesar de ter sido barrado em toda ocasião pelas Cortes, emitiu “Certificados de Prosperidade” (9). Antes disso, um esquema parecido foi tentado na pequena cidade de Woergle, na Áustria, e ao fazer isso, essa comunidade se livrou da miséria, mas então foi obrigado pelo Governo a descontinuar seus planos e foi jogada de volta à miséria(10). Durante a década de 1930, comunidades nos EUA arquitetaram seus próprios esquemas. Embora não seja politicamente ou academicamente conveniente dizer isso, mas a Alemanha, Itália e Japão, todos eles, conseguiram superar a Depressão ao trazer o sistema bancário sob o controle do Estado e emitindo crédito estatal para obras públicas. Eles fizeram em larga escala o que a Nova Zelândia fez em uma escala limitada (11).

O milagre que foi a Argentina de Perón foi atingido, em medida significante, pelo entendimento peronista de que a soberania nacional não pode ser atingida sem soberania econômica. Isso é, por sua vez, um pré-requisito primário para o objetivo peronista de justiça social como o fator unificante para qualquer nação genuína. Perón afirmou, “no sistema capitalista, a moeda é um fim e não um meio, e seu valor absoluto a tudo subordina, incluindo o homem”(12). O Dr. Arturo Sampay, projetista da constituição peronista de 1949, um acadêmico legal e internacionalmente aclamado, sucintamente explicou, após a destituição de Perón:

"A maneira moderna com a qual um país desenvolve a economia não é mais através anexação pura e simples de território, como era o método durante os séculos dezoito e dezenove, mas através do manejo do seu próprio crédito e moeda. De fato, o desenvolvimento de um país é através da política de investimento. Quem quer que dê as ordens sobre crédito e sobre expansão ou contração do fornecimento de dinheiro, controla o desenvolvimento do país (13)".

O assessor econômico de Perón, Arturo Jauretche, deu um relato detalhado sobre a importância do crédito estatal, incluindo sua relação com a soberania nacional, dizendo que a nacionalização bancária é “fundamental para implementação de uma política nacional”.

Quem administra o crédito controla mais do que apenas a emissão da moeda. Ao controlar o crédito, o comércio de exportação e importação também é controlado. O controle do crédito pode encorajar certas formas de produção e enfraquecer outras; determinar o que deve ser produzido e o que não deve, o que pode e o que não pode chegar aos mercados, e consequentemente as vendas e o consumo também é controlado (14).

Jauretche explicou com exatidão o caráter orgânico do crédito, como sendo nada mais do que um meio para a troca, um método conveniente de permutação de bens e serviços:

"O segredo da prosperidade ou do declínio, desenvolvimento ou atraso, está nos bancos. As leis e organizações empresariais são apenas a anatomia da sociedade econômica. Mas o dinheiro é a fisiologia do comércio de uma sociedade. O dinheiro é o sangue circulando por dentro, e o preço do dinheiro, sua abundância ou escassez, é determinada pelo sistema bancário (15)".

Contudo, crédito e moeda têm se tornado comodidades em si mesmas, compradas e vendidas com lucro (usura). Sem o entendimento desta premissa, todo o resto é loucura em termos de política, economia e até arte e moralidade. A questão é a subordinação do papel do dinheiro; quase literalmente como destronar o culto a Mammon.

Jauretche também explicou como bancos criam crédito quando afirmou, “Bancos criam dinheiro através de crédito, porque o crédito é convertido de depósitos múltiplas vezes, e a abundância ou escassez de dinheiro sólido em circulação é uma reflexão do número de vezes que um banco multiplica sua capacidade de empréstimo”. Isso é chamado de “banco da reserva fracional” e têm sido o método de criação de crédito por séculos, permitindo bancos privados criarem crédito que só é suportado por uma fração do montante das reservas reais que os bancos têm em mãos. Sempre que um depósito é feito por um cliente do banco, o banco é capaz de criar e emprestar crédito muito mais vezes do que o montante depositado. O banco, então, taxa juros (usura) naquele crédito. Portanto, o devedor deve pagar com riqueza real – criado pelo seu próprio trabalho –, não apenas o valor do empréstimo que foi criado, do nada, por um registro em um livro de contas (ou um computador), mas também o juro adicionado. É assim que o sistema internacional bancário funciona. Quando uma nação se torna tão endividada que não pode mais manter o pagamento de juros em empréstimos, ela deve ou cancelar os demais empréstimos para pagar empréstimos passados, ou deve começar a vender bens estatais e recursos, em um processo que é frequentemente chamado de “privatização”, e adotar “medidas de austeridade”, que causam desarticulação social, estagnação econômica e pode ser um meio pelo qual a finança internacional derruba governos inconvenientes através de “revoluções espontâneas” bem planejadas e financiadas. Nós vimos isso acontecer por muitas décadas por todo o mundo ocidental, e desde a implosão do bloco soviético, nos antigos estados soviéticos. O resultado é a “globalização” e a concentração crescente de riqueza por oligarcas e plutocratas. Esses estados que resistam ao processo são frequentemente bombardeados até a submissão, e seus chefes de estado são demonizados, presos ou linchados em nome da “democracia” e dos “direitos humanos”.

O professor Carroll Quigley explicou também o mecanismo de criação de crédito e seu desenvolvimento histórico:

"Cedo ficou claro que o ouro precisa estar em mãos apenas para uma fração dos certificados para poder ser apresentado como pagamento... Em efeito, a criação de crédito em papel maior do que a reserva disponível significa que os banqueiros estavam criando dinheiro do nada. A mesma coisa poderia ser feita de outra forma. Os banqueiros descobriram que remessas e cheques sacados sobre depósitos por depositantes e transferidos para uma terceira pessoa frequentemente não eram convertidos em dinheiro pelos últimos, mas eram depositados em suas próprias contas. De acordo com isso, foi necessário aos banqueiros ter em mãos em dinheiro real não mais do que uma fração dos depósitos que provavelmente seriam sacados e convertidos em dinheiro, o resto poderia ser usado para empréstimos, e se esses empréstimos eram feitos ao criar uma conta (para depositar) para o mutuário, que, por sua vez, sacaria cheques dela ao invés de retirar dinheiro, esses depósitos ou empréstimos criados também poderiam ser cobertos adequadamente ao manter a reserva a apenas uma fração do seu valor. Esses depósitos criados também eram uma criação de dinheiro a partir do nada...  William Patterson, contudo, ao obter a Carta Régia do Banco da Inglaterra em 1694, disse: 'o banco tem o lucro sobre o juro de todo o dinheiro que ele mesmo cria a partir do nada'". (16)

Perón conta que em 1946 uma delegação do Fundo Monetário Internacional estava pronta para visita-lo quando ele foi eleito. A sua rejeição à filiação da Argentina ao FMI também estava pronta. Ele afirmou, entre os motivos:

"Para nós, o valor da nossa moeda estava fixada no país, e nós estávamos estabelecendo taxas de acordo com nossas necessidades e conveniências. Para o câmbio internacional nós recorremos à troca e, assim, a nossa moeda real foram as nossas mercadorias. A realidade permanente das manobras monetárias internacionais de todos os tipos, nas quais o sistema insidioso foi criado, não nos deram qualquer outra saída caso não quiséssemos ser roubados com impunidade". (17)

Mammon versus Cultura

Ezra Pound, e o poeta neozelandês Rex Fairburn, ambos se tornaram interessados em Crédito Social mais ou menos ao mesmo tempo e pelas mesmas razões. Como Perón, Sampay e Jauretche em sua rebelião contra a plutocracia após a Segunda Guerra Mundial, os dois poetas perceberam que a questão do desenvolvimento maior do homem, que quer dizer, sua cultura, está impactada pelo materialismo, representado pelo papel do dinheiro. Oswald Spengler apontou, no resultado da Primeira Guerra, que a Civilização Ocidental estava em declínio há séculos, e que a guerra trouxe a questão ao ponto da crise. Ele viu a plutocracia reinando por trás da social-democracia. Olhando para os ciclos análogos de civilizações anteriores, Spengler afirmou que o dinheiro reina durante épocas de decadência, antes de uma reação que supere a plutocracia(18).

Esta destruição do dinheiro era chamada de “Socialismo” por Spengler, um conservador, enquanto todo pensamento que colocava o dinheiro no centro era tratado por ele como capitalista, incluindo o comunismo, que não visa transcender o pensamento monetário, mas expropria-lo. Desta maneira, nós devemos entender como os poetas Pound e Fairburn viram uma terceira via que poderia superar o reino do dinheiro e retornar a um estado-cultura. Pound se voltou para o “Fascismo” porque ele pensou que tal militância era precisa para derrubar a plutocracia. Fairburn considerou o Crédito Social como suficiente. Na Inglaterra, o Crédito Social surgiu de uma forma militante com os Camisas Verdes, dos quais as formações paramilitares, comícios, marchas e arremessos de tijolos pintados de verde em janelas de bancos, viram um lugar além do Partido Comunista e dos Camisas Negras de Mosley.

O papel do dinheiro na Decadência Cultural

Contudo, antes de Spengler, existiu a Lei da Civilização e da Decadência, de Brooks Adams, agora pouco conhecida, a qual Ezra Pound recomentou como essencial para entender as causas do declínio e da destruição da cultura. Adams pode ser lido proveitosamente junto com Spengler. Adams esboça a força enervante do dinheiro na estética e moralidade de uma Civilização. Adams defendia que “o comércio é antagonista à imaginação”. Onde um estado é comercialmente baseado, como são a maioria dos estados do mundo atualmente, a estética estagna. Consequentemente, a grande era Gótica que sintetiza o florescer da Civilização Ocidental (que Spengler chamou de época da “Primavera”) não se desenvolveu nas cidades-estados de Veneza, Genoa ou Florença, “nem qualquer escola pura de arquitetura prosperou na atmosfera mercantil”(19). Os efeitos enervantes, causados pela energia gasta em atividades mercantis são explicados em termos que se encaixam bem com as conclusões de Spengler sobre o papel do pensamento-monetário no ciclo-final de uma Civilização. Adams escreve:

"Sempre que uma raça é tão ricamente dotada com o material energético que não gasta toda a sua energia com a luta diária da vida, o excesso pode ser armazenado em forma de riqueza; e esse estoque de energia armazenada talvez seja transferida de comunidade para comunidade, talvez por conquista, ou por superioridade na competição econômica. Por maior que seja o estoque de energia acumulada por conquista, uma raça deve, cedo ou tarde, alcançar o limite de sua energia bélica, quando entra na fase de competição econômica".

Mas, como o organismo econômico difere radicalmente do emocional e bélico, o efeito da competição econômica têm sido, talvez invariavelmente, dissipar a energia acumulada pela guerra.

Quando a energia excedente foi acumulada em tal ponto de superar a energia produtiva, ela se torna a força social controladora. Daí em diante, o capital é autocrata, e a energia se concentra nos organismos melhor equipados para dar expressão ao poder do capital. Neste último estado de consolidação o intelecto econômico, e, talvez, científico, é propagado, enquanto a imaginação se esvai, e os tipos artísticos, emocionais e bélicos de humanidade decaem. Quando a celeridade social foi atingida em tal ponto que o desperdício de material energético é tão grande que os estoques imaginativos e bélicos falham em reproduzir-se, a competição intensa aparece para gerar dois tipos econômicos extremos – o usurário em seu aspecto mais formidável e o camponês, do qual o sistema nervoso é mais bem adaptado para prosperar em nutrição escassa. Por fim, um ponto deve ser atingido quando a pressão não pode ir mais além, e então, talvez, um dos dois resultados se segue: um período estacionário talvez sobrevenha, o que talvez dure até que seja acabado pela guerra, pela exaustão ou pelos dois combinados, o que parece ter sido o caso do Império Romano Oriental; ou, como aconteceu com o Ocidental, a desintegração pode se estabelecer, a população civilizado talvez pereça, e uma reversão pode tomar lugar em uma forma primitiva de organismo.

A evidência, contudo, parece apontar para a conclusão de que, quando uma sociedade muito centralizada se desintegra, sob a pressão da competição econômica, é porque a energia da raça foi esgotada. Consequentemente, os sobreviventes de tal comunidade faltam com o poder necessário para uma concentração renovada, e devem provavelmente permanecer inertes até que sejam supridos com material energético fresco pela infusão de sangue barbárico(20).

Onde um povo falha em ser revigorado com “sangue barbárico”, e continua estagnado, eles são o que Spengler chamou de Fellaheen, não mais dentro do escopo da história, inerte de século a século, a massa campesina e urbana habitando dentro das sombras da ruína do que foram, antes, grandes monumentos. Ezra Pound e Fairburn perceberam que, da perspectiva estética, existe mais a ser contribuído para a questão econômica do que da economia ou política por si mesmas. T. S. Elliot também defendeu a reforma econômica, como também o fez Hilaire Belloc e G. K. Chesterton, enquanto outros esteticistas, como W. B. Yeats e D. H. Lawrence, que se rebeleram contra a ignorância dos tempos, o fizeram sem perceber os fatores econômicos envolvidos. Fairburn e Pound sabiam exatamente quais processos estavam em jogo na corrosão do organismo cultural.

O “Com Usura” (Canto XLV) de Pound, reflete lucidamente a maneira pela qual a primazia do dinheiro, como mostrado por Spengler e Adams, intervém na cultura de uma sociedade, agindo como um contágio do organismo social, no trabalho, ofício, arte, religião e tudo o mais associado com a Alta Cultura: 

Com usura, nenhum quadro é feito para durar e viver conosco,
mas é feito para vender, e vender rápido...
Quem lavra a pedra é afastado da pedra
O tecelão é afastado do tear...
COM USURA
A lã não chega ao mercado
A ovelha não dá lucro com usura...
A usura enferrujou o cinzel
Enferrujou a arte e o artesão...(21)

Pound afirmou sucintamente em uma seção de três sentenças sobre Kulturmorphologie em um panfleto escrito em Roma em 1942: “Para repetir: um especialista, olhando para uma pintura (de Memmi Goya, ou qualquer outro) deveria ser capaz de determinar o nível de tolerância de usura na sociedade na qual ela foi pintada”(22).

Fairburn escreveu um poema sobre temas muito similares aos “Com Usura” de Pound, mas inteiramente independentemente, em seu “Dominion”:

"A casa dos governantes, guardada por eunucos, e sobre o arco do portão essas palavras gravadas: AQUELE QUE CONTESTA OS USURÁRIOS PÕE EM RISCO O ESTADO".

Dentro dos portões, o séquito do mal, os instrumentos dos governantes: crostas retiradas dos corpos dos capitães escravizados bem-pagos e cabos do exército do privilégio partindo o pão da tirania, vestindo a farda da extorsão; e aqueles que mantêm os registros do declínio, estaticistas e arquivistas, virando as páginas com mãos frias, computando a nossa ruína em algemas perfumadas. Para os escravizados, o trabalho árduo; o dever e adoração do deus-esmeril; a apoteose dos meios, a profanação dos fins; a degradação da hoste dos vivos; a celebração de uma missa negra que projeta a sombra de uma missa vermelha.

Essa é a nossa cidade de papel, construída no solo da dívida, mantida contra todos os ventos pelo peso-de-papel da dívida. As multidões passam lentamente, ou param e observam, e aqui e ali, com olhos lentos, o ócio está aglomerado nas bocas das lojas de gramofone em um retumbar de música que enche o ar amarrotado com flores de papel e aromas artificiais e paixões sem dores em um paraíso de amor imaginário(23).

O Desafio dos Tempos: destruir Mammon

Com os EUA, cuja fundação começa com Puritanismo, um edifício foi construído que combinava messianismo com o conceito de lucro como Divino. A cultura da América foi distorcida como consequência, e hoje está no fundo da depravação, como uma epidemia global proclamadas como tal por fanáticos neoconservadores, como o Tenente-Coronel Ralph Peter, e promovida pelo Departamento de Estado dos EUA em aliança com uma miríade de ONGs ao redor do mundo (24). Pretendem que o mundo inteiro seja recriado nesta imagem, no “solo da dívida e aromas artificiais”, como Fairburn coloca.

O Sr. E. Fyodorov, do grupo parlamentar russo “Nossa Soberania”, e o Movimento da Liberação Nacional, aludiram à necessidade de nacionalizar o Banco Central da Rússia, o qual, ele declara, não responde ao presidente ou ao Estado. Ele afirma que “a maioria dos problemas” da Rússia estão relacionados com o Banco Central, baseado em uma constituição que foi esboçada por conselheiro dos EUA, permitindo influência externa política e econômica (25). Fyodorov expressou um discernimento raro ao dizer que “a maioria dos problemas” se centraliza ao redor do sistema bancário. Isso se aplica não somente à Rússia, mas também para a maioria do mundo, desde que o mesmo sistema opera globalmente. O banco central estatal da Nova Zelândia foi pelo mesmo caminho de ser separado do parlamento. Portanto, mais do que “nacionalização” é preciso. O Banco da Reserva da Nova Zelândia permaneceu nacionalizado por oito anos. Foi apenas separado do parlamento sob a Lei do Banco da Reserva em 1989. Até aquele tempo, existia para implementar a política econômica estatal. Contudo, como John A. Lee lamentou desde o começo, este banco nacionalizado nunca libertou a Nova Zelândia da finança internacional, apesar da emissão de crédito estatal para alguns projetos públicos. As intenções foram comprometidas pelo partido que nacionalizou o banco.

Até que chegue o momento em que um estado tenha lideres de vigor que vão quebrar as amarras da finança internacional e seus tentáculos infiltradores, faz pouca ou nenhuma diferença se um banco é nacionalizado ou privatizado. Também até que chegue este momento, qualquer discussão sobre soberania nacional real é nada mais do que retórica. Uma vez que o banco central russo é nacionalizado, a próxima tarefa é assegurar que o Estado russo assuma a prerrogativa e a tarefa de criar e emitir o seu próprio crédito.

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(1) - C. Quigley, Tragedy and Hope, New York, Macmillan Co., 1996, p. 51.
(2) - Louis T. McFadden, United States Congressional Record, United States Government Printing Office, Washington, DC, 10 June 1932, p. 12595
(3) - G. Feder, “Manifesto for the Breaking of the Bondage of Interest”, Munich 1917. Mesmo ano em que Douglas formulou Crédito Social. Feder afirmou que “dinheiro não é e não deve ser nada além de um câmbio em troca de trabalho”.
(4) - John A. Lee, Money Power for the People: A Policy for the Future Suggested, Lee, Auckland, 1937), p.2.
(5) - Ibid., p.3
(6) - Ibid., pp. 6-7.
(7) - Lee, 1937, p.8.
(8) - C. Firth and G. Wilson, “State Housing in New Zealand”, Ministry of Works, Government Printing Office, Wellington, 1949.
(9) - K. R. Bolton, The Banking Swindle, London, 2014, p.10.
(10) - Bolton, ibid., pp. 84-86
(11) - Bolton, ibid., pp. 103-117.
(12) - Juan Peron, “Banking and Credit”, Buenos Aires, ca. 1951.
(13) - Sampay citado por Bolton, Peron and Peronism, London, 2014, p.
(14) - Arturo Jauretche, “On the Nationalisation of Banks”, 9 February 1960.
(15) - Jauretche, ibid.
(16) - Carroll Quigley, Tragedy and Hope, Macmillan Co., New York, 1966, p. 48.
(17) - Juan Peron, “Argentina and the International Monetary Fund”. Cited in Bolton, Peron and Peronism. A maneira pela qual os EUA minou a economia da Argentina e bloqueou as exportações da Argentina para a Europa é explicado neste livro do escritor, Peron and Peronism.
(18) - Oswald Spengler, The Decline of the West, George Allen & Unwin, London, 1971, Vol. II, Chapter XIII, “The Form-World of Economic Life”.
(19) - Brooks Adams, The Law of Civilization and Decay, Macmillan, London, 1896, vi. http://www.archive.org/details/lawcivilization00adamgoog
(20) - Brooks Adams, x.
(21) - E. Pound, Ezra Pound: Selected Poems 1908-1959 (London: Faber & Faber, 1975), “Canto XLV: With Usura”, pp. 147-148.
(22) - Ezra Pound (1942) A Visiting Card, Peter Russell, London, 1952, p.25.
(23) -  A. R. D. Fairburn, (1938) “Dominion” I and IX, http://www.nzepc.auckland.ac.nz/authors/fairburn/dominionfull.asp
(24) - K. R. Bolton, Revolution from Above, Arkots. 2011.
(25) - E. Fyodorov, “The National Liberation Movement in Russia Today”, Journal of Eurasian Affairs, Vol. 2, no. 1, 2014, p.18.


Ian Almond - Assistência Britânica e Israelense às Estratégias Americanas de Tortura e Contra-Insurgência na América Latina e Central, 1967-96: Um Argumento Contra a Complexificação

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por Ian Almond



Ainda que o papel dos EUA em apoiar os movimentos, governos e ditaduras antidemocráticos e contrarrevolucionários que floresceram na América Latina dos anos 60 aos anos 90 seja bem conhecido, esse artigo examina o apoio fornecido aos EUA por outros países. Esse apoio foi fornecido principalmente por Israel e pelo Reino Unido, mas outros países estiveram também envolvidos, tais como África do Sul, Taiwan, França e até Arábia Saudita. O artigo afirma que um esquema material cristalino subjaz a assistência dada por esses países. Ele também identifica um número de razões históricas e culturais pelas quais governos antidemocráticos na América Latina encontraram empatia política particular em Israel.

Na verdadeiramente enorme perda de vidas civis que acompanhou as várias campanhas de contra-insurgência sustentadas pelos EUA que ocorreram em países da América Latina como Chile, Colômbia e Guatemala durante as décadas de 70 e 80, notavelmente pouco mencionada é a participação significativa de outros países junto aos EUA - nomeadamente Israel e Reino Unido, mas também França, Taiwan, África do Sul e até Arábia Saudita. É a natureza policentrada desse relacionamento que forma o foco desse artigo.  Eu afirmo que foi o conluio de objetivos e armas, ou o que um porta-voz de Reagan chamou de "uma convergência de interesses", que uniu estratégias israelenses, sul-africanas, britânicas e americanas em linha com os desejos das elites financeiras e militares da América Latina.

Ainda que "complexificação" descreva qualquer ato ou processo que torne uma situação mais complexa, eu decidi reempregar a palavra mais cinicamente nesse artigo. "Complexificação" aqui se refere a qualquer abordagem que exiba as seguintes características em sua análise de um conflito:

* Reúne um grande número de diferentes fatores e variáveis;
* Nivela ou reduz significativamente qualquer grau de importância relativa entre os muitos fatores citados;
* Conclui da pletora de fatores examinados que nenhuma causa singular ou abrangente pode ser identificada.

Meu uso do verbo "complexificar", portanto, se refere a um processo de despolitização, que se torna tão metafisicamente sobrepujado com uma abundância de detalhes, contextos e atores individuais que deixa de lado - ou não quer ver - padrões mais profundos, como palimpsestos, sob a teia de perspectivas.

O oposto de "complexificação" não é "simplificação" ou "explicação monocausal", mas sim uma compreensão mais cuidadosa dos elos dentro da delineação de complexidades. Ao longo dos anos 80, o fato de que a direita guatemalteca se referia às revoltas indígenas como a "palestinização" das regiões rurais ilustra não a ironia da metáfora, mas a assistência bastante real que Israel forneceu ao exército guatemalteca em sua repressão das rebeliões (Black, 1984, p. 154). Quando guerrilheiros esquerdistas em El Salvador sequestraram o embaixador sul-africano em 1979, entre suas demandas estava um rompimento dos laços diplomáticos com Tel Aviv e Cidade do Cabo, e um reconhecimento da Organização para a Libertação da Palestina (Bahbah, 1986, p. 149). Quando mercenários britânicos lutaram junto a soldados sul-africanos na Angola nos anos 70, muitos dos assessores militares israelenses que os treinaram reapareceriam depois nas oficinas militares e desfiles da América Central, educando oficiais e soldados de um grande número de países latino-americanos em técnicas de tortura, uso de armas de fogo e táticas gerais de contra-insurgência. Essa pletora de diferentes atores nacionais não constitui uma rede desesperadoramente intratável de complexidades, mas sim uma amplitude de fenômenos que ainda assim observa um padrão geral definido e substantivo.

Explicações Simplistas do Envolvimento Estrangeiro na América Latina

Uma explicação simplista para os exemplos supracitados seria uma marxista vulgar: nações capitalistas do primeiro mundo e os Estados-pária que eles apoiam entusiasticamente trabalham junto às elites dos países em desenvolvimento para militarizar suas infraestruturas sempre que o proletariado nessas regiões ameacem desestabilizar as plutocracias que o capital internacional considera tão amistosas. Tal formulação, porém, inevitavelmente encontra dificuldades na negociação de pelo menos quatro fatores de complicação.

Primeiramente, há exemplos suficientes de tensão entre Estados-Nação social-democráticos durante esse período para demonstrar que, longe de trabalharem junto harmoniosamente, as relações entre economias capitalistas, e mesmo aliados da Guerra Fria, foram difíceis e ocasionalmente mesmo hostis. Similaridade ideológica não era garantia automática de colaboração política. Isso poderia ser também estendido a países da América Latina: a perseguição paralela de Galtieri e Pinochet à esquerda em seus respectivos países não os impediu de planejar ações militares um contra o outro. Nem o apoio militar e financeiro generoso dos EUA impediu o nacionalismo de generais guatemaltecos como Victores e Montt de se expressar em momentos de anti-americanismo (Black, 1984, p.6).

Em segundo lugar, cada um desses jogadores continha mecanismos de dissenso e faccionalismo. Data vênia a Chomsky (1996), as diferenças entre as administrações Reagan e Carter em sua atitude em relação a América Central, por exemplo, ainda foram significativas. Falar de países como a Guatemala ou o Reino Unido como entidades monolíticas é ignorar as complexidades consideráveis dentro de suas estruturas. As disputas militares internas que provocaram a sequência de golpes na Guatemala - Lucas Garcia, Montt e Victores - dá testemunho de uma série de tensões não facilmente resumida pelo termo guarda-chuva "regime". Similarmente, não consegue registrar as várias disputas dentro do partido trabalhista britânica pelas vendas de armas à América Latina, ou os representantes israelenses de esquerda que se encontraram com o novo governo sandinista na Nicarágua (Phythian, 2000, p.107 ff; Klich, 1990, pp. 69-74). Essas instâncias problematizam a demonização de entidades supostamente homogêneas como atores "britânicos" ou "israelenses".

Em terceiro lugar, tentativas reducionistas de dividir conflitos em grupos de "opressores" e "oprimidos" encontram dificuldades quando estes se revelam internamente fraturados e divididos. Forças sul-africanas lutaram junto a um grupo angolano (UNITA) contra outro (MPLA); na Colômbia, guerrilhas anti-governo se dividiram em pelo menos três facções principais (FARC, ELN, M-19), enquanto a população indígena considerável da Guatemala provavelmente oferece o exemplo mais notável de noções problemáticas de vitimização, com tensões não apenas evidente entre os maias e os ladinos no movimento de resistência, mas também no papel desempenhado pelos soldados indígenas nas atrocidades do exército guatemalteco (Schirmer, 1998, pp. 81-103; Garrard-Burnett, 2010, pp. 98-107).

Um quarto fator que poderia complicar noções simples de "Estados capitalistas" em conluio uns com os outros seria uma insistência na dimensão puramente monetária dos treinamentos e vendas de armas. No caso de Israel, isso significaria apontar não apenas como o Estado israelense parecia disposto a vender armas a quase todo mundo - a República Popular da China foi um de seus maiores clientes nos anos 80 (Beit-Hallahmi, 1987, pp. 36-7) - mas mais importantemente como uma proporção considerável do treinamento e assistência dadas foi de forma mercenária, através de figuras como o infame Yair Klein e sua companhia Spearhead Ltd., que treinou esquadrões paramilitares de extermínio na Colômbia nos anos 80. A presença de mercenários em pelo menos alguns dos conflitos desses países - Angola, Guatemala, Colômbia - sugeriria uma série de iniciativas comerciais individuais, mais do que uma aliança de "nações capitalistas" trabalhando para esmagar um proletariado global insurgente.

Apesar da validade relativa desses quatro fatores de complicação, eu afirmarei que eles não perturbam fundamentalmente um padrão geral de interesses convergentes no exame da assistência militar britânica e israelense às estratégias americanas em países como Guatemala, Colômbia e Chile. As complexidades que esses quatro fatores trazem às análises são substanciais; sua incorporação é uma pré-condição para compreender como um termo como "opressão global" faz sentido. Não obstante, a extensão surpreendente, e às vezes até extraordinária, com a qual armas e militares desses países diferentes podiam ser encontrados operando um ao lado do outro parece reforçar a figura mais ampla de social-democracias capitalistas, trabalhando com elites locais, para impedir o aparato do capital internacional de ser perturbado por qualquer versão do proletariado que estivesse ameaçando fazê-lo - fossem palestinos, namíbios, camponeses indígenas ou sindicatos. Nas partes seguintes, detalharemos alguns desses momentos.

Assistência Militar Britânica a Regimes na América Latina e Central

No que concerne intervenções estrangeiras na América Latina, os EUA teve um papel tão proeminente e visível na derrubada de governos "inadequados" e no financiamento de regimes alternativos que uma patente falta de atenção pode ser vista em relação aos interesses de outros países no continente, tais como os de Israel e do Reino Unido. A maioria dos seguidores de tais histórias estarão conscientes, por exemplo, do papel central desempenhado por Kissinger e pela CIA na derrubada do governo socialista de Allende e no bombardeio do palácio presidencial em Santiago, tudo servindo para instalar o ditador pró-americano, Augusto Pinochet, em 1973. Porém, relativamente poucos historiadores estarão conscientes de que, no bombardeio assassino do Palácio Moneda, um caça Hunter britânico desempenhou papel vital no ataque (Becket, 2003, pp. 90-1)

A Grã-Bretanha, tanto como Estado mas também menos oficialmente como fornecedor de mercenários e armas, desempenhou um papel considerável no estabelecimento e manutenção de ditaduras militares na América Latina e Central do pós-guerra (Phythian, 2000, p. 105). Como veremos na próxima parte, nós temos relatos de mercenários britânicos treinando paramilitares na Colômbia (Castano, 2001, p.12). Até a guerra de 1982 com a Argentina, tanto os governos trabalhista como conservador foram fornecedores entusiásticos de mísseis Sea Cat e destróieres para o regime militar argentino. De fato, a última venda ocorreu 10 dias antes do início da guerra (Phythian, 2000, pp.123, 125). O Brasil, um país que viu um golpe apoiado pelos EUA em 1964, foi o maior comprador de armamento britânico durante os anos 70, comprando três vezes mais que Argentina ou Chile (Phythian, 2000, p.135). Nós temos até mesmo uma raríssima instância de insatisfação popular de igrejas, sindicatos e da mídia britânica impedindo a venda de equipamento militar a uma ditadura direitista - dessa vez a de El Salvador, que em 1977 tentou comprar uma dúzia de blindados Saladin do Reino Unido, mas encontrou um governo britânico incapaz de vendê-los por causa da intensa pressão pública (ibid, pp. 137-40).

O caso da relação britânica com o Chile, porém, provavelmente é o único exemplo de interesse britânico na América Latina que uma audiência mais ampla chegaria a conhecer, primariamente por causa da prisão judicialmente sem precedentes de Pinochet no Reino Unido em 1998. O historiador militar Mark Phythian foi o mais eficaz cronista das relações anglo-chilenas durante os anos 70 e 80, registrando uma sequência cada vez maior de acordos, negações, conluios e tensões internas cuja história basicamente nos ensina três coisas. Primeiramente, revela que a assistência britânica forneceu à ditadura de Pinochet não apenas foi implementada pelo Estado, como também endossada em cada nível até o escritório do próprio Primeiro-Ministro. No ano de 1974 apenas, tempo em que a recém-instaurada ditadura já havia assassinado ou "desaparecido" duas mil pessoas (Wright, 2007, p. 55), 53 oficiais da Marinha Chilena e 223 marinheiros visitaram a Grã-Bretanha para cursos de treinamento naval (Phythian, 2000, p.114). Bases aéreas como a Bracknell da RAF foram usadas para treinar pilotos chilenos. No início dos anos 80, tanto armamento estava sendo levado ao Chile que o Aeroporto Luton (no Reino Unido) tinha um "Armazém Chileno" especial. Aviões britânicos eram levados ao Belize, e então repintados com insígnias da Força Aérea Chilena para fazerem voos de reconhecimento sobre a Argentina (ibid., 116). Tirando essas substanciais vendas de armas (o Reino Unido havia efetivamente fornecido a maior parte da Marinha Chilena) e treinamento de pessoal militar, a colaboração ativa do governo britânico com a ditadura de Pinochet não concordava apenas em exercer autonegação moral, mas cooperava ativamente com as piores atrocidades do regime. Tão somente três meses após as covas anônimas de mais de 600 mortos terem sido encontradas no cemitério de Santiago, o Ministro de Relações Exteriores britânico afirmou que a situação de direitos humanos estava melhorando (ibid., 114). Ainda pior, telegramas da embaixada britânica ao ministério indicaram que um negócio havia sido fechado: Pinochet permitiria à SAS britânica estabelecer bases aéreas em solo chileno, e em retorno o governo britânico forneceria mais armas, silenciaria críticas aos direitos humanos e trabalharia ativamente para solapar a investigação da ONU sobre torturas e desaparecimentos que proliferavam sob o regime.

Um segundo ponto que emerge dessa mini-história é até onde as empresas britânicas trabalharam para lubrificar as relações de seu país com Pinochet. Em 1975, a Grã-Bretanha era o principal credor do Chile após os EUA, somando 14 milhões de libras (ibid, p.110). Como Phythian (2000) aponta, a visita da Ministra do Comércio Cecil Parkinson em 1980 foi o prenúncio do próprio aquecimento da administração Reagan às relações comerciais e militares após a Proibição Carter ter sido derrubada (ibid, p. 116). Dois anos mais tarde, quando o DINA de Pinochet (a política secreta chilena) havia assassinado mais de mil pessoas, outra delegação comercial britânica declararia que o Chile era uma "força moderada e estabilizadora" (ibid, p. 118; ver também Wright, 2007, p. 80). Uma anotação de 1987 de um diário pertencente ao Ministro do Comércio Alan Clark do Reino Unido, expressa sucintamente quão preocupado o governo britânico estava com as torturas e abusos do regime Pinochet:

"Hoje mais cedo um esquisito oficial, que está 'encarregado' (Deus nos ajude) da América do Sul, veio me passar um relatório antes de minha ida ao Chile. Tudo lixo sobre direitos humanos. Nem uma palavra sobre os interesses britânicos" (Citado em Phythian, 2000, p.122).

A história de como a ditadura pró-americana chilena iniciou uma era de políticas econômicas neoliberais foi contada inúmeras vezes (mais recentemente, Klein, 2007). Contra esse pano-de-fundo - isto é, o uso aparente de ditaduras para limpar o caminho para projetos econômicos de livre-mercado - a famosa amizade entre Pinochet e Thatcher não era meramente uma de realpolitik, como Thatcher costumava dizer, mas também uma nascida da afinidade ideológica. Ainda que este último ponto se tornasse menos verdadeiro conforme as relações do Chile com os EUA deterioraram nos anos 80 - e sua aproximação com o Reino Unido se fortaleceram por causa do conflito das Malvinas com a Argentina - é justo ver os interesses econômicos, principalmente no reino das vendas de armas, como uma força impulsora na manufatura de intimidade entre esses dois governos de direita.

Porém, o que o "oficial esquisito" da passagem do diário de Alan Clark também revela é a existência de tensões internas significativas dentro dos governos conservador e trabalhista em relação a venda de equipamento militar e treinamento para ditaduras brutais. Emergindo mais claramente dos vários cabos entre elementos internos dentro do governo britânico - o Ministério do Exterior e a embaixada britânica -e há um grau de ansiedade sobre o fornecimento de tais regimes, mais do que quaisquer reservas éticas genuínas. No início do conflito das Malvinas, editores de jornais britânicos receberam pedidos do governo para não mencionarem o relacionamento de seu país com o Chile (Phythian, 2000, p.110). A tentativa de compra de 300 blindados Centaur pelo regime Pinochet em 1984 causou consternação pouco usual, já que ela coincidia à época com uma nova onda de repressão a esquerdistas, estudantes e sindicatos. Um parlamentar conservador britânico visitando o Chile naquele ano insistiu, em uma declaração para a imprensa que quase parecia tentar convencer a si mesmo tanto quanto a audiência, que:

"Os chilenos me disseram que eles os queriam para usar no deserto ao norte e nas áreas pantanosas no sul e não para usar contra seu próprio povo... o Centaur é simplesmente um caminhão; não é certamente nada como aquele horrível veículo AMAC que o governo proibiu que fosse vendido para o Chile". (Citado em Phythian, 2000, p.120).

Ainda que a venda do Centaur nunca tenha ocorrido, um veículo baseado no mesmo design foi visto um ano depois nas ruas de Santiago, sendo "usado para matar estudantes que participavam de protestos" (Hansard, 24 de julho de 1986, cols. 830-1 citado em Phythian, 2000, p.120). As palavras do parlamentar britânico parecem ser um exemplo do que o filósofo Zizek chamaria de "rejeição fetichista" (Zizek, 2006, p.353): um repúdio semântico à tortura e ao assassinato, enquanto simultaneamente se facilita o próprio processo da coisa desabonada. Essa observação cínica de uma distância entre signo e ato - um desejo de realizar uma série de gestos superficiais, enquanto secretamente se persegue uma sequência bem diferente de ações - pode ser vista na maioria das atitudes do governo britânico em relação ao cultivo de seu relacionamento público com o governo chileno nos anos 80. Phythian cita o curioso memorando do Ministério do Exterior circulado em resposta às consideráveis críticas surgidas da imprensa britânica, bem como de figuras da Igreja como o Cardeal Basil Hume. Com o título "Possibilidades para o Corte de Relações", o documento considerava e rejeitava várias proibições e boicotes que o Reino Unido poderia infligir ao Chile como punição por seus abusos contra direitos humanos, concluindo com sua resolução final: uma proibição de coquetéis na Embaixada Chilena:

"Nós podemos considerar um boicote ministerial e dos oficiais sênior aos eventos sociais da embaixada chilena. Isso poderia estar confinado ou aos contatos do Ministério do Exterior ou ser estendido aos negócios mais amplos entre Whitehall e a embaixada chilena". (Phythian, 2000, p.119)

É claro, estamos agora totalmente no reino da sátira. Se o satírico, porém, implica um senso irônico de distância entre como as coisas deveriam ser e como elas são, então muitas das evasões que os governos americano, guatemalteco, britânico e israelense empregaram para descrever seus comportamentos tinha um elemento do potencialmente satírico nelas. Isso nós veremos quando chegarmos à Guatemala, que renomeou os campos de trabalho forçado mantidos para camponeses sem-terra que haviam sido desapropriados como "Pólos de Desenvolvimento" (Pollos de Desarrollo).

Ainda que a Grã-Bretanha fosse um dos principais fornecedores de armas e aliados militares do Chile, certamente não foi o único. Muito além dos EUA, outros países também ajudaram o regime Pinochet a se fortalecer pela aquisição de expertise militar e equipamento. A França não apenas vendeu dezesseis caças Mirage, como também treinou seus pilotos (Phythian, 2000, p. 114). Ao longo dos anos 70, Israel vendeu imensas quantidades de armamentos: mísseis ar-ar Shafirir, botes de patrulha Reshef, sem mencionar os tanques israelenses M-51, para os quais o governo britânico tentou fornecer motores Condor V-8 (Bahbah, 1986, p.74; Phythian, 2000, p.119). Foi a Grã-Bretanha, porém, agindo a partir de uma mistura de interesses comerciais e geopolíticos, associado a partir de 1979 com uma compatibilidade ideológica cada vez maior, que parece ter tido menos problemas em declarar publicamente seu apoio a um regime que, em 1990, já tinha sido responsável por mais de 3.000 mortes e pelo menos 30.000 casos de tortura.

Assistência Militar Israelense a Regimes na América Latina e Central

"Tratem os índios como tratamos os palestinos - não confiem em nenhum deles" - assessores militares israelenses a trainees guatemaltecos. (Jamail and Gutierrez, 1990, p.141)

A amplitude e profundidade da assistência militar israelenses a regimes sul-americanos é assombrosa: rifles de assalto Galil e submetralhadores Uzi para assassinar camponeses na Guatemala, napalm israelense para jogar contra eles em El Salvador, oficinas de tortura em Honduras, Nicarágua e Guatemala para treinar interrogadores nos métodos mais eficientes, tecnologia de computação para ajudar a compilar "listas da morte" de subversivos, e treinamento na própria Israel para o creme-de-la-creme das elites militares. Esse intercâmbio militar data do próprio início da história da Israel moderna, quando a ditadura nicaraguense de Somoza concordou em enviar armas para as milícias judaicas como a Haganah em sua luta contra os britânicos pelo controle sobre a Palestina histórica (Aviel, 1990, p.14).

Ainda que o ditador nicaraguense, Somoza, tivesse visitado Jerusalém em 1961 (Klich, 1990, p.44), o primeiro intercâmbio militar real entre Israel e a América Central começou em 1964, quando cursos de treinamento eram oferecidos em Israel para o exército guatemalteco Nos anos entre 1964 e 1971, mais de 160 visitas a bases militares israelenses foram feitas por oficiais militares guatemaltecos, brasileiros e bolivianos, tudo isso subsidiado pelos EUA. (Cockburn, 1991, p.218). O que se desenvolve pelos próximos 30 anos é uma panóplia extraordinária de influências - militar, técnica, política e até agrícola. Essas influências emergem contra um pano-de-fundo mutante de administrações americanas, e abarcando uma extensão geográfica verdadeiramente enorme - de regimes guatemaltecos e treinamento de contras nicaraguenses, a operações de contra-insurgência na Colômbia e Peru, passando por assistência militar direta a regimes em Santiago e Buenos Aires.

O propósito dessa breve parte não é nem examinar as razões para a presença militar israelense em questões latino-americanas ("crédito especial com os EUA, a Proibição Carter, acordos recíprocos, comunalidades ideológicas ou simples motivação econômica), nem dar um relato exaustivo dela, mas ressaltar seis características que se relacionam a algumas das "complexidades" mencionadas no inicio do artigo.

Primeira, a medida em que a intervenção israelense em situações latino-americanas se desenvolveu em harmonia com necessidades americanas precisa ser enfatizada. Ela contrasta com as relações às vezes tensas que Grã-Bretanha e França experimentaram com os EUA ao tentarem vender armas a países latino-americanos (que as administrações americanas tendem a ver como seu "quintal"). A CIA, por exemplo, utilizou ex-oficiais israelenses como Emil Saada para ajudar a treinar esquadrões de extermínio em Honduras: até 1984, mais de 250 pessoas no país haviam sido assassinadas. Empresas de armas israelo-americanas como Sherwood International ajudaram a fornecer armas para forças contrarrevolucionárias (Cockburn, 1991, p.225). Conselheiros de segurança nacional dos EUA como Robert McFarlane discutiram com o diretor do Mossad sobre como melhor utilizar Israel como intermediário para armar e treinar os Contras (ibid., p.230). O papel de Israel como contratado para "trabalho sujo" aumentou nos momentos em que o Congresso cortou o auxílio a esses grupos terroristas, particularmente durante a Proibição Carter. Uma consequência da interação harmônica entre EUA e Israel na América Latina foi que ela tornou Israel duplamente atraente para regimes latino-americanos como fornecedora de armas - comprar armas e treinamento de Israel ou empresas israelenses valia, para países como Guatemala e Colômbia, "créditos especiais de relacionamento" com os EUA (Jamail e Gutierrez, 1986, pp.16, 18; Bahbah, 1986, p.98).

Segundo, a medida estatística em que Israel aparece na contra-insurgência latino-americana - e em que regimes latino-americanos como Colômbia e Guatemala apareceram nas exportações de armas israelenses - parece sugerir uma quantia incomum de atenção recíproca entre esses governos, mais do que ser meramente "negócios como de costume". Em 1980, 1/3 das vendas de armas israelenses foram para Argentina e El Salvador (Bahbah, 1986, p.61). Para a Argentina, isso significava 17% de suas importações de armas. A América Latina em geral, por volta de 1986, respondia por metade das vendas de armas israelenses (Jamail e Gutierrez, 1986, p.15). Victor Perera estima que mais da metade dos 45.000 índios maias mortos na Guatemala entre 1978 e 1985 morreram por metralhadoras Galil e Uzi (citado em Hunter, 1987, p.36). A relevante interação israelense com estratégias americanas para proteger interesses econômicos em países latino-americanos, longe de ser negócio de teorias de conspiração ou da seleção artística de dados arbitrários, é significativamente refletida em estatísticas de vendas de armas.

