por Bruno de Cordier
Assim como ameaças e inimigos muitas vezes acabam não sendo quem nos disseram que fossem ou acreditávamos que fossem, medidas e movimentos com um propósito aparentemente nobre e humanista nem sempre o servem. Leis draconianas contra "discursos de ódio" e "extremismo", por exemplo, não são tanto para promover a tolerância e deter malignos supremacistas brancos e malignos salafistas como se diz ao público. Esses grupos em questão ao invés servem como espantalhos midiáticos, cuja ameaça serve para legitimar um conjunto de leis, políticas e órgãos de controle que são estruturados com o propósito de intimidar ou silenciar todas as formas de dissenso efetivo contra a ordem neoliberal no futuro. Similarmente, leis rígidas de controle de porte de armas não são estabelecidas para a proteção de cidadãos comuns, mas ao invés representam tentativas da elite de limitar a circulação de armas de fogo que poderiam, um dia, ser voltadas contra ela na medida em que frustração, amargura e desespero acumulados que fermentam nos níveis de base, explodam.
O duplipensar e a novilíngua orwellianas nunca foram tão amplamente usadas quanto sob a hegemonia neoliberal que emergiu após o fim da Guerra Fria e da ordem mundial bipolar. Agora, o mesmo paradoxo se aplica ao feminismo e a seu mais amplo e escorregadio derivado e álibi, o gênero. Muito pode ser traçado ao chamado"feminismo de segunda geração", um movimento que se originou entre as mulheres de classe média-alta e da elite na Europa norte-ocidental e nos EUA entre 1965-75. Seus objetivos principais eram a independência financeira para as mulheres através de sua integração plena no mercado de trabalho, e a chamada "liberação sexual". Não há dúvidas de que o movimento inicialmente abordasse desigualdades, abusos e hipocrisias reais. Porém, ele perdeu parte de sua superioridade moral assim que se tornou um instrumento da implementação de uma ordem mundial neoliberal - um sistema desumanizador em que todos os aspectos da vida tem que se tornar comercializáveis, com tudo e todos como mercadores, subordinados às elites financeiras oligárquicas e cosmopolitas - nas partes mais profundas do tecido social. Como isso aconteceu?
Seria a Liberdade Escravidão?
Olhemos para o seu legado atual nas sociedades dos países em que isso começou: isto é a esfera da OCDE, e a Europa norte-ocidental e os EUA em particular. Se abstrairmos a retórica sobre emancipação, progresso, oportunidades iguais e liberdade de escolha, que foram verdadeiramente ou supostamente obtidas, se vê que ao longo das últimas décadas homens e mulheres nas sociedades nucleares da esfera da OCDE alcançaram uma igualdade quase completa - isto é, em primeiro lugar, como consumidores e sujeitos pagadores de impostos. É importante enfatizar isso; pois a evolução das mulheres a trabalhadoras, consumidoras e pagadoras de impostos plenas era o propósito verdadeiro da recuperação do feminismo pelo sistema, ou pelo menos um número de suas questões. Em termos de mercantilização da sociedade, a chamada liberação sexual também veio à prática como a incorporação plena dos mores sexuais das subculturas de protesto da esquerda libertária do período de 1965-75 ao marketing e ao consumismo em massa. Mas talvez o mais importante seja isso: a vilificação crescente e a destruição da família nuclear e do clã como pedras fundamentais de uma ordem social natural, e a luta de poder e hostilidade entre os sexos que está sendo constantemente incitada por revistas de estilo de vida, reality shows, organizações de mulheres, assistentes sociais e advogados, provaram ser uma tática de dividir para conquistar.
Talvez isso tenha sido dito muito bruscamente. Mas vamos nos ater ao essencial. A fragmentação e mutação do tecido social também veio para servir a um propósito maior de garantir a continuidade ideológica, no sentido de que a mídia corporativa, pedagogos subsidiados e todo o tipo de terapeutas se tornassem personagens importantes na educação e na aculturação de crianças e adolescentes no lugar da família. Desorientadas por causa da desintegração da estrutura familiar e por causa da degradação da figura paterna, elas se tornaram muito mais aptas à doutrinação com os valores e normas sistêmicas através desses canais. Finalmente, em termos de controle social, a promoção da feminização e da metrossexualidade entre garotos e homens através da mídia e de comerciais serve para diluir a capacidade física e psicológica para rebelião e revolução efetivas contra a ordem das coisas. A oligarquia compreendeu muito bem que a contribuição física nas ruas durante revoltas e revoluções sempre foi primariamente dada por homens.