Uma terceira característica interessante é a medida em que a intervenção israelense na América Central envolvia outros países, incluindo tando forças armadas de outros países direitistas (como a Argentina), bem como países mais distantes como Reino Unido, Taiwan e até Arábia Saudita (que forneceu 32 milhões de dólares em ajuda ao programa Contra dos EUA [Klich, 1990, p.51]). Nós já mencionamos como, na própria Israel, treinamento extensivo foi fornecido em todos os tipos de técnicas para exércitos latino-americanos. O paramilitar colombiano, Castano, descreve uma dessas escolas, 4 horas de distância de Tel-Aviv, onde em 1983 ele encontrou chilenos, argentinos, espanhóis e mexicanos (Castano, 2001, p.109). Em países como a Guatemala, em particular, israelenses parecem ter trabalhado em cooperação próxima com contra-insurgentes de outros países latino-americanos como a Argentina, Chile e El Salvador. A infame agência de inteligência do exército guatemalteco G-2 (chamado "La Dos") estava equipado e treinado não apenas por israelenses, mas também em conjunção com especialistas argentinos, colombianos, chilenos e taiwaneses (Schirmer, 1998, p.152). A embaixada israelense na Cidade da Guatemala foi usada como ponto de contato regular entre israelenses, americanos e Contras nicaraguenses (Jamail e Gutierrez, 1990, p.130). Oficinas de tortura, parece, eram pontos frequentes de colaboração internacional (Landau, 1993, pp. 182-183). O acadêmico Israel Shahak descreve, em um relatório de 1981, como:

"Um item de exportação israelense especialmente importante são os chamados especialistas israelenses 'anti-terrorismo'. Esses são na verdade especialistas em tortura, especialmente nos métodos mais sofisticados de tortura, que infligem a máxima quantidade de dor sem matar. Os 'especialistas' israelenses que retornam para casa, culpam os 'torturadores locais' como 'emotivos' e por 'matarem cedo demais', e em sua opinião, 'desnecessariamente'. A Guatemala se tornou o centro de treinamento de torturadores por 'especialistas' israelenses nesse ofício, e para outros países também. O caso de El Salvador em que membros do Orden eram treinados por israelenses na Guatemala tem sido conhecido há algum tempo. (Shahak, citado em Rubenberg, 1990, pp.114-4)"

Israelenses estavam ajudando argentinos a treinar Contras cubanos e nicaraguenses em bases americanos em Honduras e salvadorenhos contrarrevolucionários na Guatemala, enquanto aviões argentinos transportavam armas israelenses para a Guatemala (ver Aviel, 1990, p.33; e Bahbah, 1986, p.186). O que emerge aqui não é uma iniciativa de um único país, ou um simples caso de Israel se oferecer para fazer um único favor para fortalecer as relações americanas, mas sim uma rede consistente de alianças antirrevolucionárias, superando divisões locais para lutar contra uma onda de mobilização indígena, trabalho organizado e resistência armada. O relacionamento próximo entre o Estado de Israel e os negociantes "independentes" de armas e mercenários dos quais ele tentava, em resposta a preocupações de organizações de direitos humanos, se distanciar, é outro fator interessante nessas atividades. A intimidade que existia entre o governo israelense, empresas de armas e ex-militares que abasteciam e treinavam esquadrões de extermínio e cartéis narcotraficantes, complica ainda mais a noção de soberania estatal como estando baseada na exclusão de atores não-estatais. Ela demonstra como decisões políticas em Tel-Aviv e Jerusalém eram tomadas em conluio com atores supostamente independentes. É claro, figuras públicas como Peres e Sharon visitavam e contribuíam abertamente com regimes como os da Nicarágua e Honduras (Shimon Peres em 1957, Ariel Sharon em 1984 [Aviel, 1990, pp.31, 15]). Porém de muitas outras maneiras, o Estado de Israel apoiava todo o espectro de atividades legais e ilegais na América Latina, do uso de aviões para distribuir armas para o regime em Managua (Jamail e Gutierrez, 1990, p.128), ao ministro israelense da indústria que disse à Argentina que poderia haver "dificuldades" nas importações de carne de Buenos Aires se o governo argentino não comprasse seis transportes Arava (Bahbah, 1986, p.95).

Empresas israelenses de armas desfrutavam de um relacionamento especial com seu governo. Mesmo hoje, Israel tem uma das indústrias de armas mais nacionalizadas no mundo, com três de suas quatro maiores companhias de defesa (IMI, Rafael, IAI) completamente controladas pelo Estado (Lifshitz, 2010, p.271). Empresas de armas dos anos 70 e 80 como GeoMilTech e Sherwood International desfrutavam de um status privilegiado. Elas tinham escritórios bem localizados em Tel-Aviv e Washington, e acesso especial a armamento soviético capturado no conflito com o Líbano (Cockburn, 1991, pp.227, 234). Porém, o aspecto mais notável dessa intimidade é a medida em que alguns dos mais notórios traficantes de armas e mercenários envolvidos - como Mike Harari, Pesakh Ben Or e Yair Klein - estavam diretamente conectados com os níveis mais altos do governo israelense. O treinador de paramilitares na Colômbia e África do Sul, Yair Klein, operava sob uma licença oficial do governo israelense; o coronel Leo Gleser, ex-comando israelense vendia armas para Honduras através de uma empresa israelense (ISDI) tornada pública pelo Ministério da Defesa de Israel (ibid., p. 225); e o ex-operativo do Mossad Mike Harari, que vendia armas para o regime panamenho nos anos 80, era cunhado do Procurador-Geral de Israel, Dorith Beinish (ibid., p.259). Mercenários israelenses, em outras palavras, não eram marginais foras-da-lei, mas sim agentes semi-autônomos que não poderiam operar tão eficientemente quanto operavam sem apoio e endosso do Estado de Israel.

Um quinto ponto concerne a maneira pela qual a influência israelense na América Central não estava apenas limitada ao fornecimento de armas, atividades de treinamento, especialização militar, ou assistência ao estabelecimento de sistemas de computação projetados para detectar e organizar informações sobre subversivos. Ela também se manifestou mais sutilmente na reorganização pós-massacre da paisagem e na fragmentação permanente de comunidades. Na Guatemala, centenas de milhares de refugiados, principalmente indígenas, fugiram de seus lares durante os piores períodos dos massacres. Os "pólos de desenvolvimento" eram reassentamentos forçados de indígenas deslocados em unidades altamente controladas e fortemente reguladas. Sua inspiração foi tomada, em grande medida, dos princípios dos kibbutzes judaicos e de coletividades agrícolas moshav em uma tentativa de recuperar controla, tanto físico como ideológico, da população rural (um observador os chamou de "uma réplica distorcida da Israel rural" [Perera, citado em Hunter, 1987, p.42]). Um dos arquitetos do esquema, um coronel da Força Aérea Guatemalteca chamado Eduardo Wohlers, foi treinado em Israel.

Esses esquemas - novos planos de aldeias nas quais refugiados reassentados à força compravam toda sua comida de armazéns militares e eram constantemente supervisionados por soldados e pela polícia - criaram patrulhas locais de camponeses que eram encorajados a pegar em armas e policiar suas próprias comunidades. Jennifer Schirmer, em seu clássico estudo do projeto militar guatemalteco, mostra em detalhes como "em nenhum outro lugar na América Latina um exército conseguiu mobilizar e dividir a população indígena contra si mesma" (1998, p.81). Ideias de propriedade privada foram sistematicamente desenvolvidas nos camponeses desses campos de reassentamento como "garantia" contra subversão futura. Conscrição nessas milícias campesinas eram às vezes violentas: quando índios maias se recusaram a se unir a tais patrulhas civis, aldeias inteiras foram massacradas para "ensinar uma lição" (ibid., p.83). Em uma política que, segundo um especialista em contra-insurgência, era 60% guatemalteca, 20% inspirada pela experiência americana no Vietnã e 20% por operações israelenses e taiwanesas, uma impressão confusa da guerra civil - de camponeses combatendo revolucionários - foi deliberadamente cultivada pelo exército para confundir organizações de direitos humanos e observadores estrangeiros (ibid., p.59). De fato, ao ampliar o uso de patrulhas civis por toda a população campesina masculina, a cumplicidade indígena forçada em assassinatos violentos resultou em uma dispersão conveniente da responsabilidade. Em outras palavras, o envolvimento de locais em assassinatos individuais teve tanto sucesso que até comunidades indígenas se sentiam ameaçadas pela presença de investigadores de direitos humanos.

Um ponto final a emergir de qualquer estudo do envolvimento israelense na América Latina e Central é o grau de dissenso interno dentro de Israel em relação, nesse caso, ao apoio de Shimon Peres à ditadura autocrática da Nicarágua e, uma vez que ela foi derrubada, aos contras pró-americanos que estavam tentando restaurá-la. Esquerdistas e sindicalistas israelenses - principalmente do partido Mapam - demonstraram solidariedade aos sandinistas, tentando aprovar uma lei em 1982 que vetaria a venda de armas a El Salvador, Nicarágua e Guatemala. Como Ignacio Klich (1990, p.68) aponta, laços partidários entre o Mapam israelense e a FSLN nicaraguense se desenvolveram, com o líder Haika Grossman até visitando a Nicarágua a convite dos sandinistas em 1984. Dissenso interno também emergiu, por razões um pouco diferentes, quando foi revelado como, entre 1976 e 1979, mais de mil judeus argentinos (principalmente de esquerda) foram sequestrados e torturados pelo mesmo exército argentino que o governo israelense estava armando e treinando. Ainda que esse grau de dissenso jamais fosse suficientemente importante para modificar a política, certamente merece menção.

Fatores Políticos e Culturais: Imagens Latino-Americanas Positivas de Israel

Mesmo uma pequena quantidade de textos - as memórias de um diplomata guatemalteco, entrevistas com um paramilitar colombiano, artigos de um jornal militar guatemalteco - mostram como fatores imateriais facilitaram o que, de outra forma, teria sido uma aliança improvável: nomeadamente, a coalizão do Estado judaico com regimes direitistas e neofascistas latino-americanos. As categorias da admiração latino-americana por Israel são quatro: anticolonial, bíblica, iluminista, e o que se poderia dizer "nietzscheana".

A simpatia anticolonial por Israel de países como Guatemala e Nicarágua emergiu nos primeiros dias do Estado de Israel (ainda que seja ressuscitada nas memórias de Somoza [ver Somoza e Cox, 1980, p.156]). Ela deriva do senso de solidariedade latino-americano com uma nação jovem e ainda na infância, recém-emergente de uma luta independentista contra os britânicos - uma situação que alguns observadores viram como historicamente análoga às lutas independentistas oitocentistas de nações latino-americanas contra seus senhores espanhóis. Um dos membros do Comitê Especial das Nações Unidas sobre a Palestina de 1947 foi o liberal guatemalteco, Jorge Garcia Granados, e imediatamente após a experiência de visitar o Mandato Britânico da Palestina ele escreveu um livro sobre, O Nascimento de Israel (1948). Simpatia anticolonial pelos colonos judaicos na Palestina é um sentimento que permeia o livro do início ao fim. Nas várias disputas de Granados com delegados europeus sobre as atividades de grupos judaicos de resistência, o guatemalteco diz a seus colegas: "Para nós latino-americanos...vocês ingleses se esqueceram o que é ser agitado por sentimentos revolucionários" (ibid, p. 54). No início do livro, Granados afirma ainda mais explicitamente:

"Eu viria a encontrar muitos paralelos, tanto políticos como sociológicos, entre a Palestina e a Guatemala...a Palestina havia emergido sob o jugo do Império Otomano para se encontrar vítima de tremendas pressões políticas e sociais. A Guatemala havia sido forjada como sobre uma bigorna. Por séculos a Guatemala, dos tempos dos conquistadores em 1524, havia sofrido sob o absolutismo espanhol.

Alguns dos problemas palestinos pareciam não ser dissimilares aos da Guatemala. Ambos eram países essencialmente agrícolas com grandes massas de camponeses atrasados e ignorantes. Na Guatemala esse campesinato, explorado por uma pequena e rica elite proprietária, representa 2/3 da população. Vastas áreas do país estão desperdiçadas, e há uma necessidade desesperadora de utilização de tecnologia moderna para melhorar a qualidade de vida". (Granados, 1948, p.17).

Há algumas manobras curiosas aqui. Em sua empatia pela luta anticolonial do Haganah e admiração pelo Hatikvah (hino nacional judaico), Granados apaga os palestinos da imagem. (Da mesma maneira, é tentador sugerir, que certas histórias latino-americanas apagam os indígenas de suas próprias lutas independentistas). Granados não é cruelmente indiferente aos palestinos - no livro, ele reconhece as perdas palestinas de terras e as dificuldades que eles estão encontrando - mas isso jamais desloca a analogia da luta judaica/bolivariana contra o domínio britânico-otomano/espanhol que subjaz o enquadramento final do livro.

Um segundo fator nas simpatias latino-americanas por Israel se encontra em uma série bíblica de conotações que, não importa o quão estranho possa parecer, de fato parecem ter operado como fator de facilitação em certos nacionalismos direitistas católicos (sem mencionar o protestantismo evangélico de Rios Montt). Ele claramente aparece na visita de Granados à Palestina. Logo que ele chegou, ele escreve, "Meus olhos se voltavam completamente para paisagens bíblicas" (ibid., p.31). Repetidas referências aos "judeus [que] jamais haviam esquecido sua terra ancestral" (ibid., p.63), "a terra que é sagrada para milhões de seres humanos" (ibid., p.30), mostra como o background cristão do diplomata guatemalteco desempenhou um papel em privilegiar as necessidades de colonos judaicos acima dos habitantes palestinos. Essa tendenciosidade também se manifesta no mais improvável dos lugares. Tome, por exemplo, as palavras de Carlos Castano, um líder paramilitar colombiano e narcotraficante responsável por incontáveis atrocidades, incluindo o assassinato do jornalista Jaime Garzon. Ele fala em sua estadia em Israel para treinamento militar aos dezoito anos de idade como uma experiência transformadora. O aspecto religioso de sua visita não foi meramente incidental:

"A história de Israel é prazerosa e iluminadora. Você deve começar tomando um shekel em sua mão, tal como recebendo Cristo...eu admiro os judeus por sua coragem face ao antissemitismo, por sua estratégia na Diáspora, por seu resoluto sionismo, seu misticismo, religião e, acima de tudo, seu nacionalismo.

Enquanto vivia em Israel, eu conquistei alguns amigos, incluindo um velho que eu amava visitar e ouvir enquanto ele cantava ou recitava poesia em hebraico, sua língua nativa, a língua da própria Bíblia. Era tão comovente". (Castano, 2001, pp. 108, 110)

A vida violenta de Castano como líder da AUC encontra uma incrível coexistência com sua homenagem à espiritualidade profunda da Terra Santa, com a imagem surreal do futuro paramilitar, ouvindo recitações hebraicas dos Salmos. Não há tempo aqui para trabalhar a relação entre misticismo e violência, ainda que não seja difícil ver um elemento de Charles Maurras na inspiração mística de um paramilitar tão violento.

O que é claro, porém, é a medida em que a criação cristão de Castano ajudou em seu treinamento militar israelense. Considerando a própria religiosidade fervorosa e interação com evangélicos americanos do general guatemalteco Rios Montt durante os piores anos dos massacres, é difícil não ver esse reconhecimento cristão da identidade bíblica de Israel como desempenhando algum papel, não importando quão pequeno, na ampla colaboração entre Israel e Guatemala nesse período.

Tirando as simpatias bíblicas e anticoloniais, um terceiro fator seria uma admiração por Israel como potência civilizadora, colonizadora, de primeiro mundo: um entreposto do progresso eternamente ameaçado por um dilúvio de fanatismo e atraso indígena. Análogo à própria relação de Israel com a África do Sul (Sharon vendo a ANC como uma versão africana da PLO, por exemplo [ver Polakow-Suransky, 2010, p.8]), uma simpatia iluminista definida por um entreposto da modernidade pode ser detectado em algumas das maneiras que militares guatemaltecos descreviam Israel. "Israel é um pequeno país realizando um trabalho enorme", disse um general guatemalteco ao jornal Ma'ariv em 1981."Nós vemos o israelense como o melhor soldado no mundo hoje, e olhamos para ele como modelo e exemplo para nós" (citado em Shahak, 1982, p.48). Na edição de 1977 do jornal militar, Revisa Militar, nós encontramos uma resenha de eventos nos conflitos palestino-israelenses de 1948 a 1977. A imagem apresentada é uma de uma nação desenvolvida, cercada por inimigos árabes invejosos. A linha de tempo não começa com a expulsão de milhares de palestinos por milícias judaicas em 1948, mas com "os países árabes invadindo a Palestina" em 1948 (Asturias, 1977, pp.51-58). Os palestinos são repetidamente referidos como "terroristas" (p.51), e emergem junto a seus vizinhos árabes como consistentemente agressivos e "subversivos", com as ações de Israel sendo amplamente vistas como retaliatórias. Em outra edição de 1984 da mesma publicação, a posição de Israel como uma ilha de modernidade em um mar de barbárie é sublinhada pela reprodução de uma série de artigos conservadores de jornais argentinos sobre o Oriente Médio, com retratos severos de Saddam Hussein, Muammar Gaddafi e do Aiatolá Khomeini ("un fanatico medieval" [Ronen, 1984, p.109]), junto a várias fotografias de explosões e nuvens de cogumelo, apresentando genericamente uma paisagem médio-oriental de feudalismo, violência e volatilidade.

O fator final nas respostas latino-americanas simpáticas a Israel eu decidi nomear "nietzscheano", já que ele envolve - como Nietzsche endossa na Genealogia da Moral - uma admiração por aqueles que não tem vergonha de exercer seu poder e, de fato, que abraçam e afirma sua agressão. Essa admiração está melhor expressa em Castano:

"Ali eu me tornei convicto de que era possível derrotar as guerrilhas na Colômbia. Eu comecei a ver como um povo poderia se defender contra todo o mundo... Na verdade, o conceito de auto-defesa armada eu copiei dos israelenses, cada cidadão dessa nação é um soldado em potencial.

Em Israel eu consegui abrir minha mente... Eu aprendi de outras guerras e já possuía uma visão panorâmica do país. Eu tentei absorver tanto conhecimento quanto possível dos judeus, um maravilhoso povo de Deus, que sempre viveu em guerra e por milhares de anos tem estado em modo de auto-defesa, invadindo e conquistando território. A viagem à Terra Santa foi uma ocasião momentosa em minha vida". (Castano, pp.108,111)

A performance de Israel na Guerra do Líbano impressionou muitos observadores militares latino-americanos, e foi um fator central nas vendas de armas do período. Os quatro fatores citados aqui não se coadunam necessariamente bem um com o outro. De fato, um liberal como Granados tem pouco em comum com um assassino como Castano. A medida em que tais fatores causaram, facilitaram, ou meramente resultaram da assistência concreta que Israel deu a tais regimes e paramilitares nos anos 70 e 80 permanece disputável e provavelmente incalculável. O que a seleção de citações acima demonstra, porém, é que a assistência israelense aos paramilitares da Guatemala e da Colômbia não foi uma série direta de transações ideologicamente neutras, mas sim uma intervenção contínua colorida por uma variedade de distintas afinidades - religiosa, política e colonial.

Em sua obra clássica, Império, Hardt e Negri (2000, p.46) consideram algumas das "alternativas reais e potenciais para liberação que existem dentro do Império". Eles sugerem que a globalização, longe de ser a fonte de todos os nossos males, pode conter em si possibilidades emancipatórias positivas, que expressam "o poder da multidão global" (ibid., p.47). Qualquer estudo do envolvimento britânico e israelense na América Latina durante esse período sugere, pelo menos, a necessidade de algumas reservas. No mundo pré-digital dos anos 70 e 80, o que é notável é a velocidade com a qual forças reacionárias podiam mobilizar todo tipo de assistência - econômica, militar, política, ideológica e cultural - para suas contrapartes, empregando uma destreza assustadora e, nos momentos de mais sublime cooperação um assombroso senso de harmonia. Aqui não é o lugar para contestar a convicção de Negri e Hardt de que a globalidade do capital pode se provar sua ruína - de fato, eventos atuais por todo o globo podem até reforçar essa tese - mas é instrutivo ter em mente que a assistência que líderes médio-orientais e norte-africanos simpáticos como Muammar Gaddafi e o PLO ofereceram a movimentos como os sandinistas começou realmente mais de quinze anos depois que Israel já havia entregue seu primeiro carregamento de armas para a Nicarágua.

O apoio internacional de ditaduras militares, governos brutais e redes paramilitares na América Latina durante as décadas de 70 e 80 se enquadrava em um padrão. Não foi um padrão de simetria perfeita, nem um modelo matemático que poderia ser usado para prever desenvolvimentos futuros, e certamente não era um paradigma livre de desvios, variações e idiossincrasias espontâneas. Era um padrão, porém, que produziu fenômenos - o deslocamento de camponeses, o assassinato de povos indígenas, a tortura e desaparecimento de ativistas e sindicalistas - que podem ser encontrados tão longe quanto as colinas de Oaxaca, as florestas de Ixil, as ruas de Bogotá, as delegacias de Santiago e as garagens subterrâneas de Buenos Aires. Nas salas de reunião de Nova Iorque, Londres e Chicago, uma certa lógica familiar de preferência por capital acima de pessoas foi cultivada, cujos efeitos ecoariam em infindos centros de comando e escolas de treinamento, e reecoariam nos clubes de elite e escritórios fechados de praticamente todos os países latino-americanos. A triste complexidade desse processo plutocrático, que atrairia dólares, armas e ajuda de sheiks sauditas, ministros israelenses, oficiais taiwaneses, empresários britânicos e generais sul-africanos, não é surpreendente, mas deprimente; não é impenetrável ou enigmática, mas escura e profunda.

Um julgamento latino-americano se faz necessário. Durante o período em questão, centenas de milhares de seres humanos não foram apenas executados, mas literalmente estrangulados, estripados, esfolados, eletrocutados ou fisicamente espancados até a morte. Mais de trinta anos se passaram desde as piores atrocidades consideradas nesse breve estudo. Candidatos óbvios para tribunais de crimes de guerra - como o ex-Secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, a ex-Primeiro-Ministro britânica Margaret Thatcher ou o ex-presidente guatemalteco Efrain Rios Montt - são agora velhos demais para que qualquer julgamento eficaz ocorra. E ainda que na Argentina e Chile algum progresso esteja sendo feito na identificação e perseguição de criminosos de guerra, uma vasta quantia de funcionários e políticos sênior britânicos, americanos e israelenses - que foram apoiadores e auxiliares dos piores massacres, abduções e programas de tortura e participaram, diretamente ou indiretamente, em sua implementação - permanecem intocados por qualquer forma de retribuição judicial. Esses incluem oficiais de defesa de todos os três governos; oficiais militares que deram, permitiram e organizaram treinamento para perpetradores dos massacres; delegações diplomáticas, chegando até o escritório do próprio embaixador, que sabidamente facilitou instrução militar ou auxílio aos perpetradores; funcionários de governo e seus secretários e equipe que endossaram vendas de armas para óbvios abusadores dos direitos humanos; lobistas britânicos, americanos e israelenses que ajudaram a contornar estruturas já existentes de controle e regulação - seja para permitir equipagem e ajuda ou para abafar ativamente notícias de atrocidades de serem disseminadas. A relativa escassez de atenção judicial internacional a tão óbvios crimes não age apenas como incriminação moral do Ocidente, mas também encoraja suspeitos de crimes de guerra como Otto Perez Molina (recentemente eleito presidente da Guatemala) a continuarem imperturbados com suas carreiras políticas.

Bibliografia

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H. P. Lovecraft, Reflexões Contra o Mundo Moderno

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(Artigo para o número 65 da Revista Rébellion)

Traduzido por Victor Cavalcanti



"A coisa mais misericordiosa no mundo, eu acho, é a inabilidade da mente humana em correlacionar todos os seus conteúdos. Nós vivemos em uma plácida ilha de ignorância no meio de um oceano negro infinito, e não era para que pudéssemos navegar para longe. As ciências, cada uma esticando a corda em sua própria direção, têm nos causado pouco mal até agora; mas algum dia esse mosaico de conhecimento dissociado nos legará um terrível panorama da realidade e de nossa amedrontadora posição neste lugar, tão terrível, que ou bem nós ficaremos loucos diante da revelação ou fugiremos covardemente da luz mortal para a paz e a segurança de uma nova Idade das Trevas".

Esta citação quase profética de "O Chamado de Cthulhu"é um aviso. Um aviso atual para um momento histórico em que a humanidade enfrenta uma corrida tecnológica precipitada que tende a empurrar seus próprios limites: a investigação sobre o genoma humano, a clonagem, organismos geneticamente modificados ou doutrinas transumantes (teoria da confusão de gênero) são ameaças que, ao contrário do "panteão oculto" criado pelo autor, são bem reais.

O panteão oculto

Este panteão oculto é um dos principais pilares, senão o principal pilar, da obra de Lovecraft. Refletindo uma civilização arcaica que permanece além do tempo, é uma caixa de Pandora que, quando aberta, irá gerar consequências fatais. Nyarlathotep, Yog-Sothoth, Azathoth, Cthulhu e Dagon, como muitas entidades, deuses adorados pelos cultos que remontam a tempos imemoriais, têm conseguido permanecer em segredo. Uma constante nas obras do autor é a quebra deste segredo; o protagonista da história será testemunha e vislumbrará acontecimentos bizarros, à beira do sobrenatural que irão, naturalmente, despertar sua curiosidade. E é fato que esse poder causará a ruína do herói principal, e até mesmo de toda a humanidade. "Existem horrores além das fronteiras da vida de que não suspeitamos e, de vez em quando, a malignidade humana os coloca dentro de nosso alcance". A curiosidade será um dos fatores determinantes da história, porque esta vai mudar o destino do horror, como aconteceu com Francis Weyland Thurton, herói de "O Chamado de Cthulhu" e antropólogo, que retomará a investigação iniciada por seu falecido tio-avô, depois de encontrar um baixo-relevo representando uma criatura hedionda acompanhada por hieróglifos desconhecidos.

Lovecraft é famoso por ter criado um mundo próprio: as criaturas e os deuses acima mencionados são os exemplos mais representativos. Mas também incluem lugares importantes, como a repugnante Innsmouth, uma cidade que esconde um terrível segredo, ou mesmo Arkham e a Universidade de Miskatonic. Há, também, no trabalho geral do autor, um corpo de livros amaldiçoados. "Cultos dos Ghouls", "Pnakotiques", "L’Unaussprechtlichen Kulten" ou o famoso "Necronomicon", com histórias únicas para cada um deles, e às vezes detalhes fornecidos sobre seus autores. De modo que realizaram-se debates sobre a existência destes livros! Este é o caso particular do "Necronomicon", um livro emblemático, parte do que alguns chamam de o "mito de Cthulhu", e é frequentemente mencionado na obra de Lovecraft, mas também além dela (por exemplo, no filme "Evil Dead"). As histórias de Lovecraft, assim, seguem um padrão específico que permanece praticamente inalterado, todos têm suas raízes em um verdadeiro paradigma que submerge o leitor no universo que tornou seu autor famoso. Tanto o conteúdo quanto a forma são inseparáveis, unidos em um horror, graças, em parte, ao mundo desenvolvido ao longo da história, uma verdadeira descida aos infernos que quase sempre resulta em morte ou loucura...

Uma humanidade ultrapassada

A imagem de Lovecraft é geralmente a de um homem que entrou em colapso sobre si mesmo. Certamente, ele é um escritor atormentado mas, no entanto, quando se olha um pouco mais de perto, percebe-se que o homem em questão é mais aberto ao mundo do que parece. Sabemos, hoje, que Lovecraft era interessado em ciências, especialmente Astronomia. Este aspecto de sua personalidade está presente ao longo de todo o seu trabalho, mas existe mais além disso. De fato, a sua obra reflete a realidade de uma época, ou seja, um dualismo entre a Ciência, que estava ficando mais forte através de muitos avanços (descoberta do Quantum de energia por Max Planck em 1900, a Teoria da Relatividade de Albert Einstein em 1905, ou a galáxia descoberta além da nossa própria, por Edwin Hubble, em 1924) e o outro pólo conservador, com forte influência religiosa.

Em suas histórias, não é incomum que os protagonistas adotem uma abordagem científica para elucidar os mistérios que enfrentam, mesmo que nem sempre eles entendam o como ou o porquê (como em "A Cor que Caiu do Céu"). Além das considerações sociais desse dualismo, a Ciência tem outro impacto na obra de H. P. Lovecraft, não como um aspecto direto, mas sim como um ponto de partida da ideia principal na mente do autor: o homem - e seus avanços técnicos e científicos, em particular no campo da astronomia e do universo -, não é nada. Assim, H. P. Lovecraft rejeita o etnocentrismo absolutista herdado, em grande parte, da filosofia Iluminista, ao impor não um deus conhecido dos homens (com exceção de alguns iniciados) ou um deus benfeitor, mas este "panteão oculto", que parece ser uma ameaça para a humanidade.

Que somos nós, seres humanos, ao sermos confrontados com estas criaturas, deuses que existem além do abismo do tempo? Apesar do progresso técnico e científico, ao que parece, de acordo com Lovecraft, a resposta é "nada". Este pessimismo quanto ao nosso futuro, o autor deve, talvez, à influência da Revolução Conservadora Alemã, ao conhecer Oswald Spengler.

Como evidenciado pela correspondência com Clark Ashton Smith, em 1927: "É minha convicção, e já o era muito antes de Spengler afixar com selo de evidência acadêmica, que a nossa era mecânica e industrial é uma era de completa decadência". Decadência, segundo Lovecraft, também se aplica ao indivíduo através do prisma da degeneração étnica e racial. O autor é realmente conhecido por seu racismo e antissemitismo, e é inegável que este aspecto literalmente escorre através da sua obra: "[...] os prisioneiros todos provaram-se homens modestos, miscigenados, e de mentalidade aberrante. A maioria era de marinheiros, mas havia alguns gatos pingados que eram negros e mulatos, um grande número de índios ou portugueses criolos das Ilhas Cabo Verde, que davam um colorido de voduísmo ao culto. Mas antes que muitas perguntas fossem feitas, ficou claro que algo mais profundo e arcaico que fetichismo negro estava envolvido. Degradados e ignorantes como eram, as criaturas mantiveram com surpreendente consistência a idéia central de sua abominável fé" (retirado de O Chamado de Cthulhu). Hoje em dia, mesmo essa descrição sendo parte de um contexto completamente ficcional, o autor teria uma visita da 17ª Seção do Tribunal da Suprema Corte de Paris! Este desgosto pela miscigenação vai cada vez mais longe, indo em direção a um atavismo sobrenatural e assustador, como em "A Sombra de Innsmouth" ou "O Medo à Espreita".

Por fim, um dos aspectos mais interessantes de Lovecraft encontra-se em um confronto global entre os adeptos do mundo civilizado e moderno dos métodos científicos e racionalistas, e um inimigo falsamente arcaico. Desenvolvimento de armas avançadas, tais como armas a laser para aniquilar a espécie humana (o que não imediatamente põe a obra do autor no domínio da ficção científica), a própria existência destas criaturas, o quão desconhecidas elas são para o homem e seu poder perturbador (mágico? científico?) são suficientes para dominar a humanidade ultrapassada...

O horror que está além

Em vista das várias características fundamentais da obra de Lovecraft, ela deixa em aberto a questão sobre o autor ser ou não, em última análise, um reacionário típico de seu tempo. A rejeição dos princípios do Iluminismo, seu desagrado com a miscigenação e sua postura ambígua em relação à modernidade nos deixa pensar que sim. No entanto, é preciso levar em conta o pessimismo, misantropia e a vida do autor, de classe baixa em uma América em plena mudança. Sua relação com a Ciência continua a ser uma das chaves para a compreensão de sua obra, uma verdadeira relação de amor e ódio, uma tensão que age como um ponto-chave. O que ele pensaria da América hoje, o quartel-general das finanças no mundo, uma sociedade dividida entre os piores dos libertários liberais (veja Miley Cyrus) e o fanatismo fanático de alguns? Assim como Deus foi morto pelo homem, de acordo com o célebre filósofo do martelo, H. P. Lovecraft podia querer que o horror que se situa além do tempo, no fundo de R'lyeh, permanecesse afundado; deste modo, seu estado de dormência chega ao fim ao começo desta era das trevas demasiada humana...

Leonid Savin - Os Cinco Grandes, Segurança Eurasiática e Outros Projetos

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por Leonid Savin



Nos idos de 2001, um importante analista da companhia bancária americana Goldman Sachs Group Inc., Jim O'Neill, usou o acrônimo BRIC para descrever as economias em desenvolvimento. Ainda que ele a tenha utilizado no contexto de um paradigma neoliberal global, a Rússia "cooptou" o termo, propondo ao Brasil, à Índia e à China construir uma cooperação multilateral. Em relativamente pouco tempo, muito foi feito para desenvolver mecanismos de interação. Posteriormente, a África do Sul se uniu aos quatro países (e o acrônimo BRICS nasceu).

Agora, os cinco países, que ocupam 26% da área territorial do planeta, representam 42% da população mundial e geram 27% do PIB mundial, são considerados como o novo ator coletivo do mundo multipolar, baseado no princípio da descentralização e na habilidade de responder aos desafios do século XXI. Como o vice-Ministro de Relações Exteriores russo Sergei Ryabkov, na sua coletiva de imprensa durante a Cúpula dos BRICS e da SCO em Ufa em 9 de julho de 2015, disse, "a prática dos BRICS não tem precedentes na política internacional", e o grupo de Estados tornou-se "um fator importante nas relações internacionais". Os BRICS estão se tornando gradativamente os novos "Oito Grandes", mas apenas na base da igualdade, da transparência e do consenso entre todos os membros.

A última cúpula em Ufa mostrou que o tom informal no qual a cooperação estava baseada não impediu a criação de uma associação internacional completa, mais democrática do que outras alianças do último século. Em Ufa, um plano para ações futuras foi aprovado - um tipo de sumário da matriz operacional dos BRICS para o futuro próximo. Ele inclui uma declaração de finalidades, a estratégia da parceria econômica e anuncia a abertura de um departamento virtual - o site oficial dos BRICS, que publicará documentos oficiais e materiais relevantes. O Banco dos BRICS foi inaugurado e uma reserva de ativos estrangeiros foi formada. Seu capital combinado é de 200 bilhões de dólares. Os primeiros projetos financiados ocorrerão na primavera de 2016, não limitados aos cinco países, mas possuindo caráter global. Essencialmente, é uma alternativa financeira ao FMI dos Rothschilds, fazendo investimentos em setores necessitados da economia real dos países, e não conduzindo transações especulativas ou fornecendo empréstimos onerosos, como o fazem bancos estrangeiros, mercados de capitais e fundos.

Também, entre os países dos BRICS a cooperação será reforçada em questões financeiras e econômicas. Particularmente, o diretor de Questões Europeias e Centro-Asiáticas Gui Congyou notou que a Rússia é uma prioridade para investimentos chineses, o que será feito não apenas em infraestrutura, mas na construção de casas baratas e em alta tecnologia também.

O ano da presidência russa dos BRICS tem sido muito dinâmico. Como o Presidente da Rússia Vladimir Putin disse em 9 de julho, "no ano da presidência russa nós conduzimos os primeiros encontros para fóruns civis, parlamentares e da juventude dos BRICS. A criação da Universidade de Rede dos Brics está em processo tanto quanto o estabelecimento do Conselho de Regiões de nossa organização".

Deve ser acrescentado que a cooperação está acontecendo agora não apenas nos campos financeiro e econômico do bloco: encontros ministeriais tem sido realizados para questões de saúde, educação, agricultura, impostos, ciência e tecnologia, seguridade social, comunicações, trabalho e emprego e cultura. A coordenação crescente entre os países afetou virtualmente todas as questões internacionais agudas, de conflitos regionais e ameaça do narcotráfico ao setor espacial e pirataria marítima. Para isso, todas as técnicas que podem tornar relações multilaterais burocráticas foram deliberadamente evitadas. Os líderes de todos os países dos BRICS concordaram com a opinião de que o atual formato antiburocrático deve ser mantido.

Isto indica o lado civil dos BRICS similarmente. A questão, abordada na Cúpula em Ufa, foi também discutida na véspera do fórum em Moscou com a participação de especialistas. Em particular, através do Conselho Empresarial dos BRICS muitos acordos foram feitos, enquanto líderes sindicais davam suas recomendações aos Chefes de Estado dos BRICS. O Presidente da Federação de Sindicatos Independentes da Rússia, Mikhail Shmakov, em uma reunião com Vladimir Putin, também assinalou a necessidade de evitar quaisquer métodos do neoliberalismo, que é o culpado por todas as crises globais atuais. Esta é uma observação importante mostrando que os BRICS estão em consenso a nível de ideologia política, um que guiará os países participantes.

Os BRICS também podem ser considerados como um clube em que os membros seguem o princípio da reciprocidade. o Primeiro-Ministro indiano Narendra Modi durante um encontro em formato maior de líderes dos BRICS indicou a importância de completar uma reforma na ONU e seu Conselho de Segurança. Segundo ele, isso ajudará a responder mais efetivamente a quaisquer chamados. Muito reveladora foi a afirmação do líder indiano sobre sanções - que apenas sanções da ONU tem qualquer poder, enquanto todo o resto é tentativa de alguns países de ditar seus termos, o que é inaceitável. Dilma Rousseff, Presidente do Brasil, também levantou a questão da reforma da ONU e da disponibilidade de participar em vários projetos da harmonização de fluxos migratórios ao controle de mudanças climáticas.

É significativo que outros países estão mostrando um interesse crescente nos BRICS. Por exemplo, no fórum financeiro dos BRICS/SCO, que ocorreu em 8 de junho, o vice-presidente do Banco de Desenvolvimento Industrial da Turquia Çigdem Içel também estava presente; ademais, a participação formal dos Chefes de Estado da SCO na Cúpula dos BRICS como convidados elevou grandemente o status do evento. Porém, excetuando a agenda oficial, os líderes puderam se comunicar em um cenário informal, discutindo um número de questões que são igualmente importantes para construir uma parceria confiável.

O Ocidente se comportou de sua maneira característica de duplicidade e guerra informacional. Por exemplo, a publicação da Bloomberg foi totalmente manipulada, como se a economia agregada dos BRICS quase tivesse alcançado a economia americana. Isto não é verdade, já que segundo o FMI só a China já ultrapassou os EUA em 2014; o Conselho de Relações Exteriores, falando de forma mais realista, apontou que os BRICS reduzirão a influência do Ocidente. Stratfor acrescentou que os BRICS e a SCO evoluíram a um tipo de plataforma para mobilizar resistência contra os EUA. Ostensivamente, analistas americanos não ouviram ou não quiseram ouvir as afirmações repetidas das primeiras pessoas e ministros de que os BRICS não estão dirigidos contra qualquer Estado ou potência, possuindo uma agenda aberta. Similarmente, a SCO foi estabelecida para resolver questões de segurança regional na Eurásia, bem como para participar na produção de energia e na criação de corredores de transporte.

Mas é claro, as duas estruturas responderão adequadamente às tentativas de solapar a soberania ou interferência em questões internas. Na cúpula, os lados chinês e russo afirmaram e reafirmaram a importância de se preservar a justiça histórica e a necessidade de resposta imediata para quaisquer esforços de se justificar fenômenos como o nazismo.

A cúpula da SCO, ocorrendo imediatamente após os eventos dos BRICS no mesmo lugar, também esteve marcada por decisões importantes. Pela primeira vez na existência da organização a recepção de novos membros, Índia e Paquistão, ocorreu. Ademais, houve um acordo para a elevação no status de participação da República da Bielorrússia ao de Estado observador da SCO. Na qualidade de parceiros de diálogo da organização, uniram-se Azerbaijão, Armênia, Camboja e Nepal. Em uma das coletivas de imprensa em Ufa, um jornalista ocidental levantou a questão dos vários problemas entre Índia e Paquistão e como eles poderiam cooperar, se permanecerem as diferenças e o potencial para conflito. O ponto é que a SCO está trabalhando em um paradigma completamente diferente ao do Ocidente, que adere à escola do realismo político, com práticas de elementos como dissuasão, confrontação, conflito de interesses e daí em diante. A SCO está desenvolvendo toda uma nova abordagem de segurança coletiva, ao mesmo tempo que respeita os interesses e soberania de todos os membros da organização. É provável que, com este formato, ela seja até mesmo capaz de ajudar a normalizar as relações entre Armênia e Azerbaijão.

Muito importante é o fato de que a adesão da Índia e do Paquistão à SCO torna esta uma aliança de quatro potências nucleares. O Presidente uzbeque Islam Karimov acrescentou que isto poderia mudar o equilíbrio de forças no mundo. Não menos relevante é a questão da participação futura da República Islâmica do Irã. Enquanto Teerã estiver sob sanções da ONU, isto não é possível. Mas, como dito pelo Ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, o Irã fez importantes progressos com diálogos entre os seis países e podemos esperar que no futuro este problema seja resolvido - a não ser que o Ocidente tente rever a estrutura dos acordos alcançados antes, como já aconteceu em outras situações.

Na cúpula da SCO um programa de cooperação na luta contra o terrorismo e o separatismo nos anos de 2016-2018 foi também aprovado (é digno notar que, nesta época, a direção do Comitê Executivo da SCO estará nas mãos da Rússia) e o desenvolvimento da Convenção da SCO para Combate ao Extremismo foi iniciado, bem como o estabelecimento do Centro de Resposta a Ameaças e Desafios à Segurança dos Estados-membros da SCO com base na Estrutura Regional Antiterrorista (RATS). A organização terrorista "Estado Islâmico" foi reputada como uma séria ameaça e todos os membros da SCO reiteraram sua intenção de combatê-la e outros extremistas internacionais.

O desenvolvimento da estratégia da SCO até 2025 foi aceita e a Declaração de Ufa foi adotada. A estratégia diz que a SCO trabalhará "em favor da construção de um sistema democrático policêntrico de relações internacionais", referindo-se também à fundação de um espaço de segurança indivisível. Também importantes são os princípios e valores designados de Estados e povos, nos quais as características históricas e a identidade de todos os Estados-membros são levados em consideração.

Em seu discurso dedicado aos resultados das duas cúpulas, o Presidente russo Vladimir Putin mostrou que está sendo feito um trabalho para "criar o Banco de Desenvolvimento da SCO e o Fundo de Desenvolvimento da SCO. A ideia de ter instituições com base na Associação Interbancária do Centro Internacional de Financiamento de Projetos da SCO é muito promissora". Ademais, o líder russo pediu um uso mais ativo das possibilidades da SCO inerentes aos BRICS.

Mas tirando o par BRICS-SCO, há muitos projetos regionais que naturalmente se unirão a ambos formatos. Assim, os líderes da Rússia e da China declararão que estão dispostos a trabalhar proximamente na implementação de dois projetos de integração - a União Econômica Eurasiana e o Cinturão Econômico da Estrada da Seda. Ademais, há relações trilaterais, tal como entre Rússia-Mongólia-China. Em paralelo à cúpula dos BRICS, os líderes dos três países concordaram em intensificar os trabalhos em uma série de frentes - da criação de projetos de infraestrutura a atividades culturais e de informação. Como o Chefe de Governo da China Xi Jinping pontuou, "é necessário formar uma comunidade de destino mútuo e promover a multipolaridade".

Os BRICS também coordenarão a defesa de sua posição dentro do Grupo dos Vinte (G20). Ademais, esta plataforma será usada para diferentes projetos dentro dos BRICS e da cúpula do G20 em novembro deste ano, a ser realizada na Turquia, continuando a discutir a preparação do banco e de outras tarefas identificadas na Declaração de Ufa.

Tudo isto automaticamente significa que qualquer tentativa de manipulação externa, mesmo sob pretextos plausíveis (por exemplo, os EUA estão ativamente promovendo o projeto de uma Nova Estrada da Seda), está destinada ao fracasso. E o mundo com a assistência dos BRICS e da SCO será mais seguro e harmonioso.

John Law - A Invenção do Nacionalismo Cívico Contra Europeus

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por John Law



Separação entre Etnicidade e Identidade Cívica

Estados-nações devem ser baseados apenas em valores cívicos, direitos individuais, propriedade privada e igualdade perante a lei, sem qualquer referência a etnia. Esta é uma das crenças contemporâneas mais poderosas. Os europeus foram forçados a acreditar que um Estado que identifica seus cidadãos em termos étnicos não pode ser livre. Tal como um Estado liberal diz-se ser aquele em que afiliações religiosas são decididas por indivíduos privados, e que o Estado não deve "impôr" quaisquer crenças religiosas a seus cidadãos, marxistas culturais tem efetivamente impresso sobre as mentes de europeus a noção de que um Estado-nação pode ter de fato valores liberais apenas quando a identidade de seus cidadãos é concebida sem qualquer referência coletiva a sua identidade étnica. A etnicidade deveria ser uma questão de escolha individual e não seria da conta do Estado se identificar com qualquer etnia.

A única identidade política/coletiva que um Estado liberal pode encorajar entre seus cidadãos é a cívica, isto é, a identidade de ser membros de um Estado-nação no qual todo mundo independentemente de raça, sexo e orientação religiosa recebe os mesmos direitos perante a lei. É verdade que, desde o século XIX, os liberais tem reconhecido direitos cívicos para minorias já estabelecidas nas nações da Europa. O que se passou nas últimas décadas vai muito além disso. Nós é dito agora que o liberalismo demanda que nações cívicas sejam radicalmente diversificadas para que se realizem os ideais de uma nação que seja verdadeiramente cívica. Em outras palavras, há um mandato aceito por todos os partidos políticos importantes e todos os teóricos políticos de que as nações ocidentais devem deixar de ser povoadas por cidadãos que pertencem a uma única raça ou a uma raça majoritária, com uma cultura que reflete a história e tradições dessa raça. A diversificação dos cidadãos ao longo de linhas raciais e culturais é agora saudada como a coisa progressiva a ser feito. Aqueles que se opõem à imigração em massa em nome da preservação de seu caráter etnocultural ancestral são automaticamente classificados como iliberais. Você pode criticar a imigração por motivos econômicos, mas nunca em prol de preservar o caráter étnico de sua nação.

Como alcançamos essa posição, do reconhecimento dos direitos individuais de minorias ao consenso dominante entre as elites atuais de que o liberalismo demanda a diversificação de nações ocidentais por meio da imigração em massa?

Os Proponentes Intelectuais do Nacionalismo Cívico

Seja notado que os Estados nacionais da Europa ocidental, como será brevemente demonstrado abaixo, efetivamente emergiram como nações cívicas em celebração consciente de sua herança étnica milenar. Então por que teóricos liberais passaram a aceitar o argumento de que as nações ocidentais, para que sejam verdadeiramente cívicas, não podem estar fundadas na etnia? Parece-me que esta identificação de nações ocidentais com identidades cívicas não pode ser compreendida fora dos esforços teóricos de Hans Kohn, Karl Deutsch, Ernest Gellner e Eric Hobsbawm contra qualquer noção de que nações ocidentais estivessem enraizadas em identidades étnicas primordiais. Segundo Azar Gat, um israelense cujo livro Nações: A Longa História e as Raízes Profundas da Etnicidade Política e do Naiconalismo eu estarei examinando abaixo, estes autores eram "todos imigrantes refugiados judeus da Europa central...todos eles experimentaram identidades mutantes e questões excruciantes de auto-identificação à época das erupções mais extremas, violentas e desconcertantes. Era apenas natural que reagissem contra isso tudo".

Em outras palavras, sentindo-se excluídos dos Estados nacionais com fortes identidades étnicas na Europa central, eles reagiram formulando o argumento de que os Estados nacionais da Europa ocidental foram inerentemente intencionados como exclusivamente cívicos.



Nenhum destes escritores negava que as pessoas da era pré-moderna tinham um senso de afinidades familiares comunais dentro de suas respectivas tribos ou localidades. Seu foco era nos Estados nacionais modernos da Europa, e seu argumento era o de que estes Estados nacionais, e a ideologia correspondente de nacionalismo, eram "construtos históricos artificiais", "tradições inventadas", criados por elites políticas interessadas em forjar Estados territoriais poderosos entre comunidades rurais previamente espalhadas e frouxamente relacionadas carecendo de um senso de identidade étnico-nacional. A afirmação de que nações europeias contém um forte núcleo étnico não seria factual, mas uma arma ideológica empregada por elites políticas buscando criar Estados com apelo de massa, uma infraestrutura nacional, idiomas oficiais, taxação centralizada, moeda e leis nacionais, ao longo da era moderna, culminando no século XIX. As exortações de nacionalistas nos séculos XIX e XX sobre raízes étnico-familiares de suas nações seriam meros artifícios retóricos para induzir nas massas apoio para os esforços das elites em estender seu poder nacionalmente sobre uma população disparatada e jamais consciente etnicamente consistindo de múltiplos dialetos, ancestralidades e lealdades locais.

Com a experiência da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, tanto dentro do liberalismo como do nacionalismo, esta crítica do nacionalismo transformou-se em uma crítica concentrada do nacionalismo étnico, que passou a ser associado com o militarismo alemão na Primeira Guerra Mundial e ao fascismo a partir de então. Enquanto marxistas, tal como Hobsbawm, passaram a defender o internacionalismo proletário, teóricos liberais como Kohn, Deutsch e Gellner começaram a formular uma forma estritamente cívica de nacionalismo, ao mesmo tempo desacreditando o nacionalismo ético como um construto artificial e como a fonte, nas palavras de Hobsbawm, da "xenofobia demótica e do chauvinismo" sem base na realidade.



Obviamente, houve outras correntes intelectuais percorrendo o Ocidente, ideias da Escola de Frankfurt, direitos civis nos EUA, feminismo, pós-modernismo, e, algo que não deve ser subestimado, a pressão de corporações por trabalho imigrante e demanda de consumo baratos, coincidindo e reforçando uns aos outros em um grande esforço para produzir uma forma totalmente nova de identidade ocidental contra a suposta dominação de patriarcas europeus. Muito tem sido escrito sobre estes desenvolvimentos, mas os escritos dos progenitores do nacionalismo liberal ou cívico foram negligenciados. Este tema merce muito mais do que eu estou oferecendo aqui. É suficiente dizer que em países ocidentais o nacionalismo cívico se tornou a única forma aceita de identidade nacional. O significado de nacionalismo cívico é muito bem capturado na primeira frase do verbete da wikipedia:

"Nacionalismo cívico é um tipo de nacionalismo identificado por filósofos políticos que creem em uma forma não-xenofóbica de nacionalismo compatível com valores de liberdade, tolerância, igualdade e direitos individuais".

Segundo Hans Kohn, os Estados-Nações ocidentais eram cívicos desde seus primórdios no final do século XVIII. O "nacionalismo étnico iliberal" era um fenômeno da Europa Oriental, da Rússia e do fascismo, lugares que exaltavam o caráter étnico do povo enquanto suprimiam direitos individuais.



O nacionalismo cívico veio a partir de países do noroeste europeu nos quais uma sólida classe média havia se desenvolvido; os membros dessa classe estavam inclinados a uma concepção do Estado como uma associação voluntária de vontades individuais. Esta era uma classe progressista, ou como disse Kohn, desejosa de uma forma de cidadania baseada em leis originando da razão livre individual; esta classe não gostava de Estados que impunham uma identidade etnocultural sobre seus membros. O nacionalismo étnico, por contraste, veio de culturas carentes de uma classe média, impulsionadas por classes regressivas desconfiadas em relação a indivíduos voluntariosos, e preferindo Estados que impõem sobre seu povo um senso irracional de identidade coletiva étnica inspirada por emoções, ao invés de realidades históricas factuais.

Celebrando a etnia de outros ao mesmo tempo que se acusa europeus de etnocentrismo

Essas ideias ressoaram fortemente no pós-guerra. O próprio termo "etnia" passou a ser definido em termos estritamente culturais, sem qualquer referência a raça ou distinções biológicas entre grupos diferentes. Todo manual de ciências sociais da década de 50 em diante passou a endossar esta definição culturalista. Em combinação com esta definição, acadêmicos acrescentaram uma definição instrumental e/ou funcionalista, segundo a qual a identificação étnica era um fenômeno superestrutural por trás do qual estavam os interesses reais de classes dominantes consolidando seu poder, ou as demandas funcionais de um sistema nacional de educação, administração, guerra e modernização em geral. Eis o que Jonathan Hall diz sobre o uso da etnia:

"No encalço da Segunda Guerra Mundial - e mais particularmente do Holocausto - os motivos para tratar a identidade étnica como uma área válida de pesquisa foram desacreditados... a resposta antropológica à crise acadêmica ocasionada pela Segunda Guerra Mundial foi a abordagem 'instrumentalista'à etnia, que proclamava que a identidade étnica era um disfarce adotado por grupos de interesse para ocultar objetivos que eram mais apropriadamente políticos ou econômicos".

Mas Jonathan Hall então nota que esta abordagem cultural-instrumental também passou a ser vista, dos anos 70 em diante, como inadequada ao não ser capaz de dar conta de inúmeros movimentos de liberação nacional pós-guerra por todo o mundo que conscientemente se identificavam como baseados no sangue e combatiam cruentamente por seus "territórios ancestrais". O que Hall deixa de fora, e deveria ser tido em mente enquanto lemos a próxima passagem, é que os cientistas sociais estavam começando a ver as identidades étnico-tribais no mundo não-ocidental como progressistas, não como identidades fixadas, mas como identidades "negociáveis", em referência a "minorias oprimidas" e sem referência a traços genéticos.

"Ainda assim as ressurgências étnicas dos anos 70 e 80 apresentavam um desafio claro à validade da abordagem instrumentalista; isto despertou um interesse antropológico renovado pelo tema da identidade étnica... a pesquisa atual tende a conceder pelo menos uma realidade intersubjetiva à identidade étnica, ainda que ela difira do academicismo do pré-guerra em um número de pontos importantes. Primeiramente, ela enfatiza que o grupo étnico não é um grupo biológico, mas social, distinto de outras coletividades por sua adesão a um mito putativo de ascendência e familiaridade compartilhada e por sua associação com um território 'primordial'. Secundariamente, ela rejeita a visão oitocentista de grupos étnicos como categorias estáticas e monolíticas com fronteiras impermeáveis por um modelo menos restritivo que reconhece a natureza dinâmica, negociável e situacionalmente construída da etnia. Finalmente, ela questiona a noção de que a identidade étnica é constituída primariamente por traços genéticos, língua, religião ou mesmo formas culturais comuns. Enquanto todos estes atributos possam agir como símbolos importantes de identidade étnica, eles realmente só servem para impulsionar uma identidade que é essencialmente construída pelo discurso escrito e falado".

Claramente, esta passagem admite que "um mito putativo de ascendência e familiaridade compartilhada" e "território primordial" possam desempenhar um papel na auto-identificação de grupos, mas então propõe que a etnia nunca é estática, mas dinâmica e "construída situacionalmente", e, no fim, decide que ela é "essencialmente construída" por discursos. Este é efetivamente o estado da pesquisa sobre etnia hoje - uma confusão pós-moderna aparentemente jogando com múltiplos lados, mas "essencialmente" definindo a etnia em termos discursivos muito similares à definição cívica de Kohn, ao mesmo tempo evitando quaisquer referências biológicas substantivas. Hall não revela as considerações políticas subjacentes a esta ênfase renovada em afinidade étnica. Ele assume que foi uma questão puramente escolástica conduzida por professores universitários buscando a verdade. Ele ignora as vozes crescentes defendendo simultaneamente a autenticidade étnica de minorias não-europeias e pelo caráter inautêntico das nações cívicas europeias. Tal como as identidades étnicas de não-europeus estavam sendo propagandeadas como liberadoras e progressistas, a noção de que as nações ocidentais eram cívicas desde o século XVIII, ou até antes, era cada vez mais tema de críticas devido a seu tratamento "discriminatório" de minorias dentro de suas fronteiras, seus desígnios imperiais, e suas políticas imigratórias exclusivistas, que apontavam para a presença de discriminação étnica e, assim, para a realidade da etnia.



É claro, isto não é bem como o ressurgimento do interesse em etnia foi interpretado por seus defensores. Não há como negar também que a ideia de que nações ocidentais eram simplesmente cívicas parecia distante da realidade, independente de quais fossem as suas intenções políticas. O principal crítico do conceito de nacionalismo cívico foi Anthony Smith, partindo de seu livro, A Origem Étnica das Nações, e múltiplas publicações desde então. Seu principal argumento era o de que as nações modernas não foram criadas ex nihilo com base em valores cívicos apenas ou por causa do desejo de elites dominantes de aumentar sua autoridade por meio de infraestruturas modernas; ao invés, os Estados-nações foram criados com base em laços ancestrais pré-existentes e em um senso de continuidade histórica. Um senso de nacionalidade predatava a era moderna e podia ser traçado tão longe quanto tempos antigos e ao redor de todo o mundo. As nações da Europa não eram meras "invenções" ou demandas funcionais da modernidade, mas factualmente enraizadas no passado, em mitos comuns de ascendência. Ainda que a ascensão da indústria moderna e das burocracias modernas permitisse a materialização de Estados-nações na Europa, estas nações eram primordialmente baseadas em uma população com um senso coletivo de afinidade.

A obra de Smith foi indubitavelmente frutífera em desafiar a noção de que as nações ocidentais eram inerentemente cívicas. Ainda assim, apesar de tudo, o conceito de etnia de Smith era mais sobre a importância de comunidades passadas, um território mais ou menos determinado, uma língua, estilos artísticos, mitos e símbolos, estados mentais, do que sobre enfatizar qualquer forma de identidade ligada ao sangue - linhagem comum e consanguinidade efetivas. Certamente, um grupo étnico não pode ser categorizado como uma raça, mas seu conceito de etnia seguia a proibição ordenada às ciências sociais contra a inclusão de referências biológicas, características físicas, cor de pele, forma corporal, e outros traços que possuem dimensão racial. Etnia foi definido por Smith em termos de traços culturais, linguística, traços históricos e territoriais, mitologia comum e costumes.

Ao mesmo tempo, enquanto Smith estava ocupada escrevendo obras históricas, e sem sua plena consciência, uma avalanche de programas etnicamente orientados, centenas de conferências e acadêmicos estavam avidamente afirmando o valor da etnia, mas apenas em relação a grupos "oprimidos". Escrever sobre isso demandaria um artigo separado. Talvez a melhor maneira de resumir nossa obsessão atual com discurso étnico é olhar para as declarações de intenção de programas de Estudos Étnicos ou departamentos. Estes são bastante vocais em afirmar que raça é uma realidade do Ocidente que não pode ser ignorada porque o racismo tem sido e continuar ser "uma das forças culturais e sociais mais poderosas na sociedade americana na modernidade".

A Perspectiva Sociobiológica Politicamente Correta de Azar Gat

Há um autor atual citado anteriormente, Azar Gat, professor de Ciências Políticas da Universidade de Tel Aviv, que parece oferecer uma forte concepção biológica de etnia, em seu livro Nações: A Longa História e as Raízes Profundas da Etnicidade Política e do Nacionalismo.



Este livro é apresentado como tendo sido escrito desde uma "perspectiva sociobiológica". Os capítulos iniciais e a conclusão definitivamente afirmam que nações "estão enraizadas em sentimentos humanos primordiais de afinidade cultural-familiar, solidariedade e cooperação mútua, evolutivamente impressos na natureza humana". Concordando com "muito" do que diz Smith, ele ainda considera que deixou a desejar a sua falta de ênfase na natureza humana, em teoria evolucionista, e sua ausência de disposição para romper com uma perspectiva culturalista. Ele escreve que a "etnicidade é de longe o fator mais importante" na identidade nacional e que ao longo da história as nações "preponderantemente se correlacionam e relacionam com traços cultural-familiares compartilhados". Saudando a aplicação da teoria evolucionista para explicar comportamento humano, ele diz:

"Sua relevância a nosso tema pode ser resumido como segue: as pessoas tendem a preferir os seus semelhantes, que partilham mais genes com elas, aos mais dessemelhantes ou 'estranhos'. Como uma propensão, isto não é necessariamente consciente". 

Mas logo se torna aparente que Gat (apesar de seu reconhecimento correto de que os humanos possuem fortes disposições genéticas e que a preferência pelo próprio semelhante é um comportamento evolutivamente selecionado, ao invés de um epifenômeno "irracional") não está disposto a reconhecer, ou mesmo dizer qualquer coisa sobre as disposições étnicas racionais de europeus, mas efetivamente toma como dado que os europeus habitam nações dedicadas à criação de novas identidades étnicas imigrantes sob o guarda-chuva de uma cultura comum que não pode deixar de ser definida em termos cívicos. Gat é bastante efetivo em documentar a importância de afiliações étnicas e cultura comum para Estados pré-modernos, incluindo impérios, origens dos Estados europeus modernos e dos Estados não-europeus.



Porém, no que concerne as nações ocidentais atuais experimentando a imigração em massa, nunca ocorre a Gat considerar as afiliações ancestrais e afinidades de semelhança dos povos que tem habitado estas terras por mais tempo e as transformaram em nações modernas. Ele simplesmente aceita sem questionar a experiência da imigração em massa como se ela fosse uma ocorrência natural consistente com as histórias étnicas de nações ocidentais. Ele propõe uma nova definição de etnia para lidar com a realidade da imigração em massa, o que é inconsistente com sua perspectiva sociobiológica. Ele propõe, de fato, uma definição imigrante da etnia, indicando que, conquanto sua definição de etnia não esteja restrita a cultura, ela vê a etnia como "um processo" não exclusivo a uma etnia, mas capaz de explicar a formação de "Estados imigrantes" e como tais Estados "habitualmente integram novos recém-chegados em uma comunidade cultural ampla".

Não há espaço aqui para atentar para algumas das coisas que ele diz sobre Espanha, França, Grã-Bretanha e Canadá. Ressaltar o que ele diz sobre os EUA e a Europa em geral deve bastar para ilustrar sua abordagem um tanto quanto cívica e efetivamente multiculturalista no que concerne a identidade étnica europeia atual. Ainda que Gat insista que a nacionalidade americana não esteja fundada apenas em proposições liberais, e que "existe uma cultura americana bastante singular, amplamente partilhada pela maioria...um idioma inglês-americano comum e costumes amplamente difundidos...indústria do entretenimento, Hollywood e televisão", com uma forte linhagem anglo-protestante, ele se rende a uma definição cultural da América vendo a etnicidade americana como uma realidade mutante, não apenas em relação a diversos imigrantes europeus, mas em relação a políticas imigratórias pós-1965, que ele vê como uma continuação natural de tendências anteriores.

Meu ponto não é negar que a etnicidade americana está mudando, mas perguntar por que ele se recusa a dizer uma palavra sobre "as profundas preferências humanas pelos seus semelhantes" que os europeus americanos podem sentir face a imigração maciça desde 1965 de nações não-europeias. Ou, se ele pensa que europeus americanos estão satisfeitos com a imigração maciça de mexicanos, por que este é o caso, e se isso significa, portanto, que a nacionalidade americana é, de fato, estritamente cultural? Ou, poderia ser que Gat não está consciente das realidades políticas mais amplas que moldam a maneira pela qual pensamos sobre etnicidade, e que povos europeus, e apenas povos europeus, estão proibidos de afirmar sua etnia em face de um sistema de imigração maciça imposto por todo o mundo ocidental, e que cientistas sociais como Gat tem sido incentivados a seguir com o programa, a não ser que queiram arriscar suas carreiras?



O esforço de Gat para afirmar que a América é uma nação com identidade imigrante tem peso quando se considera que o período imigratório pré-1965, que, após difíceis tensões raciais resultando dos altos níveis de imigração de diversas nações europeias nos séculos XIX e XX, se tornou uma nação bem unificada nos anos 50, exceto por seus habitantes não-europeus, africanos e nativos. Mas ele não considera se esta identidade imigrante foi alimentada com sucesso graças às heranças etno-europeias compatíveis da maioria dos imigrantes. Ao invés, ele toma como dado que os padrões imigratórios à América pós-65 são os mesmos de antes, escrevendo que "a imigração latina não é fundamentalmente diferente das ondas anteriores de imigração em sua aculturação gradual". Ainda que ele tenha consciência desse argumento, ele pensa poder enfatizar a identidade étnica imigrante da América simplesmente apelando ao uso comum da língua inglesa, ignorando quão comum o espanhol está se tornando em muitas localidades por todo os EUA e como brancos exibem padrões implícitos de separação racial em sua escolha de áreas residenciais para criar suas famílias e educar seus filhos, não obstante suas afirmações explícitas sobre os benefícios da diversidade.

Tendo pintado os EUA como uma nação com uma etnicidade singularmente imigrante, ele parece perdido tentando explicar a importância de identidades étnicas em nações europeias atuais e no Canadá. "O fenômeno da imigração em massa transformou o mapa das identidades em países ocidentais nas décadas recentes". Como e por que europeus atuais estão permitindo que identidades étnicas milenares fundando a formação de seus Estados-Nações sejam radicalmente diluídas se o nacionalismo étnico é verdadeiramente, nas palavras de Gat, "uma das forças mais fortes na história"? Como eles sobrepujaram sua predisposição genética a ter uma preferência pelos seus semelhantes, e por que Gat está tomando a imigração em massa como se fosse um processo natural ou de alguma forma parte e parcela da identidade nacional europeia sem mesmo fazer uma pergunta? Uma abordagem sociobiológica honesta demandaria tais perguntas, mas Gat só formula questões culturalistas ao efeito de que "não poucos imigrantes e seus descendentes estão de fato se integrando, culturalmente e socialmente, bem o suficiente para que sejam descritos como 'unindo-se à nação'." Mas como que as nacionalidades étnicas originais da Europa estão se integrando com os novos imigrantes? Se a identidade étnica é tão importante, por que espera-se que os europeus aceitem, em suas palavras, uma "conexão fraquejante" entre seus Estados-Nações e sua herança etnocultural? No fim, Gat não tem escolha além de mudar sua abordagem sobre identidade étnica na direção dos valores liberais que Hans Kohn equiparou com o nacionalismo ocidental; mais do que isso, ele não tem escolha senão endossar uma definição multicultural liberal da identidade ocidental.



Ele pensa que uma boa indicação na Europa de uma cultura nacional comum é o "recuo" recente do multiculturalismo "que levou a reenfatizar em muitos países a conexão entre cultura (majoritária) e política", mas ele nunca apresenta quaisquer objetivos compartilhados entre imigrantes, uma cultura majoritária e o Estado. O único fator que ele consegue apresentar em nome de uma cultura imigrante comum, para repetir, é o fato de que os imigrantes estão aprendendo o idioma das nações imigrantes. Mas e quanto a afiliações patrióticas a símbolos europeus passados, e quanto a canções folclóricas, e quanto a figuras históricas lendárias, comida, isto é, traços compartilhados que podem ser categorizados em termos étnico-familiares? Nem uma palavra. Ao invés, nós recebemos a atitude usual de que as coisas devem estar dando certo já que não há guerra civil, os imigrantes estão tentando vencer economicamente e educar seus filhos. A única cultura comum que parece estar ligando a imigração ocidental é o marxismo cultural, uma ideologia imposto desde cima, sem consenso democrático, por elites burocráticas convictas de que a diversidade é uma melhora e que os europeus são racistas a não ser que eles procriem com milhões de não-brancos. Ele regularmente cita Will Kymlicka, chamando-o de "principal teórico do multiculturalismo liberal" de maneira simpática, sem jamais chamar atenção para o chamado aberto de Kymlicka para que se ponha um fim a quaisquer elos intrínsecos entre os Estados-Nações da Europa e qualquer forma de etnia que possa ser chamada "europeia". Não é bastante revelador que o mesmo autor que escreve um livro dedicado a uma abordagem sociobiológica das raízes étnicas das nações acabe simpatizando com o principal defensor do multiculturalismo no Ocidente?

Conclusão

A resposta sensível que se deve alcançar ao examinar o debate entre nacionalismo cívico e nacionalismo étnico é que a pesquisa histórica valida a ideia de que os Estados-Nações europeus foram fundados ao redor de um forte núcleo étnico, ainda que houvessem minorias coexistindo com maiorias. Os Estados da Europa ocidental desenvolveram instituições cívicas liberais dentro do esquema desse núcleo étnico. A pesquisa sociobiológica ainda valida a inclinação natural de humanos a preferirem os seus semelhantes. Esta pesquisa biologicamente fundada demonstra que os homens não podem ser abstraídos de um coletivo étnico. A afirmação de que tal preferência é uma disposição irracional imposta de cima por elites reacionárias é falsa. O etnocentrismo é uma disposição racionalmente impulsionada consistente com liberdades cívicas. Liberdades cívicas são consistentes com um senso coletivo de cultura compartilhada por semelhantes. O que não é consistente com pesquisa racionalmente fundada são as afirmações de que as nações ocidentais eram cívicas em suas origens e a imposição atual de imigração maciça sem abertura para debate racional aberto. 

Alain de Benoist - Georges Sorel

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por Alain de Benoist



Ainda que a violência esteja sempre na ordem do dia, o quinquagésimo aniversário da morte de Georges Sorel teria passado desapercebido se as Éditions Marcel Rivière não tivessem tido a ideia de republicar Réflexions sur la violence [Reflexões sobre a Violência] (Paris: Éditions Marcel Rivière, 1973).

"«Sorel, enigma do séc. XX é uma transplanção de Proudhon, enigma do séc. XIX», escrevia Daniel Halévy no seu prefácio do livro de Pierre Andreu, Notre Maitre, M. Sorel (Grasset, 1953). Enigma, de fato: um ideólogo constituído como gigante, orelhas coladas sobre as têmperas, nariz forte, olho s claros, a barba branca. Enigma: este socialista obstinado, indisposto perante a Revolução Russa, simpatizante da "Action Française", admirador de Renan, Hegel, Bergson, Maurras, Marx e Mussolini.

George Sorel nasceu em Cherbourg a 2 de Novembro de 1847. É duplamente normando: pela Mancha e por Calvados. O seu primo germano, Albert Sorel, far-se-á historiador do Império e da Revolução.

Graduado da École polytechnique, engenheiro de pontes e de estradas, Sorel só se consagra aos problemas sociais a partir de 1892. Seus livros, que raramente são lidos atualmente, não obstante mantiveram seu valor - notavelmente Les illusions du progrès [As Ilusões do Progresso], Réflexions sur la violence [Reflexões sobre a Violência], De l'Église et de l'État [Sobre Igreja e Estado], De l'utilité du pragmatisme [A Utilidade do Pragmatismo], La décomposition du marxisme [A Decomposição do Marxismo], D'Aristote à Marx [De Aristóteles a Marx], La ruine du monde antique [A Ruína do Mundo Antigo], Le procès de Socrate [O Julgamento de Sócrates], etc.

Publicado pela primeira vez em 1908, Réflexions sur la Violence reapareceu em 1973 na coleção «Études sur le Devenir Social», cujo diretor é Julien Freund, professor na Universidade de Strasbourg.

O livro apareceu de improviso como a obra base do sindicalismo revolucionário.

Hostil ao socialismo parlamentar e a Jean Jaurès, que acusa de se ter alimentado de ideologia burguesa, George Sorel opõe-lhe aquilo a que chama a «Nouvelle École». Ele via na greve a forma essencial de reivindicação social. É por meio da greve geral que a sociedade será dividida em facções inimigas e o Estado burguês destruído. A greve é a «manifestação mais brilhante da força individualista nas massas sublevadas».

A greve implica a violência. Ao contrário dos socialistas do seu tempo (excepção feita a Proudhon), Sorel não opõe o trabalho à violência. Recusa-se a glosar o «desejo de paz dos trabalhadores». A violência é para ele um ato de guerra: «Um ato de pura luta, semelhante à de um exército em campanha», escreve ele.

«Esta assimilação entre a greve e a guerra é decisiva», indica Claude Polin no prefácio da nova edição de Réflexions«pois tudo que a guerra toca se produz sem ódio e espírito de vingança: na guerra não se matam os vencidos; não se sujeita não-combatentes às consequências dos dissabores que os exércitos podem ter experimentado no campo de batalha.» O que explica a razão porque Sorel reprova a «violência-vingança» dos revolucionários de 1793: «Não se deve confundir a violência com as brutalidades sanguinárias que não levam a nada».

No Início era a Ação

Retomando a distinção, já hoje clássica, entre guerra «justa» e guerra «injusta», opõe a violência burguesa à violência proletária. Esta última possui, a seus olhos, uma dupla virtude. Não só deve assegurar a revolução futura mas é ainda o único meio de que dispõem as nações europeias, «estupidificadas pelo humanitarismo», para reencontrar a sua antiga energia.

A luta de classes é portanto um afrontamento de vontades firmes, mas não cegas. A violência torna-se na manifestação de uma vontade. Ao mesmo tempo, exerce uma espécie de função moral: produz um estado mental «épico»

«A violência», declara Sorel ao seu amigo Jean Variot, «é uma doutrina intelectual: a vontade de cérebros poderosos que sabem o que querem. A verdadeira violência é o que é necessário para se ir até ao fim das ideias» (Propos de George Sorel, Gallimard, 1935).

Sorel teria aprovado estas palavras de Goethe: «No começo era a ação». Para ele, o homem que age, o que quer que ele faça, é sempre superior ao homem que se submete: «A verdadeira violência demonstra, no primeiro plano, o orgulho do homem livre».

Para que o mundo atual readquira a sua energia é preciso um «mito», isto é, um tema que não seja nem verdadeiro nem falso, mas que aja poderosamente nos espíritos, mobilize e incite à ação.

George Sorel via na Prússia do último século a herdeira da antiga Roma.

Para cantar as «virtudes prussianas», encontra um tom que não deixa de evocar Moeller Van der Bruck (Der preussische Stil). «Sorel, o artesão, tem o culto do trabalho bem feito», nota Claude Polin, «e o trabalho bem feito deve constituir um fim em si, independentemente dos benefícios que dele se retiram. Este desinteresse é próprio da violência: no fundo do pensamento de Sorel há a intuição de que todo o trabalho é uma luta, em especial o trabalho bem feito e até, de que o trabalho só é bem feito quando é uma luta. Esta ideia retoma a intuição do carácter essencialmente prometeico do trabalho. Todo o verdadeiro trabalho é uma transformação das coisas que comporta a necessidade de se transformar a si próprio e aos outros consigo».

Pouco a pouco, Sorel acaba por denunciar a democracia (verdadeira ditadura da incapacidade) conjugando os acentos de um Maurras, um Bakunin e um Secrétan. 

A ditadura do proletariado surge-lhe mais ou menos como um engodo: «É preciso ser-se ingénuo para supor que todas as pessoas que retiram proveito da ditadura demagógica abandonariam facilmente as suas vantagens». De passagem, recusa o papel de vanguarda que o bolchevismo intelectual pretende para si: «Todo o futuro do socialismo reside no desenvolvimento autônomo dos sindicatos operários» (Matériaux pour une Théorie du Prolétariat). «Marx nem sempre foi bem inspirado», prossegue ele. «Nos seus escritos, acontece-lhe introduzir quantidades de velharias provenientes dos utopistas.»

Esta concepção da ação está em completa oposição com as teorias «vanguardistas» (o trotskismo, por exemplo). Mas encontramo-la nas propostas do sindicalismo revolucionário e do anarco-sindicalismo.

Finalmente, se Sorel defende o proletariado com um tal encarniçamento, não é por sentimentalismo, como Zola, nem pelo gosto pequeno-burguês da culpabilidade, nem mesmo porque o aflige uma «consciência de classe». É por que está convencido que, no seio da sociedade burguesa, só no povo se poderá encontrar a energia que as classes dirigentes perderam. Consciente das «ilusões do progresso», constata que as sociedades, como os homens, são mortais. A esta fatalidade, opõe uma vontade de viver de que a violência é uma das manifestações.

Hoje em dia, Sorel denunciaria tanto a sociedade mercantil como os mestres pensadores da contestação. «Marcuse representaria a seus olhos», escreve Polin, «o exemplo típico do homem degenerado pela crença beatífica do progresso, iludido por um progresso de que nada compreendeu e tudo esperava, incapaz de pôr a sua esperança para além de um progresso exacerbado, radicalizado, nesse sonho de uma abundância, de tal modo automática, que traria em primeiro lugar a felicidade tornando possível a saciedade desordenada das paixões mais loucas, numa palavra, incapaz de compreender que a fonte do mal está no homem, desvirilizado pela fé econômica».

O nome da velha Antioquia

A partir de 1907 George Sorel faz-se artesão de uma aproximação entra anti-democratas de esquerda e de direita. O órgão desta aproximação é a Reuve Critique des Idées et des Livres, onde o nacionalista George Valois publica os resultados do seu inquérito sobre a monarquia e a classe trabalhadora.

Em 1910 surge a revista La Cité Française. Depois, de 1911 a 1913, L'Indépendence. Aí se encontram as assinaturas de George Sorel, Jean Variot, Edouard Berth, Daniel Halévy, mas também dos irmãos Tharaud, de René Benjamin, Maurice Barrès e de Paul Bourget.

Em 1913, o jornalista Edouard Berth, autor de Méfaits des Intellectuels, saúda, em Maurras e em Sorel, «os mestres da regeneração francesa e europeia». Mas, em Setembro de 1914, Sorel escreve-lhe: «Entramos numa era que bem poderia ser caracterizada pelo nome de Velha Antioquia. Renan descreveu muito bem esta metrópole de cortesãos, charlatães e mercadores. Em breve teremos o prazer de ver Maurras condenado pelo Vaticano, o que será a justa punição das suas afrontas. Aliás a que poderia realmente corresponder um partido realista numa França unicamente ocupada em desfrutar a vida fácil de Antioquia?».

«A Maurras», explica o sociólogo Gaëtham Pirou, «Sorel reprovava o ser demasiado democrático, censura que, à primeira vista, pode parecer paradoxal. Na realidade o que Sorel queria dizer é que Maurras, positivista e intelectualista, não tinha repudiado a democracia senão sob o seu aspecto político e não no seu fundamento filosófico» (George, Sorel, Marcel Rivière, 1927).

Nacional-Revolucionários

Sorel terá influenciado Barrès e Péguy tanto como Lenine. Este último, no Matérialisme et Empiriocriticisme, denunciá-lo-á, no entanto, como um «espírito trapalhão»

.«Depois da França», observou Alexandre Croix na Révolution Prolétarienne, «a Itália terá sido a 'terra prometida do sorelismo'». Sorel exerceu ali, aliás, uma grande influência na escola sindicalista dirigida pelo futuro ministro italiano do Trabalho (1920-1921), Arturo Labriola. Este, desde 1903, traduzia L'Avenir Socialiste des Syndicats no Avanguardia de Milão. Um dos seus lugares-tenentes, Enrico Leone, foi quem prefaciou a primeira aparição de Réflexions que surgiu em Itália sob o título Lo Sciopero Generale e la Violenza («A Greve Geral e a Violência»).

A seguir, Sorel teve igualmente influência sobre Vilfredo Pareto, Benedetto Croce, Giovanni Gentile e (através de Hubert Lagardelle), sobre Benito Mussolini.

Na Alemanha, o sorelismo encontra uma espécie de prolongamento nas correntes nacional-revolucionárias e nacional-comunistas que se manifestaram nos meados dos anos vinte durante a Weimar. (Cf. Michel Freund, George Sorel: Der Revolutionäre Konservatismus, Vittorio Klostermann, Frankfurt/M., 1932 e 1972.)

Logo que Sorel morreu, em 1922, o monárquico George Valois, em L'Action Française, e o socialista Robert Louzon, em La Vie Ouvrière, renderam-lhe uma homenagem plena da mesma admiração. Algumas semanas mais tarde Mussolini, ao fazer a sua entrada em Roma, declarava a um jornalista espanhol: «É a Sorel que devo quase tudo».

O governo soviético e o Estado fascista propuseram, no mesmo dia, assumir o encargo do seu túmulo.

Jafe Arnoldski e Joaquin Flores - Tragédia e Farsa: Reconsiderando a Análise Superestrutural Marxiana de Movimentos Sociais Heterodoxos (Parte I)

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por Jafe Arnoldski e Joaquin Flores



Utopia vs. Mito, a Poesia do Passado, e a Revolução Social - Uma Introdução Geral a esta Série

Introdução

Comecemos estabelecendo que houve três ideologias sócio-políticas da modernidade - liberalismo, comunismo e fascismo; a primeira, segunda e terceira teorias políticas, respectivamente. Novos desenvolvimentos no arranjo global de forças sócio-econômicas, ideológicas e geopolíticas em anos recentes nos forçam a examinar estas com novos olhos. Por um lado, precisamos reconhecer a herança filosófica comum de todas estas três ideologias na modernidade, e assim revelar as instâncias nas quais elas conscientemente ou inconscientemente se coadunam, enquanto pelo outro lado delinear por entre seus respectivos entendimentos de seus papeis como ideologias. Em particular, o objetivo desta série é reconciliar o esquema analítico marxiano com as características estruturais e superestruturais de novos e sincréticos movimentos sócio-políticos, em sua forma puramente estética, bem como em seus aspectos ideológicos mais profundos.

O ponto de partida de nossa investigação é o reconhecimento de que vivemos em um tempo extremamente ideológico, e ainda assim parece para muitos que não vivemos. Que muitos no Ocidente creiam que vivemos em um período "pós-ideológico"é, na verdade, testamento da saturação total da ideologia liberal. Desde a vitória do Ocidente liberal sobre a União Soviética e a proclamação liberal do "fim da história" (nas palavras de F. Fukuyama), o liberalismo se tornou tão entranhado em cada faceta da vida ao ponto de ser indistinguível da própria vida quotidiana em si mesma. Enquanto tal, ela provou ser a ideologia totalitária mais eficiente até então criada pela humanidade.

Liberalismo & Marxismo

O liberalismo apela a nossos instintos individuais inatos, mas o faz de tal maneira a guerrear contra nossos instintos coletivos igualmente inatos. Ambos esses instintos inatos - o individual e o coletivo - são partes integrais da experiência humana. Uma instância destacável da crua atomização imposta pelo liberalismo pode ser vista no fato de que o sexo parece ser um foco particular da ideologia liberal contemporânea, impulsionado de forma padrão como uma questão divisiva entre grupos político-midiáticos liberal-progressistas e liberal-conservadores [1]. Formular uma crítica ampla do liberalismo como a ideologia do capitalismo significa reexaminar como compreendemos movimentos anticapitalistas radicais hoje. Isso significa, em primeiro lugar, ousar reconsiderar e distinguir a base e a superestrutura em teorias marxianas sobre movimentos sociais heterodoxos (e aparentemente não-esquerdistas). Sobre este fundamento podemos proceder com um entendimento renovado com o qual analisar e então transcender (em teoria) questões particularmente divisivas.

Estas questões divisivas, de fato, não são fundamentais per se, mas são questões superestruturais que existem principalmente no reino das armadilhas discursivas; os tipos de formas de linguagem usados que nos dirigem a associar estas com outros reinos distintos de pensamento e atividade. Estes são modos e reinos que até então foram considerados pelos marxistas como hostis aos interesses históricos e materiais de classe do proletariado; eles estão associados com políticas de reação, pré-modernidade, e/ou com forças de classe da burguesia ou da pequena-burguesia em um modo de crise. Outras questões são étnicas, de gênero e de sexo, que dividem as forças do proletariado. A ossificação de uma cultura "globalista" politicamente correta neoliberal que as cercam serve para justificar o "imperialismo dos direitos humanos": estes representam exemplos cruciais da permuta entre teorias "antiliberais" (formalmente, elas não estão abertas para debate) pelo próprio paradigma liberal da modernidade.

Os elementos utópicos no liberalismo encontraram expressão em seu ramo de "progressismo", e os marxistas, tal como os socialistas utópicos antes, encontraram um chão comum com os liberais. O ramo futurista do fascismo também apelava a esse progressismo, e republicanos radicais, anarquistas, sindicalistas, bem como republicanos vermelhos na Itália estiveram entre os fundadores dessa terceira teoria política no plano italiano. O esquema progressista, que permitiu e engendrou a fertilização cruzada entre as três teorias políticas, as situa todas elas como teorias políticas modernas. Porém, o núcleo para teorias políticas futuras existe na segunda e terceira - ambas as quais propõem a questão do que seguirá a ordem capitalista (liberal) moderna.

Assim, há um erro inerente em pensar as três ideologias da modernidade em formas estáticas; pensá-las como estruturas que se situam sozinhas. É, então, errôneo contrastá-las com ideologias "sincréticas", ou considerar a terceira teoria política como distintamente sincrética, e a primeira e segunda não. Todas as três teorias políticas da modernidade influenciaram umas as outras; cada uma foi criada a partir de ideias não apenas daqueles que as precederam, mas que concretamente emergiram do mundo material realmente existente e de tudo que foi herdado dele. Cada teoria política não emergiu sob uma forma completa, e assim, por exemplo, o liberalismo hoje tem traços tanto do comunismo (i.e., marxismo) e do fascismo. Similarmente, o marxismo nasceu não apenas do liberalismo e de sua contemplação do feudalismo e da pré-modernidade, mas estava interagindo simultaneamente com; subsumindo aqui e rejeitando ali, as ideias do liberalismo radical, do nacionalismo, do existencialismo e do anarquismo, que são, não por acidente, todos juntos também as bases do fascismo.

Uma chave dada por Marx: O XVIII de Brumário

Para muitos que compreendem a trajetória do desenvolvimento histórico através de uma lente marxiana, poucas coisas parecem mais contraditórias em relação às próprias visões de Marx do que sua "correção" de Hegel nas primeiras linhas do Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. O ensaio em si permanece como uma das melhores descrições de Marx de sua teoria do Estado capitalista. A análise dos marxianos é intelectualmente honesta quando ela opera com uma compreensão das condições objetivas e subjetivas nas quais a transformação histórica se dá, segundo o esquema analístico do materialismo histórico ou dialético. Ademais, ela exibe uma distinta fidelidade à ciência proposta quando olha objetivamente e sem viés emotivo para as formas superestruturais que tais transformações históricas assumem.

O problema identificável, então, ao se aplicar a mesma análise marxiana ao presente, isto é, quando ela se apoia nas dicas superestruturais à disposição e cede à pressão da cultura de ativismo, ela pode falhar particularmente quando observa movimentos sociais contemporâneos, isto é, do início do século XXI na era pós-moderna. Uma chave para compreender este problema, como uma introdução adequada a nossa investigação, pode estar em uma leitura revisada do primeiro capítulo do XVIII de Brumário.

Assim, será importante para nós examinar não apenas como esta correção é interpretada equivocadamente pelos marxistas, mas também talvez onde o próprio Marx poderia ser corrigido - ou talvez melhor, alinhado com sua própria ciência proposta. Isto levantará a questão do que isso significa no contexto do reino superestrutural da estética, cultura, palavras (ou armadilhas discursivas), ideais e símbolos. Se Marx parece se contradizer, pode ser importante virá-lo de cabeça para cima.

A confusão entre forma e substância não é apenas um problema teórico, mas um que possui impacto extraordinário sobre o presente: se socialistas radicais, anarquistas e comunistas estão hoje confiando em pistas superestruturais para determinar a identidade de seus "inimigos de classe", isto pode ser um equívoco trágico, e em retrospecto, uma farsa. Conforme começamos a sofrer com a "overdose de informação" da era da internet, e onde déficits de atenção batem record, na verdade é difícil não ser econômico quando se procura por certas pistas: comunistas hasteiam bandeiras vermelhas, anarquistas bandeiras negras, enquanto socialistas mimetizam liberais se privando de simbolismos abertos. Ao contrário, os socialistas usam linguagem e sintaxe "liberal" e "progressista" para atingir qualquer um à esquerda do centro. Todos os três, porém, na melhor das hipóteses ignoram, e na pior das hipóteses vilificam aqueles na centro-direita e mais além.

Marx vs. os marxistas: Subsunção total de todas as classes em um proletariado

O problema com a marginalização ou vilificação de pessoas na "centro-direita e mais além"é, obviamente, que em termos de processos eleitorais é efetivamente impossível ter sucesso neste terreno sem ideias "de centro-direita e mais além" apelando a membros do proletariado. É simplório demais varrer estas sob o tapete da "falsa consciência" sem colocar seriamente em questão o potencial para (e a realidade da) agência de classe em geral. Em conexão com isto está um problema na maneira pela qual grupos comunistas contemporâneos tem ignorado a teoria marxista real e simplificado sua definição de "proletário".

Ao contrário, não apenas ao olhar para a sociedade civil, mas também na teoria marxista, nós devemos compreender que sob condições do capitalismo tardio, i.e., modernidade tardia, que o desenvolvimento capitalista proletarizou todas as outras classes (pequeno-burguesa, etc.) através de várias maneiras. Todas as classes prévias, que existem hoje sob forma proletária, foram subsumidas pelo capital e proletarizadas; todas estão envolvidas no processo crítico de valorização. Por definição, portanto, todas estão envolvidas na produção de mais-valia. Todos os labores estão em análise final orientados para o acúmulo de capital; e todos estão em análise final alienados do trabalhador e acumulados pelo capitalista, através do ciclo de produção, dos produtos de dito labor.

Os mecanismos da acumulação de capital, no contexto do capitalismo tardio, não são apenas a apropriação de mais-valia sob a forma de salários na típica relação empregador-empregado; mas, ao invés, todas as relações de produção ou relações sociais estão engendradas para a acumulação de capital pelos capitalistas financeiros. Modos pré-capitalistas (aluguéis, taxas), capitalistas (salários), e capitalistas tardios (empréstimo/especulação/finanças) de apropriação de capital, são todos utilizados no capitalismo tardio como métodos de acumulação de capital.

Assim, classes que aparecem como gerenciais, pequeno-burguesas, lumpen, administrativas, etc. foram proletarizadas. Dessa forma suas lutas, quando dirigidas à ordem estabelecida, independentemente da poesia, (slogans, simbolismo, gritos de guerra, imagética e estandartes), são geralmente proletárias em substância ainda que não de forma aparente.

Assim no que concerne atalhos interpretativos, úteis que seja, eles possuem duras limitações por se referirem a interpretações majoritariamente desatualizadas de pistas estéticas e superestruturais em geral. Este é especialmente o caso conforme vários movimentos sociais emergindo em oposição ao capitalismo derivam de uma mistura aparentemente caótica ou dissonante de vários radicalismos. Estes até mesmo incluem aqueles que parecem e sentem como se originando da extrema-direita fascista, e podem de fato originar daí. Como exploraremos nesta série, estes são muitas vezes movimentos objetivamente proletários e anticapitalistas que estão envolvidos na estética e referências históricas do fascismo e de vários neofascismos na Europa, e nos EUA geralmente assumem a forma do constitucionalismo e do libertarianismo também.

Se, de fato, estes grupos radicalizados de "extrema-direita" estivessem de fato fazendo o trabalho da classe governante, mobilizando para esmagar iniciativas de poder operário em nome do Estado, da Igreja, e dos interesses de classe da pequena-burguesia (e das forças tradicionais da reação em geral), então a classificação marxista novecentista destes grupos como "fascistas" poderia ser de fato apta: nossos "atalhos" teriam servido.

De fato e similarmente também seria uma tragédia de grupos de combate "de esquerda" tais como os Antifa estivessem em verdade atacando outros movimentos proletários opostos ao capitalismo, que só calham de parecer permutações pequeno-burguesas reacionárias de poder classista.

Ao mesmo tempo não podemos definir diretamente a contra-mobilização contra grupos comunistas por grupos "de extrema-direita" como contra-mobilizações contra o proletariado enquanto classe. Objetivamente, estas são lutas relativamente pequenas entre grupos ideológicos distintos pertencentes ao proletariado (i.e., esquerda vs. direita), e mimetizam as lutas entre seitas religiosas, e não representam os interesses de uma classe contra outra classe. Auto-referências e simbolismo "comunista" vs. "fascista" são abstrações nocionais e de modo geral não se ligam materialmente a forças de classe proletária vs. pequeno-burguesa, respetivamente, ainda que remetam a elas abstratamente, i.e., no mundo das ideias.

Certamente, "dividir para conquistar" tem sido uma tática eficaz para a classe governante manter seu mando classista. Isso pode se estender muito além do que era previamente compreendido. E coloca em cheque o modo pelo qual compreendemos e interpretamos a suposta prole de vários movimentos sociais do século XX.