Assim, se começa a imaginar se a questão é uma de criar uma sociedade mais gentil, ou, ao invés, mais submissa que vive uma ilusão de liberdade e igualdade. Mais recentemente, o setor de gênero foi ainda mais longe com a promoção dos direitos homossexuais, que depois de um tempo se tornou direitos de "minorias sexuais" no discurso político internacional. Como um todo parece que de alguma forma, o feminismo e o setor de gênero eventualmente veio para servir a opressão que eles fingiam combater. Era isso que os milhares de feministas e ativistas do gênero bem intencionados queriam? Provavelmente não. A questão é, que seis movimentos, e conquistas reais e percebidas, foram recuperados por um sistema, cuja natureza eles foram incapazes de compreender - pelo menos a tempo. Mas por outro lado, a recuperação do feminismo em um instrumento para a oligarquia neoliberal só foi possível porque parte das elites feministas compreenderam que elas poderiam transformar isso em carreira, especialmente uma vez que os baby boomers e soixante-huitards que propagaram o feminismo de segunda geração, conseguiram chegar aos níveis mais altos da política nacional e das instituições internacionais.
A Ira das Periferias
Para mentes mais sóbrias, já estava claro há muito tempo que a resistência contra, e alternativas para, o neoliberalismo não viria das esquerdas seculares. Como Oswald Spengler corretamente disse à época - e como a velha esfera socialista na década de 90 bem como a devolução dos social-democratas europeus ilustram - cada "irrupção" de socialismo cria novos caminhos para o capitalismo. Nem se pode esperar muito das estruturas e atores democráticos estabelecidos, porque esses basicamente foram reduzidos a entretenimento e rituais políticos periódicos que não afetam os poderes reais dominantes. Ao invés, a resistência e alternativas vem e continuarão a vir das periferias internas e globais e das potências emergentes. Elas serão forjadas em grupos de solidariedade existentes ou recompostos, formas de tradicionalismo existentes ou renascidas, e na religião. Dependendo da sociedade e da esfera geográfica, esta particularmente inclui o Islã, o Cristianismo e talvez o Neopaganismo.
Mesmo na própria esfera da OCDE, resquícios de estruturas tradicionais e de religião podem um dia se provar vitais para a sobrevivência de indivíduos e para a recomposição de sociedades, uma vez que a ordem atual imploda, como mais cedo ou mais tarde acontecerá. Portanto, estas tem que ser desacreditadas e descartadas para que nenhuma alternativa possa se formar, ou para que essas sejam marginalizadas onde quer que existam. O que protagonistas e agentes da hegemonia global neoliberal especialmente temem é que potências emergentes e movimentos de resistência tradicionalistas e não-seculares de algum modo encontrem causa comum. Ademais, similarmente ao que se deu na esfera OCDE, a base consumidora global tem que ser expandida para que o sistema econômico possa estender sua sobrevivência. Isso significa que identidades coletivas, normas e valores que formem um impedimento à transformação das sociedades periféricas em bases de consumo plenas, tem que ser combatidos. E é aí que a indústria do gênero, entre outras, entra. Assim, a questão é que o processo de fragmentação social do território original do feminismo tem que ser propagado e enxergado na periferia interna - isto é, os imigrantes não-ocidentais e em particular muçulmanos na esfera OCDE - bem como na periferia global e, aqui novamente, com atenção particular para os setores islâmicos. Isso também inclui a exportação da agenda das minorias sexuais.
Um importante canal do que está definitivamente se tornando um imperialismo de gênero é o auxílio para desenvolvimento international. O uso de filantropia para transformar sociedades periféricas e conseguir algum controle sobre elas no processo foi conceitualizado por autores como Mark Duffield, entre outros. Os números seguintes oferecem uma visão concreta sobre o que o auxílio para promoção de igualdade de gênero e fortalecimento das mulheres como objetivo principal ou significativo. Esses números refletem somente o auxílio oficial reportado. Se acrescentarmos as atividades em que a igualdade de gênero é um objetivo implícito ainda que não principal, bem como as contribuições de doadores privados, a porção desse tipo de auxílio muito provavelmente será bem maior. Não obstante, se olharmos para a linha do tempo, vemos que o auxílio relacionado a gênero aumentou sistematicamente a partir de 1999, e especialmente de 2002 em diante. Isso não é coincidência. Para início de conversa, a igualdade de gênero foi simplificada e integrada como um objetivo prioritário de desenvolvimento em diversas cúpulas globais sob a égide das Nações Unidas entre 1995 e 2000. Mais importantemente, houve a mudança de paradigma geopolítico. Previamente, a "abertura" das sociedades outrora socialistas na Europa Orienta, nos Balcãs e na Eurásia já havia criado um espaço real ou esperado para "reconstrução social" segundo linhas neoliberais. O rápido empobrecimento e deslocamento social e moral por que essas sociedades passaram no início da década de 90 criou oportunidades para a indústria internacional do gênero também. Oficialmente ali para salvar mulheres da degradação e da exploração, a sua tarefa, na verdade, era ajudar a impedir qualquer retorno ou reabilitação de alternativas tradicionalistas e não-seculares ao socialismo falecido.