O Estado capitalista e seu aparato super-armado de poder estatal, sua burocracia complexa e grandes recursos, se apresenta como uma monstruosidade aparentemente inconquistável. Grupos marxistas revolucionários aparentemente empalidecem em comparação em termos de sua capacidade de projetar poder. Significativamente menos poderosos são os supramencionados movimentos  e grupos anticapitalistas não-marxistas, muitos nem mesmo se identificando com a esquerda, e em sua maioria assumindo uma perspectiva decididamente anticomunista em termos de ideologia nominal. Estes grupos fazem excelentes alvos substitutos para grupos revolucionários marxistas e anarquistas; é possível atacá-los nas ruas e espaços virtuais. Vitórias aqui servem para satisfazer a necessidade de ter vitórias, mas podem na verdade trabalhar contra os objetivos verdadeiros da luta contra o capitalismo.

Movimentos sociais sincréticos na Eurásia já estão superando o problema para o qual estamos olhando, e portanto alguns desses exemplos serão discutidos nesta série. Outros exemplos incluem o socialismo pan-árabe e pan-sírio (tal como o Ba-athismo ou o PSNS), bem como nacionalismos revolucionários na América Latina, a Teologia da Libertação, grupos revolucionários na área novorrussa da ex-Ucrânia, e outros. Eles tem influenciado nossas opiniões também, mas mais concretamente demonstram que soluções podem ser deduzidas e principalmente são mais do que "prova conceitual" de que tais empreendimentos podem ser realizados com grau elevado de eficácia.



Retornando a Marx em O Dezoito de Brumário

Marx escreve:

"Hegel comenta em algum lugar que todos os grandes fatos e personagens histórico-mundiais aparecem, por assim dizer, duas vezes. Ele se esquece de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda vez como farsa [...] E exatamente enquanto eles parecem estar ocupados com revolucionar a si próprios e as coisas, criando algo que não existia antes, precisamente em tais épocas de crise revolucionária eles conjuram ansiosamente os espíritos do passado para seu serviço, pegando emprestados deles nomes, slogans de batalha e roupas de modo a apresentar esta nova cena na história mundial em um disfarce honrado pelo tempo e com linguagem emprestada. Assim Lutero trajou a máscara do Apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente com o disfarce da República Romana e do Império Romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer melhor do que parodiar, primeiro 1789, então a tradição revolucionária de 1793-95. De maneira similar, o iniciante que aprendem um novo idioma sempre o traduz de volta para sua língua materna, mas ele assimila o espírito do novo idioma e se expressa livremente nele apenas quando ele transita nele sem rememorar o antigo e quando ele esquece a língua nativa".

"Quando pensamos sobre esta conjuração dos mortos da história mundial, uma diferença saliente se revela. Camille Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint Just, Napoleão, os heróis bem como os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, realizaram a tarefa de seu tempo - aquela de desagrilhoar e estabelecer a sociedade burguesa moderna - em trajes romanos e frases romanas. A primeira destruiu a fundação feudal e cortou as cabeças feudais que haviam crescido nela. A outra criou dentro da França as únicas condições sob as quais a livre competição poderia se desenvolver, alocaram terra adequadamente utilizada, e a poder produtivo desimpedido da nação empregado; e para além das fronteiras francesas varreu instituições feudais por todo lado, para fornecer, na medida do necessário, à sociedade burguesa na França um ambiente atualizado e adequado no continente europeu. Uma vez que a nova formação social foi estabelecida, os colossos antediluvianos desapareceram e com eles o romanismo ressuscitado - os Brutus, os Gracos, os publícolas, os tribunos, os senadores, e o próprio César. A sociedade burguesa em sua realidade sóbria engendrou seus próprios intérpretes e porta-vozes autênticos nos Says, Cousins, Royer-Collards, Benjamin Constants e Guizots; seus verdadeiros líderes militares se sentavam por trás de mesas de escritório e o cabeça-de-porco Luís XVIII era seu chefe político. Inteiramente absorvida na produção de riqueza e na competição pacífica, ela não mais se lembrava dos fantasmas do período romano que haviam velado em seu berço".

"Mas ainda sendo a sociedade burguesa tão anti-heroica, ela não obstante necessitava de heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil, e guerras nacionais para gerar a si mesma. E nas austeras tradições clássicas da República Romana os gladiadores burgueses encontraram os ideais e as formas de arte, as auto-enganações, de que precisavam para ocultar de si mesmos o conteúdo burguesamente limitado de suas lutas e para manter sua paixão no plano superior da grande tragédia histórica" [2].

Por outro lado, esta passagem crucial é um dos trabalhos influentes de Marx na análise da experiência revolucionária e na dedução de conclusões teóricas; Marx afirma que "os homens fazem sua própria história, mas eles não a fazem como lhes apraz; eles não a fazem sob circunstâncias selecionadas por si mesmos, mas sob circunstâncias já existentes, dadas e transmitidas desde o passado" [3].

Como exemplos, nós vemos que Marx reconta o retorno da Reforma Luterana ao Apóstolo Paulo, o apelo de Cromwell e dos ingleses ao Velho Testamento, e a estética romana da Revolução Francesa como casos nos quais transformações revolucionárias buscaram sua estética e apresentação no passado de modo a apresentar um tipo de legitimidade histórica e um senso de luta historicamente redimida contra a ordem contemporânea.

Hipótese vs. Experiência: A Teoria deve refletir a realidade

Ainda assim, em flagrante contradição a este reconhecimento presente de tão inegável realidade, Marx prossegue sugerindo que a futura revolução social "não pode tomar sua poesia do passado, mas apenas do futuro. Ela não pode começar consigo mesma antes que tenha se livrado de toda superstição do passado. As antigas revoluções demandaram rememorações da história mundial passada para suavizar seu próprio conteúdo" [4].

Por que Marx olha para um uso eficaz e provado da poesia do passado apenas para defender que a futura revolução social só pode tomar sua poesia do futuro? Marx propõe: "A revolução do século XIX deve permitir que os mortos enterrem seus mortos para chegar a seu próprio conteúdo" [5].

Daí o significado da fórmula "primeiro como tragédia, então como farsa": a apropriação do passado e de formas existentes é uma necessidade circunstancial tragicamente imposta, e uma repetição subsequente dela representa pouco mais que uma paródia falida, castrada, reacionária. Marx, apesar de reconhecer a importância do disfarce apostólico da Reforma ou das pretensões romanas da Revolução Francesa, chega ao ponto de denunciar a influência da "tradição de gerações mortas", como um "pesadelo no cérebro dos vivos" [6].

Ainda que tal avaliação feita por Marx possa estar de fato restrita a uma precognição relevante em referência ao golpe francês de 1851, a conclusão de que os "nomes, slogans de batalha, e trajes" tirados do passado em meio a luta revolucionária constituem inerentemente uma farsa reacionária e auto-abortiva é de importância séria e de grandes consequências. Nós propomos que ela é um equívoco.

E este é um equívoco, de fato uma contradição confusa na discussão de Marx sobre a relação entre a superestrutura (a "poesia") e a base (classe objetiva e forças econômicas), que ou levou a repercussões profundamente negativas nas análises produzidas por marxistas, ou foi efetivamente refutada por experiências revolucionárias passadas e contemporâneas.

Não apenas foi a "poesia do passado" eficaz em seu tempo, nós não podemos, em última análise, conceber uma maneira pela qual ela seja evitável. Ela foi realmente necessária. A revolução de 1917 não remetia apenas a sua própria promessa e futuro utópicos. Ela teve que se fortificar na mitologia de 1871, 1848 e 1792-94. E não só isso, mas também toda a "história todas as sociedades existentes até então é a história da luta de classes" (Manifesto Comunista, 1848). Não se pode julgar estas positivamente sem valorizá-las, e não se pode depositar valor na história sem a mitificar.

De fato, tornou-se excessivamente comum para marxistas resumir a presença de imagética, simpatias ou tonalidades antigas, medievais, pré-modernas ou mesmo burguesas primitivas como indicativas de uma natureza pró-capitalista, reacionária e contrarrevolucionária. Em realidade, eles estão equivocadamente denunciando movimentos que possuem o potencial para produzir mudanças sociais genuínas e ser uma parte importante da transformação revolucionária.

Nossa Proposta

Nós propomos compreender tais movimentos no sentido marxiano, ao contrário, como muitas vezes "revolucionários" mesmo quando trajando as roupagens do mito, mesmo quando portando a máscara da reação.

Mas perguntamos isto: por que deve ser o caso de que a revolução deve "deixar os mortos enterrar seus mortos"? Este foi de fato o caso, e é provável que seja o caso? A isto, nossa resposta é "Não".

Seriam os movimentos comunistas, anarquistas e socialistas hoje aproximadamente os mesmos de 150 anos atrás? Seriam os movimentos fascistas e de "ultra-direita" hoje aproximadamente os mesmos de 70 ou 100 anos atrás? Para ambas, nossa resposta é novamente "Não".

Estes grupos e movimentos passaram por tremendas mudanças, um século se passou com a estrutura agindo sobre a superestrutura e a superestrutura agindo sobre a estrutura, produzindo uma cadeia irreversível de fenômenos atrás de si. As perspectivas de Marx como expressas no Dezoito de Brumário já foram contraditas na prática. Porém, ao mesmo tempo, há elementos de verdade também: há diferentes perspectivas do passado, mas as pessoas podem ser unificadas por uma ideia comum sobre que tipo de futuro funcionaria. Ainda assim, nós vemos isso não como uma razão para condenar aqueles que usam o poder do mito em sua agitação e identidade, mas sim como razão para que aqueles que o compreendem não confundir sua poesia subjetiva com sua função objetiva.

Tal como o uso subjetivo do simbolismo e da linguagem de um partido ostensivamente comunista não o torna objetivamente comunista no sentido revolucionário e proletário do termo (podemos olhar para qualquer número de partidos eurocomunistas, por exemplo), a poesia e mito do fascismo não torna os grupos e movimentos que as usam objetivamente fascistas no sentido burguês reacionário do termo.

Também é importante relembrar: o movimento comunista não apenas no século XX, mas mesmo na época de Marx, também escreveu seus versos sobre o passado, sua própria poesia sobre a Revolução Francesa, Grachus Babeuf, August Blanqui, a Liga do Justo, a Conspiração dos Iguais, as Comunas, e daí em diante. Conforme eventos avançaram no tempo, este versos se tornaram cada vez mais distantes de nós. Os comunistas agora se referem ao passado e traçam sua origem "moderna" a uma época quase dois séculos atrás. Pode um movimento comunista não ter uma história? É possível que ele não lembre e mitifique a si próprio? Seriam as bandeiras vermelhas e negras hoje alusões ao grande ano de 1917 similares à conjuração dos "espíritos do passado a seu serviço, tomando emprestados nomes, slogans de batalha, e trajes de modo a apresentar esta nova cena na história mundial em um disfarce honrado pelo tempo e com linguagem emprestada?" Nós acreditamos que sim.

Olhar abertamente para estas questões estará entre as tarefas desta série. Nós convidamos nossos leitores a se unirem a nós conforme exploramos estas questões relevantes. Isso envolverá uma dissecação da complexa relação entre estrutura e superestrutura, que é uma que foi também abordada por modernistas de meados do século (os chamados pós-modernistas) e muito mais.

Isso demandará um olhar para a cultura, a evolução da cultura e subcultura jovem, e para movimentos sócio-políticos sincréticos e antiliberais de hoje. Estes traçam suas origens primariamente à segunda metade do século XX.

Algumas dessas coisas demandarão que olhemos para as concepções superestruturais de poesia; a poesia do passado vs. a poesia do futuro. É claro, poesia sobre o passado não é do passado, mas do presente - ela só é sobre o passado. Similarmente, a poesia do futuro não é do futuro, mas do presente. E, em ambos os casos, elas remetem ao presente - está para nós no presente, e no presente tudo pode ser feito. Neste sentido, estas - a poesia do passado e a do futuro - são ambas narrativas contemporâneas.

Se cumprimos nossa missão, levantaremos mais perguntas do que seremos capazes de responder, e esperançosamente provocaremos uma razão ainda melhor para desenvolver esta série ainda mais. Este é um tema vasto demais para qualquer quadro singular, e um que só podemos esperar rascunhar com alguns detalhes para o leitor.

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[1] Sexo e sexualidade, que de início nos parecem algo tão pessoal, são como linguagens na medida em que formam o tecido conectivo entre o indivíduo e o coletivo. Não nos deve surpreender, então, que o liberalismo foque hoje tanto de seu trabalho ideológico e intelectual na área de sexualidade e gênero. O liberalismo é atomizador, e induz um tipo de esquizofrenia social ao promover uma ideia social pudica de que nós somos todos consumidores privados e individuais. Ele é até mesmo pudico em sua comercialização exagerada da sexualidade. Ele produz um indivíduo "padrão", subsexualizado através da supersexualização, solitário em um mar de "pessoas demais"; desvalorizado e apto para consumo e produção dentro do ciclo capitalista; cercado por abundância e ao mesmo tempo alienado do produto de seu trabalho. O liberalismo é a ideologia do capitalismo na medida em que promove tudo isso.

[2] https://www.marxists.org/archive/marx/works/1852/18th-brumaire/ch01.htm#2

[3] ibid

[4] ibid

[5] ibid

[6] ibid


Thomas Dalton - Meio Ambiente, Imigração e Redução Populacional

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por Thomas Dalton



Com 308 milhões de pessoas, os EUA são atualmente a terceira nação mais populosa do planeta, atrás apenas da China (1.3 bilhão) e da Índia (1.2 bilhão). Até 2050, a Índia terá chegado à primeira posição, com 1.6 bilhão - um aumento de 37%. A política de "filho único" da China limitará seu crescimento a 8% (1.4 bilhão). A taxa de crescimento nos EUA, porém, supera ambos: estamos projetados a atingir 440 milhões, ou um aumento assombroso de 43%. Esta é, de longe, a mais alta taxa de crescimento de qualquer nação ocidental industrializada.

Um crescimento populacional tão dramático, sob quaisquer circunstâncias, causa uma variedade de problemas econômicos e sociais. Nos EUA, como sabemos, a situação é exacerbada pelo fato de que a maior parte desse crescimento será entre grupos minoritários não-brancos, primariamente hispânicos. Os números são alarmantes: o aumento de 43% corresponde a 132 milhões de pessoas; dessas, 130 milhões serão minorias. A população branca crescerá apenas 2 milhões, reduzida a 46% do total em 2050. Assim, podemos esperar que os problemas com minorias irão crescer em uma variedade de áreas: moradia, educação, previdência, saúde, criminalidade, segurança, desigualdade econômica, e conflitos étnicos e raciais.

Mas uma área importante negligenciada é verdadeiramente daltônica, e esta é a do meio ambiente. Uso de energias e recursos, desenvolvimento, construção de estradas, expansão de pastos e áreas agrícolas, desmatamento, poluição e descarte de resíduos - nenhuma dessas se importa com que raça ou etnia está realizando o consumo. Apenas duas coisas importam: número bruto de pessoas e nível de consumo. E só com isso nós já nos deparamos com uma crise ecológica nesse país.

Mensurar impacto ambiental é um prospecto desafiador, mas o consenso parece estar sendo construído ao redor do conceito de pegada ecológica como um critério relevante. A ideia básica por trás é interessante: a de que seres humanos, como consumidores e produtores, demandam o uso continuado de alguma porção da superfície do planeta, da qual extrair recursos e na qual lançar seus resíduos. Alguns recursos são renováveis, outros não. Alguns produtos residuais se dissolvem rapidamente, outros levam milênios. Muitos outros recursos demandam uma área quantificável de terra: terra para plantar, pavimentar, pastar, ou desenvolver de alguma outra forma. E assim também é com nossos produtos residuais: nosso lixo ocupa um espaço cada vez maior, e emissões de gases estufa de todas as fontes podem demandar compensações em termos de vegetação (árvores ou outras coberturas vegetais). E a vida vegetal possui em geral uma habilidade de dissolver os vários poluentes e toxinas que nossa sociedade vomita diariamente.

Em uma tentativa de formular uma medida padronizada, cientistas ambientais somaram a área terrestre de todo nosso uso de recursos, mais a área terrestre necessária para nossos resíduos e compensações de carbono. O resultado é, para cada nação, uma única medida de área terrestre - a pegada ecológica - que representa a quantidade de área necessária, por pessoa, para sustentar um dado padrão de vida. (No que segue, eu usei o Relatório "Planeta Vivo" de 2008 do Wold Wildlife Fund).

No final da escala, nações como Haiti e Bangladesh labutam com aproximadamente 1 acre por pessoa. A maior parte do Terceiro Mundo consome entre 2.5 e 8 acres, incluindo Índia (2.3) e China (5.3). A maior parte da Europa Ocidental vai de 10 a 15. No topo da lista estão os EUA, em quase 24 acres por pessoa. (Dois feudos petrolíferos, EAU e Qatar, pontuam mais alto que os EUA, mas por pouco).

Naturalmente, há algo de estimação nesses números, e certamente eles são algo a ser debatido. Mas eu não tenho muitas dúvidas de que estejam direcionalmente corretos, e que a margem de erro esteja dentro de limites razoáveis. Mas ainda que eles estejam equivocados por 50% - isto é, que eles indiquem o dobro do nível de consumo real - eles apontam para algumas conclusões perturbadoras para os EUA.

Considere, por exemplo, a pegada total dos EUA. Com mais de 300 milhões de pessoas consumindo aproximadamente 24 acres por pessoa, isso resulta em uma pegada total de 7.4 bilhões de acres. Por comparação, os EUA continentais (isto é, excluindo Alaska) possui uma área terrestre total de apenas 1.9 bilhão de acres - tão somente 1/4 do uso efetivo. Colocando de outro modo: nossa pegada é 400% da área continental, e toma mais de 20% de todo o planeta.

Na verdade há uma explicação em duas partes para essa situação. Primeiro, sobreutilizamos a própria terra. O cálculo de pegada ecológica acima para os EUA implica ser possível usar mais do que 100% da terra. Isso ocorre quando, em essência, se esgota o "capital natural" da biosfera, o que ocorre por ações como desmatamento, perda de solo arável, e sobreuso de águas subterrâneas. Pela maioria das indicações, a humanidade como um todo está sobreutilizando o planeta por 30-40% - uma condição que, se verdadeira, claramente não pode continuar por tempo indeterminado. Mas o segundo e mais importante fator para os EUA é uma situação por meio da qual se é capaz de, pela globalização e comércio internacional, consumir os recursos terrestres de outras nações - sob a forma de produtos agrícolas importados, bens manufaturados, produtos químicos, roupas, maquinário, veículos e combustíveis fósseis.

Tanto por razões de justiça social e sustentabilidade ecológica, o mundo do futuro terá que viver dentro de suas capacidades. Em um sentido prático isso significa três coisas: reduzir o consumo total (global) a níveis sustentáveis, reduzir o consumo per capita (dada a pressuposição da ONU de que as populações crescerão), e, mais criticamente, viver dentro da capacidade da área terrestre de cada nação.

Assim, para os EUA, o cálculo é simples. Com 1.9 bilhão de acres de terra, nós podemos portar no máximo (1.9 bilhão/24 acres =) 80 milhões de pessoas sustentavelmente. Compare isto com a atual população de 308 milhões, que está crescendo rapidamente até 400 milhões. Assim, nós deveríamos estar contemplando uma redução de 75% ao invés de estarmos contemplando um crescimento de 40%. (Isto, obviamente, assume um nível fixo de consumo; se estivermos dispostos a cortar nossa pegada pela metade, poderíamos seguir com um mero corte populacional de 50%, para algo como 150 milhões de pessoas).

Mas a situação é pior do que isso. Sustentabilidade de longo prazo autêntica demanda que uma grande porção da terra seja separada como natureza intocada, inexplorada e não utilizada, de modo a manter a viabilidade geral do ecossistema. Quanto separar é uma questão difícil, especialmente considerando a ampla variabilidade e sensibilidade de diferentes ecossistemas, e a falta de consenso sobre a métrica apropriada. Estimativas mínimas parecem girar ao redor dos 20-25%, e no ápice, alguns tem argumentado por 50% ou mais, especialmente nas regiões mais biodiversas. Se, no pior dos cenários, nos for permitido usar então apenas 1 bilhão de acres de terra, os níveis atuais de consumo sustentarão apenas 40 milhões de pessoas - uma redução de 87%.

Estes são, francamente, números chocantes. E como mencionado acima, ainda que os números de pegada estejam significativamente equivocados - se, digamos, estejamos consumindo apenas 10 a 12 acres por pessoa - então a população sustentável a longo prazo volta apenas para 80-100 milhões. Assim, não podemos nos esquivar desse problema simplesmente acusando ambientalistas malucos de fazerem estimativas desarrazoadas. Uma ação mais drástica é claramente necessária.

Considerando a insustentabilidade radical de nossa situação presente, precisamos abordar imediatamente tanto o nível de consumo como a questão populacional simultaneamente. No lado do consumo, nós necessitamos claramente nos tornar mais eficientes, menos dispendiosos, e em geral consumir menos. Americanos como um todo desperdiçam uma quantia tremenda de energia e recursos, e isso melhora em pouco ou nada nosso padrão de vida. A Alemanha, por exemplo, possui um nível de qualidade de vida superior ou igual, e ela atinge isso com uma pegada de apenas 11 acres por pessoa - menos da metade da nossa. Um nível comparável para os EUA é claramente atingível, especialmente ao longo do período de umas poucas décadas. Mas isso não acontecerá sem superar conflitos ferozes por interesses investidos.

A outra metade da equação é ainda mais difícil e contenciosa. Confrontar a questão espinhosa do controle populacional, para não falar em redução populacionar, só é um pouco menos controverso que a negação do Holocausto. E de fato qualquer tentativa de discutir redução populacionar em larga escala invariavelmente evoca piadas ruins sobre câmaras de gás e crematórios. Mas a situação demanda uma discussão racional, e aqui estão alguns primeiros passos óbvios.

Um: Um fim imediato para toda imigração. O mito da América como a "terra dos livros e lar dos bravos"é, para a maioria dos imigrantes, besteira. Os imigrantes não vem aqui porque eles "amam nossas liberdades". Eles vem fundamentalmente por uma razão: para fazer dinheiro, e melhorar seu padrão de vida. Mas todo novo imigrante - seja ele um pobre mexicano ou um educado asiático - contribui diretamente para um ecossistema que já ultrapassou seus limites. Nem nossa nação, nem o planeta podem suportar mais americanos.

Dois: Deportação de todos os imigrantes ilegais e fim do privilégio do green card. Considerando a urgência, toda pessoa ilegal aqui deveria ser presa e deportada. O sistema do green card deveria ser finalizado, e aqueles que atualmente o possuem devem estar sujeitos a expiração acelerada sem renovação.

Três: Pagar pessoas para que vão embora. Se alguém quiser se mudar permanentemente para fora dos EUA, o governo deveria pagar todos os gastos da mudança, e talvez até jogar um incentivo financeiro em cima. Isso obivamente não resolve o problema populacional global, mas ajuda com o problema de consumo total; permanece fato que qualquer dada pessoa vivendo fora dos EUA vai, em média, consumir menos.

Quatro: Uma ampla propaganda de imprensa sobre planejamento familiar e opções contraceptivas. Acesso livro ou de baixo custo a camisinhas, pílulas de controle de natalidade, programas educacionais, até abortos deveriam ser considerados.

Quinto: Fim para todo incentivo a nível de impostos para se ter mais do que um filho. As atuais leis tributárias permitem isenções para todas as crianças, independentemente de número. Elas deveriam ser revisadas para permitir isenção apenas pelo primeiro filho, e desicentivos crescentes além do segundo.

Se estas medidas se provarem insuficientes, opções mais radicais estão disponíveis:

Seis: Esterilização paga pelo governo. Certamente algum percentual da população americana gostaria de ser esterilizada caso isto fosse gratuito. Mais radical ainda seria dar incentivos monetários para esterilização. Imagine se o governo oferecesse 5 mil dólares por qualquer adulto sem filhos que quisesse ser esterilizado - e imagine o choro! Mas não pode haver realmente qualquer tipo de reclamação, desde que não haja coerção e o programa seja plenamente voluntário. Sim, é mais provável que as classes mais baixas sejam mais prováveis de participar; isto talvez seja uma pena, mas considerando que aceitamos a desigualdade extrema em nosso país, nós temos que viver com as consequências. (Na pior das hipóteses, isso compensaria as taxas de natalidade mais altas das populações imigrantes de classe baixa).

Sete: Licenças ou "créditos" de natalidade. Este é um tipo de versão capitalista da política chinesa. Kenneth Boudling e Herman Daly, entre outros, propõem um sistema que dá a cada mulher um certo número de créditos, de modo a lhe permitir ter um filho legal. Se ela quiser dois ou mais, ela deve comprar os créditos de outra mulher que queira abrir mão dos seus. Um mercado nacional determinaria o preço, e mulheres sem filhos claramente lucrariam. Este talvez seja um método sem coração, mas o sistema atual é excessivamente cruel a sua maneira - uma praga humana descontrolada devorando o planeta.

Sem dúvida muitos leitores pensarão que programas de esterilização ou créditos de natalidade como horrendos e impossíveis. A isso ofereço duas respostas: (1) nós obviamente começaríamos pelas abordagens menos radicais primeiro, e só contemplaríamos as ações mais extremas se necessário; e (2) temos ideias melhores? Continuar da mesma maneira não é uma opção racional. Isso só convida a catástrofe como meio de reduzir nossa população - o que certamente acontecerá se não fizermos nada. Números humanos vão se reduzir; nós podemos planejar racionalmente uma aterrissagem suave, ou só esperar que a impiedosa Mãe Natureza nos esmague.

As ações acima, lidando com população e consumo simultaneamente, indubitavelmente terão impacto substancial. O efeito real naturalmente dependerá da velocidade de implementação. A situação é urgente, mas parece haver tempo suficiente para que essas ações funcionem. Consumo reduzido e maiores eficiências podem ocorrer bem rapidamente, mas ninguém está propondo uma redução populacional de 50% ou 75% em uma década.

De forma mais realista, eu proporia algo ao nível de um plano de 50 anos para atingir os objetivos acima. Se, ao longo das próximas cinco décadas, pudéssemos reduzir tanto nossa pegada como nossa população em 2% ao ano, chegaríamos a 2060 com 110 milhões de pessoas, consumindo por volta de 8.7 acres por pessoa - um número sustentável de 1 bilhão de acres de pegada no total. Reduções anuais de 2% ao ano são atingíveis, e dificilmente seriam percebidas pela consciência pública.

Há bastante flexibilidade nos números, é claro. Se só fôssemos capazes de mobilizar, digamos, 1% de reduções por ano em média, o processo ainda daria certo - mais levaria 100 anos para se atingir a sustentabilidade. Compensações entre população e consumo também são possíveis. Se pudéssemos, por exemplo, reduzir a população em 3% ao ano, então o consumo só precisaria cair 0.5% anualmente; ou vice-versa.

E finalmente, crítico para qualquer esquema de redução populacional é uma implementação proporcional e equitativa. Se não daria certo, por exemplo, ter uma classe ou etnia adotando políticas de baixo crescimento (ou crescimento negativo) enquanto outras as ignorassem com impunidade. Teria que haver, então, algum tipo de política mínima de monitoramento e, particularmente para sistemas de penalidades tributárias ou créditos de natalidade, imposição equitativa.

A cada ano que esperamos, as coisas se tornam imensuravelmente piores: população crescente, consumo per capita crescente, e um ecossistema global próximo à exaustão. Com uma população sustentável na América, nós poderíamos nos alimentar, fornecer toda nossa própria energia (pense nisso - sem mais guerras por petróleo!), e manter áreas vastas de natureza selvagem. Isso é verdadeiramente alcançável. É apenas uma questão de vontade. Mas a discussão tem que começar agora. 


Leonid Savin - 10 Crises da União Europeia

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por Leonid Savin[1]



Atualmente, a União Europeia se depara com um número de crises interconectadas. Algumas delas são institucionais, outras são causadas por fatores objetivos e demonstram um despreparo geral - talvez mesmo uma falta de vontade - da parte de Bruxelas para lidar com novas ameaças. Ainda outros tipos de crises são operados, nos quais o papel importante é desempenhado pelos EUA como principal parceiro da UE em questões militares, políticas e econômicas. E certamente, este parceiro tenta promover seus próprios interesses.

Crise da Política Geral de Integração Europeia


O entusiasmo e pathos derivados da criação do espaço uniforme se exauriu, especialmente após os princípios benefíciários do projeto da UE, i.e. Alemanha e França, terem se tornado cada vez mais óbvios. O sistema da adoção de decisões políticas na UE (Comissários Europeus não são eleitos por voto direto) contradiz padrões e valores democráticos. E este mero fato solapa as fundações dos Estados nacionais dentro da UE e fortalece o papel da burocracia. Isso gera uma desconfiança geral das instituções supranacionais que não possuem autoridade. Ademais, a soberania enfraquecida dos Estados nacionais reduz significativamente seus papeis como jogadores no reino da política internacional. Se no passado Alemanha, França, Itália e outros países se apresentavam em busca do status de centros de poder (ainda que permanecessem dependentes dos EUA via OTAN), agora suas possibilidades estão notavelmente reduzidas.


Os interesses e ambições de certos países se deparam não apenas com a competição natural de fora, mas também com sabotagem interna expressa através do bloqueio de várias iniciativas. Por exemplo, a Alemanha não apoiou o desenvolvimento da União Mediterrânea que foi inicialmente apoiada pela França. Uma vulnerabilidade similar mutuamente dependente levou à emergência do conceito da UE como uma pequena potência[2]. Se, durante a era modernista, a Europa podia se gabar de ter uma coalizão de potências que contribuía para determinar o tom da história mundial, hoje (na era pós-moderna) a UE não é considerada uma entidade de valores absolutos em relação a política global.

Crise da Economia


O risco de uma saída grega da eurozona - e também o debate atual sobre possíveis novos candidatos para a falência - mostra uma insolvência em relação a política econômica da UE. Ainda que neoliberais bastante conhecidos como George Soros constantemente aconselhem políticos europeus em questões econômicas, a UE se abstém tanto de uma liberalização completa cmo de um retorno a uma abordagem mais racional em relação ao gerenciamento do setor bancário.


Assim, há uma ameaça de uma retirada da UE de sua parceria transatlântica em comércio e investimentos - i.e. o que está sendo intensamente objetivo de lobby por Washington.

O público europeu é um alvo crucial dessa iniciativa americana. Não obstante, pesquisadores notam que segundo padrões e leis internacionais da UE, há apenas o mandato em negociação, mas essas negociações ocorrem por trás de portas fechadas sob pressão de Washington. Ademais, houve inúmeras tentativas dos EUA de solapar as regras europeias sobre segurança de dados[3]. Relatórios tanto de organizações de consumidores e representantes da sociedade civil europeus e americanos confirmam isso.

Tais ações são, via de regra, conduzidas através de companhias lobistas. Por exemplo, através da "Hogan Lovells", que criou a "Coalizão para Privacidade e Livre-Comércio". Os interesses políticos diretos dos EUA são óbvios entre tais "peso-pesados" como Hugo Paemen, o ex-embaixador americano na UE; o ex-representante dos EUA para comércio, Clayton Eutter; o ex-vice-chefe do Departamento de Tecnologia da Casa Branca, Daniel Weitzner[4]; todos esses homens trabalham para Hogan Lovells. Conseguirão os consumidores europeus resistir à pressão de companhias multinacionais? É óbvio que esta também é uma questão de vontade política entre os líderes dos países da UE.

Analisando os indicadores macroeconômicos na UE, o observador alemão Eric Zuesse chegou às seguintes conclusões sobre as consequências de unir a UE à parceria transatlântica:

- Dentro dos primeiros 10 anos o acordo levará a Europa a perdas em exportação. As seguintes entidades sofrerão mais: Norte da Europa (2,07% do PIB), França (1,9% do PIB), Alemanha (1,14%), e também Grã-Bretanha (0,95%);

- O acordo levará a uma queda no crescimento do PIB. Levando em consideração as pedas europeias em exportação, o norte da Europa terá que lidar com a maior redução de PIB (0,5%), França (0,48%), Alemanha (0,29%);

- O acordo causará uma queda na renda do trabalho. A França sofrerá mais; perderá 5.500 euros por pessoa apta a trabalhar em cálculos anuais, o norte da Europa 4.800 euros, Grã-Bretanha 4.200, Alemanha 3.400 euros;

- O acordo levará a perdas de emprego. A UE perderá aproximadamente 600 mil postos de trabalho. As maiores perdas serão no norte da Europa - 223 mil, Alemanha - 134 mil, França - 130 mil, e também o sul da Europa - 90 mil;

- O acordo levará a perdas nos rendimentos dos governos. A margem de renda em cima de impostos indiretos em relação aos subsídios do governo se reduzirá em todos os países europeus. Isso se dará mais fortemente na França onde as perdas totais será de 0,64% do PIB. A deficiência nos orçamentos governamentais de todos os países europeus aumenterá com possível excesso dos indicadores fixados pelos acordos de Maastricht em 3%[5];

- O acordo causará aumento de instabilidade financeiro, acúmulo de desequilíbrios, a redução da renda de exportações, redução salarial para a população e também redução dos rendimentos governamentais. Nessa situação, a demanda terá que ser mantida pela renda e por investimentos. Ao mesmo tempo, contra as taxas decrescentes de consumo, o crescimento em vendas não será capaz de agir como força de impulsão. O crescimento do custo de bens que darão suporte à renda e aos investimentos (geralmente no setor financeiro) se tornará uma opção mais realista. A ameaça potencial de instabilidade macroeconômica em tal modelo de desenvolvimento é bastante conhecida e isso já foi demonstrado pela última crise financeira[6].

Crise da Cultura Europeia


A formação do espaço geral da UE forçou a criação de programas especials para ressaltar a unidade dos países da comunidade. Porém, ao invés de apelar para fatos históricos e para as tradições europeus (i.e. ressaltando os valores pluralistas), incluindo as raízes cristãs, Bruxelas provocou a criação de um modelo pós-moderno, mais conhecido como multiculturalismo. Líderes da Alemanha e da França oficialmente declararam a falência desse modelo há alguns anos. Ainda que a crítica do multiculturalismo esteja geralmente conectada a um desequilíbrio demográfico e ao processo de islamização da Europa (e agora a UE deve adotar as normas de seus próprios cidadãos nativos, em face da cultura islâmica, que é mais resistente do que o conjunto amorfo de regras "europeias"), as raízes do problema são mais profundos, e possíveis consequências podem ser muito mais sérios (mas também abraços hipócritas sob a bandeira da tolerância geram figuras como Anders Breivik). Não é apenas uma questão de emasculação da memória histórica e sua substituição por um simulacro cultural banal, mas também por um sistema educacional que institucionaliza a degradação intelectual. Finalmente, isso pode levar à desumanização e a mudança da imagem antropológica da Europa. Um dos fatos tristes desse processo - adoção de lei sobre casamentos homossexuais que mostra a próxima crise ligada à orientação sexual.

Crise da Identidade de Gênero

O projeto de transhumanidade promovido pelos EUA com frequência cada vez maior é percebido na UE como o mecanismo de destruição dos povos europeus de cultura e história ricas. Infelizmente, um número de leis, como a legalização dos casamentos homossexuais e a educação de gênero, já foram implementados em países europeus, mas eles causam séria resistência na vasta maioria da população e podem ser reconsiderados no futuro. Não obstante, isso afeta seriamente a imagem da UE. A Europa é vista cada vez mais como berçário da sodomia e da legalização de perversões. A narrativa sobre a Gayropa[7] já se tornou propriedade tanto de um discurso comum como de pesquisas científicas.

Crise Político-Militar

O conflito ucraniano e um falso alvo na forma da Rússia teve um impacto essencial sobre a reestruturação das forças armadas da UE ou para ser exato, predeterminou o plano de ações manipulativas tomados pelos EUA na arena europeia. Os países da UE dentro da OTAN se tornaram reféns de instruções de Washington, tendo desenvolvido a operação de longo prazo "Determinação Atlântica".

Além do debate sobre o papel da OTAN, a necessidade dos pagamentos correspondentes ao nível de 2% do PIB e a criação de forças europeias de reação, na UE parece haver um problema relativo a opiniões divergentes sobre a própria estratégia de ações.

Em 22 de fevereiro de 2015 o grupo político-militar enviou uma carta de recomendação ao Conselho da Europa em que era especificado que todos os membros da UE devem apoiar politicamente a realização de operações ou missões, mas apenas um número limitado deles deseja fazê-lo e tem possibilidade de participar de ações militares[8].

A recomendação do grupo político-militar da UE compeliu à adoção da nova provisão do mecanismo de financiamento geral da administração de operações militares da União Europeia, conhecido sob o codenome "Athena". A ideia principal é apresentar a UE como fonte de segurança.

Notaremos que várias missões civis e militares da UE são agora realizados em países situados longe das fronteiras da União Europeia: Afeganistão, Djibuti, Somália, Seichelles, Tanzânia, República Democrática do Congo, Mali, Niger, República Centro-Africana, Palestina, Kosovo, Bósnia, Geórgia e Ucrânia.

Em 27 de março de 2015 foi tomada a decisão 2015/528, que aprovou 49 pontos e 2 apêndices sobre financiamento, compensação e o registro durante preparação e realização de tais operações. Esse documento pesado e burocrático sofreu críticas do público por seu distanciamento da realidade. Em geral, um desequilíbrio entre desejos e possibilidades, especialmente financeiras, foi declarado como a crise do sistema político-militar da UE[9].

Crise da Boa Vizinhança

A política de vizinhança do UE possui longa história. Oficialmente ela é dirigida para a criação de zonas amistosas na Europa Oriental, Norte da África, Oriente Médio e Sul do Cáucaso. Em verdade, parte dos projetos se transformaram em instrumentos de expansão política e econômica (projetos de "Parceria Oriental" e "Parceria Sulina") operando no esquema do "poder suave". Por outro lado, a ausência de uma compreensão profunda das necessidades e interesses dos países vizinhos levou à emergência e escalada dos conflitos ao sul do Mediterrâneo que causaram um efeito dominó e um desastre humanitário no Norte da África e no Oriente Médio.

Deve ser notado que a UE usualmente conclui acordos de associação em troca da obrigação de realização de reformas políticas, econômicas, comerciais ou jurídicas. Em troca disso, o Estado associado pode conseguir acesso livre de barreiras alfandegárias a alguns ou toros os mercados europeus, ao mercado de produtos agrícolas, etc., bem como assistência técnica e financeira.

É importante notar que entre os países da parceria sulista apenas a Argélia e a Síria tiveram balança comercial positiva com a UE de 2000 a 2011, mas em ambos os casos isso esteve ligado à exportação de vetores energéticos. Para todos os outros países sulistas da política de vizinhança europeia, uma déficit comercial foi registrado.

Dados do Eurostat dão as seguintes estatísticas sobre os países[10]:

Argélia - 2005 - 11.460 milhões de euros, 2010 - 5.445 milhões de euros;
Egito - 2005 - 1.066 milhões de euros, 2010 - 6.843 milhões de euros;
Israel - 2005 - 4.095 milhões de euros, 2010 - 8.244 milhões de euros;
Jordânia - 2005 - 1.964 milhões de euros, 2010 - 2.261 milhões de euros;
Líbano - 2005 - 2.845 milhões de euros, 2010 - 4.272 milhões de euros;
Marrocos - 2005 - 2.228 milhões de euros, 2010 - 5.140 milhões de euros;
Palestina - 2005 - 192 milhões de euros, 2010 - 267 milhões de euros;
Síria - 2005 - 1.916 milhões de euros, 2010 - 115 milhões de euros;
Tunísia - 2005 - 626 milhões de euros, 2010 - 1.163 milhões de euros.

Em outras palavras, estes Estados receberam mais bens e serviços europeus, mas não venderam seus bens para países da UE. Isso é típico para economias com foco liberal, quando um país ou um grupo de países cria condições especiais para a penetração nos mercados de outros países, sob o disfarce do mercado aberto e do livre-comércio, ao mesmo tempo utilizando medidas protecionistas para certos tipos de produção de modo a proteger seus próprios produtores. Os dados fornecidos no relatório de 2013 "Países da Política de Vizinhança Europeia. Indicadores Macroeconômicos Essenciais" publicado pela Comissão Europeia testemunha convincentemente que a UE foi a vencedora, e indubitavelmente os países da parceria sulista não o foram.

A análise de ações da UE em relação aos Estados enquadrados neste esquema de "parceria" levou a um entendimento em muitos desses países de que, em verdade, tais projetos são uma forma velada de neocolonialismo. Como resultado, um número desses países se recusou a aceitar várias ofertas da UE. E em outros países (Moldávia, Ucrânia) as concessões europeias dos programas da "Parceria Oriental" simplesmente se dissolvem em esquemas de corrupção.

É claro, as posturas russofóbicas, de sanções à histeria midiática, são o exemplo mais óbvio da falsa estratégia de vizinhança.

A Próxima Crise - Um Problema Migratório

Os enormes fluxos de refugiados e imigrantes na UE são uma consequência das ações anteriores da UE nos países da Ásia, África e Oriente Médio. Ademais, os africanos e asiáticos assimilados (segunda e terceira gerações das antigas colônias) são um elo intermediário entre novos imigrantes e europeus indígenas. E leis adotadas anteriormente não permitem a resolução de questões humanitárias, e isso leva a situações absurdas e tragicômicas.

Bruxelas chegou recentemente ao ponto em que uma oferta de aquecer os navios transportando imigrantes ilegais foi considerada. Assim, as afirmações sobre necessidade de missões humanitárias e tolerância não são mais que uma política hipócrita de duplicidade. Pesquisas em países da UE mostram que a população local é categoricamente contra novos fluxos de imigrantes ilegais de países da África, Ásia e Oriente Médio. Enquanto isso, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu sincronicamente sugerem estabelecer quotas para os imigrantes que, em primeiro lugar, afetarão países da Europa Oriental, onde já existe uma situação demográfica deplorável.

A distribuição dos imigrantes em antigos campos de concentração, nos quais nazistas matavam pessoas durante a Segunda Guerra Mundial, é mais uma tentativa de construir uma boa mina em um jogo ruim.

Crise na Estratégia Energética

Sanções contra a Rússia impactaram diretamente a política energética da UE. O conceito do terceiro pacote de energia contradiz diretamente interesses nacionais de vários Estados que possuem deficiências em seus próprios recursos e contavam com as relações com a Rússia. O benefício econômico vinha tanto do trânsito de gás, como do consumo direto. Mas um número de países são forçados a sofrer com as humilhações da Comissão Europeia.

Ainda que se fale oficialmente na necessidade de criar uma posição consolidada e trabalhar para o ben dos interesses de todos os membros da UE, na prática ocorre diferente. No relatório do instituto alemão sobre questões internacionais e segurança devotado à política energética é especificado que "o discurso sobre a união energética pode ser interpretado geralmente como sintoma da crise na integração da UE"[11]. Apesar de todos os progremas e estratégias ofertados, incluindo a regulamentação da distribuição de gás, energia verde e mudanças climáticas, os autores especificam que apenas uma abordagem pragmática pode trazer resultados. É necessário considerar que este instituto desenvolve política externa para a Alemanha e essas recomendações significam uma preponderância da vontade de Berlim sobre outros Estados. Considerando a capacidade institucional dos alemães, é possível supôr que a Alemanha planeja assumir o gerenciamento por trás dos panos da futura união energética com ênfase em renováveis. Qualquer vazamento dos planos alemães e violação dos interesses dos países que agora tem possibilidade de uma escolha de fontes de recursos energéticos pode gerar uma crise ainda mais profunda entre membros da UE.

Crise das próprias promessas

A impressão que se tem é a de que os cidadãos europeus tem memória política muito curta. Eles esquecem rapidamente não apenas as promessas de seus líderes, mas também um exemplo particular: A declaração de Tessalônica de 2003 [12] ainda não foi implementada. Os Bálcãs ocidentais por mais de 10 anos não se tornaram uma região próspera e segura. Pelo contrário - a situação de muitos países da região piorou. E a causa é: uma política míope da UE.

Crise de Ideias

Estranhamente, muitas das crises consideradas estão ligadas à ausência de ideias entre políticos europeus. Uma impenitência de pensamento e o comprometimento persuasivo ao bloco limitado de esquemas ligados à ideologia neoliberal em suas várias formas (da esquerda trotskista à direita militarista) nem permite um olhar adequado e objetivo aos processos orgânicos, nem os estima com um prospecto temporário e histórico. Isso, por sua vez, bloqueia a possibilidade de previsões e dispensa a criação de cenários realistas, na medida em que a maioria das previsões parece estar errada.

Talvez as pessoas que tomam decisões na UE devessem olhar umas para as outras e olhar com maior razoabilidade para o curso das coisas, sem negar o uso de outros modelos de gerenciamento político.

**************


[1] Leonid Savin is the Chief Editor of Katehon magazine and Director of the social-political programs in the Institute of Economics and Legislation (Moscow, Russia).
[2] Asle Toje. The European Union as a Small Power: After the Post-Cold War. Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2010
[3] http://www.statewatch.org/analyses/no-257-ttip-ralf-bendrath.pdf
[4]http://www.hoganlovells.com/hogan-lovells-forms-coalition-forprivacy-and-free-trade-03-18-2013
[5] http://deutsche-wirtschafts-nachrichten.de/wp-content/uploads/2014/11/TTIP-Studie-Tufts.pdf
[6] Eric Zuesse, Obama’s Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) Would Be Disastrous for Europe // Global Research, November 18, 2014 http://www.globalresearch.ca/obamas-transatlantic-trade-and-investment-partnership-ttip-would-be-disastrous-for-europe/5414546
[7]Oleg Riabov, Tatiana Riabova. The decline of Gayropa? // http://www.eurozine.com/articles/2014-02-05-riabova-en.html
[8] PMG Recommendations on Article 44 TEU, Brussels, 11 February 2015
[9] COUNCIL DECISION (CFSP) 2015/528 of 27 March 2015 establishing a mechanism to administer the financing of the common costs of European Union operations having military or defence implications (Athena) and repealing Decision 2011/871/CFSP // Official Journal of the European Union, 28.3.2015
[10]http://epp.eurostat.ec.europa.eu/cache/ITY_OFFPUB/KS-32-12-269/EN/KS-32-12-269-EN.PDF
[11] Severin Fischer and Oliver Geden. Limits of an “Energy Union”, SWP Comments 28, May 2015, Р. 3.
[12] http://www.cespi.it/Rotta/dich-Salonicco.PDF

Kim Jong Il - Sobre Possuir um Entendimento Correto do Nacionalismo

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por Kim Jong Il



Discurso aos oficiais sênior do Comitê Central do Partido dos Trabalhadores da Coreia, 26 e 28 de fevereiro, Ano Juche 91 (2002)

É importante possuir um entendimento correto do nacionalismo. Apenas possuindo tal entendimento pode o povo alcançar unidade nacional, promover os interesses da nação e contribuir para moldar seu destino.

O nacionalismo veio à existência como uma ideologia da defesa dos interesses de uma nação no curso de sua formação e desenvolvimento. Ainda que as nações difiram uma da outra no período de sua formação, cada nação é uma comunidade social formada e consolidada historicamente com base em uma ascendência sanguínea comum, um idioma comum, uma área residencial e cultura comuns, e é composta por várias classes e estratos. Não há pessoa em qualquer país ou qualquer sociedade que exista fora de sua nação, separado dela. Toda pessoa pertence a uma classe ou estrato, e ao mesmo tempo a uma nação, imbuindo tal pessoa tanto de um caráter nacional como de um caráter de classe. Caráter de classe e caráter nacional e as demandas de classes e nação são inseparáveis uns dos outros. Em verdade, as classes e estratos de uma nação desfrutam de várias demandas e interesses graças a suas funções econômicas e sociais distintas. Porém, todos os membros de uma nação possuem o mesma participação na defesa da independência e caráter da nação e em atingir a prosperidade nacional sem distinção dos interesses de suas classes e estratos. Isto se dá porque o destino de uma nação é precisamente o destino de seus membros individuais; em outras palavras, estes são dependentes daquele. Nenhum será feliz caso a soberania e honra de sua nação sejam esmagados e seu caráter nacional desconsiderado. É o sentimento ideológico e a psicologia dos membros de uma nação amar sua nação, apreciar suas características e interesses, e almejar sua prosperidade. O nacionalismo reflete este sentimento e psicologia. Em outras palavras, o nacionalismo é uma ideologia que advoga o amor pela nação e a defesa de seus interesses. Como o povo esculpe o seu destino enquanto vive dentro do Estado-Nação como uma unidade, o nacionalismo genuíno constitui um patriotismo. A natureza progressista do nacionalismo está no fato de que ele é uma ideologia patriótica que advoga a defesa dos interesses nacionais.

O nacionalismo emergiu como uma ideia progressista junto da formação e desenvolvimento de cada nação. Porém, ele foi entendido no passado como uma ideologia que defende interesses burgueses. É verdade que nos dias do movimento nacionalista contra o feudalismo, a recém-surgida burguesia, erguendo o estandarte do nacionalismo, esteve na vanguarda do movimento. Naquela época, os interesses das massas do povo e da recém-surgida burguesia eram basicamente coincidentes em sua luta contra o feudalismo. Portanto, o estandarte do nacionalismo parecia refletir os interesses comuns da nação. Conforme o capitalismo se desenvolveu e a burguesia se tornou a classe governante reacionária após revoluções burguesas vitoriosas em vários países, o nacionalismo foi usado como meio de defender os interesses da classe burguesa. A burguesia disfarçou seus interesses de classe como interesses nacionais, e usou o nacionalismo como um instrumento ideológico para solidificar sua dominação classista. Isso levou o nacionalismo a ser entendido, entre o povo, como uma ideologia burguesa contrária aos interesses nacionais. Nós devemos distinguir claramente entre o autêntico nacionalismo que ama a nação e defende seus interesses e o nacionalismo burguês que defende os interesses da classe burguesa. O nacionalismo burguês se revela como egoísmo nacional, exclusivismo nacional e chauvinismo imperialista no relacionamento entre países e nações; ele é reacionário na medida em que cria antagonismo e discordância entre países e nações, e põe em cheque o desenvolvimento de relações amistosas entre os vários povos do mundo.

A teoria revolucionária original do proletariado foi incapaz de dar uma explicação correta do nacionalismo. Ela prestou atenção maior ao fortalecimento da unidade internacional e da solidariedade do proletariado por todo o mundo - o problema fundamental no então movimento socialista - deixando de prestar atenção devida ao problema nacional. Ela chegou ao ponto de considerar o nacionalismo como uma tendência ideológica anti-socialista, porque o nacionalismo burguês estava causando grande prejuízo ao movimento socialista. É por isso que progressistas do passado rejeitaram o nacionalismo, considerando ele incompatível com o comunismo.

É equivocado ver o comunismo como incompatível com o nacionalismo. O comunismo não defende apenas os interesses do proletariado; ele também defende os interesses da nação - daí ser uma ideologia do amor à pátria e ao povo. O nacionalismo é também uma ideologia do amor à pátria e ao povo, já que ele defende os interesses do país e nação. Amor à pátria e ao povo é uma emoção ideológica comum ao comunismo e ao nacionalismo; aí reside a base ideológica sobre a qual eles podem se aliar. Portanto, não há razão ou fundamento para colocar um contra o outro, e rejeitar o nacionalismo.

O nacionalismo não conflita com o internacionalismo. Ajuda, apoio e aliança mútuos entre países e nações - isto é o internacionalismo. Todo país tem suas fronteiras, e cada nação tem sua identidade, e a revolução e construção são realizadas com o país e nação como uma unidade. Por essa razão, o internacionalismo encontra suas expressões nas relações entre países e entre nações, um pré-requisito para isto sendo o nacionalismo. O internacionalismo divorciado dos conceitos de nação e nacionalismo é apenas uma casca vazia. Um homem despreocupado com o destino de seu país e nação não pode ser fiel ao internacionalismo. Revolucionários de todo país devem ser fiéis ao internacionalismo lutando, em primeiro lugar, pela prosperidade de seu próprio país e nação.

Pela primeira vez na história, o grande líder Presidente Kim Il Sung deu uma explicação correta do nacionalismo, e elucidou a relação entre comunismo e nacionalismo e entre comunistas e nacionalistas em sua prática revolucionária de esculpir o destino de seu país e povo. Ele afirmou que para ser um verdadeiro comunismo é necessário primeiro se tornar um autêntico nacionalista. Com a determinação de devotar sua vida a seu país e a seus compatriotas, ele embarcou na estrada da revolução em sua juventude e criou a imortal ideia Juche, em cuja base ele estabeleceu uma perspectiva sobre a nação orientada pelo Juche, e expôs cientificamente a essência e o caráter progressista do nacionalismo. Através de uma combinação correta de caráter classista e caráter nacional e do destino do socialismo com o da nação, ele realizou uma aliança entre comunistas e nacionalistas, cimentou as posições classistas e nacionais de nosso socialismo e liderou os nacionalistas na unificação de esforços para a construção socialista e para a reunificação nacional. Atraído por sua ampla magnanimidade e personalidade nobre, muitos nacionalistas embarcaram na estrada patriótica de unidade e reunificação nacionais, rompendo com passados errôneos. Kim Ku, um anti-comunista ao longo de toda sua vida até então, aliou-se aos comunistas, uma transformação patriótica, no crepúsculo de sua vida, e Choe Tok Sin, um nacionalista, foi capaz de encontrar salvação como um patriota no abraço do líder. O grande líder valorizou e lutou pela independência não apenas de nossa nação, mas de todos os povos do resto do mundo. Ele devotou todos os seus esforços à causa da luta para tornar todo o mundo independente, bem como à revolução coreana. Nós podemos dizer que não houve homem no mundo tão grande quanto ele, que devotou toda sua vida à independência e prosperidade nacionais, e a um futuro brilhante para a humanidade. Ele foi o mais firme comunista e, ao mesmo tempo, um patriota incomparável, autêntico nacionalista e paradigma entre internacionalistas.

Eu também afirmo, como o líder instruiu, que é necessário ser um patriota ardente, um verdadeiro nacionalista, para ser possível se tornar um revolucionário, um comunista. O comunista que luta pela realização da independência das massas populares deve primeiramente ser um autêntico nacionalista. Aqueles que lutam por seu povo, seu país e sua terra natal são comunistas genuínos, autênticos nacionalistas e ardentes patriotas. Aqueles que não amam seus pais, irmãos e irmãs não podem amar seu país e compatriotas. Similarmente, aqueles que não amam sua pátria e povo não podem se tornar comunistas. Nós estamos herdando com fidelidade a nobre ideia de nosso grande líder de amar o país, a nação e o povo, e de fazer todos os esforços para mobilizar todas as seções da nação através de uma política inclusiva, e de liderá-los na estrada do patriotismo.

Não são os comunistas, mas os imperialistas que se opõem ao nacionalismo e colocam obstáculos no caminho do desenvolvimento independente das nações no presente. Os imperialistas manobram maliciosamente para realizar sua ambição dominacionista sob o apelo de "globalização" e "integração". Eles afirmam que o ideal de construir um Estado-Nação soberano ou o de amor pela pátria e nação é um "preconceito nacional retrógrado" e que "globalização" e "integração" são a tendência da época na situação presente, quando ciência e tecnologia se desenvolvem rapidamente e trocas econômicas entre países estão sendo conduzidas abruptamente em escala internacional. Hoje, quando cada país e nação está esculpindo seu próprio destino com sua própria ideologia, sistema e cultural, não pode nunca haver uma "integração" econômica, ideológica e cultural do mundo. As manobras dos imperialistas americanos em prol de "globalização" e "integração" objetivam transformar o mundo no que eles chamam de um mundo "livre" e "democrático" moldado segundo os Estados Unidos, e assim colocar todos os países e nações sob sua dominação e subordinação. A era presente é uma de independência. A história humana é propelida pela luta das massas populares por independência, não pela ambinação dominacionista e pela política agressiva dos imperialistas. As manobras dos imperialistas por "globalização" e "integração" estão fadadas a falhar, conforme são combatidas pelos esforços vigorosos dos povos do mundo que aspiram por independência.

Nós devemos nos opôr resolutamente e rejeitar as manobras dos imperialistas por "globalização" e "integração", e combater firmemente para preservar as características excelentes de nossa nação e salvaguardar sua independência. Nós frequentemente enfatizamos o princípio da "nação coreana primeiro" de modo a preservar o caráter nacional e defender a independência da nação.

Uma tarefa importantíssima está diante de nós hoje na promoção e realização da independência nacional é reunificar o país. Nossa nação, que herdou uma história honrada pela história e uma cultura e tradição de patriotismo, foi dividida em norte e sul por forças estrangeiras por mais de meio século. A divisão do território e da nação está bloqueando o caminho para o desenvolvimento harmônico da nação, e causando miséria e dureza indizíveis sobre ela. A reunificação nacional não é apenas uma demanda vital de nosso povo, mas é também a vontade unânime e aspiração da nação inteira.

O histórico Encontro de Pyongyang e a Declaração Conjunta Norte-Sul de 15 de Junho despertaram uma nova era de grande unidade nacional e reunificação independente. A Declaração Conjunta Norte-Sul estipula todos os princípios e métodos para resolver os problemas resultantes da reunificação nacional independente pelos esforços unidos de nossa própria nação. A declaração é um programa de unidade nacional e um princípio geral de reunificação nacional, baseada na ideia de "por nossa própria nação" e permeada com o espírito de amor pela pátria e pelo povo. A garantia substancial para independência, paz e reunificação naiconal está em apoiar e cumprir metodicamente a declaração. Erguendo a Declaração Conjunta Norte-Sul como um princípio geral de reunificação, toda a nação deve iniciar uma luta nacional para o cumprimento da causa histórica da reunificação nacional.


Aleksandr Dugin - O Ocidente e seu Desafio

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por Aleksandr Dugin



O que entendemos por "Ocidente"?

O termo "Ocidente" pode ser interpretado de diferentes maneiras. Portanto, em primeiro lugar, deveríamos definir o que entendemos por esse termo e como este conceito têm evoluído historicamente.

É perfeitamente evidente que o "Ocidente" não é um termo puramente geográfico. A esfericidade da Terra tem tal definição incorreta: o que para um ponto é o oeste, para outro é o leste. Mas ninguém inclui este sentido no conceito de "Ocidente". Apesar disso, mediante um exame mais minucioso, descobriremos aqui uma circunstância importante: a concepção de "Ocidente" toma, no geral, como sua linha zero - a partir da qual se estabelecem suas coordenadas -, precisamente a Europa. E casualmente a linha zero do meridiano passa por Greenwich, de acordo com uma convenção internacional. O eurocentrismo está já incorporado no próprio procedimento.

Embora muitos estados antigos (Babilônia, China, Israel, Rússia, Japão, Irã, Egito etc.) tenham pensado em si mesmos como "o centro do mundo", "os impérios médios", "celestiais", "os reinos abaixo do Sol", na prática internacional, a Europa se converteu na coordenada central; mais estritamente; a Europa Ocidental. Precisamente, a partir daí é comum se definir um vetor na direção leste e um vetor na direção oeste. Sucede, então, que, inclusive do ponto geográfico, nós vemos o mundo desde um ponto de vista eurocêntrico, e o que é chamado de "Ocidente", ao mesmo tempo apresenta a si mesmo como o centro, o "meio".

A Europa e a Modernidade

Em um sentido histórico, a Europa se converteu nesse espaço territorial onde se produz a transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. Ainda mais, a transição se fez possível graças ao desenvolvimento das tendências autóctones da cultura europeia e da civilização europeia. Desenvolvendo em uma direção específica os princípios estabelecidos na filosofia grega e no direito romano, através da interpretação dos ensinamentos cristãos - em um primeiro momento com a escolástica católica, e mais tarde no credo protestante - a Europa chegou a criar um modelo de sociedade única entre outras civilizações e culturas. Esta sociedade, em primeiro lugar:

 - Se construiu sobre bases seculares (ateístas);
 - têm proclamado a ideia do progresso social e técnico;
 - criou os fundamentos da visão científica contemporânea do mundo;
 - desenvolveu e introduziu um modelo de democracia política;
 - têm considerado como de suma importância as relações capitalistas (de mercado);
 - realizou a transição de uma economia agrária a uma economia industrial.

Resumidamente, a Europa se converteu no espaço do mundo contemporâneo.

Posto que, nas fronteiras da própria Europa, as zonas mais vanguardistas da evolução do paradigma da modernidade foram países como Inglaterra, Holanda e França, que se encontram ao oeste do centro da Europa (e, ainda mais, do leste), os conceitos de "Europa" e de "Ocidente" se converteram, gradualmente, em sinônimos: o que é "europeu" propriamente dito, a sua diferença de outras culturas, consistiu precisamente na transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna, enquanto isso, por sua vez, ocorreu, em primeiro lugar, na Europa Ocidental.

Portanto, o termo "Ocidente", desde o séc. XVII ao séc. XVIII, adquire um sentido civilizatório preciso, convertendo-se em sinônimo de "modernidade", "modernização", "progresso", de desenvolvimento social, industrial, econômico e tecnológico. Até agora, tudo o que esteve implicado nos processos de modernização foi automaticamente conectado ao Ocidente. "Modernização" e "ocidentalização" demonstraram ser sinônimos.

A ideia de "progresso" como base para a colonização política e o racismo cultural

A identidade da "modernização" e da "ocidentalização" requer alguns esclarecimentos que nos conduzirão a conclusões práticas muito importantes. A questão é que a formação, na Europa, da civilização sem precedentes da era moderna, o estabelecimento da "modernidade", conduziu a uma ordem cultural particular que, a princípio, formou a autoconsciência dos próprios europeus, mas mais tarde também de todos aqueles que se encontraram sob sua influência. Com este estabelecimento, se faz avançar a sincera convicção de que o caminho do desenvolvimento da cultura ocidental, e especialmente a transição da sociedade tradicional para a sociedade contemporânea, não só é uma peculiaridade da Europa e dos narods [povos] que a povoam, mas sim uma lei universal de desenvolvimento, obrigatória para todos os demais países e narods. Os europeus, "o povo do Ocidente", foram os primeiros a passar por esta fase decisiva, mas todos os demais estão condenados fatalmente a ir por este mesmo caminho; posto que tal é a lógica supostamente "objetiva" da história do mundo, o "progresso"é exigido.

A ideia de que o Ocidente é o modelo obrigatório de desenvolvimento histórico da humanidade e da história do mundo - tanto no passado, presente e futuro -, é concebida como uma repetição daquelas etapas que o Ocidente, em sua evolução, já atravessou, ou as que se aproximam no presente para eles, em vantagem aos outros povos. Em todas as partes onde os europeus encontraram culturas "não-ocidentais" que conservaram sua "sociedade tradicional" e seu próprio caminho, fizeram um diagnóstico inequívoco: "barbárie", "selvageria", "atraso", "ausência de civilização", "sub-normalidade". Deste modo, pouco a pouco o Ocidente construiu critérios normativos para a evolução dos narods e culturas de todo o mundo. Quanto mais longe estavam do Ocidente (em sua nova fase histórica), mais "defeituosos" e "inferiores" se pensava que eram.

As raízes arcaicas da exclusividade ocidental

É interessante analisar a origem deste acordo universalista, no qual se identificam as etapas do desenvolvimento do Ocidente e a lógica geral obrigatória da história do mundo.

As raízes mais profundas e mais arcaicas se podem encontrar nas culturas das tribos antigas. É característico das sociedades antigas identificar o conceito de "homem" com o conceito de "pertencimento à tribo", "à etnia", o que leva, às vezes, a negação da condição de "homem" ao membro de outra tribo, ou situá-lo, intencionalmente, em um nível hierárquico inferior. Os homens de outras tribos ou de narods escravizados se converteram, por esta lógica, na classe dos servos, levados além dos limites da sociedade humana, privados de todo tipo de direitos e privilégios. Este modelo - companheiros de tribo = pessoas, membros de outras tribos = não-pessoas - jaz na base das instituições sociais, legais e políticas do passado, e foi analisado em detalhe por Hegel (em particular, pelo hegeliano A. Kojève), examinando o par de figuras amo-escravo. O amo era tudo; o escravo, nada. O status de homem pertencia ao amo como um privilégio. O escravo se equiparava, inclusive legalmente, ao gado ou a um objeto de produção.

Este modelo de dominação demonstrou ser muito mais estável do que poderiam pensar, e chegou de forma modificada à era moderna. Assim, surgiu o complexo de ideias que, paradoxalmente, combina a democracia e a liberdade dentro de sociedades europeias em sí mesmas com rígidas disposições racistas e uma cínica colonização em suas relações com outros narods "menos desenvolvidos".

É significativo que a instituição da escravidão, e por motivos raciais, regressa às sociedades ocidentais depois de uma brecha de mais de mil anos - em primeiro lugar nos EUA, mas também nos países da Iberoamérica - precisamente na era moderna, na época da difusão das ideias democráticas e liberais. Ainda mais, a teoria do "progresso" serve, na realidade, como base para a exploração desumana por parte de europeus e estadunidenses brancos sobre os aborígenes: os índios nativos e os escravos africanos.

Uma impressão começa a tomar forma; a de que, pela formação da civilização da era moderna na Europa, o modelo amo-escravo se transfere da Europa para o resto do mundo em forma de política colonial.

O império e sua influência na ocidentalização contemporânea

Outra fonte importante desta influência foi a ideia de Império, que os europeus rejeitaram explicitamente no amanhecer da era moderna, mas a qual penetra no inconsciente do homem ocidental. O império - como o Romano, mais tarde também o cristão (o Bizantino no leste e o Sacro Império Romano das nações germânicas no Oeste) - foi pensado como o Universo, dentro do qual vive o povo (os cidadãos), sendo que, além de seus limites, vivem os "subumanos", "bárbaros", "hereges", "gentios" ou, inclusive, objetos fantásticos: devoradores de homens, monstros, vampiros, "Gogue e Magogue" etc. Aqui, a divisão tribal entre os similares (as pessoas) e os estranhos (não-pessoas) se transfere a um plano mais alto e mais abstrato: os cidadãos do império (participantes do Universo) e os não-cidadãos (habitantes da periferia global).

Esta etapa de generalização a respeito de quem deve ou não ser contado como pessoa pode ser vista, em sua totalidade, como uma etapa de transição entre o arcaico e o Ocidente contemporâneo. Havendo rejeitado formalmente o império, junto com seus fundamentos religiosos, a Europa contemporânea conservou totalmente o imperialismo, transferindo-o apenas ao nível dos valores e interesses. O progresso e o desenvolvimento tecnológico foram pensados como uma missão europeia, em nome da qual foi implantada uma estratégia de colonização planetária.

Portanto, a era moderna, havendo quebrado formalmente com a sociedade tradicional, transferiu algumas disposições básicas precisamente desta sociedade tradicional (a divisão arcaica no par pessoa/não-pessoa por motivos étnicos; o modelo do amo-escravo; a identificação imperialista de sua civilização com o universo e de todos os outros como "selvagens", etc.) para as novas condições de vida. O Ocidente como ideia e como estratégia planetária se converteu em um ambicioso projeto para o novo estabelecimento de um governo mundial, desta vez elevado ao status da "ilustração", o "desenvolvimento" e o "progresso" de toda a humanidade. Isto é, uma espécie de "imperialismo humanitário".

É importante dizer que a tese sobre o progresso não era uma simples máscara para os interesses depredadores egoístas dos ocidentais em sua expansão colonial. A fé no universalismo dos valores ocidentais e na lógica do desenvolvimento histórico era de todo sincera. Interesses e valores coincidiram com este caso. Isto deu uma tremenda energia para os pioneiros, os marinheiros, os viajantes e os homens de negócios do Ocidente para ajudar o planeta; buscavam não apenas benefícios, mas também levar o exemplo para os "selvagens".

O roubo cruel, a exploração cínica e uma nova onda de escravismo, junto com a modernização e o desenvolvimento tecnológico dos territórios coloniais, todo isto junto formou a base do Ocidente como ideia e como prática global.

Modernização: endógena e exógena

Aqui deveríamos fazer uma observação importante. A partir do séc. XVI, o processo de modernização planetária começa a desenrolar-se desde o território da Europa ocidental. Coincide estritamente com a colonização por parte do Ocidente de novas terras, nas quais, por regra geral, os narods preservam os fundamentos da sociedade tradicional na qual vivem. Mas, pouco a pouco, a modernização afeta a todos: tanto os ocidentais como os não-ocidentais. De uma forma ou de outra, todo o mundo se moderniza. Mas a essência deste processo segue sendo diferente em diferentes casos.

No próprio Ocidente - em primeiro lugar, na Inglaterra, França, Holanda e especialmente nos EUA, um país construído como um experimento de laboratório da Idade Moderna, em uma suposta "terra vazia", "a partir de uma página em branco" -, a modernização se distingue por um caráter endógeno. Cresce desde o desenvolvimento coerente dos processos culturais, sociais, religiosos e políticos que são inclusas na base mesma da sociedade europeia. Isto não se produz em todas as partes, simultâneamente, e com uma e a mesma intensidade - aqui, evidentemente, deixaram para trás narodi como os alemães, os espanhóis e os italianos, com quem a modernização procede em um ritmo um pouco mais lento do que acontece com seus vizinhos europeus do Ocidente. Ainda assim, a era moderna segue seu próprio horário para os narodi europeus e em correspondência com a lógica natural de seu desenvolvimento. A modernização dos países e narodi das Europa surge de acordo com leis internas. Sendo implantada desde precondições objetivas e correspondendo à vontade e ao estado de ânimo da maioria dos europeus, é endógena, ou seja, tem um princípio interno.

É um assunto completamente diferente quando se trata dos países e narodi que são arrastados para o processo de modernização, além da sua vontade, convertendo-se em vítimas de colonização, ou se tornando relutantes em se opor à expansão europeia. Claro que, conquistando países e narodi, ou enviando escravos negros para os EUA, o povo do Ocidente favoreceu o processo de modernização. Junto com a administração colonial, promulga novas ordens e fundamentos, assim como a técnica e a lógica dos processos econômicos, os costumes, as estruturas socio-políticas e as instituições legais. Os escravos negros, sobretudo depois da vitória do Norte abolicionista, se converteram em membros de uma sociedade mais desenvolvida (mesmo que tenham continuado como cidadãos de segunda classe) que as tribos arcaicas da África que haviam sido tomadas por traficante de escravos. O fato da modernização das colônias e das nações escravizadas não se pode negar. O Ocidente, inclusive neste caso, é o motor da modernização. Mas este último ponto é muito específico. Se pode chamar exógeno, ou seja, ocorrido desde fora, introduzido, levado.

Os narodi e as culturas não-ocidentais permanecem nas condições da sociedade tradicional, desenvolvendo-se de acordo com seus próprios ciclos e sua própria lógica interna. Lá também há períodos de ascensão e queda, reformas religiosas e discórdia interna, catástrofes econômicas e descobrimentos técnicos. Mas estes ritmos correspondem a um modelo de desenvolvimento diferente, não-ocidental, seguem uma lógica diferente, se dirigem a diferentes objetivos e decidem sobre problemas diferentes.

A modernização exógena - e sua propriedade fundamental consiste nisso - não surge das necessidades internas e do desenvolvimento natural da sociedade tradicional, a qual, quando se deixa funcionar por si mesma, provavelmente nunca haveria chegado a estas estruturas e modelos que acabaram unidos no Ocidente. Em outras palavras, tal modernização é imposta e introduzida desde fora.

Em consequência, a série dos sinônimos modernização = ocidentalização pode continuar: é também colonização (a introdução de uma autoridade externa). A maioria oprimida da humanidade, excluindo os europeus e os descendentes diretos de colonizadores da América, foi sujeita precisamente a esta modernização violenta, coativa, externa. Isto teve um impacto sobre as incoerências internas e traumáticas da maioria das sociedades contemporâneas da Ásia, o Oriente, e o Terceiro Mundo. Esta é a modernidade doente, o Ocidente caricato.

Dois tipos de sociedade com modernização exógena

Hoje em dia, em todas as sociedades expostas à modernização exógena, se podem distinguir duas grandes classes:

 - Aquelas que preservaram a independência político-econômica (ou que se esforçaram por esta nas guerras anticoloniais);
 - aquelas que perderam a independência política e econômica.

Se considerarmos o segundo caso, se trata de uma colônia pura, que perdeu por completo sua independência e que não está participando nos valores da era moderna mais que os índios das reservas da América do Norte. Tais sociedades podem ser arcaicas (como algumas tribos do Pacífico, América do Sul ou África), mas em parte se cruzam com estruturas tecnológicas maiores e bastante modernizadas, desenvolvidas neste mesmo espaço territorial pelos colonizadores. Aqui quase não há interseção semântica entre os indígenas e os modernizadores: o status das sociedades locais apenas se diferencia do status dos habitantes dos parques zoológicos ou, no melhor dos casos, de uma área protegida povoada por espécies em extinção (marcadas no "livro vermelho" da natureza). Nesta situação, a modernização não se refere a população local, que segue sem notá-la, encontrando-se apenas com as restrições, técnicas disfarçadas de arame farpado e jaulas de aço.

Quando se trata de uma sociedade que atravessou obrigatoriamente uma rota específica ao longo das linhas de ocidentalização e modernização exógena, mas o fez em resposta à ameaça de colonização da Europa (Ocidente) e conseguiu preservar sua independência, o processo de modernização (=ocidentalização) adquire um caráter mais complicado. Pode-se chamá-lo de: "modernização defensiva".

Aqui, o centro das atenções acaba sendo o equilíbrio entre os valores peculiares da sociedade tradicional, objeto de conservação para o apoio da identidade, e aqueles modelos e sistemas importados, que é necessário importar do Ocidente para criar os requisitos prévios e as condições para uma modernização parcial (defensiva). Ao mesmo tempo, neste tipo de sociedades se conserva a subjetividade, a qual determina os próprios interesses, predeterminando a acuidade da oposição às iniciativas coloniais do Ocidente.

Assim, surge o seguinte quadro: a fim de defender seus interesses ante a investida ocidental, um país (a sociedade) se vê obrigado a adotar certos valores deste mesmo Ocidente, mas os misturando com seus valores originais. Huntington chamou este fenômeno de "modernização sem ocidentalização".

Com certeza, este conceito acarreta um par de contradições: posto que a modernização e a ocidentalização são essencialmente sinônimos (Ocidente = Modernidade), é impossível construir a modernização separadamente do Ocidente, sem copiar seus valores. Nas sociedades tradicionais, que permanecem fora do habitat natural da cultura europeia, as condições previas para a modernização estão simplesmente ausentes. É por isso que não falamos de uma rejeição total da "ocidentalização", mas sim deste equilíbrio entre os valores próprios e aqueles impostos pelo Ocidente, que satisfaça as condições para a preservação da identidade (o qual é impossível de alcançar sem uma inclusão intensiva no contexto "ocidental"). Resulta, então, que tal variedade de modernização exógena se funda na presença de interesses independentes (principalmente diferentes das intenções colonizadoras do Ocidente) e na combinação dos interesses próprios com os valores importados do Ocidente de forma pragmática (podemos dizer que isso é "modernização + ocidentalização parcial").

Dentro desta categoria de modernização exógena, entram países tais como a Rússia (ao longo de todo o curso da era moderna, o que apresenta, por si mesmo, um caso bastante único!), mas também as contemporâneas China, Índia, Brasil, Japão, alguns países islâmicos, e os países da região do Pacífico (que entram neste processo muito mais tarde, no século passado). Fora a Rússia, o resto dos países que percorreram este caminho foram, em momentos específicos, colônias do Ocidente e receberam a independência há relativamente pouco tempo, ou (como o Japão) sofreram a derrota na guerra e foram ocupados.

Em qualquer caso, este tipo de modernização exógena traz ao primeiro plano a questão do balanceamento dos interesses próprios com os estrangeiros; ou seja, o problema da proporção e qualidade dos elementos, pertencentes a duas formas histórico-culturais e de civilização: os fundamentos locais, conservadores, da sociedade tradicional, e os assim chamado "universais" e "progressistas" da civilização ocidental.

O mais importante consiste nesta proporção, a qual constitui a essência das relações entre Rússia e Ocidente.

Voltaremos a este assunto um pouco mais tarde, mas primeiro vamos fazer algumas observações geopolíticas.

A concepção de "Ocidente" e "Oriente" nos Acordos de Yalta

Vamos considerar agora os aspectos geopolíticos dos problemas que discutimos e a transformação do conceito de "Ocidente" no séc. XX, que estão ligados.

Depois do final da Segunda Guerra Mundial, o conceito começou a ser aplicado geopoliticamente à totalidade dos países desenvolvidos que haviam surgido da via capitalista de desenvolvimento. Isto era uma correção do conceito. Tal "Ocidente"é praticamente idêntico ao capitalismo e à ideologia liberal-democrática. Aqueles países que avançaram ao longo deste caminho mais longe do que os demais, eram de fato considerados como "Ocidente" na construção de um mundo bipolar, chamado também "yáltico" (pela localização da conferência dos chefes da coalizão anti-Hitler, que predestinou o mapa do mundo na segunda metade do séc. XX: Stálin, Roosevelt e Churchill).

Desta vez, o conceito de "Ocidente" difere parcialmente do que temos proporcionado anteriormente. Em primeiro lugar, inclusive os regimes comunistas pertenciam ideologicamente ao "Ocidente" em um sentido amplo - primeiramente, a URSS - na medida em que adotaram teorias do socialismo e do comunismo "da Europa ocidental" (construídas a partir de observações relativas à história das evoluções político-econômicas das sociedades ocidentais, junto com a correspondente fé no progresso e o universalismo destas cronologias para toda a humanidade). Mas o marxismo, entretanto, se converteu no modelo favorito para a modernização das sociedades tradicionais; um modelo que podia combinar a preservação de seus próprios interesses geopolíticos e a preservação parcial dos valores tradicionais da zona, com o poderoso e importado aparato de modernização e ideias, estruturas, interesses e teorias peculiarmente ocidentais. Portanto, o marxismo - soviético, chinês (maoísmo), vietnamita, norte-coreano, etc. - deveria ser examinado como variante da modernização exógena, da qual falamos anteriormente. E mais, desde o ponto de vista da competência tecnológica e ideológica, este projeto resultou em um êxito relativo.

Embora o marxismo dogmático pretendesse substituir o capitalismo, uma vez que este tivera alcançado a etapa crítica de sua aplicação, na prática tudo se sucedeu de maneira completamente diferente: os partidos comunistas ganharam naquelas sociedades onde o capitalismo se encontrava em estado rudimentar, enquanto que a sociedade tradicional (a agrária, primeiramente) ganhou tanto no sentido econômico quanto no cultural. Em outras palavras, o marxismo vitorioso, o realizado, supôs a refutação da teoria de seu fundador ideológico e, por outro lado, a história das sociedades capitalistas mostra que as previsões de Marx, acerca do caráter inevitável nas mesmas da revolução proletárias, foram desmentidas até então. Marx insistiu que a revolução proletária não poderia ocorrer na Rússia (e em outros países com o predomínio do "modo de produção asiático") mas, como é sabido, esta aconteceu aqui. Nas sociedades com um capitalismo desenvolvido, nada similar se sucedeu.

Disto apenas se sugere uma conclusão: o marxismo nos regimes comunistas não era o que proclamava de si mesmo, mas sim apenas um modelo de modernização exógena no qual se adotaram valores ocidentais apenas parcialmente, e se combinaram tacitamente com tendências religiosas, escatológicas e messiânicas locais. Em conjunto, este procedimento de modernização específico - alter-modernização pelo caminho socialista (totalitário), não pelo caminho capitalista (democrático) - serviu para a defesa dos interesses geopolíticos e estratégicos de estados independentes, os quais se esforçaram para repelir os ataques coloniais da Europa e (mais tarde) da América do Norte.

O bloco estratégico formado ao redor da URSS, a vanguarda desta alter-modernização, foi chamado, depois da Segunda Guerra, de "Leste". Embora tal linguagem tenha sido realmente uma variante de modernização exógena, formalmente o sistema marxista de valores se baseava no paradigma da era moderna no mesmo grau que as sociedades capitalistas. Às vezes, na politologia do período de Yalta, no lugar da fórmula do "Leste" ("o Leste comunista", "o Bloco do Leste"), foi utilizada a expressão "segundo mundo", a qual é mais precisa e abarca os países que adotaram a industrialização acelerada com uma modernização parcial e bastante específica (do tipo comunista), e - o mais importante! - conseguiram conservar a independência geopolítica, evitando a colonização direta (ou os libertando).

Neste caso, o conceito de "Terceiro Mundo" adquire importância.

"O primeiro mundo", ou seja, o "Ocidente", na terminologia da época posterior à guerra, são os países com modernizaçaõ endógena (Europa, América do Norte), e também um caso de modernização tecnológica exógena extremamente bem sucedido, a do Japão ocupado, o qual foi capaz de dirigir energias internas de uma nação conquistada ao crescimento econômico massivo através de padrões ocidentais. Mas, ao mesmo tempo, o Japão perdeu sua independência geopolítica e, em um sentido estratégico, se converteu em uma colônia resignada e fraturada dos EUA.

"O segundo mundo" são os países de modernização exógena que conseguiram fazer uso dos métodos totalitários socialistas de modernização, com o empréstimo parcial e relativamente bem sucedido de tecnologia ocidental, e a preservação da independência em relação ao Ocidente capitalista. Isto, na compreensão do mundo baseado em Yalta, foi chamado de "Leste".

E, por último, "o terceiro mundo" faz referência aos países de modernização exógena que ficaram para trás do desenvolvimento tanto do "primeiro" como do "segundo" mundo que, não possuindo soberania completa, conservaram os fundamentos da sociedade tradicional, e aos quais foram empurrados a confiança no "Ocidente" ou no "Leste", representando, desta forma, colônias propriamente ditas, subordinadas a um ou a outro.

E, assim, limitamos nossas considerações às condições da "guerra fria" (o mundo bipolar), então o conceito de "Ocidente", neste caso, surgirá como sinônimo do campo capitalista, "o primeiro mundo", incluindo os países mais desenvolvidos e mais ricos da América do Norte, Europa e Japão.

A sede intelectual da integração do "primeiro mundo", do "Ocidente" neste sentido concrto, foi a Comissão Trilateral, criada a partir das fundações do American Council on Foreign Relations, e composta por representantes das elites dos EUA, Europa e Japão. Portanto, um segmento específico de intelectuais, banqueiros, políticos e acadêmicos do "Ocidente", a partir da década de 1960, tomou sobre si a responsabilidade histórica do processo de globalização, e a criação de um "governo mundial" como resultado do triunfo final do "Ocidente" sobre o resto do mundo nos sentidos geopolítico, moral, econômico e ideológico.

Na década de 1990, o "Ocidente" se converte em Globalização

Outra transformação do conceito de "Ocidente" foi, todavia, posta a prova na década de 1990, quando a arquitetura do mundo bipolar (com sede em Yalta) se derrubou. A partir de então, o modelo liberal-capitalista se converteu no mais importante e no único, o comunismo como projeto de alter-modernização quebrou, apesar da concorrência, e o poder político-militar e econômico dos EUA superou irrefutavelmente as posições dos demais países. A capitulação unilateral da URSS e do Bloco de Varsóvia na "guerra fria", com sua paralela dissolução, abriram o caminho para a globalização e a construção de um mundo unipolar. O filósofo neoconservador estadunidense Francis Fukuyama começou a falar do "fim da história", da "substituição da política pela economia", e da "transformação do planeta em um mercado unificado e homogêneo".

Isto significava que o conceito de "Ocidente" se transformou em um conceito global e único, ja que nada mais era oposto contra o mesmo, não só contra a ideia mesma de modernização, mas também contra o seu mais ortodoxo e historicamente mais "ocidental" projeto liberal-capitalista. Tão bem sucedida e importante vitória do "Ocidente" sobre "o Leste" - ou seja, do "primeiro mundo" sobre "o segundo" - liquidou essencialmente as alternativas à modernização, fazendo-a a única substância indiscutível da história do mundo. Todo aquilo que quis permanecer ligado à "contemporaneidade" teve que reconhecer esta preeminência incondicional do "Ocidente", expressá-lo lealdade, e também repudiar de uma vez por todas todos os seus próprios interesses, inclusive se eram diferentes em alguns aspectos, ou - mais ainda - contrários aos interesses dos EUA (ou, em termos mais gerais, dos países do bloco da OTAN), como lacaios do mundo unipolar.

A partir de então, a questão foi levantada apenas desta maneira: em que segmento do "Ocidente" global será integrado um ou outro país, um ou outro governo? Se a modernização e, em consequência, a ocidentalização se introduzissem com êxito, então apareceria a oportunidade de integração no "Bilhão de ouro"[*] ou na zona do "Norte rico". Se, por alguma razão, isto não se sucedesse, este era integrado ao cinturão da periferia mundial, na zona do "Sul pobre". Entretanto, a divisão planetária do trabalho ofereceu a promessa da modernização, inclusive para o "Sul pobre", mas de acordo com o processo colonial, quando a escravidão política foi substituída pela escravidão econômica, ainda que a importação das normas culturais ocidentais erradicasse metodicamente os valores indígenas (assim, os residentes da Coreia do Sul que, havendo recebido um impulso vigoroso de modernização exógena de tipo colonial, junto com um volátil crescimento econômico, foram golpeados com uma difusão quase total do protestantismo no meio de uma sociedade tradicional, shamânica, budista e confucionista). A todos os países que se conectavam ao Ocidente global não se garantia nada, mas era lhes dada a oportunidade.

Na Rússia também se produziram reformas neste mesmo sentido, aparecendo depois da queda da URSS como uma nova organização que, por sua vez, herdou geopoliticamente o Império Russo. A Rússia também tratou de integrar-se ao Ocidente global, contando como um lugar do "Norte rico" e com a esperança de "comunar" com a modernização pela sua rota pela sua rota principal (a capitalista), e não pela indireta (a socialista). Entretanto, à Rússia, igual aos demais países, foi oferecido, em um primeiro momento, rejeitar suas pretensões globais e, mais tarde, inclusive as locais, fazendo o papel de satélite estratégico dos EUA entre as nações menos modernizadas, sem nenhum privilégio especial em absoluto. Essencialmente, foram levados ao país controles externos.

E, em consequência, a autoridade governante recebeu a elite colonial, reformadores ocidentais e oligarcas que pensavam em si mesmos como gerentes que trabalham para as empresas transnacionais globais com sede no outro lado do Atlântico.

Globalização

No começo da década de 1990, quando "o fim da história" não apenas parecia próximo, mas sim realizado na prática, o conceito de "Ocidente" quase se mistura com o conceito de "mundo", o qual foi fixado com o termo "globalização".

A globalização representa o último ponto na realização prática das pretensões fundamentais do "Ocidente" para a universalidade de sua experiência histórica e de seu sistema de valores.

Penetrando em diversas sociedades e culturas, combinando projetos humanitários com métodos coloniais de satisfação de seus próprios interesses (em primeiro lugar, na esfera dos recursos naturais), o processo de globalização faz do "Ocidente" um conceito global. O mundo se deu grandes passos até um modelo unipolar, com um centro desenvolvido preocupado consigo mesmo (com os EUA no núcleo, a sociedade transatlântica), e uma periferia subdesenvolvida.

Com o tempo, foi construído um modelo que se descreve no texto clássico de Huntington, O Choque de Civilizações, "Ocidente e o resto". Mas no modelo da globalização, este "resto", em nenhum caso, é visto de outra maneira que não seja em relação com "Ocidente"; é também "Ocidente", apenas pouco desenvolvido e imperfeito, uma espécie de "médio-Ocidente".

E aqui, já nas novas condições históricas e através de uma linha de transformações e alterações semânticas, nos topamos novamente com o racismo cultural e o "messianismo" secular liberal-democrático que descobrimos entre as fontes da época da modernidade e a definição inicial do conceito de "Ocidente".

Pós-modernidade e "Ocidente"

Um dos processos mais interessantes em relação ao conteúdo do conceito de "modernização" ocorreu na década de 1990. A modernização, que se realizou em distintas velocidades e com diferentes características, de maneira ou outra, em todo o mundo desde o começo da Idade Moderna na Europa Ocidental, se aproximou da sua própria conclusão lógica nos finais do séc. XX. E mais; isto, naturalmente, se sucedeu no próprio Ocidente: aquele que, antes de qualquer outro, e de acordo com princípios naturais, procedeu à modernização da sociedade tradicional, chegou ao final primeiro. Portanto, superando tanto a inércia da resistência das estruturas conservadoras como, em um dado momento e de maneira muito efetiva, a concorrência com a alter-modernização socialista, a modernidade em sua forma liberal-capitalista alcançou seus limites determinados e o final da prática do seu programa: a oposição direta de ideologias alternativas terminou, enquanto a superação da resistência passiva da periferia mundial se converteu em uma questão técnica. E onde ainda permanece, poderia equiparar-se a "reação inercial do entorno circundante", mas não a uma estratégia competitiva. A batalha contra a sociedade tradicional e suas intenções de apresentar-se sob um novo traje (alter-modernização, socialismo) terminaram com a vitória do liberalismo. E no próprio Ocidente, a modernização alcançou seus limites internos, havendo alcançado o ponto mais baixo da cultura ocidental.

Esta condição de exaustão final da agenda do processo de modernização gerou no Ocidente um fenômemo bastante específico: a pós-modernidade.

O essencial da pós-modernidade consiste no fato de que o fim da modernização das sociedades tradicionais leva à população do Ocidente, principalmente, novas condições. Pode-se comparar este longo processo com a realização de um objetivo previsto. O povo, disposto em um trem que viaja para uma estação muito longe, se acostuma tanto com o movimento que não o cessa durante várias gerações, que não pode imaginar a vida de outra maneira. Eles veem a existência como o desenvolvimento, convertido em um longínquo ponto de referência, do qual todos se recordam, para o qual todos vão, mas que segue permanecendo muito remoto. E, de repente, o trem chega à estação final. A plataforma, a estação... o objetivo foi alcançado; os problemas, resolvidos... mas o povo que chegou está tão acostumado a estar viajando o tempo todo que não pode se conter depois da comoção de ver seu sonho tornado realidade. Quando se alcança o objetivo não há nada, outra coisa pela qual se esforçar, nenhum lugar para ir, não há para onde avançar. O progresso chegou ao seu ponto máximo. Precisamente, este é "o fim da história", ou a "pós-história". (A Gehlen, G. Vattimo, J. Baudrillard).

Mediante esta metáfora, pode-se descrever completamente a condição da pós-modernidade. Aqui estão tanto o sentimento de êxito como o de decepção. De qualquer maneira, isto já não é a modernidade, nem o Iluminismo, nem a Idade Moderna. A facção crítica dos filósofos pós-modernistas submeteu ao escárnio os diferentes estágios do movimento até que o objetivo fosse atingido, começando a falar ironicamente destas ilusões e esperanças com as quais os que começaram o movimento se confortaram, não sendo capazes de imaginar que tipo de objetivo seria este. Outros, pelo contrário, se ofereceram a romper com o sentimento crítico e perceber "o novo mundo feliz" tal como é, sem entrar em detalhes e dúvidas.

De qualquer forma, seja isso visto de forma positiva ou negativa, a pós-modernidade representou o fim. A fé no progresso fechou as portas e cedeu seu lugar à temporalidade brincalhona. A realidade, havendo desprezado anteriormente o mito, a religião e o sagrado, se transformou em virtualidade. O homem, no amanhecer da Idade Moderna, havendo derrubado Deus do pedestal, está disposto a ceder, de agora em diante, o lugar de rei a uma raça pós-humana - a dos cyborgs, mutantes, clones, a todos os produtos da "técnica liberada".

O Pós-Ocidente

Na época da globalização, o Ocidente não só se fez global e onipresente em si mesmo (como se expressa na uniformidade da moda mundial, a difusão geral das tecnologias informáticas e de informação, o estabelecimento onipresente da economia de mercado e os sistemas políticos e legais liberal-democráticos), mas também em seu núcleo, no centro de um mundo unipolar, o "Norte rico" muda qualitativamente da modernidade à pós-modernidade.

E de agora em diante, o apelo a este Ocidente nuclear, o Ocidente em sua mais alta manifestação, poderia ser, pela primeira vez na história, que não tenha deixado a modernidade para trás (do tipo que seja, exógena ou endógena), já que o próprio Ocidente é, a partir de agora, sinônimo não de modernidade, mas sim de pós-modernidade. Mas a pós-modernidade, com suas ironias, tecnologicamente pura, reciclada da velha e gastada fé no progresso, já não oferece a sua periferia sequer a possibilidade remota de desenvolvimento. "O fim da história" que chegou levanta perguntas absolutamente diferentes - a questão, antes importante, do "Ocidente" fazer subir o "Sul pobre" ao seu próprio nível parece, agora, uma tarefa absolutamente desnecessária, sem nenhum propósito e sem sentido: se algo pode ser encontrando lá, seguramente não serão as respostas aos novos problemas da época pós-moderna.

Tecnicamente e tecnologicamente ele [o Ocidente] domina por completo, e os processos de globalização se desenvolvem a toda velocidade, mas este já não é um desenvolvimento progressivo, e sim um movimento circular ao redor de um centro ainda mais problemático. Através de seus processos favoritos, a arquitetura da pós-modernidade faz tais construções, onde os estilos e épocas se misturam caprichosamente, enquanto que no lugar do ponto central do conjunto arquitetônico se abre um buraco. Este é o centro ausente, o polo do círculo, que representa a queda no não-ser.

Tal é, também, a estrutura substancial do mundo unipolar. No centro do Ocidente global - nos EUA e nos países da aliança transatlântica - se abre o buraco negro sem sentido da pós-modernidade.

A brecha entre a teoria e a prática do globalismo

A última metamorfose do Ocidente durante sua transformação para a pós-modernidade, que descrevemos anteriormente, é uma construção puramente teórica. Tal imagem foi elaborada no início da décade de 1990, de modo que a lógica da história do mundo foi conceitualizada, portanto, por aqueles pensadores que ainda se conservam no Ocidente, antes que ceda-se, finalmente, o caminho à pós-humanidade (possivelmente a autômatos pensantes). Mas entre esta concepção teórica e sua encarnação havia uma brecha decisiva. A reflexão sobre a natureza e a estrutura de tal Ocidente e tal pós-modernidade conduziram, inclusive a seus próprios ardentes apologistas, a um estado de horror e desespero. Por exemplo, em certo momento, Francis Fukuyama começou a retornar desta imagem ideológica que o mesmo desenhou no início da década de 1990 e quis voltar atrás, mantendo o Ocidente na condição em que se encontrava antes que chegasse a sua estação final. Os críticos de Fukuyama, incluindo Huntington, também exageraram a qualidade e a quantidade destas barreiras a serem superadas pelo Ocidente com o fim de se tornar verdadeiramente global e ubíquo. Desde diferentes pontos de vista, todo o mundo começou a agarrar-se aos restos da modernidade, com seus governos nacionais, a fé no progresso, suas moralizações, tutelagens e fobias, as quais, há muito tempo, todos estão acostumados. Então, se decidiu prolongar o movimento ao objetivo previsto, ou ao menos simular o balanço dos vagões e o barulho das rodas nos trilhos.

Hoje, o Ocidente mora precisamente nesta brecha entre aquilo no que teoricamente deve se converter na época de globalização, e pelo fato de que ultrapassou todos os obstáculos e derrotou todas as alternativas, e aquilo o que absolutamente não se quer reconhecer como a nova arquitetura da Pós-Modernidade - com um buraco ao invés de um centro. Contudo, nesta brecha, infinitamente pequena e constantemente se contraindo, ocorrem processos muito importantes, que constantemente mudam a imagem do mundo em geral.

Tudo isto exerce ativamente uma influência na Rússia.

[*] O "Bilhão de ouro" (em russo: zolotoy milliard), no mundo da língua russa, é um termo que faz referência às pessoas relativamente ricas em países industrialmente desenvolvidos, ou no Ocidente. (Fonte: Wikipedia)

Ernst Niekisch - Sobre "O Trabalhador" de Ernst Jünger

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por Ernst Niekisch



"A ideia do Estado para o trabalhador deve emergir. Isso não significa, é claro, que todo mundo deve a partir de então trabalhar em uma fábrica ou que apenas os trabalhadores fabris devem ser considerados como possuindo valor. Sua característica essencial seria esta: a lei fundamental deste Estado decidiria que o trabalho, a realização de uma tarefa (Leistung), deve ser sagrada, mas sagrada apenas na medida em que tende a servir ao Estado  e em que lhe dá significado. Trabalho que, de uma maneira ou de outra, seria fundamentalmente feito desde a perspectiva do Estado, seria a pedra fundamental da sociedade e do Estado operário". (Ernst Niekisch, Gedanken über deutsche Politik, Widerstand, Dresden 1929).

Desde 1918, a Alemanha tem estado amordaçada pelo mundo burguês e imperialista: sua servidão resulta diretamente da lógica desse mundo burguês e capitalista. E ainda assim, a Alemanha sente que faz parte deste mundo e pretende continuar a ser parte dele. Melhor, ela parece responsável pela sobrevivência desse mundo, assim limitando a escolha de meios à sua disposição para a luta de libertação. Ela se proíbe de lutar por uma ordem na qual a lógica do mundo burguês e imperialista, que forçosamente estrangula a Alemanha, não tenha caminho, porque este mundo seria inteiramente destruído. Enquanto a Alemanha estiver a serviço do mundo burguês e imperialista e de sua manutenção, ela reforçará sua própria condição de escravidão. Ademais, sua participação na Liga das Nações já é um símbolo, já que nesta instância, ela demonstra para si mesma a intangibilidade das relações de força criadas pelo Tratado de Versalhes.

O combate da Alemanha por sua libertação, assim, carece de uma dimensão absoluta; ele não possui essa profundidade que lhe permitiria perscrutar as grandes profundezas da existência humana. Uma situação sem esperanças, que esquarteja a Alemanha em todos os horizontes. Carecendo de oposição ao mundo burguês imperialista e sua lógica, a Alemanha dá razão a este mundo e sua lógica, equivocadamente se entregando.

Em seu mais recente livro, O Trabalhador, Ernst Jünger mostra de maneira magistral como, sob o plano fundamental, podemos eliminar, liquidar o espírito do mundo burguês. Jünger não teme olhar as coisas de frente. Ele não cede à tentação de embelezar. Ele diz o que ele vê. Ele encontra as implicações adequadas aos fatos que ele afirma. E ele permanece duro e exigente em relação a si mesmo: ele não tenta deformar as imagens que passam diante de seus olhos se permitindo falar nas esperanças que ele poderia nutrir secretamente em seu coração. Aquele que quer interpretar uma época não deve ser um covarde que só é capaz de se colocar ali onde se deseja estar! Ele deve, ao contrário, penetrar nos segredos dessa época e descrevê-los com uma objetividade a todo tempo, ainda que o que ele descubra seja anormal, horrível e desafie todo cálculo. Inúmeros são aqueles que descem ao âmago de uma época e só emergem com seus fantasmas. Poucos podem extrair a realidade. Jünger é um desses raros poucos.

Jünger sempre esteve interessado na tecnologia e nas leis que a governam. A tecnologia transforma o mundo. Ela lhe dá bases inteiramente novas. Ela resulta em uma relação de um novo tipo entre homem a natureza que ele submete a seu domínio. A máquina sempre tão somente orientou forças naturais; é a forma que permite seu uso. O homem se apossou da energia do cosmo e desde então, seu espaço vital perde sua dimensão infinita, se torna transparente, calculável, limitado. A tecnologia é o mestre do mundo externo, quanto mais ela se dedica a ele, mais a atenção dedicada ao mundo interno parece extemporânea e estéril. Comparada com o labor da tecnologia, a especulação metafísica se torna uma distração inoportuna. Um novo tipo de homem aparece, para o qual o domínio de instrumentos técnicos é mais importante que a "flor azul" da introspecção. Um novo tipo de homem, que clama por novas formas de vida. Mas essas são elas mesmas marcadas pela atmosfera de tecnologia que impregna todas as coisas. O novo homem não é um indivíduo inexaurível, nem uma personalidade ricamente plena; ele é um tipo, e, enquanto tal, ele está ligado a seus semelhantes por uma similaridade, uma conformidade, que é em substância a expressão de um certo primitivismo ligeiramente insosso. Esta comunidade de traços e esta permanência do essencial cria entre todos os representantes do "tipo" laços permanentes, laços fundados em um "pertencimento existencial". Estes laços mostram ao mundo exterior que o tipo, situado no centro da existência, está em perfeita harmonia com seus semelhantes. Não é uma comunidade mecanicamente fundada, do exterior, entre indivíduos incomensuráveis, mas um coletivo que nasce dos simples fato de que todos os representantes do tipo são talhados segundo uma figura uniforme.

O "tipo" que atua aqui é o homem da era tecnológica; sua face já está perfilada nos traços duros e simples do soldado nos últimos anos da guerra, com o combate de máquinas e "material". Foi ele quem deixou para trás do que já pertence hoje ao "romantismo rural"; todas as atitudes burguesas contidas nessas vastidões imaginárias. "Não, o alemão não é um bom burguês, e é onde ele é o menos burguês que ele é o mais forte". Era necessário que os alemães desconfiasses da vontade de se tornar burguês exatamente agora! A roupagem burguesa começou a "parecer ridícula, como todo o exercício de direitos cívicos, notavelmente o direito ao voto"; a roupagem burguesa, principalmente, deu ao alemão uma "sedução infeliz". Já esquecemos o lado cômico que abarca um brilho tão incomum quando a defesa bastante séria de Hans Grimm em favor da "honra burguesa"? Ainda que nos sintamos entusiásticos por uma causa que, para falar a verdade, não concerne o homem alemão. Jünger é consciente de todas as consequências de sua posição: a tecnologia implica em um assalto contra todas as afiliações, incluindo aquelas "do burguês, do cristão, do nacionalista" consideradas as mais naturais. Este é o fronte da reação, cujos esforços para se restabelecer "estão necessariamente ligados com tudo que é o mundo poeirento e trivial: romantismo, liberalismo, conservadorismo, a igreja, a burguesia". Também, ele acrescenta, com a ideia do "estado" (Stand). O advento do homem que corresponde ao "tipo"é, para ele, cada vez menos compatível com a ordem dos velhos dias. "O besteirol em que se acredita nos domingos e velhos feriados públicos" parece cada vez mais espantoso. Ao ouvir esta "onerosa mistura de desprezo e presunção dos discursos oficiais feitos pelo governo, patentemente nacional e cristão, que jamais carece de um apelo à cultura", nós perguntamos como "tal verniz de idealismo inconsistente, pintado de romantismo, ainda pode ser possível". Defrontado com a fofoca de ateístas alemães, Jünger, que se declara filho, neto e bisneto de gerações inteiras de ateus, e em cujos olhos a própria dúvida já é em si suspeita, afirma: "O declínio do indivíduo anuncia ao mesmo tempo o último espasmo da alma cristã. E quanto a nós, devemos compreender que entre a Figura do Trabalhador e a alma cristã, ele não pode mais manter a relação entre esta alma e as antigas imagens de deus".

Onde encontraremos a ponte que reunifica Jünger com a cultura burguesa, a civilização ocidental e a tradição cristã? Até este dia, os pobres nacionalistas e patriotas burgueses ainda tem que entender que eles são parecem ridículos a cada vez que reivindicam laços amistosos com Jünger!

O "tipo" corporifica a si mesmo, afirma Jünger, na Figura do Trabalhador. Esta não corresponde ao "Quarto Estado"; esta é "uma visão burguesa que considera a qualidade do trabalhador um 'estado', e ademais esta interpretação é inconscientemente falaciosa porque retorna a aprisionar as novas aspirações em um velho quadro, levando assim a prolongar um estado de submissão". A Figura do Trabalhador está apta a dominar o mundo; fundada na tecnicalidade do mundo; ela porta em si a semente da totalidade. Além disso, todos os outros tipos humanos parecem obsoletos, retrógrados, românticos, e devem se dissolver até que não tenham mais terra ou raízes, ou ar para respirar.

Procurar na Figura do Trabalhador pelo significado do "tipo"é um caso efetivamente justificado; esta interpretação não é nem arbitrária, nem forçada. Ela trai, ao contrário, uma vontade política guerreira, com uma essência antiburguesa. O burguês é simplesmente posto de lado enquanto forma de existência. Incapaz de resistir à veemência com a qual negamos seu direito à existência, ele está acabado declarando-se perdido! O advento da Figura do Trabalhador no nível de um tipo planetário remove o burguês de seus últimos refúgios na terra. De resto, mesmo sua ideia já está um tanto exterminada; de pouca importância, na prática, nós esfomeamos seu corpo, seu resíduo lamentável, nós o penduramos na parede, ou nós o exterminamos de uma maneira ou de outra! Encarado pela Figura do Trabalhador, não há mais qualquer lugar para o burguês. Na maneira pela qual o "tipo" descarta o burguês, há algo de implacável. A superioridade da Figura do Trabalhador resulta de suas relações com a tecnologia: "o papel que a tecnologia desempenha nesses processos é comparável com a vantagem que os primeiros missionários cristãos, formados nas escolas do Império Romano, possuíam quando confrontados com os antigos duques germânicos".

É esta superioridade que é a base do nível imperial da Figura do Trabalhador. "A soberania, isto é a tomada de espaços anárquicos por uma nova ordem, só é possível hoje como a representação da Figura do Trabalhador, que professa uma validade planetária". O fato importante é "que se torna possível novamente levar na terra uma vida em grande estilo segundo padrões elevados". O novo sentimento-do-mundo (Erdgefühl) que anima a Figura do Trabalhador concebe o globo terrestre como uma unidade; é "um sentimento do mundo suficientemente audaz para realizar grandes obras, e suficientemente profundo para compreender tensões orgânicas".

As teses jüngerianas apresentam uma similaridade perturbadora com os fundamentos da doutrina marxista. O advento da Figura do Trabalhador como Figura dominante relembra incontestavelmente, profundamente, o Prolekult. As pretensões planetárias dessa Figura constituem uma justificativa filosófica para a ditadura do proletariado, e a intransigência com a qual a burguesia se verá privada de seu direito à existência é reminiscente da luta de classes. Finalmente, o sentimento-de-mundo planetário que caracteriza este "tipo" ecoa de certa forma o espírito do internacionaismo proletário chamado a liderar a totalidade da humanidade. Porém, a trincheira que separa Jünger das posições fundamentais que o marxismo sustenta é impossível de ultrapassar: com Jünger, o que aparece claramente como coragem diante da realidade e como uma descrição audaciosa do que virá, é em sua contraparte marxista, uma imagem inventada, fantasiosa, de sentimentalismo humanitário, embebido em amargura. Ademais, esta vizinhança ideológica da qual falamos não vem de Jünger ter se submetido a postulados marxistas; é suficiente dizer que o marxismo, também, constitui uma cosmovisão específica ligada a uma existência acompanhada pela essência da tecnologia. Mas o marxismo ainda dá uma resposta sentimental à tecnologização da existência. A resposta de Jünger está exclusivamente impressa com "realismo heróico".

Nós podemos traçar os paralelos do mesmo tipo entre a visão que Jünger mantém de sua época e a realidade russa. Nenhuma parte da Figura do Trabalhador foi imposta de uma maneira mais definitiva do que na Rússia bolchevique. Em nenhum outro lugar o caráter do trabalho abarca a existência mais sensivelmente, nenhuma parte da Figura do Trabalhador é um elemento mais determinado do que a mobilização total. As teses de Jünger são às vezes percebidas como abstrações conceituais, como transfigurações filosóficas do mundo e da realidade russa. Mas em verdade elas não são nada disso. Jünger apenas mantém uma relação interior viva com a tendência irresistível do mundo na direção da tecnologia, que já sublevou as estruturas da Rússia e se prepara para transformar igualmente outros povos. Se tentarmos redesenhar as rotas impressas por esta tendência global e fazer uma descrição geral precisa, estaremos sempre surpresos ao constatar que as realizações específicas e concretas do espaço bolchevique provam que Jünger está certo. Ele não é um bolchevique, mas ele testemunha apesar de si mesmo o quanto a Rússia bolchevique está em acordo com a tendência dominante do mundo.

A Figura do Trabalhador evolui a um nível totalmente diferente do que o proletário no sentido apropriado. O espírito da tecnologia muito simplesmente se tornou segunda natureza nele; ele domina com mão leve, com uma certeza inteiramente natural, a coleção de ferramentas técnicas. A precisão do técnico, a imaginação realista do engenheiro, a coragem do grande construtor, tais são as virtudes que ele anima. Mas seu mais poderoso motor é uma vontade de dominação que objetiva organizar o mundo em seu alcance global e lhe dar um novo equilíbrio. Para ele, a ideia de planejamento não está ligada a qualquer aspiração nostálgica por uma felicidade radiante, mas deriva do espírito construtivo da tecnologia, graças ao qual o universo será remodelado.

A obra de Jünger é um boletim, um relatório preliminar sobre um mundo que ainda está em processo de devir. Na medida em que compreendemos seu dialeto, nós já partilhamos desse mundo. Também, este é, sem falha, um livro no qual o espírito das grandes cidades respira. E é, ao mesmo tempo, em suas ramificações mas estringentes, um livro protestante. A mais moderna racionalidade, secularização e tecnicalidade da vida são consequências do protestantismo, e nenhum sonha em contestar sua paternidade, ainda que o protestantismo bem gostaria de deserdar sua prole virando hipocritamente suas costas. Roma sempre soube disso e Roma sempre disse isso. No final das contas, o bolchevismo é Lutero na Rússia.

Não há outra escolha: na linha traçada por Jünger, a Alemanha deve trabalhar contra o Ocidente, contra Versalhes. Mesmo que isso nos cause repulsa, mesmo que isso atinja nossa "substância". Contra Versalhes todos os meios são válidos; se um deles se provar eficaz, então deve ser usado, ainda que isso nos faça adoecer. Porque há uma "coragem diante do abismo", que nos permite saber com certeza que não cairemos ao chão e que apenas o salto no abismo permite a conquista de um espaço no qual possamos fazer trabalho histórico. Se o reino da Figura do Trabalhador alcançar o espaço alemão, então ele abrirá para nós um território que se estende "do Vlissingen a Vladivostok"; essa não deveria ser para nós a garantia do ponto em que o alemão poderá abrir sua porta para o ar livre?

Existe uma preguiça e suavidade alemães que sempre tendem a se expôr antes da derradeira data da "decisão". Com sua precisão metálica, suas visões afiadas, o livro de Jünger demanda a decisão mais uma vez. É necessário não conceder à lassidão e torpor alemães uma última trégua.


Álvaro Hauschild - Qual é a Cor do Brasil?

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por Álvaro Hauschild



O Brasil é multicolor, e isto significa, como em uma bela pintura, um império orgânico dentro do qual muitas e variadas culturas coexistem, sem se misturar. Elas colaboram umas com as outras, portanto permitem umas as outras que tenham seus costumes e suas moradas preservadas.

Que o Brasil é multicolor significa que não é o desbotamento do marrom e do cinza, significa que não é um balde onde as cores se dissolvem e se destroem, mas, todo o contrário, significa que é um reino no qual se assentam muitas etnias distintas, cada qual com seu espaço e seus costumes. Cada etnia, tendo origem distinta e particular, tem uma tradição especial, uma visão-de-mundo toda própria, que não compartilha elementos essenciais com as outras, a não ser o que pertence à ampla e própria essência humana, ou seja, o respeito à religiosidade.

Esta religiosidade, por sua vez, não pode ser tomada sob uma forma universal. O “objeto” da religião não está no mundo das coisas cotidianas, no mundo das formas múltiplas (onde poderia ser identificado), o que quer dizer que não existe uma forma única de religião, embora haja um único ser transcendente. Os modos, os caminhos pelos quais os homens se re-ligam a Deus são múltiplos também – e cada caminho só ganha corpo e realidade em uma tradição popular; é a tradição que guia o homem na difícil caminhada, ampla e obscura, da alma perdida no mundo. Sem tradição, não há nada – não há Deus, não há alma, muito menos homem.

Cada tradição, cada etnia, pertencendo a uma visão-de-mundo particular, tem conceitos próprios, sensos-comuns próprios, intuições próprias, estilos próprios, cores próprias, formas próprias. O que todas têm em comum, no entanto, é a necessidade de viver no belo e no sagrado; e isto só é possível quando cada uma delas for livre no seu espaço, onde pode projetar as perfeições da sua visão-de-mundo própria, onde pode projetar sua alma e avistá-la no espaço público. Isto não pode acontecer quando as tradições, misturadas, são infiltradas por conceitos, formas e visão-de-mundo alógenos, que não possuem significado nenhum a não ser para a tradição que as criou. Com a mistura, as visões-de-mundo são relativizadas, o próprio mundo se dissolve com a perda das formas sagradas de cada tradição particular; por sua vez, uma tradição, se apropriando de formas estranhas que não compreende, as destroi quando as reproduz sem compreender. E nenhuma tradição pode compreender a outra, nenhuma tradição pode reproduzir adequadamente os elementos de outra, nem, portanto, julgar as outras.

Cada tradição é um mundo à parte. O que é sagrado para uma não é para a outra. A mistura sempre leva à corrupção de dois mundos ou mais, e é aí que advém o niilismo e o anseio do homem perdido de formalizar as relações sociais – pois no caos tudo é permitido, mas o homem é um ser político, incapaz de viver fora de um povo, fora de uma tradição. Com a perda de sentido do mundo (a perda do mundo propriamente falando), surgem, então, as formalizações da sociedade, para tentar corrigir o erro primordial da destruição das tradições: sistemas filosóficos, jurídicos e afins, que buscam inventar um novo mundo através de mitologias seculares e anti-sagradas, ou seja, conceitos rígidos, arbitrários, que servem de axiomas para todo um aparato civilizacional (científico, filosófico, social, estatal/jurídico, etc.). Mas estes sistemas de modo algum substituem as tradições; eles sequer conseguem compreender a natureza, o ente, quem dirá então as tradições que os fazem aparecer de modo vivo, real, fundadas no ser, onde são uno o povo, o homem e o mundo.

Embora forças políticas, intelectuais e financeiras tentem fazer do Brasil uma sopa horrível através de projetos de desconstrução cultural e miscigenação, fazendo irromper doenças e sequelas sociais profundas, ainda não temos na nossa pátria esta sopa, e comunidades do interior das mais variadas regiões do Brasil resguardam, como guardiões ocultos de uma sabedoria primitiva, tradições enraizadas e encrustadas no modo de vida do povo. Isso significa que o processo de desenraizamento das etnias no Brasil não é espontâneo e natural, mas provocado artificialmente por uma elite completamente consciente dos seus atos, que age através do poder midiático, financeiro e intelectual/político. É preciso dizer aqui que o processo de desenraizamento é um aspecto do esquecimento do ser já denunciado por Heidegger; mas sendo este desenraizamento provocado, tem por agente um sujeito externo, um parasita, um tipo nômade, internacionalista e apátrida, que age às ocultas, bem conhecido por derrubar impérios e fundar oligarquias “democráticas”. Pois não poderiam as tradições do Brasil se perder sozinhas, visto serem enraizadas no ser; as tormentas pelas quais a pátria passa são artificiais: elites de há muito vêm tentando criar no país todo uma maneira padronizada de pensar, a fim de subjugar o povo por inteiro através de uma máquina estatal e midiática, subjugação que tem no dinheiro seus motivos e suas ferramentas mais obscuras.

Desde os nacionalismos do século XX, as elites buscam arrebatar o povo todo como a um caldeirão cinza-marrom, com as políticas miscigenatórias e civilistas do “Estado forte”, industrialista e tecnicista. Na época da ditadura, anos 1960, começa, no entanto, a explícita tomada do Brasil por forças externas, principalmente dos EUA, ou então especuladores internacionalistas apátridas, momento em que as forças políticas, filosóficas e artísticas vindas do exterior prendem o povo a uma doutrinação anti-patriota, embora as aparências conservem superficialmente um ar de patriotismo, apenas como desculpa para a ativação do exército contra a população. Aqui se infiltram no Brasil apelos à commonwealth, muito velados pela algazarra militarista, causando a expulsão e cassação de políticos e intelectuais católicos[1], a fim de impor uma visão-de-mundo completamente laica, irreligiosa, materialista, antitradicional sobre o povo por inteiro, tomado como uma massa informe controlada pelo Estado violento – aqui, o Estado é antipopular, demonstrando ser ferramenta de forças externas, completamente estranho ao povo, distante dele. Intelectuais e políticos liberais se tornam a regra, são privilegiados pela elite, e recebem cargos importantes a fim de servirem de ferramentas – jornalistas liberais ganham fama e “conquistam” o povo, a fim de transformá-lo sem que ele o perceba, a fim de ajoelhá-lo e adoçá-lo, prepará-lo para que cada vez mais aceite os ideais estrangeiros.

Com a chegada dos anos 1990 e do século XXI, quando o povo já se entulha nas metrópoles e já clama por tudo que é exterior, odiando a si mesmo, surge a possibilidade de causar uma grande migração interna e também de pressionar os grandes cérebros e gênios do povo a se mudarem para os centros de pesquisa europeus e norte-americanos, onde devem servir aos interesses da elite de um modo mais facilmente controlado. Enquanto isso, a classe média brasileira, atraída pelo estrangeiro, leva seu dinheiro para lá em turismo ou em compra de produtos e marcas estrangeiras, se não de fato se mudar também para lá a fim de trabalhos pesados e sujos que os estrangeiros mesmos em sua terra se negam a fazer[2]. Internamente as massas são jogadas em metrópoles multiculturais, onde o caldeirão miscigenatório está preparado para aniquilar as diferenças culturais e decepar as tradições ainda vivas no interior e em regiões rurais[3]. Externamente, são pulverizadas numa “sociedade” global, onde todos estão cegamente controlados por elites distantes e em geral ocultas ao povo. Os princípios filosófico-políticos que a tudo controlam e padronizam que se propõem universais e eternos, matemáticos, escondem a arbitrariedade e o manejo das elites que os formulam e os impõem. Não sendo princípios tradicionais, pertencem e obedecem ao raciocínio mecânico de poucas mentes.

Chegado ao momento de uma nova e grande tomada de poder através das privatizações e da transferência do poder público para mãos particulares, que inclui o controle sobre a indústria bélica e dos múltiplos departamentos de um complicado sistema estatal, passamos agora para um chocalhar governamental, em que os partidos, impotentes, confusos e divididos, não têm o que fazer senão se entregar a correntes e fundos financeiros externos e internacionalistas, os mesmos contra os quais deveriam lutar pela soberania tanto do Brasil como de si mesmos enquanto partidos independentes. Não sabemos o que será do futuro brasileiro, mas se seguirmos este caminho do financismo e do racionalismo sistematizante certamente nos veremos cada vez mais perdidos e entregues a vontades sinistras de poucos homens ambiciosos.

E, apesar de toda essa disputa financeira e política, permanece em cada brasileiro uma alma irresoluta, sedenta de Deus, portanto sedenta de beleza e harmonia, que só a simplicidade é capaz de oferecer. O dinheiro, o poder político, o acúmulo de “experiências”, como viagens e sexo, de bens, nada disso preenche o vazio e mata esta sede, como prometem a mídia e os monopólios de mercadorias. Pelo contrário, quanto mais afastado da tradição, maior se torna este vazio, e a sede, uma vez milagrosa, transforma-se em pura tragédia, despertando vícios cada vez piores e o desejo de auto-destruição. Apesar de toda tecnologia, da multiplicidade de prazeres e atividades lúdicas, falta ao povo o essencial, que só os folclores, as lendas, os camaradas, as mulheres e as crianças, enquanto participantes de um todo, reunidos em uma dança comunitária, são capazes de revelar por si só, sem que seja necessário dissecar pássaros para esta revelação da verdade mais pura. Percebe-se em cada homem uma agitação que busca o conforto da alma, o sossego, a tranquilidade de uma vida simples – pois simples é a verdade, simples é a beleza, simples é o ser, simples é Deus, e tudo o mais é barafunda, complicação arbitrária, fútil, que do pó ao pó é sempre um nada.

Pois os folclores não são meras distrações, são símbolos da verdade; o heroi não é um mero exemplo moral, é o homem com uma certeza íntima, dotado de uma intuição da verdade, e para ela se dirige, para ela está sempre apontado, e dela também recebe sua direção, seu norte. E para a alma humana, que é pura intensão, um evento do ser, a verdade é uma necessidade, é o seu fim, é a direção para a qual veio a existir. A harmonia do folclore revela a harmonia do mundo, incomensurável e indeterminável, mas eternamente presente. A verdade se vê com a intuição, não com o raciocínio, e o sacro é percebido intuitivamente, não pode ser calculado. Se fosse calculável, não seria essencial, não estaria ao mesmo tempo “no além” e “no íntimo”, seria apenas convenção, arbítrio, como são todas as medidas e valores socio-políticos ou científicos. A raiz do folclore é metafísica, a origem do folclore o é: a intuição folclórica e a ideia dos folclores, os símbolos folclóricos, não são ajuntamentos de sinais e formas humanas a criar um espetáculo; os símbolos folclóricos são transcendentes, as lendas, com suas histórias, pertencem a outro mundo – eles apenas são trazidos ao homem pela conexão intuitiva do homem com as esferas transcendentes. É uma ação dupla: do homem ao intuir, buscar, admirar, e de Deus ao oferecer e iluminar com as formas eternas de uma história eterna de um tempo que não passa. As lendas são memórias de uma história que não passa, perdida para o homem na matéria temporalizada; viver os rituais de uma tradição é se aproximar, através da memória constante, desta história que não passa, é abrir um caminho por meio do véu da existência rumo ao fim da alma humana, que é a eternidade.

Por rituais não se compreende aqui apenas aquelas festas que acontecem de vez em quando, mas todo um modo de vida guiado pelos princípios tradicionais; dormir, comer, arar, tudo isto pertence à tradição e dela recebe seu verdadeiro significado, e são rituais absolutamente religiosos – mal se dá conta disso a superficialidade do homem moderno! - . Devem, pois, ganhar a forma da tradição, pois é a tradição, com seus rituais, que funda o mundo, e a tudo revela um motivo, misterioso porém presente e real (sim, oracular!). Toda a vida do homem integra a tradição e a ela pertence; quando esta funda o mundo, funda também o homem, pois é por ela que o ser vem a ser, que o homem se torna de fato homem, que ele vê a luz o resgatar da escuridão, da dúvida e da perdição. Que respostas o niilismo moderno conseguiu até agora? Em compensação, qual tradição fiel se viu alguma vez abandonada por Deus?

Vemos no Brasil atual uma grande confusão, mas vemos a completa perda da tradição? O Brasil é um país niilista? Ou é “atrasado”, “medieval”, “ignorante”, “preconceituoso”? Com orgulho e esperança constatamos que é, graças à Deus, ainda bastante “atrasado”, “medieval”, “ignorante”, “preconceituoso”, pois isto significa que ainda não está subjugado pelas mais dianteiras frentes da pós-modernidade. Ainda temos o velho e teimoso nordestino, que despreza com violência a moda estéril das grandes cidades; ainda temos o gaúcho que grita, rabugento, contra a perda dos valores e do amor à terra sagrada; temos o índio tribal que, de arco e flecha na mão, investe contra a esterilização industrial das florestas; temos, sobretudo, até nas metrópoles, aquele homem e aquela mulher que, antes de dormir, oram por aqueles que amam, oram para que Deus ilumine a nossa pátria e a cure do câncer que a ameaça. Muito diferente das massas padronizadas e doutrinadas de terras inférteis, como os EUA e a Europa, completamente insípidas, temos no Brasil micropopulações, comunidades, que resguardam histórias e religiosidades muito particulares, próximas e amigas à terra que as acolheu; o nordestino viaja ao sul e descobre um mundo completamente estranho, e o mesmo constata qualquer outro que sair da sua comunidade. Esta riqueza maravilhosa não é compreendida pelo estadunidense, acostumado a ver o mundo todo igual e desalmado, a partir de cuja visão julga todos os povos, tomando o seu ponto de vista como universal, básico, sendo ele o mais superficial de todos. Lá sim temos o cinza-marrom, o caldeirão desculturado do multiculturalismo, onde tudo é metrópole, enquanto aqui, no Brasil, ainda temos resquícios poderosos que a mídia e o empresariado se esforçam, em vão, em ocultar e apagar[4].

Não há um “formato brasileiro”, e mesmo assim há o Brasil, a alma brasileira que se distingue das outras por sua única e singular hospitalidade, por sua compaixão e humildade ao lidar com as diferenças culturais. E isto não pode ser posto no papel, em análises científicas do povo; o romance, a arte, é que podem expressar esta sabedoria, apreensível somente por almas sensíveis; mas é o folclore, o culto popular, a comunidade local, que verdadeiramente desvela a alma brasileira de uma determinada tradição regional. O folclore é o povo. É por esse caráter singular de um país múltiplo que estrangeiro nenhum nos compreende. Ora somos loucos, ora bobos, ora atrasados e bagunçados aos olhos externos, e apesar disso, nós nos entendemos muito bem, obrigado; mas mais do que isso, sempre somos admirados, por amor ou ódio externos, por homens que querem se tornar brasileiros ou pôr suas garras nesse Brasil “bárbaro”, dominá-lo, tê-lo para si.

Pois somos católicos, apaixonadamente religiosos, e mesmo às vezes confusos jamais conseguiremos nos desfazer dessa paixão; mesmo que nos naturalizemos europeus, estadunidenses, australianos, jamais conseguiremos nos desfazer do Brasil que nos gerou, nos alimentou, nos formou e que reside dentro de cada um de nós – ir ao estrangeiro é sair de casa, ter aquilo que os bons germânicos ainda chamam de heimweh (heim: lar, weh: dor, sofrimento), a saudade de estar longe do lar, a sensação de estar fora de si, de ter perdido a própria essência pelo caminho e ter acabado vazio, nulo. Mesmo que adotemos ideias estrangeiras, através dos meios de comunicação dominados por uma elite internacionalista e globalista, só nos sentimos acalmados e curados do agito e da carência quando resgatados pelos costumes caseiros das nossas tradições que nos formaram. Se o protestantismo e as excêntricas “igrejas” evangélicas se instalaram com êxito no Brasil, foi porque souberam se aproveitar dessa carência gerada pela corrupção contínua de várias gerações e, claro, do poder político e financeiro das máfias também. Se a secularização do país em todos os âmbitos obteve sucesso até então, foi pela maquinação incessante da maçonaria e de outras sociedades secretas, “discretas” e “abertas” afins, cuja rede é imensa e trabalha pelo aburguesamento e pelo inchaço da classe média, através dos ideais laicos que, nomeemos os bois, são formas veladas (máscaras) de uma alma judaica, predominante entre as elites financeiras, aquelas que mexem os pauzinhos de grande parte da política, do empresariado, da classe intelectual e da mídia.

E, sendo católicos, sendo filhos de uma monarquia cristã, temos o dever de retornar a ser o que sempre fomos, como o filho pródigo que reconhece e se arrepende dos seus erros, e abraça com ainda mais paixão suas origens. Sendo uma pátria de muitas etnias e tradições, temos o dever de velar pela preservação e pela vivência de cada uma delas, contra a modernização e padronização da forma de vida do povo em uma massa burguesa, urbana. Temos o dever, também, de formar uma elite intelectual preocupada com essa nossa vasta pátria, repleta de florestas, rios, montanhas e praias, preocupada em devolver ao povo sua própria alma, perdida na história pelos descaminhos dos sistemas e padrões estéreis. A esta elite, é necessário debruçar-se também em geopolítica, para não acabar novamente refém de falsas alianças e influências, que de nada têm de inocentes.

O Brasil não chega a ser um mosaico, onde as cores, individualizadas, se opõem umas às outras e carecem de unidade. Mas também não é a mistura das cores, uma tela única. É, antes de tudo, uma bela pintura, em que as cores, distintas umas das outras, divididas em inúmeros tons e preservadas, completam umas às outras na harmonia de um todo, na harmonia de uma grande obra de arte divina, a ser compreendida unicamente por seu caráter harmônico e total, e não por medíocres análises que em tudo inventam padrões e leis.

Muitos brasileiros compreenderam e compreendem isto. Um deles, devemos recordar, foi Ariano Suassuna, que se engajou no projeto de redespertar as tradições e deve servir de exemplo e inspiração aos artistas, filósofos, políticos e demais estudiosos, empenhados na continuação de seus projetos. Pois Suassuna é um arquiteto do Brasil.

[1] Ernani Maria Fiori, Ernildo Stein, estudiosos da fenomenologia também se incluem aqui.

[2] Os brasileiros servem de mão-de-obra barata em restaurantes, em casas de família, em troca iludida de “morar no estrangeiro”, como se se tratasse de algo sobrenatural, mítico, um mantra este “morar no estrangeiro”. O papel da mídia, das músicas, do cinema, aliado a uma situação financeira difícil causada conscientemente no Brasil, é inegável neste fenômeno. O povo, inocente, mas pervertido por uma educação irreligiosa e materialista, se submete a qualquer canalha que lhe oferece uma promessa de “vida boa”, e teme, por outro lado, aqueles homens duros, firmes, que o amam, mas que, impotentes, não conseguem encontrar luz para a resolução de um problema enorme e complexo.

[3] Intercâmbio eventual de pessoas avulsas entre povos e etnias é sempre comum em todas as épocas e em todos os povos e tradições, mas a miscigenação forçada das massas inteiras é coisa nova e artificial, que tem por fim a destruição das tradições e a simultânea construção de uma “sociedade” ordenada por princípios artificiais, lógico-matemáticos, herdados do contratualismo inglês. Lembremo-nos também da "sociedade aberta" de Karl Popper.

[4] As diferenças civilizacionais contam bastante para esta diferenciação. Vemos que a distinção está mais na raiz do que se imagina: os EUA foram construídos sob um experimento racionalista, filosófico, do contratualismo. O modelo da commonwealth está aí para denunciar. Já o Brasil foi todo ele formado “sem querer”, aos poucos, conforme os povos se assentavam cada um a uma terra, logo se identificando com ela; aqui o fenômeno foi orgânico, e não pressionou a um modelo “a priori” os muitos povos, dentro do qual encaixar-se-iam, mas permitiu a cada um desenvolver-se quase autonomamente. Um fator que contribuiu para isso é o fato de que o Brasil foi colônia de exploração, tipo que não teve por meta encaixotar povos  obrigá-los moralmente; o que é diferente dos EUA, que foram colônia de povoamento, tendo que obedecer aos arbítrios de mentes limitadas da Inglaterra, que exigiu o massacre da civilização instalada, a dos ameríndios.

Alain de Benoist - A Lógica do Capitalismo

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Entrevista de Alain de Benoist para a Boulevard Voltaire



P: Apesar das repetidas promessas de políticos, tanto da direita como da esquerda, nada parece estar detendo o aumento do desemprego. Isso é algo inevitável?

R: Oficialmente, há 3.5 milhões de desempregados na França, o que significa que a taxa de desemprego está hoje em 10.3%. Este número, porém, varia dependendo de como ele é computado. As estatísticas oficiais levam em consideração apenas a categoria "A", i.e. aqueles que estão desempregados e estão ativamente procurando um emprego, deixando de lado as categorias "B", "C", "D" e "E", i.e. aqueles que estão procurando por um emprego apesar de estarem trabalhando de maneira reduzida ultimamente; aqueles que pararam de procurar por emprego, mas ainda estão desempregados; aqueles que estão recebendo treinamento; aqueles que são estagiários; aqueles que estão trabalhando sob "contratos subsidiados", etc. Somando todas essas categorias, alcançamos a taxa de desemprego real de 21.1% (mais do que o dobro dos números oficiais). Se nos remetermos à taxa geral de população inativa em idade de trabalho, então chegamos a 35.8%. Ademais, se levarmos em consideração trabalhos inseguros, de tempo parcial ou de prazo determinado, bem como os números de trabalhadores abaixo da linha de pobreza, etc., então este número fica cada vez maior.

Indubitavelmente, mudanças no desemprego dependem das políticas oficiais - mas apenas até certo ponto. O desemprego atual não é mais de natureza cíclica, mas primariamente estrutural, algo que muitos ainda não compreenderam completamente. Isso significa que o trabalho está se tornando uma commodity escassa. Os empregos que estão se perdendo são cada vez menos e menos sendo substituídos por outras aberturas de vagas. É claro, a expansão do setor de serviços é real; mas o setor de serviços não gera capital. Ademais, vinte anos para a frente quase metade desses empregos no setor de serviços serão substituídos por máquinas em rede. Imaginar, portanto, que algum dia retornaremos ao pleno emprego é uma ilusão.

P: Há pessoas que vivem para trabalhar e outras que trabalham para viver. Não seriam aqueles que se recusam a perder suas vidas para ganhá-la parte de alguma sabedoria ancestral? Seria o trabalho realmente um valor em si?

R: O que precisa ser apontado é que aquilo que chamamos de "trabalho" hoje não possui qualquer relação com o que costumava ser atividade produtiva em séculos passados, nomeadamente uma simples "metabolização" da natureza. O trabalho não é nem um sinônimo de atividade, nem de emprego. A quase universal difusão do trabalho assalariado já foi uma revolução de certa forma perante a qual as massas seguiram hostis por um longo período de tempo. A razão para isso é que eles haviam estado acostumados ao consumo dos frutos de seu próprio labor apenas e nunca viram o labor como meio de adquirir os frutos alheios, ou em outras palavras, trabalhar para comprar os resultados do trabalho alheio.

O trabalho possui uma dimensão dual; ele representa tanto um labor concreto (seu propósito metabolizador) como um labor abstrato (energia e tempo gastos). No sistema capitalista o que conta é o labor abstrato apenas, porque este tipo de labor, sendo indiferente a seu próprio conteúdo, sendo também igual para todos os bens para os quais fornece uma base de comparação, é o único fator que se transforma em dinheiro, adquirindo assim um papel mediador em uma nova forma de interdependência social. Isso significa que em uma sociedade na qual a commodity é a categoria estrutural básica, o trabalho deixa de ser socialmente distribuído por estruturas de poder tradicionais. Ao contrário, ele realiza ele mesmo a função daquelas antigas relações. No capitalismo, o trabalho constitui por si a forma dominante de relações sociais. Seus subprodutos (commodity, capital) representa simultaneamente produtos do labor concreto e as formas objetificadas da mediação social. Daí, o trabalho deixa de ser um meio; se torna um fim em si mesmo.

No capitalismo o valor é feito do tempo gasto trabalhando e representa portanto a forma dominante de riqueza. Acúmulo de capital significa acumular o produto do tempo gasto em labor humano. É por isso que os enormes ganhos de produtividade gerados pelo sistema capitalista não resultaram em qualquer redução significativa das horas de trabalho, como se poderia esperar. Ao contrário, com base nas tendências de expansão ilimitada, o sistema segue impondo sempre mais trabalho. E é bem aqui que podemos observar suas contradições fundamentais. Por um lado, o capitalismo busca ampliar as horas de trabalho, já que é apenas tendo pessoas trabalhando mais e mais que se pode alcançar o acúmulo de capital. Pelo outro, os ganhos de produtividade permitem de agora em diante a produção de mais e mais bens, com cada vez menos pessoas. Isso torna a produção de riqueza material cada vez mais independente do tempo gasto trabalhando. Nesse sentido, os desempregados já se transformaram em pessoas supérfluas.

P: Você é conhecido como um workaholic. Você alguma vez sente falta de ficar vendo a grama crescer e de acariciar alguns dos gatos de sua casa?

R: Eu trabalho de 80 a 90 horas por semana simplesmente porque gosto de fazer o que faço. Isso não me torna um adepto da ideologia do trabalho. Muito pelo contrário. No Gênese (3:17-19) o trabalho é representado como uma consequência do pecado original. São Paulo diz: "Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer" (II Tessalonicenses 3:10). Esta visão moralista e punitiva do trabalho me é tão alienígena quanto a ética de trabalho redentora do protestantismo, ou quanto a exaltação do valor do trabalho por regimes totalitários. Sim, eu tenho consciência do fato de que a palavra "travail" (trabalho) vem do latim tripalium, uma palavra originalmente usada para designar um instrumento de tortura. Portanto, eu sei como sacrificar as demandas do "tempo livre", que é "livre" na medida em que é livre de trabalho.

Alberto Buela - A Pós-Modernidade

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por Alberto Buela



O termo pós-modernidade nasce no domínio da arte e é introduzido no campo filosófico há uma década por Jean Lyotard com seu trabalho A Condição Moderna (1983). A noção se difundiu amplamente, mas em geral seu uso indiscriminado conduz a uma confusão, já que em realidade pode-se distinguir três atitudes pós-modernas.

A primeira, a daqueles filósofos que vão no esteio da escola neomarxista de Frankfurt; os Habermas, os Adorno, os Eco, etc., que criticam a modernidade naquilo que lhe faltou levar a cabo como projeto moderno dos filósofos do Iluminismo. Em uma palavra, sua crítica à modernidade radica em que não completou seu projeto. E assim podem afirmar: "fieis aos ideais da Ilustração para trabalhar pelas Luzes de hoje" (J. Derribar: L'autre cap); "É necessário retomar o projeto do Iluminismo" (A. Finkielkraut: La défaite de la pensée).

A segunda, é a daqueles representantes do pensamento débil, os Lyotard, Scarpetta, Vattimo, Lipovetsky, etc., que defendem um pós-modernismo inscrito na modernidade. Quer dizer, são os autores que em sua crítica à modernidade propõem uma desesperançada resignação. Mas sem abandonar sua confiança na razão entendida ao modo moderno. Assim poderá afirmar Lipovetsky: "Não joguemos fora a criança junto da água do banho: as perversões da razão prometeica não condenam sua essência. Se a razão moral amarra o cabo, só a razão instruída pode nos aproximar ao porto" (G. Lipovetsky: O Crepúsculo do Dever).

Seu mérito estiva em que a perspicaz descrição de uma realidade alienante que envolve o homem de hoje, como o é o poder quase onímodo dos meios de comunicação com sua capacidade de "dar sentido"às coisas e notícias que valoradas e analisadas em si mesmas carecem de sentido". A obsessão pelo novo, que o torna intercambiável com o verdadeiro, o domínio da publicidade, que ao pôr o ser à venda confunde a existência com a mercadoria. A manipulação da natureza pela técnica, considerada falsamente como um instrumento eticamente neutro.

Estas duas atitudes se caracterizam mais exatamente como uma crítica à modernidade, do que como uma proposta de superação da mesma.

Em nossa Argentina atual onde a imitação tilinta por todas as partes, os que "trabalham de filósofos" - Grondona, Sebrelli, E. Díaz, López Gil, O. Terán, Marí, etc. - se balançam alegremente estre essas duas correntes sem entender nada (Cfr. os suplementos culturais do "Clarín" e do "La Nación").

Finalmente, a terceira atitude é a daqueles pensadores como R. Steuckers, G. Fernández de la Mora, M. Tarchi, P. Ricoeur, G. Locchi e outros que submetem a crítica a modernidade com um rechaço da mesma. Não sucede neste caso como no denominado "pensamento débil", que é um filho desencantado da modernidade, pelo contrário aqui a oposição é frontal e ademais se oferecem propostas de superação.

Se bem este pós-modernismo, que poderíamos chamar forte, apresente algumas variantes nietzscheanas e neo-pagãs como no caso de O. Mathieu, G. Faye, J. Esparza ou A. de Benoist, basicamente, se caracteriza por uma busca e defesa insubornável da identidade dos homens e dos povos. Uma crítica fundamental ao mundialismo e ao projeto político do atlantismo.

Agora bem, em nossa opinião, a crítica à modernidade tem que ser dirigida aos relatos ou discursos que ela elabora com pretensão de universalidade. Destes grandes relatos da modernidade faremos referência a seis: A ideia de progresso indefinido, o poder onímodo da razão, a democracia como forma de vida, a subjetivação do cristianismo, o afã do lucro e a manipulação da natureza pela técnica.

O século XVII se caracteriza pelo intenso e rápido progresso das ciências da natureza, onde Bacon e Galileu destacam como particularmente fecundos enquanto métodos investigativos: a experimentação e o cálculo matemático. Este progresso imenso em um domínio do saber levou o homem moderno a postulá-lo para todo o campo do saber e do obrar humano como princípio incontrastável do progresso indefinido. 

Já com o Renascimento, século XV, Deus deixa de ser o centro da reflexão para passar a ocupar seu lugar o homem enquanto sujeito. Quer dizer, o homem passa a ser considerado como criador de um mundo próprio cujo espírito e dignidade se revelam nas obras-primas da Antiguidade Clássica.

E qual é o instrumento que permite a este homem o acesso a este ideal do progresso indefinido? Uma faculdade que lhe pertence por direito próprio: a razão. E especificamente, a razão calculadora exaltada pela ciência matemática como órgão idôneo para a descoberta das leis que regulam a experiência e constituem a estrutura racional do mundo. A atribuição de um poder onímodo à razão por parte do homem moderno, foi a partir deste momento um fato normal, natural e evidente.

A democracia como forma de vida é um dos últimos relatos da modernidade. Começa a se constituir em paradigma universal a partir do último quarto do século XVIII, e é a Revolução Francesa sua grande propulsora. E é a versão liberal da sociedade política a que dá origem à democracia moderna, não se apercebendo que a democracia é uma forma de governo, como o são a monarquia ou a aristocracia, e que portanto, reduzir o homem a tão somente à forma de vida democrática, é espartilhá-lo e privá-lo das múltiplas e variadas formas de vida que o homem se dá e pode dar a si mesmo para existir plenamente.

A subjetivização do cristianismo nasce com o livre exame das escrituras propelido pela Reforma Protestante do século XVI encabeçada por Lutero e Calvino, e se consolida com o primado da consciência do filósofo Descastes, para quem a descoberta da verdade é obra pessoal da razão que atua e vive em cada indivíduo. O "penso, logo existo"é a única verdade inquestionável a que chega a razão cartesiana. Esta subjetivização do cristianismo produziu como resultado uma cristandade partida em seitas como a que hoje vemos na América. Para benefício exclusivo dos pastores-empresários e endividamento dos fieis que os seguem.

O outro grande movimento gestado no século XVIII, junto ao progresso das ciências naturais, é a formação dos Estados nacionais sobre a ruína do Estado feudal e o aparecimento de uma nova classe: a burguesia. Movida, não já pelos ideais cristão-cavalheirescos da Idade Média, senão pelo espírito de lucro. (cfr. W. Sombart: Luxo e Capitalismo).

O último dos grandes discursos da modernidade é a manipulação da natureza (incluindo o homem) pela técnica. Este relato quer significar que a instrumentação prática do poder onímodo que se outorgou à razão pode fazer com a natureza e com o homem o que queira. Sustentando que a pauta moral está justificada por seu próprio progresso.

Estes grandes relatos da modernidade colapsaram. Não tanto pela crítica que lhes foi feita desde uma ótica pré-moderna, senão pelas consequências contraditórias a que os mesmos chegaram.

Assim, o progresso indefinido das ciências físico-naturais foi detido pela quebra da física clássica por parte dos Einstein, dos Plank e dos Heisenberg. Assim como pela falta de um progresso moral correspondente, para não falar em retrocesso, do homem contemporâneo.

O poder onímodo da razão foi quebrado não só pela descoberta do inconsciente (Freud) mas também pela função desmascaradora do irracional (Nietzsche) e pela captação emocional dos valores (Scheler).

A democracia como forma de vida foi frustrada não só pelo fracasso dos governos social-democratas, como ainda pela afirmação de outras possibilidades de organização política, fora do marco do capitalismo liberal (de Marx a Gaddafi). E em nossos dias a luta dos povos (de croatas a curdos) seguindo seus ideais nacionalistas para seguir existindo na história.

A subjetivização do cristianismo, a opção preferencial pelos pobres da Igreja Católica que supera o âmbito individual para se inserir enraizadamente no domínio social. A mensagem, em última instância iluminista, da Teologia da Libertação dos anos 70-80, está sendo substituída hoje pela teologia do marginal na América Hispânica. Desde o campo filosófico a consolidação definitiva da fenomenologia e seu lema de "ir às coisas mesmas" terminou no psicologismo subjetivista.

O espírito do lucro parece não quebrado ainda. Mas a desconformidade com ele, por parte dos povos dependentes, é algo manifesto; apesar da publicidade insistente do modelo de globalização neoliberal. De tanto viver com "o nariz colado no vidro" - neste caso o da televisão - e não poder adquirir nenhum dos produtos que como panacéias nos oferece o Primeiro Mundo por carecer de meios, faz com que a opção de vida seja mais e mais a marginal ou informal.

Por último, a manipulação da natureza e do homem pela técnica concluiu na alienação e dependência do homem em relação a seus próprios produtos. O homem não só como escravo, como também ao se sentir produto da técnica, começa a reagir da única maneira possível: com serenidade para com as coisas. Se dá conta, como observou agudamente Heidegger, que "podemos usar os objetos técnicos, servir-nos deles de forma apropriada, mas mantendo-nos ao mesmo tempo tão livres deles que em todo momento possamos nos livrar deles" (cfr. M. Heidegger: Serenidade).

Estamos assistindo ao nascimento de uma nova época, a quebra dos paradigmas abarca todos os domínios. Começando pela tão falada quebra do equilíbrio ecológico. A confusão das funções é total (o político é empresário, o esportista é pensador, o santo é assistente social, os imbecis são filósofos, etc).

Não existe uma visão totalizadora do homem, do mundo e de seus problemas, mas retalhos, visões parciais e conjunturais. O homem está forçado a se perguntar novamente por si, a tratar de encontrar a si mesmo, e isso não é fácil, mas não lhe resta qualquer outra saída genuína.

Está obrigado a instaurar um novo enraizamento no mundo, que se funde na preferência de sua própria ecúmene cultural e em seu pertencimento a um solo. Do contrário, se transformará em um homúnculo.



Angel Millar - Mishima: A Estética da Ação

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por Angel Millar



Já se passaram mais de quatro décadas desde que Yukio Mishima - dramaturgo, samurai moderno, nacionalista, fisiculturista, e de modo geral um enigma japonês - desencadeou uma onda de choque por todo o Japão cometendo seppuku, o suicídio ritual do samurai. Porém, hoje, ele está de volta à vista do público. Julho viu o lançamento do filme 11.25 O Dia em que Mishima Escolheu seu Destino de Koji Wakamatsu, e a primeira exibição solo em um museu público do Japão, do fotógrafo e colaborador de Mishima, Kishin Shinoyama, foi inaugurada.

Shinoyama capturou algumas das imagens mais controversas do dramaturgo japonês, em uma coleção de fotografias chamada Barakei (Ordálio [ou Tortura] por Rosas). O próprio Mishima esteve intimamente envolvido em conceitualizar as imagens, e, em grande medida, elas são uma meditação na qual os fantasmas mentais emergem, meio pensados, meio sentidos. Tiradas em um preto-e-branco granuloso, as fotografias justapõem o corpo musculoso de Mishima com esculturas e pinturas barrocas e desenhos do corpo humano.

Em uma fotografia, Mishima está envolvido em uma mangueira de jardim, como se oprimido pela mundaneidade em si. Em outra, ele está amarrado a uma árvore, em imitação a São Sebastião, com seu corpo perfurado por flechas. Parte erotismo, parte auto-idolatria, parte contemplação da mortalidade, através de Barakei, o autor japonês se impulsiona dos mundano reino do erotismo, para além do véu da morte, para se demorar entre os anjos.

O espírito de Barakei pode ser considerado tântrico - aquela prática hindu e budista da unio mystica pela união sexual. Mas parece, em todos os sentidos, ser uma fusão de estética e ideias tanto ocidentais como japonesas. Quando jovem, Mishima havia sido frágil e pouco atlético. Mas ele resolveu forjar para si mesmo um novo e masculino corpo, e passou à prática do fisiculturismo (que havia sido introduzido no Japão por soldados americanos - os vitoriosos da Segunda Guerra Mundial) e do kendô. Talvez por causa do desprezo de Mishima pelo corpo frágil, Barakei possui uma insinuação de militância. Tradicionalmente, no Tantra, em contraste, o devoto era às vezes obrigado a realizar a união sexual com um membro do sexo oposto que ele achasse feio. Aparentemente isso tinha como objetivo libertar o devoto de tomar a aparência das coisas por sua substância.

Na cultura japonesa clássica, porém, a relação entre aparência e essência é enfatizada. O pintor em tinta pratica pintar um único círculo, com um único gesto e uma única exalação. Se ele perder a concentração mesmo que por um segundo, isso ficará evidenciado no círculo, que sairá ovalado, ou terá uma protuberância. Aparência e espírito estão, para o japonês clássico, interligados.

Sensualidade e espiritualidade profundas estão conectados, não necessariamente exclusivamente pelo prazer - como se encontra na religião persa, o zoroastrismo, onde as riquezas são vistas como reflexo dos céus - mas também por emoções mais obscuras, e mesmo através da morte. Notavelmente, o japonês ukiyo era um termo budista, significando fadiga (uki) da vida (yo). Porém seu significado se transformou, se tornando associado com os distritos de prazer de Edo (Tóquio), e suas cenas de bebedeira, cortesãs, e todo o resto. O mundo flutuante, neste sentido, era o mundo do prazer temporário - refletindo a existência temporal do homem. Enquanto gênero, impressões xilográficas lidando com os distritos do prazer se tornaram conhecidas como ukiyo-e, literalmente "imagens do mundo flutuante".

Em Mishima: Uma Visão do Vácuo - uma obra particularmente pomposa sobre o dramaturgo - Marguerite Yourcenar liga as poses de Mishima no Barakei ao Hagakure, um manual samurai do século XVIII que recomenda que o guerreiro medite sobre sua morte iminente, para que ele não mais tema a morte. O Hagakure lhe ordena imaginar ser "cortado em pedaços ou mutilado por flechas" entre outras mortes medonhas. Assim, é fácil imaginar que Mishima posando como santo perfurado por flechas era uma influência dessa tradição. Porém, isso parece ignorar a mensagem de Mishima: i.e., que as ações - especialmente as ações militares - são estéticas, não mecânicas ou puramente práticas.

A mensagem de Mishima - jamais berrada dos telhados - está inteiramente de acordo com a história e sensibilidade japonesas. Muitos samurais - incluindo o célebre Miyamoto Musashi - foram artistas e calígrafos, além de espadachins. Ademais, influenciados pelo Zen Budismo, os japoneses há muito tem considerado as diferentes artes como revelatórias ao praticante do mesmo satori (entendimento) ou kensho (compreensão da verdadeira natureza do eu), não raro em uma revelação momentânea durante a prática. Arranjo floral e a arte do guerreiro, enquanto tais, não são duas coisas diferentes. Como diz o Hagakure, "É ruim quando uma coisa se torna duas. Não se deve procurar por nada além no Caminho do Samurai. É igual para qualquer coisa chamada de Caminho. Se isso é compreendido dessa forma, o samurai se torna capaz de ouvir sobre todos os caminhos e ficar cada vez mais de acordo com o seu próprio".

O "caminho" (Do) de Mishima o levou de escrever a atuar em filmes (onde ele interpretou personagens como mafiosos e detetives), a formar seu próprio exército privado. A Tatenokai (Sociedade do Escudo) consistia em cem homens jovens. Mishima disse a ter formado para dar aos estudantes - que não se encaixavam facilmente no novo zeitgeist marxista - um lugar seu. Mas, mesmo aqui, a preocupação estética de Mishima o levou a desenhar os uniformes, se inspirando nos uniformes mais clássicos dos exércitos europeus. (Os "úniformes rígidos nos fazem pensar na Alemanha e na antiga Rússia", ressalta Yourcenar).

Na realidade, a Tatenokai não era uma unidade de combate. Seu propósito primário pode ter sido, de fato, puramente estético: lembrar Mishima e despertar o Japão para a ideia de que ainda poderia haver um modo de vida espiritual, estético e ao mesmo tempo masculino na era moderna - não um "caminho" como na palavra inglesa, mas como no Do japonês ou no Tao chinês. Notavelmente, Mishima era insistente de que seu exército não deveria se envolver em baixarias e atividades pequenas: "Sem demonstrações de rua para nós, sem placas, sem coqueteis molotov [...] sem apedrejamentos", ele determinou. "Até o último momento desesperado, nos recusaremos em nos comprometer à ação. Pois somos o exército menos armado, e mais espiritual do mundo".

Em 1970, Mishima e membros da Tatenokai entrar na Estação Ichigaya das forças de auto-defesa do Japão. Mishima apareceu na sacada, discursando para os soldados abaixo sobre como o Japão havia se tornado materialista e decadente, ainda que suas palavras logo fossem abafadas pelos sons dos helicópteros da imprensa. Finalmente, longe das vistas, ele cometeu seppuku, abrindo seu estômago com uma espada samurai.

O Japão ficou constrangido com o suicídio público de Mishima, e, em alguma medida, ainda sente certo desconforto em relação ao dramaturgo. Isso é compreensível. Mas devemos parar para refletir que, no Ocidente pelo menos, os heróis da era moderna, não raro, morreram de overdoses, afogados no próprio vomito ou assassinados em tiroteios. E, não infrequentemente isto é visto como virtualmente admirável - prova de sua sinceridade. Isso obviamente só é prova da superficialidade bárbara dessas pessoas que encontram entretenimento na morte.

Apesar de seu suicídio - e estilo muitas vezes extravagante (o que é extremamente não-nipônico) - as obras de Mishima são consideradas clássicas. Mesmo no Ocidente, seus livros são leitura obrigatória para quem frequenta cursos de literatura japonesa na universidade. É possível separar o homem de sua arte, e sua morte da mensagem de sua vida: que as ações são estéticas, e que a masculinidade, em seu ápice, é espiritual; preocupada, como deve ser, com valores e beleza, força interior e disciplina.

Angel Millar - O Tradicionalismo é Revolucionário? Um Olhar para a Propaganda Contemporânea

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por Angel Millar



O Tradicionalismo é uma ideologia revolucionária, como o pensador, ocultista e Tradicionalista Julius Evola afirmava? Ele é uma forma de conservadorismo ou de pensamento "reacionário"? Ele é ao menos político? E, se sim, quando?

Ainda que Evola fosse também crítico do fascismo - e tivesse inimigos no partido por causa disso - graças às atividades políticas de Evola, e mais especialmente por sua associação com elementos do partido fascista italiano durante a Segunda Guerra Mundial, alguns Tradicionalistas consideram Evola como uma "ovelha negra". Este é especialmente o caso com Tradicionalistas mais tendentes para a esquerda hoje, bem como com aderentes estritos aos escritos e caminho de René Guénon.

Se o Tradicionalismo é revolucionário, então Evola é um radical mesmo nesse meio.

Diferentemente de Guénon e de muitos daqueles que o seguiram (como Titus Burckhardt, que se converteu ao Islã, tomando o nome Ibrahim Izz al-Din) Evola era essencialmente "um Tradicionalista sem uma tradição". Ele não se converteu a, ou praticava, qualquer das grandes religiões.

Ao invés disso, ele estava interessado no Hermetismo, nas religiões europeias pré-cristãs, no ocultismo (em alguma medida), e outros campos esotéricos.

O que ocupava Evola, parcialmente em sua própria prática e parcialmente em seus escritos políticos, era a redescoberta e redespertar da autêntica Tradição Europeia, ainda que neste sentido ele também olhasse para o Budismo, para o Hinduísmo, para o Islã, e outras tradições orientais, tentando encontrar conexões nelas.

Em essência, Evola não tinha uma tradição porque a Europa estava sem uma tradição.

O catolicismo havia retido alguma vitalidade para Guénon, ainda que ele, como Evola, tivesse passado a considerá-lo como corrupto, decadente e distorcido por valores modernos e "liberais". Ele carecia, em sua opinião, da possibilidade de iniciação.

Guénon também se voltou para a Maçonaria e para a Teosofia. A primeira, fundada em Londres em 1717, havia sido originalmente uma fraternidade emergida da guilda de pedreiros daquele país. Ela tinha (e ainda tem) um ritual de iniciação em três graus, baseado no daqueles pedreidos, porém misturado com simbolismo bíblico, geometria sagrada e filosofia jusnaturalista.

Dentro de poucas décadas, porém, a fraternidade havia se espalhado pela Europa, se dividindo em várias facções. Muitas dessas absorveram aspectos do hermeticismo, da alquimia, do rosacrucianismo, do misticismo cristão, e por aí vai. Guénon esteve envolvido na manifestação mais esotérica da Maçonaria e escreveu um livro sobre o assunto.

Ainda que ele mantivesse um certo respeito pela Maçonaria, Guénon seguiu adiante, na direção do Islã. Para Evola a Maçonaria não era uma opção. Influenciado pelos Protocolos dos Sábios de Sião (um texto antissemita e antimaçônico, criado pela polícia secreta czarista no fim do século XIX), Evola acreditava que sionistas e maçons estavam por trás da revolução global e da derrubada da Tradição.

Os Protocolos foram um texto extremamente popular e influente na época, tanto na Europa como nos EUA, e, em certa medida, no Oriente Médio. Evola não o aceitava sem algumas críticas, e, de fato, sabia que ele era forjado. Mas, para o esotérico, o que importava não era sua validade histórica, mas que ele oferecia, em sua opinião, uma "premonição profética", e, enquanto tal, fornecia um vislumbre sobre a situação conflituosa do mundo. (De fato, Evola pensava que o sionismo e a maçonaria poderiam também algum dia vir a se tornarem vítimas das forças anti-Tradicionais).



Para Evola, o mundo moderno era um de ruínas, e ele se situava contra ele. É claro, ele havia visto as ruínas literais na Europa com a Primeira e Segunda Guerras Mundiais.

Mas as ruínas físicas eram menos ofensivas para o pensador italiano do que as espirituais. (Enquanto todos os outros procuravam abrigo, Evola gostava de caminhar durante ataques aéreos, para poder testar a si mesmo). O que havia realmente sido destruído era um caminho de vida integral.

O desenho acima mostra o homem evoluindo em um guerreiro espartano, e então, ultrapassando seu ápice, se tornando um banqueiro ou empresário de algum tipo. Então ele se torna um escravo do computador ou da televisão - do entretenimento - e então subsiste como mera ovelha.

O pensar, o corpo e o espírito, estão em declínio radical, a imagem parece dizer. Desistimos de nossa independência porque abrimos mão de nosso poder, e vice-versa.



Para Evola, a era contemporânea era provável de se provar uma mera transição de um ciclo de tempo e ser para outro. A era moderna é o que Tradicionalistas - tomando um termo hindu - chamam de "Kali Yuga" (a Idade das Trevas). Desprovida de autêntica conexão espiritual, densa e material, ela pode, conjectura-se, desabar sob o próprio peso, abrindo caminho para uma nova era dourada.

É imperativo, então, que o homem da Tradição navegue na tempestade ou, como diz Evola, "cavalgue o tigre" da era turbulenta. Ele deve permanecer um homem que incorpore sabedoria primordial, mesmo enquanto os excessos e a preguiça do ciclo acenam para ele.

No gráfico abaixo, o Tradicionalista, nos é dito, assume responsabilidade enquanto no capitalismo e no socialismo, o indivíduo não o faz.



Socialismo é "onde você espera em filas de pão". Capitalismo é "onde filas de pão te esperam". Muitos, especialmente na direita republicana americana, diriam que é por isso que o capitalismo funciona, e por que deveria ser aplaudido. Você terá pão...à sua conveniência. Mais do que você pode comer.

O Tradicionalismo, assim, não é conservadorismo. Este busca apenas preservar o estado atual das coisas, ou voltar o relógio uns cinquenta ou cem anos em algumas áreas (tal como aborto ou sexualidade). Aquele quer retornar a um modo mais autêntico e primal de vida, e, assim, pode ter mais em comum, às vezes, com a esquerda que pratica yoga e meditação, acredita em alimentação orgânica, e por aí vai.

(O Tradicionalismo, enquanto tal, não é uma ideologia inerentemente política [e Guénon se opunha à mistura entre política e espiritualidade], mas em sua rejeição da massificação, do conformismo, da hierarquia baseada em graus de riqueza, ele se torna político - apesar de haver Tradicionalistas de Direita e de Esquerda).

Deixando o texto de lado, as imagens preenchem um vácuo: as filas de pão do capitalismo são ruins porque o que elas oferecem é impessoal e carente de sabor, tradição, natureza e mesmo nutrição. A comida não é comida. O pão na fila de pão capitalista está repleto de ingredientes que nos fazem mal.

"Tradição" aqui significa humanidade, uma elevação da pessoa. Receitas foram transmitidas ao longo de gerações. Mães ensinaram filhas a cozinhar, pais ensinaram filhos a pescar, caçar, se defenderem, defenderem sua família, e por aí vai. É comunidade. Você come o pão com aqueles que você ama. Com o pão feito em um fogão a lenha você sente o trigo, o solo e o fogo. Ele alimenta a alma, não apenas o estômago (que é a razão pela qual ele ainda é vendido nas padarias mais caras das cidades grandes, ainda que pão barato esteja disponível virtualmente em cada esquina).



"Comida" incapaz de nutrir é uma das manifestações do Kali Yuga. O declínio do espírito, do espartano à ovelha é outro. Mas Tradicionalistas dizem que nem tudo está perdido. Precisamos, na opinião deles, "cavalgar o tigre" nesta era, para resistir até uma nova era dourada que está por vir.

A crença em uma era melhor vindoura pode bem ser revolucionária (Marx acreditava que o capitalismo daria lugar ao socialismo, e então à era dourada do comunismo, na qual seríamos alegadamente livres), ainda que o Tradicionalismo não defenda geralmente qualquer "ação direta" para se chegar lá, como protestos, revoltas, etc.

Porém, para Evola "revolução" significa um retorno à origem, não uma transição radical ao "progresso". E este é indubitavelmente o caso para muitos Tradicionalistas (da esquerda ou da direita) hoje. Daí, Evola diz em Homens Entre as Ruínas:

"Joseph De Maistre ressaltou que o que é necessário, mais que uma contrarrevolução em sentido estrito e polêmico, é o 'oposto' de ma revolução, nomeadamente uma ação positiva inspirada pelas origens. É curioso como as palavras evoluem: afinal, revolução, segundo seu significado original latino (re-volvere), se referia a uma movimentação que levasse novamente ao ponto de partida, às origens".

Maurício Oltramari - Dos Verdadeiros Mecanismos da Economia Liberal: Um Caso Brasileiro

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por Maurício Oltramari



Assim como a grande maioria dos países do Ocidente, nas últimas décadas o Brasil tem sido cada vez mais consoante com a abertura de seus mercados a empresas multinacionais e com a integração de suas transações econômicas à dinâmica de negociação dos mercados globalizados. Essa postura trouxe ao país investimentos em setores importantes da indústria, do comércio e da prestação de serviços, e com eles, a chegada -ou a formação- de novos oligopólios e monopólios, fenômeno ao qual estão suscetíveis todas as economias regionais integradas aos seus respectivos mercados nacionais e ao mercado global. 

As mesmas estruturas e poderes reguladores do liberalismo econômico -o sistema capitalista- que permitem a formação desses monopólios e oligopólios a nível internacional, também permitem, mutatis mutandis, a sua formação na esfera nacional. Isso significa, em termos econômicos, que há setores da prestação de serviços, do comércio e da indústria nacional que são dominados por uma empresa ou um seleto (e pequeno) grupo de empresas. Fato que dificulta e prejudica gravemente a existência e a manutenção dos pequenos e micro negócios em geral, nos quais se incluem, evidentemente, as empresas e os ofícios familiares. 

Distante da obsoleta teoria econômica da “mão invisível”, -proposta por Adam Smith em “A Riqueza das Nações”- que postula a existência de uma determinada ordem de interesses coordenando a economia como uma entidade autônoma, as transações econômicas dos mercados globalizados movimentam-se por “mecanismos” muito diferentes, que nada tem a ver com a “oferta e demanda” que descreve a figura metafórica do filósofo inglês. 

A nível nacional e internacional, esses “mecanismos” são os verdadeiros reguladores dos preços e de outras variáveis que estão diretamente relacionadas com a produção e venda de determinados bens e serviços. Nesse caso específico, estamos falando dos cartéis ou dos acordos informais -para definição de preços e quantidade de produção de bens- que os grandes empresários estabelecem entre si para garantir a maximização dos seus lucros. No caso brasileiro há alguns exemplos que podem ser utilizados para echar luz sobre essa realidade nefasta que passa despercebida pela grande maioria da população. Nesse texto, relataremos o caso de uma empresa que foi confrontada pela realidade dos oligopólios em um setor da indústria brasileira, e decidiu levar até as últimas consequências a determinação de não cooperar com a formação desses verdadeiros cartéis. Tratam-se dos fatos que levaram ao fechamento das empresas do empresário argentino Ramiro Vasena. O relato que segue é uma reprodução resumida de sua entrevista dada ao canal argentino Toda La Verdad Primero, no programa Producción Nacional, apresentado e comandado por Juan Manuel Soaje Pinto.

O caso do empresário e hoje dirigente político, aconteceu no Rio de Janeiro nos anos 90 e ganhou notoriedade na mídia nacional, tendo matérias publicadas nos principais veículos de comunicação do país. Ramiro Vasena foi proprietário de um grupo de empresas fabricante de peças para automóveis e caminhões, que registrava um crescimento expressivo nesse setor da indústria em meados da década de 90. A primeira empresa do grupo foi fundada por seu pai na zona oeste do Rio de Janeiro, e na época que Ramiro assumiu, contava com cerca de 50 funcionários. A empresa foi constituída com o intuito de suprir a necessidade de mercadorias daquele setor, já que existia uma grande demanda por esses produtos e os mecânicos e industriais -os principais consumidores- reclamavam dos preços altos e abusivos cobrados pelos fabricantes. Depois de cinco anos à frente do comando das empresas -que contavam já com mais de 550 funcionários no total- e alavancando seus negócios a patamares cada vez mais altos o empresário viu de súbito sua empresa ser subjugada pelos interesses de um oligopólio que manejava os preços das mercadorias segundo seus próprios interesses econômicos. 

Quando as empresas do seu grupo abarcavam já uma fatia expressiva no mercado consumidor brasileiro do ramo de autopeças, o empresário foi procurado pelos maiores industriais do ramo e convidado a fazer parte de uma associação informal que estabelece preços e regras específicas para a produção e venda dessas peças. Em definitivo: uma associação ilícita; um cartel. Como nos relata Ramiro, as regras propostas pelo cartel foram as seguintes: elevar os preços dos bens e reduzir a produção, com o intuito de maximizar o lucro e reduzir os custos. E assim, alinhar-se aos preços praticados pelo mercado, ou seja, os preços definidos arbitrariamente por um seleto grupo de empresários, proprietários das maiores empresas do ramo em questão.  

Ramiro afirma que se negou a atender a essas exigências dos outros industriais, entendendo as consequências que essa decisão poderia trazer: iria prejudicar tanto aos seus consumidores quanto ao povo brasileiro como um todo, já que estaria infringindo as leis que vigoravam no país naquele momento. Como Ramiro enfatiza, periodicamente as novas exigências e regras decididas pelo cartel eram transmitidas ao empresário. Confrontado e ameaçado caso não aceitasse os termos impostos, manteve a decisão de não fazer parte da associação e ele salienta o que lhe diziam os empresários que o intimaram: “o Brasil é nosso”. 

Inicialmente, a empresa de Ramiro foi alvo de um conhecido “mecanismo” regulador do mercado, o dumping. Resumidamente, essa prática comercial consiste na venda -por parte de uma ou mais empresas- de produtos por um preço considerado abaixo ou muito abaixo de seu valor justo ou do preço praticado em um determinado país. O intuito dessa técnica é prejudicar ou eliminar os concorrentes, fato que se verificou nas empresas do empresário argentino, quando seus concorrentes reduziram os preços de determinados produtos para valores que estavam abaixo do preço de custo desses bens. Além do dumping, Ramiro afirma que muitos de seus produtos eram sabotados e danificados nas lojas de revenda de autopeças. Nessa época, a empresa já enfrentava dificuldades para a realização e entrega de pedidos dos clientes.

Com o faturamento prejudicado e reduzido frente às condições impostas pelas regras ocultas do mercado, as empresas do grupo de Ramiro começaram a enfrentar dificuldades financeiras. Mas essas dificuldades não afetaram somente a Ramiro e sua família, mas a todos os seus trabalhadores e suas famílias. Mais uma vez estavam se repetindo a sina da desigualdade e injustiça impostas por um sistema econômico que favorece a ganância de poucos e prejudica os mais necessitados: os trabalhadores e suas famílias.  Por fim, ele decidiu levar a questão à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, apresentando uma denúncia formal, relatando a situação atual de sua empresa e apontando as práticas ilegais levadas a cabo pelos industriais do ramo de autopeças. As denúncias foram por abuso de poder econômico, tentativa de formação de cartel e práticas ilegais de comércio, segundo o empresário, que chegou a conversar com cinco ministros de justiça durante todo o período em que intentava desmantelar o cartel e dar fim às injustiças que lhe eram impostas. 

Ele aponta a existência de uma “máfia” por detrás das empresas e dos órgãos de justiça no Brasil. Segundo as gravações que ele fez de suas conversas com participantes do cartel, como Roberto Kasinski*, ficou comprovada a ligação que eles mantinham com Salomon Rotenberg, diretor da Secretaria de Direito Econômico na época em que as denúncias foram feitas. O diretor era amigo pessoal de Kasinski, e segundo o que este último havia dito em tom claro ao próprio Ramiro, nada aconteceria se as denúncias fossem levadas à frente. De forma concomitante, os veículos de comunicação que inicialmente haviam dado grande atenção ao seu caso, agora silenciavam. 

Ramiro relata também como organizou protestos nas ruas do Rio de Janeiro para tornar público o que acontecia com suas empresas, quando era auxiliado pela polícia e muitos voluntários, sendo esta a única forma que ele conseguia para que o processo na justiça fosse levado adiante. Enquanto toda essa epopeia às avessas se desdobrava, eram as famílias dos trabalhadores que sofriam as consequências mais nefastas dessa verdadeira conspiração, que não é uma exceção no mundo empresarial dos mercados liberais.

Não será difícil para o leitor imaginar qual é o fim dessa história. Com suas empresas severamente prejudicadas pela ação desse cartel e acumulando um número cada vez maior de dívidas Ramiro teve que retirar-se do ramo da venda de autopeças e sua empresa acabou vendida para uma multinacional estrangeira. Na esfera econômica, viu a sina dos negócios familiares repetir-se: os grandes oligarcas engoliram sua empresa e continuaram tornando-se ainda mais ricos e projetando suas garras país afora. Na esfera social, viu seus trabalhadores e a comunidade prejudicados e sem possibilidade de reação, engolindo as injustiças e as dificuldades, sempre esperando por dias melhores. A cartilha liberal foi seguida à risca.

É evidente pelo relato da experiência de Ramiro -e como o próprio industrial afirma- a existência de uma “máfia”; um cartel estabelecido no ramo de autopeças do Brasil, mas não apenas isso. É possível estender essa experiência para que possamos analisar outros grandes setores da indústria e do comércio no Brasil e no mundo, e entender quais são os verdadeiros “mecanismos” e agentes ocultos que orientam a economia das nações. Cujas únicas preocupações são o próprio enriquecimento e a perpetuação de seu status de elite mundial, à custa, obviamente, da exploração dos povos e de suas culturas.

Estabelecidas e sustentadas pelas estruturas de poder das democracias do Ocidente, as elites ocultas que determinam o rumo das economias nacionais e dos mercados globais continuam a exercer seu poder, fundado nos princípios do liberalismo econômico. Sem o ataque direto ao aparato militar e econômico dos centros de poder será impossível reverter a situação que recai sobre nossas cabeças e afeta a todos, principalmente aos trabalhadores e aos empresários familiares, que estão à base da comunidade. E são esses trabalhadores e empresários -o povo brasileiro- os responsáveis diretos pela tarefa de desmantelar essa teia liberal, infiltrada -através da economia- em todos os aspectos da vida cotidiana, e assim restaurar ao trabalho e ao comércio o lugar e a dignidade que lhes pertence dentro da sociedade.

*Filho de Abraham Kasinski, fundador e dono de uma das maiores empresas de autopeças do Brasil nos anos 90, a COFAP.

Esaúl R. Álvarez - New Age: Pseudo-Espiritualidade e Contra-Tradição

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por Esaúl R. Álvarez

Tradução por Maurício Oltramari



“What shall we use to fill the empty / Spaces where we used to talk? / How shall I fill the final places? / How shall I complete the wall?”. Pink Floyd, Empty spaces, do álbum The Wall (1979).

Tanto por parte da “elite cultural” de nossa sociedade como por parte dos meios que formam e dirigem a opinião do grande público, o fenômeno da new-age recebeu pouco ou nenhuma atenção. Desde sua pretendida superioridade intelectual se considera este um assunto de importância muito menor, algo pouco sério e próprio de frikis, carente de relevância social e pouco digno de tratar.

No entanto para qualquer observador atento a realidade do dia a dia contradiz este esquecimento voluntário, que como um véu de censura não reconhecido se impõem sobre o tema. O certo é que a new-age, sob a forma de uma pseudoespiritualidade vaga e confusa, está cada dia mais presente na vida cotidiana das pessoas e exerce sobre o imaginário do cidadão ocidental uma influência muito maior que todas as elucubrações teóricas provenientes de prestigiosos acadêmicos.

É evidente que boa parte deste “esquecimento” nasce da soberba intelectual com que o racionalismo exclusivista despreza tudo aquilo que não se inclui em seu âmbito. Esta pretendida superioridade que o cientificismo e o racionalismo mostram por qualquer exposição que transcenda seu reducionismo materialista impede abordar seriamente o estudo deste movimento em seu verdadeiro alcance social e analisá-lo como merece enquanto filho da pós-modernidade e fenômeno claramente antitradicional. 

Portanto, esse silêncio por parte dos meios considerados “sérios” não fazem outra coisa senão ocultar e mascarar uma realidade que está aí para qualquer um que consiga ver um pouco além da ficção elaborada por estes mesmos meios e que exerce uma influência social inegável.

Ao referir-nos à ocultação da new-age nos meios de opinião “sérios” que demonstram aquilo que deveria ser de interesse geral, nos encontramos em realidade diante da continuação da clássica divisão da existência moderna em uma “zona de luz”, dominada pela racionalidade exclusivista, e uma “zona de sombra”, na qual reinam o irracionalismo e a superstição e aonde não existe o mínimo rigor intelectual.

É preciso advertir que essa zona de sombra é consequência direta e inevitável do exclusivismo racionalista enquanto marginaliza regiões completas da existência humana por não considerá-las dignas de receberem atenção e serem estudadas quando vistas da centralidade do paradigma. Desse modo essa zona de sombra, que é como um negativo do iluminismo positivista e pragmático, fica abandonada nas mãos dos amigos do mistério e do oculto dando a oportunidade para que desenvolvam todo tipo de falsidades, pseudomitos e novas superstições. É nessa zona de sombra evidentemente aonde se desenvolve e habita a new-age, nutrindo-se de todos aqueles restos da experiência humana que a racionalidade hegemônica não assume, rechaça, despreza. 

Não é casual, portanto que o auge do ocultismo, o espiritismo e demais correntes obscurantistas como magia, bruxaria, adivinhação, assim como a recuperação de tradições antigas já extintas -correntes e modas que estão todas na origem da moderna new age-, teve lugar precisamente o tempo que triunfava violentamente o iluminismo e a deusa razão na Europa, nem tampouco que se reivindicaram  naquele período como uma espécie de primitiva “contracultura”, que defendia um “espaço de liberdade” frente ao puritanismo da época. Tampouco surpreende que aquelas incipientes correntes ocultistas pretendessem acabar com o dogmatismo religioso da mesma forma que se continua hoje a reivindicação por parte de todas as correntes new-age: uma nova era de pluralidade e liberdade. A partir de demasiados estrados temos escutado a mesma promessa...

Certamente essas pseudodoutrinas são muito mais inimigas de uma espiritualidade verdadeira que do cientificismo ou o materialismo reducionista, tendências das quais em realidade a new-age está repleta. Ou seja, ainda que possa parecer chocante à primeira vista, o obscurantismo e a superstição avançam a partir do ateísmo filosófico e racionalista e do preconceito antirreligioso.

Nada disso ocorre por casualidade e o papel sociopolítico que a “zona de sombra” do paradigma racionalista exerceu na história do ocidente não pode ser menosprezado, apesar do silêncio por parte da “ortodoxia intelectual”. E é assim ainda que a face que nos mostra a new-age seja sempre mutável: desde os “espíritos” incorporados daquelas já distantes sessões mediúnicas do século XIX até os mais modernos extraterrestres. 

Basicamente o papel exercido por esta zona de sombra foi duplo: 

De um lado oferecer um âmbito de expressão -e portanto de distensão- para tudo aquilo que a racionalidade hegemônica negava ou ignorava.

De outro lado, socavar a tradição autêntica e impedir qualquer aproximação séria ao tema. A new-age supõem a democratização da espiritualidade segundo o conhecido proceder moderno de mesocratização e de “igualar por baixo”.

*

Mas para ver a dimensão social que possui a new-age no mundo atual devemos analisar em primeiro lugar seu status de “conhecimento alternativo” com respeito ao paradigma epistemológico normativo imposto pelo núcleo iluminista e racionalista da modernidade. 

Já explicamos em outro momento como uma série de ideologias novas se apropriou no começo do século XIX do paradigma moderno definindo a nova episteme cultural e apontando assim quais seriam a partir de então os conhecimentos aceitáveis - a “zona da luz”- e quais deviam ser considerados inaceitáveis e ficavam portanto excluídos. Por mais surpreendente que possa parecer é só à sombra dessa episteme materialista e positivista -e anti tradicional- que a new-age pode desenvolver-se, simplesmente porque aonde existe uma tradição espiritual forte e sã -que abarca de modo compreensivo toda realidade humana em sua diversidade e serve de marco geral a qualquer conhecimento particular a superstição que impõem a new-age não tem lugar [1].

Pode apreciar-se então de que modo a new-age encontra acomodação na “zona de sombra” da qual já falamos. Se as ideologias políticas modernas e as preocupações de índole econômica ocupam o polo racional e a “zona de luz” do paradigma moderno, tudo aquilo que se considera mais pessoal e interior, psicológico ou emocional, esse enorme “espaço vazio” que deixou atrás de si o trabalho de destruição da pós-modernidade, fica do lado da zona de sombra. Prova disso é que não se trata em público desses temas, eles ficam relegados ao âmbito do privado, como a religião mesmo, segundo o ponto de vista profano.

Por esta razão a new-age se encontra nessa zona muito próxima às “novas psicologias” e com muita frequência elas se influem mutuamente. Em realidade, devido à carência de princípios teóricos instáveis, nada diferencia uma da outras, se trata unicamente de uma questão de prestígio social [2].

Resumindo, a new-age se situa -junto a outras disciplinas de conhecimento- à sombra da razão exclusivista no intento de preencher todos os vazios -sociais e anímicos- que atormentam ao homem moderno e é a cara oculta do paradigma moderno, cara oculta que de maneira paradoxal apresenta-se como um conhecimento “alternativo” que pretende revolucionar o paradigma em si mesmo.

New-age e a pós–modernidade

Antes de tratar os aspectos interiores que caracterizam a new-age, e que a configuram como uma pseudoespiritualidade dirigida a suplantar a espiritualidade autêntica e impedir o acesso dos homens e mulheres dessa época à esta espiritualidade, vamos analisar o seu caráter de sintoma cultural da pós-modernidade, pois a new-age constitui um de seus frutos mais acabados e como tal, alimenta o processo de desestruturação social e individual –a nível psíquico- em que está imerso o mundo ocidental.

Talvez o traço que mais se destaca à nossa vista em todo este aparente caos que é a new-age seja seu pronunciado ecletismo: um verdadeiro conjunto desordenado aonde se mesclam crenças, ritos e superstições das mais diversas procedências dando lugar a uma estrutura de aparência informe e difícil de definir. Esta aparência caótica, aonde se juntam desordenadamente ideias de toda procedência deve considerar-se como um “sinal dos tempos” próprio da globalização e da pós-modernidade. Mais adiante veremos que esta característica emparenta a new-age com outros fenômenos culturais não menos característicos deste momento histórico, mas que aparentemente são independentes e distantes.

A respeito de seu caráter de mosaico cultural, resulta evidente que um movimento como é o da new-age, só pode ter lugar em uma sociedade na qual as próprias tradições foram devastadas e, se não desapareceram por completo, são na melhor das hipóteses rechaçadas em massa pelos membros de sua sociedade, tal como é o caso da sociedade atual. A new-age é dessa forma uma consequência direta e previsível da perda das tradições e da extrema dissolução social que a pós-modernidade acabou por conduzir.

De maneira evidente a pós-modernidade inoculou um profundo auto-ódio no mundo desenvolvido em relação à própria “herança cultural” e um sentimento de inferioridade que se expressa neste afã através do progresso. Tudo isso se apresenta de manifesto através do pronunciado rechaço pelo passado, pela história e inclusive pelas mais simples tradições e folclores, por parte dos mesmos cidadãos ocidentais, completamente esvaziados de toda identidade grupal ou sentimento de pertencimento a uma coletividade. Neste sentido, é inegável que um dos objetivos evidentes do projeto da modernidade é o de converter o homem em uma mônada, atomizá-lo, o que só pode ser conseguido amputando-lhe as raízes e doutrinando-o pelo individualismo e o egoísmo mais extremos, ou seja, privando-o definitivamente de sua história e seus antepassados [3]. 

É só através desse processo de “apagar” a identidade pessoal que é possível preencher o vazio de identidade com formas culturais pré-fabricadas pela “indústria cultural” global, que elabora um mosaico a base de peças alheias e exóticas. Esse processo de esvaziar o próprio e destruir toda herança cultural para preencher o vazio com tudo aquilo que seja estranho e distante é o que temos denominado em outras ocasiões “cultura do palimpsesto” [4].

Esse esvaziamento da identidade social que padeceu o Ocidente ao longo do último século teve por efeito desconstruir o cidadão ocidental enquanto sujeito social e político -como parte de uma coletividade- fato pelo qual o sujeito se vê impelido a buscar fora de sua sociedade a identidade e a comunidade que esta lhe nega. Tudo isso se conecta com a ilusão, tão extensa quanto falsa, de que é imprescindível a autoconstrução ativa de uma identidade “a bel-prazer” por parte do sujeito. 

O ecletismo “multicultural” da new-age é igualmente inseparável de outros caracteres da pós-modernidade, como por exemplo, a inclinação, tão exagerada como superficial, do homem ocidental pelo exótico. Esse pronunciado gosto pelo estranho, distante e exótico que apresenta a sociedade ocidental –e que supõem toda uma rareza histórica- é resultado direto da demolição da própria cultura, acompanhando desse sentimento de desenraizamento e des-identificação com o próprio passado. Certamente, e tanto a nível individual quanto coletivo, quando ama-se o próprio dificilmente abre-se a porta para o alheio. 

É assim que deve analisar-se o fenômeno, centrifugador e sintomático aonde se encontra, do turismo de massas e essa irrefreável necessidade do homem moderno por imiscuir-se nas demais vidas e culturas.

O fenômeno do turismo de massas é em sua dimensão psíquica bastante distinto das clássicas “férias” ou o “veraneio” de outrora e certamente ambos fenômenos designam o protótipo do homem de sua época. É preciso considerar em primeiro lugar que o verão -o período entre a colheita e a vindima para os povos europeus tradicionais- é o tempo do descanso por antonomásia. As “férias” eram um fato próprio do proletariado que aproveitava esse tempo para regressar a sua origem -a que de maneira comum se referia como o “povo”-, juntar-se com a família e sobretudo poder entregar-se a um ócio ou a uma moleza que o embrutecedor ritmo de trabalho fabril lhe impedia durante o resto do ano. Desse modo as “férias” eram entendidas sobretudo como uma liberação e uma desconexão do ritmo urbano da máquina, que permitia recarregar as energias.

No entanto, a natureza do atual turismo que alguns chamam cultural, mas que seria mais acertado qualificar de compulsivo, não é em absoluto uma fuga do stress urbanita ou do ritmo antinatural de trabalho que consome o tempo, como se pretende. E não o é porque o homem pós-moderno carrega a sua velocidade e o seu ritmo de máquina aonde quer que vá, de tão interiorizados que estão. Isso é uma mostra contundente do nível de centrifugação psíquica que padece o ocidental atual: o turismo compulsivo é uma atividade de índole profundamente rajásica e superficial, completamente exterior que se intenta justificar com os mais grosseiros argumentos como “viajar é aprender de outras culturas”, o que nos torna mais sábios e melhores... O mito da cultura como acumulação de experiências e informação.

Por outro lado a obsessão por ver e tocar de maneira efêmera uma realidade distante, que pouco nos incumbe e da qual nada entendemos -ao modo de quem visita um zoológico, mas de algum modo especular, pois quem está fora do lugar é o turista, o que converte o mundo em um grande parque temático- só se sustenta pela obsessão complementária de registrar todas essas experiências e vivências, pois sem essa perversão da memória aquela obsessão careceria de sentido.  Por isso não é de estranhar-se que frequentemente nossos contemporâneos regressem de suas compulsivas e centrifugadoras atividades turísticas ainda mais esgotados e estressados do que partiram. Tudo isso daria sem dúvidas para mais reflexões, começando pela simples constatação de que o homem moderno se aproxima do mundo já como um mero espectador e o vê como um espetáculo mais, sem participar dele.

Resumindo, a febre pela viagem que sacode o mundo ocidental, ainda que esteja muito adornada de multiculturalismo, cosmopolitismo e solidariedade com os povos “em desenvolvimento” -bonito eufemismo para dizer que estão à caminho de tornarem-se iguais a nós- não pode ocultar o auto-ódio, a decepção e a frustração frente à realidade social e cultural. É o modo mais acabado pelo qual o ocidental infecta o resto do planeta, aparentemente de forma pacífica, sem a violência das armas, mas com a violência do dinheiro e da soberba cultural. Estamos frente a um homem sem centro, um átomo sem rumo que se move segundo os ditados que lhe mostra o mercado e a imprensa dominical, as poderosas deidades que escrevem seu destino e dizem ao homem o que é digno desejar e consumir na nova ordem mundial. 

Tanto a ânsia por buscar [5] -pouco importa se se trata de “novas experiências” de consciência ou novos lugares- como o interesse exclusivo pelo exterior e pelos fenômenos -que devem em todo caso ficar convenientemente registrados- denotam a origem comum que emparenta ambos fenômenos: a febre turística e a new-age.

Estamos, portanto diante de manifestações de uma mesma realidade, o desenraizamento e a centrifugação, tendências que não duvidamos em incluir como parte de um problema psicológico maior que aprisiona o homem moderno.

II

New-age e pseudo-espiritualidade

Até aqui temos visto de que modo a new-age está enraizada com as tendências mais dissolventes e próprias da pós-modernidade:

Aproximar o que é mais distante, ao que se outorga uma áurea especial como se fosse melhor por ser estranho e exótico.

Distanciar e desprezar o próprio, o qual se despreza em primeiro lugar por ser próprio.

De fato parece haver uma inclinação não somente para culturas e tradições distantes no espaço senão também e talvez especialmente aquelas distanciadas no tempo, o que leva a tentar reconstruir ou ressuscitar restos de tradições desaparecidas, com a conseguinte perversão das mesmas pois não podem ser compreendidas em absoluto a partir da perspectiva moderna. De outro lado enquanto se carece da necessária continuidade em sua transmissão pode dizer-se que qualquer trabalho que se faça com as mesmas está destinado ao fracasso e é em si mesmo contratradicional.

Os exemplos mais evidentes do que dizemos são os casos do Egito e a nova e surpreendente moda do neopaganismo. Ambas tendências possuem uma forte presença nos círculos new-age. No caso do Egito é particularmente significativo, pois parece recorrer todo o ocultismo e a “zona de sombra” a partir de sua própria origem, lá pelo século XVIII -o “século das luzes”...- até a atualidade. Egito e seus deuses parece que nunca passam de moda, e sua estatuária tem sido reivindicada tanto por tendências relativamente ingênuas que não passam do ridículo como por desvios ocultistas maléficos sob todos os aspectos.

A “revitalização” de entidades passadas não deixa de encarnar sérios perigos, pois todas as tradições advertem que os deuses passados e vencidos se convertem em demônios para as civilizações que os substituem. Isto, além de servir de reflexão para mais de um incauto, é suficientemente significativo acerca de que influências empurram e movem toda essa nova espiritualidade tão vaga como inquietante e que como dizíamos surgiu curiosamente nos tempos do mais radical iluminismo ilustrado.

A respeito da moda neopagã pouco se pode acrescentar mais que no melhor dos casos –se excluímos o caso das possíveis influências maléficas- não passa de ser, em razão da morte de dita tradição e a consequente perda de sua cadeia iniciática a mais de um milênio, não nos esqueçamos, uma mera farsa. Farsa que custa crer que alguém possa realmente tomar de maneira séria [6].

Ademais, de maneira muito frequente esses intentos de recuperação de tradições pretéritas escondem um pouco dissimulado anticristianismo e com ele uma vez mais o ódio ao passado.

À margem do caráter anticristão de muitos desses movimentos neopagãos não se pode negar a evidente contradição que encerra o fato de considerar o próprio passado do ocidente como indigno e obscuro, uma idade de trevas e horror, e ao mesmo tempo louvar e idolatrar as culturas mais estranhas e distantes, que o ocidental médio está muito distante de compreender convenientemente... Até esse extremo chega a falta de sentido da ideologia relativista, o multiculturalismo dissolvente e o auto-ódio ocidental. 

A espiritualidade progressista

No entanto, de todas as confusões modernistas das quais se nutre a new-age, a que melhor define sua essência antitradicional é a penetração no discurso pretensamente espiritual da noção de progresso. Essas ideias progressistas dirigidas para a espiritualidade devem ser rechaçadas e desmanteladas em toda ocasião, pois frequentemente as encontramos intoxicando inclusive tradições verdadeiras. Para rebatê-las devemos nos fixar antes de tudo nos fundamentos sobre os quais se assenta toda tradição espiritual verdadeira. Como é conhecido, ainda que se esqueça com muita facilidade, a ciência moderna se ocupa do estudo do mundo manifestado, ou seja, do “domínio dos fenômenos”.

A metafísica, no entanto não se dirige e nem presta atenção aos fenômenos, pois se ocupou sempre e em todas as partes do estudo dos “princípios”, que são eternos, deixando aparte o estudo dos fenômenos e não confundindo nunca ambos marcos de realidade, como inclusive a filosofia antiga deixa claro.

Assim, em virtude de seu campo de estudo, ambas disciplinas -que podemos resumir como Physis, ou seja, da natureza, e metafísica- enxergam a realidade em direções diferentes para não dizer opostas, como os dois rostos do Deus Jano. Metaforicamente se diria que uma olha para cima e a outra para baixo. A metafísica, assim como todo conhecimento que ela elabora, direciona a sua vista ao eterno -representado tradicionalmente pelos Céus- enquanto que a física ao contrário -entendida no sentido que definimos- possui forçosamente a vista dirigida ao mundo material, isto é, o mundo da corrupção e da mudança.

De tal maneira que pode-se dizer que se a metafísica atende ao eterno e invariável, a ciência atende exclusivamente -e o matiz é importante- às mudanças e aos fenômenos, que estão sujeitos ao tempo, isto é, o reino da manifestação grosseira, pois trata de desentranhar as regras de funcionamento do mesmo. Isto a converte, a partir da perspectiva do homem tradicional, que nunca perde de vista a presença do eterno no mundo, em um conhecimento por si só muito inferior. 

Em outras palavras a ciência estuda o exterior, aquilo que está sujeito à lei do tempo e da mudança. A metafísica atende ao interior, aquilo que apesar da sempre mutável manifestação interior, permanece não afetado e constante.

Então, a ideia de progresso só pode aplicar-se, como resulta evidente pelo que temos dito, ao nível dos fenômenos e nunca por definição ao nível do noúmeno, aonde não possui lugar e nem sentido. Sendo o noúmeno não afetado é impossível que exista “progresso” algum, não só ao que se conecta a Ele mesmo senão tampouco sequer desde sua perspectiva. Isto é, em relação com o noúmeno não se pode falar de progresso algum, menos ainda de “progresso espiritual” como pretendem os modernos da new-age, pois a partir da perspectiva do Único incondicionado, toda manifestação -apresente-se como se apresente- vale nada e a distância entre qualquer ente manifestado e o Uno não manifesto é sempre a mesma, todo o progresso que se queira não encurta em nada esta distância [7].

Em resumo, é preciso dizer que desde o ponto de vista da metafísica -o que equivale a dizer desde a perspectiva tradicional- a ideia de progresso é um simples absurdo lógico e ademais uma impossibilidade ontológica. O progresso só é concebível em termos de mudança e, portanto no nível exclusivo dos fenômenos grosseiros.

O resultado é que o progressismo e o evolucionismo são por si mesmos contrários a qualquer verdade metafísica, por isso não é possível de nenhum modo uma “espiritualidade progressista” nem tampouco uma “evolução” nem um “progresso” espiritual e o emprego destes termos põem em manifesto a ignorância absoluta de quem os emprega.

Em definitivo, progressismo e espiritualidade autêntica são conceitos incompatíveis e a aplicação de qualquer concepção progressista a uma doutrina espiritual é sempre uma perversão materialista e pura obsessão pela aparência e o mais exterior, isto é, todo o contrário a qualquer espiritualidade autêntica que põem a atenção na dimensão interior. Todo progressismo é uma negação implícita dos princípios espirituais e, portanto uma oposição flagrante a todo critério ou verdade tradicional. E assim deve ser denunciado qualquer “progressismo” que trate de assentar-se no âmbito espiritual e de intoxicar seus ensinamentos com suas superstições particulares.

*

A conclusão de tudo o que temos dito até agora é que a colcha de retalhos da “nova espiritualidade” é por muitas razões uma forma cultural perfeita para o estado de coisas atual, a pseudoespiritualidade ideal para os tempos da confusão generalizada, em uma sociedade marcada pela decomposição de toda referência cultural, um mundo sem história aonde não há passado nem tradições e no qual este e aquele podem reinventar-se de novo a cada momento.

Frente à desolação espiritual e comunitária em que se encontra o Ocidente a new-age responde de forma grotesca a necessidades humanas básicas, sociais e espirituais, preenchendo o vazio deixado em seu caminho pela ditadura da racionalidade exclusivista e sua reduzida e esterilizante visão mecânica e “pragmática” da vida humana.

Isto situa a new-age em seu verdadeiro contexto histórico, pois vem a preencher -de forma certamente grotesca e ademais perigosa- o vazio deixado pelo desmembramento das tradições autênticas da sociedade. É a reação previsível ao desmantelamento de todos os mitos que alimentavam e mantinham viva a alma da sociedade ocidental: o homem da pós-modernidade, privado tanto a nível comunitário como a nível pessoal e emocional de uma “alma”, busca preencher essa carência entregando-se aos exotismos mais disparatados e participando de pseudotradições que nem compreendem nem lhe são de proveito algum.

III – Californismo e contraculturas

“New-age” e contracultura.

Depois de tudo que foi dito até agora não pode estranhar que a new-age se difunda de forma especialmente exitosa precisamente entre aqueles setores sociais que apresentam um estado mais avançado de dissolução social e intelectual e que são em geral os que abraçam mais explicitamente os ideais de globalismo, o multiculturalismo e o rechaço de toda identidade, em definitivo os ideais mais próprios da pós-modernidade. E tais setores costumam ser precisamente aqueles que se apresentam como “progressistas”, “alternativos” e inclusive frequentemente como “antissistema”.

Não se trata de uma simples coincidência. Faz-se necessário advertir a “unidade de projeto” que subjaz sob a aparente diversidade de movimentos sociais e “modas culturais” que, ainda que se disfarcem de reivindicativos e “alternativos” -ou precisamente por isso- formam parte das forças do globalismo.

Não se deve esquecer sobretudo que no Ocidente a decomposição social e intelectual é muito mais avançada entre a juventude, esvaziada por completo de identidade e de tradições e doutrinada desde sua infância -por parte da educação obrigatória e os mass media- na “cultura do palimpsesto”, o rechaço por todo o passado -começando pela cultura de seus próprios pais- e a consideração de todo vestígio de identidade coletiva como o mais grave perigo para a “paz social”. 

Em definitivo e como acontece frequentemente, são os setores sociais mais progressistas, aqueles que conformam a vanguarda cultural e a “contracultura” os que supõem a ponta de lança da pós-modernidade, também no que diz respeito a pseudoespiritualidade por mais paradoxal que possa parecer. Assim, mais do que perfilar-se uma “alternativa” à grotesca ordem cultural e espiritual atual tal e como dizem representar, o que supõem em realidade é um preocupante presságio do que está por vir.

É entre esses grupos “alternativos” que a new-age encontra o terreno abandonado para propagar suas fantasias sob a forma de pseudomitos e se estende sem oposição nem trava, a não ser um materialismo ou ateísmo radicais cada vez mais infrequentes e que ninguém mais realmente leva à sério, a exceção de algum grupúsculo marxista tão recalcitrante como irrelevante.

Por outro lado cabe destacar que os escassos grupos sociais que ainda podem ser qualificados de “resistência” ao “globalismo cultural” e à ditadura do politicamente correto -que costumam ser desqualificados como reacionários-, como, por exemplo, aqueles que mantém uma rede comunitária forte ou uma identidade religiosa/cultural firme -como podem ser os muçulmanos e algumas comunidades cristãs, em particular ali aonde são minorias- tendem a considerar como um patrimônio valioso suas raízes culturais e suas tradições, e por isso se encontram muito mais protegidos das influências dissolventes do globalismo e da new-age.

Nos encontramos portanto, diante de outro claro exemplo de “cultura underground” ou “contracultura” -nascida em setores marginais e “malditos”, de escassa cultura e nula intelectualidade- que foi elevada à categoria de “cultura dominante” e a fenômeno social de massas -o mainstream, no jargão pós-moderno-.

Este é o aparente paradoxo: na pós-modernidade a “contra cultura” constitui a “cultura do poder” e a ideologia mais estendida entre os submetidos. E ainda, além de tais movimentos pseudoculturais serem um signo do estado de decomposição da sociedade atual, cumprem um papel estratégico decisivo na tarefa de aculturação daqueles que a eles se submetem, rompendo qualquer resto identitário comum que possa servir de resistência à “nova ordem” global.

Cabe questionar assim mesmo de que maneira um “fenômeno de massas” que foi divulgado durante décadas a partir das mesmas estruturas de poder através do cinema, a televisão e a imprensa, pode ser considerado “alternativo” ou “contracultural”. Como certamente a inocência e a facilidade com que o cidadão corrente se deixa embaucar e manipular.

Há que começar a considerar o movimento new-age como uma “ideologia de poder” elaborada para entretenimento e doutrinamento das maiorias e dirigida sobretudo para aumentar a confusão mental dos sujeitos e impedir a dissidência de qualquer tipo pelo conhecido método de oferecer um meio de expressão adequadamente canalizado para o descontentamento daqueles que se dizem “críticos” ou “desconformes”. Uma vez mais comprovamos de que maneira a periferia social do paradigma -a classe média- é dirigida como um rebanho para “regiões” onde seu inconformismo e afã revolucionário fica reduzido a uma moda de consumo... Aqui todo protesto é mera aparência.

O exemplo paradigmático do que dizemos é sem sombra de dúvidas o conhecido fenômeno OVNI e seu corolário, o mito extraterrestre, uma farsa que terminou por contagiar, como se se tratasse de uma pandemia, a mente da maioria e nossos contemporâneos até conseguir converter-se em uma “verdade” inquestionável. Estamos sem dúvida diante de um dos “mitos” centrais de todo o movimento new-age. Esse exemplo nos dá uma ideia não só do nulo rigor intelectual em que se move a new-age senão sobretudo de sua periculosidade e sua maldade, ao servir como instrumento para inocular nas pessoas comuns ideias completamente desviadas e distanciadas da verdade.

Mas novamente, graças à ditadura do relativismo, aqui tudo vale e qualquer ideia pode ser defendida ainda que carecendo em absoluto de argumentos. Em todo caso, não se deve esquecer a ajuda decisiva que proporcionam para a propagação e implantação de semelhantes “ideias” as estruturas de propaganda e manipulação do poder.

*

O contexto cultural da “new-age”: o “californismo”

Em relação ao pretendido caráter contracultural com que se reveste socialmente a new-age pode ser interessante adicionar algo mais. Resulta bastante chamativo que todos os atuais movimentos sociais alternativos -desde a luta pelos direitos dos animais até as modas mais estrafalárias, e em ocasiões diretamente perversas, que se possa imaginar- assim como também a maioria das “contraculturas” que apareceram durante a segunda metade do século XX -ou o que é o mesmo, desde o fim da segunda guerra mundial-, provenham todos de uma zona geográfica muito concreta: a costa oeste dos Estados Unidos e mais especificamente da região da Califórnia. Essa circunstância não passou despercebida para a cultura popular e originou a alcunha californismo para agrupar todas essas novas tendências e “culturas”.

A análise minuciosa da Califórnia como centro gerador e difusor de todos esses movimentos “contraculturais” -e de suas respectivas modas de consumo no mercado global-, ainda que pendente de realização, conduz inevitavelmente à identificação deste região como um autêntico centro “contratradicional”, e quiçá não seja exagerado dizer que se trate do principal centro de difusão da “contratradição” a nível mundial, nesses tempos finais.

Além de seu papel real como centro gerador e difusor de “contraculturas”, valores e formas de vida dissolventes e antitradicionais, a Califórnia possui um importante valor simbólico, geralmente ignorado, que é evidente, para cumprir esse papel.

Na realidade, atendendo ao simbolismo tradicional e aplicando as regras da Geografia Sagrada, se o Japão é “a terra do sol nascente”, a Califórnia não pode ser mais que “a terra do sol poente”. Califórnia é a terra última, o Finis Terrae de nossa civilização, e não só em sentido geográfico -o velho occidens latino, o horizonte final, a terra dos mortos e última fronteira de uma civilização- senão também em um sentido histórico, pois esta foi curiosamente a última terra conquistada pelos europeus, depois da grande dispersão europeia das eras mercantilista e industrial, da qual o episódio da conquista do Oeste Distante oferece um magnífico testemunho.

A conquista do Oeste Distante resulta ser desde essa perspectiva uma representação tão real como dramática dessa “cultura do palimpsesto” que citamos em algumas ocasiões, com sua promessa de “Novo Mundo” levantado, neste caso concreto, sobre o ermo deixado pelo genocídio dos indígenas. Em verdade aqui os europeus predicaram, como em nenhuma outra parte, com o exemplo se impondo mediante a estratégia colonial de “terra queimada” e suplantando tanto cultural como demograficamente aquilo que existia. Um exemplo radical de niilismo poucas vezes visto na história da humanidade.

A esses apontamentos de ordem simbólica ainda devemos acrescentar como dizíamos antes, o decisivo papel da Califórnia como centro difusor das contraculturas mais próprias do pensamento débil e a pós-modernidade, e em definitivo de todos os valores que podem qualificar-se de antitradicionais.

Neste influente papel de criador de gostos, modas e correntes sociais de todo o tipo, costuma destacar-se que está precisamente ali o maior núcleo econômico-industrial da forma espetacular por antonomásia, o cinema, do qual a Califórnia tem sido ao longo do século XX seu maior centro a nível mundial e segue sendo em boa medida, se não já em sentido quantitativo -dizem que foi superada por Bollywood-, é em nível qualitativo, dada sua influência ideológica e cultural sobre o imaginário coletivo ocidental.

Sempre foi reconhecido esse poder de influência, pois durante todo o século passado esta indústria foi empregada como um instrumento de propaganda a serviço do colonialismo cultural e comercial. Relembremos que a recriação espetacular da realidade é absolutamente imprescindível para a manutenção da atual “cultura da imagem”, na qual as ideias entram mais do que nunca pelos olhos [8] na hora de doutrinar e embaucar ao moderno homem espectador.

E um detalhe mais de índole simbólica: não parece casual a extravagante denominação “meca do cinema” que se deu a este lugar, uma determinação que é claramente uma blasfêmia e que, a tenor das influências psíquicas que ali são geradas, dali partem e se estendem sem freio, parece indicar um reconhecimento, sequer inconsciente, de que nos encontramos frente a um autêntico centro contrainiciático.


Como outro exemplo brilhante de “cultura do palimpsesto” e traço central do californismo encontramos o culto à juventude, ao corpo e à saúde. Tudo isso constitui uma prova mais da fixação no mais exterior. Cabe agregar que o corpo é o traço mais exterior da persona, portanto o mais sujeito a mudança, o mais impermanente. Apegar-se à impermanência, ademais de ser uma fonte segura de infelicidade, dor e frustração, é exatamente o ensinamento contrário ao que pôde transmitir qualquer tradição espiritual em qualquer tempo e lugar.

Vemos agora a relação invisível a primeira vista que existe entre essa fixação e o menos essencial e a “nova espiritualidade” que vê só os fenômenos em lugar do eterno.

Quase o mesmo poderia-se dizer da ideia de “saúde” que promove o californismo e que longe de buscar a simplicidade e o natural como anuncia, não é mais que um programa de reengenharia corporal com diferentes graus de violência sobre o corpo que começam pela escravidão da dieta, seguem pela academia e acabam na sala de cirurgia... Tudo  tremendamente artificioso e experimental. Nessa contracultura o corpo se converte em mais um espaço de aplicação da ditadura tecno-industrial, uma outra zona de domínio.

Quanto ao conteúdo de seu imaginário e seus valores o californismo tem chamado a atenção inclusive a nível popular por apresentar a vida humana como uma espécie de adolescência eterna, que nunca deve acabar e em que qualquer traço estável -que proporcione estabilidade ou raízes ao sujeito, como a família- deve ser rechaçado por ser uma atadura.

Essa característica é interessante simbolicamente, pois descreve em poucos traços ao “homem do fim dos tempos”, enquanto ser desarraigado, parado no tempo, sem passado, e por isso mesmo sem futuro. Esse homem sem passado nem futuro, sem raízes nem frutos, que é como a erva que cresce no telhado (Sal. 128:6), representa, como já temos apontado em alguma ocasião, a inversão exata do nômade das origens.

Por outro lado e fazendo uma breve revisão histórica, é especialmente relevante que tais movimentos “contraculturais”, começaram sua difusão massiva precisamente depois da Segunda Guerra Mundial. E novamente pode-se por como exemplo disto o já citado fenômeno OVNI que desempenhou um papel decisivo de doutrinamento de massas durante as décadas cinzentas da guerra fria.

O papel que exerceram certos movimentos sociais de protesto, como o movimento hippie ou a subcultura rock com todas as suas maldições calculadas, na difusão de todas essas pseudoculturas antitradicionais foi fundamental e é poucas vezes denunciado. A relação entre o “hippismo” dos anos 70 e as mais atuais modas naturista e vegana é certamente indiscutível,, mas também o é o vínculo que tiveram aquelas contraculturas com a espiritualidade “light”, o já citado neopaganismo, a magia e inclusive o satanismo. Os vínculos são certamente inegáveis.

E não se pode considerar superficialmente o fato de que todas essas ideologias antitradicionais e que conduzem à dissolução definitiva do “corpo social” tenham seu principal foco de geração e difusão na costa oeste dos Estados Unidos. A partir desse ponto de vista a Califórnia adquire umas conotações simbólicas, históricas e culturais verdadeiramente sinistras e dificilmente igualáveis por qualquer outra região desse planeta. Nisso podemos ver ademais o que realmente significa a consumação da promessa de uma terra nova para o paradigma da modernidade.

Portanto, apesar de sua enorme diversidade e sua aparência caótica, californismo e new-age são fenômenos inseparáveis, tanto em sua origem histórica e geográfica como nos princípios ideológicos que impõem um pouco em todas as partes, todos eles condutores à dissolução da identidade social e pessoal.

IV – A Grande Cerimônia da Confusão

Finalmente tentaremos esboçar algumas conclusões acerca das implicações profundas que supõem um fenômeno social tão extenso, e tão pouco definido, como este da nova espiritualidade “alternativa”. Para começar enumeraremos de forma muito breve as conclusões que chegamos até o momento.

Em primeiro lugar temos mostrado que a new-age se desenvolve na “zona de sombra” do paradigma materialista e racionalista em que nos encontramos e que não duvidamos em identificar com a própria modernidade. É por isso um movimento confuso e obscuro, de mensagens calculadamente ambíguas e inclusive contraditórias, que evita sempre ser estudado e categorizado. É parte de sua essência impedir ser adequadamente definido.

Em segundo lugar temos visto que esta pseudoespiritualidade, inteiramente exterior e superficial, possui inegáveis traços pós-modernos -o gosto pelo exótico, o igualitarismo democrático, a falta de rigor frente a unidade e coesão doutrinais de toda tradição autêntica, a liberdade pessoal e o juízo próprio como direitos irrenunciáveis, a negação de todo princípio de autoridade e portanto o rechaço de todo verdadeiro mestre, etc...- o que a converte não só em um acabado “signo dos tempos” presentes com uma enorme dívida com o ponto de vista protestante da espiritualidade -que teria diante de tudo um interesse sociológico-, senão também na “forma religiosa” -pseudoreligiosa em realidade pois é uma falsificação das formas religiosas verdadeiras- mais idônea para os tempos da pós-modernidade, tão democráticos e opostos a qualquer dogmatismo... E posto que essa pseudoreligião ocupa o espaço que nas sociedades tradicionais ocupava a religião, substituindo-a, a new-age se erige na “falsa doutrina” própria dos últimos tempos. Por isso não surpreende em absoluto que seus seguidores sejam partidários de maneira cada vez mais explícita de abolir as velhas religiões e substituí-las por uma nova “religião universal” -na qual supomos que cada um poderia praticar e participar à sua maneira em virtude do princípio de liberdade individual- que nos será “vendida” como mais um “progresso” sem dúvida, na atual espiral descendente que segue a civilização moderna...

Por último podemos advertir que, contrariamente ao que se pensa, essa “nova espiritualidade” não só debilita o combate ao paradigma civilizatório da modernidade senão que se nutre dele e ao mesmo tempo o fortalece. O fortalece em particular devido a seu caráter  “antitradicional”, perceptível sobretudo em sua intenção de falsificação e substituição das tradições autênticas, atacando-as a partir do exterior ou intoxicando-as a partir do interior sob o pretexto de re-inventá-las e modernizá-las. Portanto não é exagerado dizer que a “nova espiritualidade” é hoje o maior inimigo de toda verdadeira espiritualidade assim como de toda aquele que persiga sinceramente uma aproximação à Verdade última.

Nos encontramos portanto diante de uma influência maléfica de primeira ordem cujas sugestões estão desviando muitos do caminho autêntico.

Por isso, para quem possa pensar que nossos argumentos resultam um tanto exagerados  iremos em seguida recorrer ao simbolismo tradicional -universal e eterno- para comprovar sem sombra de dúvida o caráter maléfico e infernal de toda nova espiritualidade.

Começaremos indicando que o ecumenismo globalista e a definição ideológica e doutrinal que é própria a todas essas pseudoreligiões, características que propiciam que a new-age seja uma colcha de retalhos que abarca todo tipo de ideias, algumas delas contraditórias entre si, convertem essa massa supersticiosa em uma espécie de “Frankenstein cultural”, de aspecto certamente grotesco, que, como é bem conhecido é um signo diabólico per se.

Relembremos que frequentemente se representou ao diabo mediante uma imagem simiesca devido ao seu empenho em imitar e substituir o sagrado para confundir os homens. Por isso o diabo foi chamado em algumas ocasiões “o mico de Deus”. Porém,  como a teologia tradicional tem expressado frequentemente, o grotesco, a feiúra e o desequilíbrio são caracteres próprios do diabo, caracteres que lhe resulta impossível ocultar a pesar de todas as suas elaboradas artimanhas na hora de emular e suplantar a Tradição e a Verdade.

Assim, não podendo apresentar a harmonia e beleza da verdade por causa de seu desequilíbrio e maldade interiores, em seu afã de substituição o diabo não pode evitar delatar-se ao mostrar algo tosco e grotesco, ridículo, em sua imitação. Estas características devem ser sempre consideradas a modo de signo e que só os incautos podem passar por alto e tomar assim tal imitação simiesca por uma manifestação da Verdade mesma.

É assim, como um signo próprio da “contratradição” como devemos interpretar a desordem profundamente inscrita no “mercado espiritual” que é a new-age e de forma mais geral em todas as contraculturas que formam parte dessa tendência que temos denominado californismo.

Antes de continuar observemos por um momento a seguinte ilustração que mostra um detalhe gravado “O cavaleiro, a morte e o diabo” de Alberto Durero, uma de suas três “Estampas Mestres”.

Como se pode apreciar o diabo do gravado é representado mediante uma figura disforme, carente de ordem e harmonia e portanto, de beleza, composto por uma mescla grotesca de características próprias de diferentes animais, isto é, mostra uma confusão de diversas naturezas. Nota-se a tradicional pata de cabra que assoma na parte inferior da ilustração, e que sempre tem sido considerada um dos traços mais distintivos do diabo.

A new-age guarda uma grande analogia com a figura diabólica anterior e pode-se dizer que é, em boa medida, sua expressão cultural. Ambos, à maneira daquele engendro humanoide da novela de Mary Shelley, estão compostos de restos de cadáveres -resíduos psíquicos das tradições desaparecidas que agora se pretende reviver e devolver à vida- e de retalhos pseudointelectuais de todo tipo: desde magia e espiritismo decimonônicos à teorias e hipóteses científicas modernas, tudo isso mesclado em uma inextricável confusão. É isso que esconde a colcha de retalhos pseudodoutrinal da new-age.

Ademais cabe destacar que, em tanto que é uma pseudodoutrina própria do fim dos tempos, a new-age cumpre seu papel de dar voz aos “mortos” -de um modo certamente perigoso- ao servir de vitrine para todo tipo de restos psíquicos de antigas tradições que tem permanecido de algum modo latentes. Os usos perversos de ferramentas e conhecimentos tradicionais como podem ser a astrologia ou o Tarô, assim como o emprego de outros métodos de invenção recente e ainda mais inquietantes e sinistros demonstram tudo isso. E é nesta confusão que a dissolução do mundo psíquico do homem atual se faz mais manifesta.

Já foi dito em algumas ocasiões que para que um projeto falso e maléfico -como o do diabo- possa estender-se e dominar aos homens é preciso que contenha alguns traços de verdade -que extrai das tradições verdadeiras- e colocá-los à serviço da mentira. Isso se deve não só à necessidade por parte do diabo de aperfeiçoar sua capacidade de engano mas a uma razão mais profunda, de caráter ontológico: a mentira não pode existir nem durar por si mesma de nenhum modo pois não possui ser próprio, existe e é animada enquanto reflexo, muito distorcido ou falso, da verdade, que desse modo forçosamente a antecede da dimensão ontológica. É assim como toda mentira é uma imitação e uma suplantação de uma verdade, e por isso em último termo da Verdade.

Imitação e suplantação que é também da Tradição, enquanto expressão no mundo desta Verdade não manifestada, com o objetivo de confundir aos homens e mulheres do fim dos tempos e impedir seu acesso à verdadeira senda espiritual, privando-lhes assim do conhecimento dessa Verdade última.

Portanto a pseudoespiritualidade está muito longe de ser um fenômenos inocente e sem consequências para aqueles que o seguem, tal e como nos pretende fazer crer a cultura do relativismo. Como vemos se trata de um fenômeno muito mais elaborado do que poderia parecer à simples vista e por isso mais perigoso que o simples e bruto materialismo positivista, tão próprio do paradigma moderno, que era uma negação grosseira, e no fundo emocional, de toda espiritualidade. Aqui estamos diante de outra coisa, diante de um grau mais acabado de deformação: uma versão infernal -inferior e invertida- da espiritualidade.

De fato, a ideologia racionalista, positivista e materialista poderia distanciar muitas pessoas da senda espiritual, mas a new-age lhes oferece algo pior: uma interpretação desviada -materialista e pseudopositivista- da espiritualidade e com ela uma senda equivocada na qual perder-se: que é muito mais elaborado e maligno que um materialismo ou um cientificismo puro e simples. Não devemos esquecer que a new-age, ao mesmo tempo que oferece seus próprios caminhos e ensinamentos de uma nova perspectiva, ataca e desprestigia as tradições autênticas a fim de destruí-las e pervertê-las.

E quiçá por isso mesmo não surpreenda tanto que, a pesar da beligerância com que o laicismo progressista e o racionalismo positivista atacam as tradições antigas, a new-age seja consentida e apresentada as vezes incluso como um “necessário retorno à espiritualidade” por parte da civilização ocidental. 

Como percebemos há muito mais que uma simples falsidade, estamos diante de uma substituição da Tradição a fim de confundir e extraviar aos homens. Essa é a preocupante realidade que se oculta detrás dos aparentemente inocentes valores do ecumenismo e do multiculturalismo que nos são apresentados em cada nova reinvenção através da new-age e com o que tratam de seduzir-nos as diversas modas e contraculturas que adota o californismo, a imagem mais acabada da pós-modernidade.
  
*

Notas:

[1] Como se pode ver a fragmentação do conhecimento -e da sociedade- propiciada pelo novo paradigma científico não é independente do giro antimetafísico. 

[2] Há que notar que a psicologia moderna é uma (pseudo) ciência de toda forma liminar com relação ao paradigma moderno, por isso carece de um objeto de estudo, assim como de uma metodologia, claros e definidos. Isso é importante no momento de se adaptar às realidades sociais em constante câmbio, na sociedade pós-moderna, tendo em conta que a “ciência psicológica” é antes de tudo uma ferramenta de manipulação social. Em todo caso, pela razão já destacada de dirigir-se e tratar em parte a aspectos interiores –como emoções, medos e inseguranças, isto é, a “zona de sombra”- da experiência humana fica relegada à periferia do paradigma.

[3] Os antepassados, peça fundamental para a identidade dos povos tradicionais.

[4] Os defensores do globalismo o chamam de maneira eufemista “multiculturalismo”, quando em realidade o que há é um genocídio cultural, uma destruição sistemática de todas as culturas humanas, começando pela própria, para alcançar uma mescla informe que é de algum modo o reflexo análogo do caos primigênio em que estava sumida originalmente a manifestação universal. Não há tal convivência de culturas na desordem pós-moderna, mas sim uma substituição das culturas ancestrais pelos desvalores da dissolução.

[5] Frequentemente os sujeitos mais imbuídos da new-age usam esse termo de “busca” para suas experimentações arbitrárias e inclusive referem-se a si mesmos como buscadores. Delatam com isso a verdadeira natureza de seu “conhecimento”, pois só busca aquele que está perdido.

[6] Pensemos, por exemplo, nas celebrações cada ano mais populosas em certos monumentos megalíticos e todas as pseudocrenças e superstições que isto propicia nos seus arredores... Realmente uma nova pseudoreligião. Em todo caso imitar alegremente a uma casta sacerdotal como fizeram os druidas parece ser, ademais de muito significativo dos tempos em que vivemos, algo mais sério que uma simples pantomima. Mas precisamente o que caracteriza a idiotez moderna é que estas irreverências se abordam com total despreocupação...

[7] Em todas essas considerações seguimos a René Guénon.

[8] Não é descartável o advento de um novo modo de analfabetismo e idiotez devido a esta “deformação visual” do caráter do novo homem espectador cuja capacidade para adquirir ideias por outros meios, sobretudo os que afetam a faculdade racional, vai minguando paulatinamente. Quanto à isso a moderna “cultura visual” –da qual o cinema é o melhor expoente- é a inversão exata da linguagem simbólica das artes visuais tradicionais, mas este tema nos distanciaria do objetivo do presente artigo. 

Katehon - Parceria Transpacífico

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por Revista Katehon

Tradução Maurício Oltramari



A Parceria Transpacífico (TPP - Trans-Pacific Partnership) possui como objetivo minar a influência dos países do BRICS. Além disso, o tratado ameaça transformar-se no maior instrumento de influência das corporações multinacionais, não apenas na região, mas a nível mundial.

Nos Estados Unidos, chegou-se a um consenso para o estabelecimento da Parceria Transpacífico. É o maior acordo de livre comércio incluindo a América, Austrália e o sudoeste asiático
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Estas são as doze nações:

Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura, Estados Unidos, Vietnam.

É esperado que sua abrangência alcance um território habitado por 400 milhões de pessoas, representando 40% da economia mundial. O acordo é acompanhado por fortes críticas dos especialistas devido à atmosfera de mistério que o cerca. De fato, o texto do documento ainda não foi publicado.

O estabelecimento da Parceria Transpacífico foi feito em segredo. Ele inclui doze países dos dois lados do Pacífico. O centro, é claro, é ocupado pelos Estados Unidos da América, que busca fortalecer sua influência na região. Não é segredo que no mundo moderno a economia é um dos instrumentos utilizados para alcançar dominação geopolítica. Em primeira instância, o acordo da Parceria Transpacífico é um golpe desferido contra a China.

A Parceria Transpacífico está estabelecida como uma união econômica. No entanto, esse tipo de associação sempre traz implicações geopolíticas. Vamos entender porque foi necessário estabelecer associações naquela região. Doze estados, que entraram na parceria para formar um anel de abrangência transcontinental que se estende do polo Norte ao polo Sul. Incluindo 40% do comércio mundial. Oficialmente, os membros da parceria buscam a derrubada das barreiras comerciais. Porém, vamos observar quais são as consequências dessa união na esfera militar. Um passo importante na eliminação de barreiras – um espaço comum para a aviação civil. Para a comodidade dos voos livres é necessária a criação de uma zona identificada para a defesa aérea comum. Se isso ocorre, os americanos poderão mover-se secretamente pelo extenso espaço aéreo e atacar zonas internas da China, sem aproximar-se da costa do país.

Isso implica cortar os meios de expansão da China em direção ao Sul. Um envolvimento da Malásia na área onde os EUA dominam permite controlar o estreito de Malaca, que serve como rota comercial para a Europa e por onde passa o fornecimento de petróleo para o Japão. Portanto, a China é privada da oportunidade de tornar-se mais forte no pacífico. Finalmente, a Parceria Transpacífico é o próximo passo executado pelos Estados Unidos para ditar sua vontade à Eurásia, e é a chave para conseguir a hegemonia mundial. O controle direto não pode ser obtido nas circunstâncias atuais. O que resta é confiar na artimanha do isolamento. A mais de meio século atrás os americanos construíram uma zona de influência no atlântico e no mediterrâneo. Agora é hora de tentar limitar a Rússia na área do pacífico. Nesse sentido, um cordão é a figura ideal para tentar empurrar e encurralar alguém.

Barack Obama: “Nós precisamos fazer todos os esforços para que os Estados Unidos estabeleça os princípios da economia mundial. Afinal de contas, se não formularmos as regras do comércio internacional, quem o fará? Evidentemente, a China.”

A atmosfera de mistério pode ser explicada. De acordo com especialistas, o acordo irá inevitavelmente destruir o negócio americano, levará ao aumento do desemprego e fará com que os países participantes tornem-se reféns das corporações multinacionais. A história nos relata alguns precedentes. A visita de Nixon à China foi em 1972. Antes que os Estados Unidos tivessem a tarefa de transferir a disputa –que na época era frente à União Soviética-  em direção à China, seu antigo aliado geopolítico. Os americanos investiram energicamente na economia chinesa. O número de americanos empregados na indústria caiu de 25% do total de empregados para 17%. Vinte anos depois a situação ficou ainda pior. Os indicadores caíram para 10%. Isto resultou no encerramento do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio no começo dos anos 90. Muitas das industrias dos EUA transferiram-se para o Canadá e México. O mesmo está acontecendo agora. Porém, na zona de comércio não há apenas um país ou dois, mas doze países. Os EUA sacrificando os interesses de seus próprios cidadãos para satisfazer as ambições geopolíticas de companhias multinacionais.

“O governo dos EUA é uma marionete, que está a favor e serve àqueles que possuem o dinheiro. Os principais acionistas do Sistema de Reserva Federal dos Estados Unidos. Esse acordo, que legaliza a posição privilegiada e os direitos das corporações multinacionais, que, se acordo iniciar-se, irão ditar seus termos aos países.” 

A aliança econômica tem como objetivo minar a influência dos países do BRICS, especialmente China, Rússia e Índia. O histórico pacto entre os países do Círculo do Pacífico demonstra o quanto a Índia –apesar de seus esforços para modernizar e abrir sua economia, a terceira maior da Ásia- acabou ficando para trás de seus vizinhos no que diz respeito à derrubada de barreiras comerciais.

A Índia ficou de lado enquanto ocorriam as longas negociações das doze nações que compõem a Parceria Transpacífico, ao mesmo tempo em que as autoridades do país focaram-se em promover outras parcerias comerciais. E ainda, um tratado de investimento entre os EUA e a Índia avançou timidamente enquanto os dois países discutiam à respeito dos direitos de propriedade intelectual e acessibilidade de mercado. Um acordo de livre comércio ficou estagnado por anos, com ambas as partes relutantes em abrir seus mercados agricultores.

À medida que seus maiores parceiros comerciais juntaram-se em blocos com tarifas reduzidas, a Índia arriscou-se a ficar isolada dos principais mercados em um momento em que o Primeiro Ministro Narenda Modi tenta acelerar o crescimento econômico e integrar o seu país nas redes de fornecimento globais.

Além disso, o acordo comercial ameaça tornar-se o maior instrumento de influência de corporações multinacionais, não apenas na região, mas também à nível mundial.

A razão pela qual o povo desses países ditos “democráticos” não saberá dos termos, até que quatro anos tenham se passado nesse acordo secreto, que seus governos assinaram, é que eles terão assinado para autorizar as corporações multinacionais a processar os seus respectivos governos (os pagadores de impostos), potencialmente por cifras assustadoras. Não em uma corte jurídica democrática na qual o público tenha elegido os juízes ou elegido as pessoas que apontariam os juízes. Ao invés disso, serão eleitos três árbitros, selecionados de acordo com algo chamado de “convenção CIADI”, e “a convenção CIADI estabelece que a maioria dos árbitros não deve compartilhar a nacionalidade das partes que discutem a causa” – em outras palavras: a maioria dos árbitros será de origem estrangeira; todos os árbitros, com exceção de um, serão escolhidos por corporações multinacionais, e o árbitro que não for escolhido por estes, não será necessariamente escolhido pelo país em a empresa está estabelecida. De qualquer maneira, apenas um dos árbitros poderá possivelmente ser escolhido pelo país em que a empresa está estabelecida.

Se o árbitro não corporativo acaba sendo selecionado por um país estrangeiro, então o país que disputa a causa não será representado em todos esses processos, que podem estabelecer multas que irão impactar profundamente a nação processada e enriquecer a corporação à frente do processo. Isso não significa necessariamente que a multa, se houver, será maior do que ela deve ser, mas simplesmente que não há contabilidade democrática no processo de determinar qual multa será imposta ao país processado.

Ademais, as decisões tomadas nesse cenário, diferente das decisões dos trinunais -nas quais é possível recorrer à sentença- não serão passíveis de recurso.

Além disso, nessa Parceria do Transpacífico nenhuma nação irá possuir o direito de processar qualquer corporação multinacional, enquanto estas podem, no proceder do acordo, processar unicamente a um governo nacional.

Finalmente, através da criação da Parceria Transpacífico o governo dos EUA está matando dois coelhos numa cajadada só. Por um lado, ele permite que as multinacionais estejam unidas por tempo indeterminado à elite americana. Por outro lado, tenta manter seu lugar como hegemonia global. Liberalismo americano requer sacrifício. E as vítimas são pessoas comuns, como as que saíram para protestar em todos os estados dos EUA, do Oregon à Carolina do Norte.  

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