Auxílio como "Software Social"
As coisas ganharam ímpeto, porém, com o início oficial do que conhecemos como "Guerra Global ao Terror" no final de 2001 e início de 2002. É claro, essa guerra multidimensional não começou do nada. Ela era, na realidade, o resultado de uma velha mudança no foco de segurança na direção da esfera islâmica que já ficou clara durante a Primeira Guerra do Golfo em 1990-91 - a que se seguiu à ocupação do Kuwait por Saddam Hussein. Após o início aberto da atual fase da guerra ao terror em 2001-022, porém, se observa uma ampliação forte e sistemática da ajuda de gênero. Assim agora, em média, estamos falando de aproximadamente 17.6 bilhões de auxílio oficial de gênero por ano desde 2002. Contrariamente o que alguns possam pensar, o grosso disso, aproximadamente 3/4 no período de 2008-11 por exemplo, não veio dos EUA mas de instituições da União Européia - especialmente dos principais Estados-membro da UE. Isso sugere algum tipo de divisão de tarefas em que os EUA fornecem o grosso do músculo militar para intervenções neoimperiais, enquanto a mais afeminada União Européia traz o software social para transformar sociedades. No que concerne países, muito do auxílio de gênero, tanto em termos proporcionais como absolutos, é destinado a sociedades majoritariamente islâmicas que estão nas linhas de frente da guerra ao terror (o contexto principal sendo é claro, o Afeganistão, o Iêmen, o Iraque, o Paquistão e, mais recentemente, Mali e Indonésia).
Há também a Índia e a China, e um número de países africanos que são categorizados como Estados frágeis ou onde movimentos cristãos assertivos existem. Interessantemente, os principais recipientes também incluem o Vietnam, um país nominalmente socialista e outrora baluarte anti-imperialista, mas que agora aparentemente se tornou um campeão dos direitos das minorias sexuais. É obviamente errado olhar para toda a indústria do gênero como um setor centralizado e uniforme ligado por fraternidade e solidariedade global. É, ao invés, um reino de instituições internacionais especializadas numerosas, ONGs internacionais assim como locais, firmas de consultoria, plataformas e egos que estão permanentemente em competição uns com os outros por um pedaço da torta do financiamento, oportunidades de carreira e sua própria continuidade, e onde "mulheres oprimidas" eventualmente servem como pano de fundo". Essa competição e divisões, que é uma das razões pelas quais o setor eventualmente falhará em seus objetivos, muito provavelmente se ampliará quando o financiamento encolher caso a crise econômica na esfera da OCDE perdure ou piore. No campo de ação, porém, traços comuns e modos de operação podem ser observados. Primeiro, todo o esforço é fundamentalmente dirigido pela elite. Assim como o tráfico de escravos no oeste da África e o colonialismo europeu na Índia, por exemplo, jamais poderiam ter sido organizados sem o apoio ativo e interessado de notáveis nativos e príncipes mercantis, a hegemonia neoliberal, e a indústria do gênero que deve ajudar a ancorá-la no tecido social, tem que confiar em grupos locais da elite e, é claro, em seus interesses.
Esses grupos elitistas formam boa parte do staff local da indústria do gênero e a liderança de movimentos feministas locais. Sendo compostos de membros dos segmentos mais cosmopolitas e ocidentalizados da sociedade, secularistas, yuppies, meios artísticos e burocratas mais oportunistas, eles compreenderam muito bem a lucratividade de agir como subcontratantes nas agendas de doadores. Normalmente, porém, eles não refletem o que vive e se move na sociedade em geral, que eles geralmente temem e desprezam por seu suposto caráter "retrógrado". A avaliação distorcida e socialmente preconceituosa da questão de gênero que isso normalmente traz, reflete uma profunda divisão social entre as elites, as bases e os socialmente móveis. O que me chocou, por exemplo, durante todo o escarcéu do caso do estupro de Delhi no início desse ano, quando feministas da elite - do tipo que trata seus servos domésticos como lixo depois de chegarem em casa do seminário de direitos humanos - não perderam a oportunidade de culpar "o tradicionalismo retrógrado das massas" pelo aumento nos casos de estupro. Tipicamente, ninguém nesses círculos nem mesmo sugeriu que a rápida difusão da virtude liberal da pornografia poderia, talvez, ser uma causa muito mais importante.
Pare de Fingir
Em segundo lugar, pode-se observar uma clara tendência a focar em situações e incidentes extremos, senão marginais, que vitimizam mulheres, de modo a sempre poder demonizar, em cooperação com eruditos do sistema desejosos por atenção, as seções masculinas e tradicionalistas da sociedade - senão países inteiros. Obviamente, com algumas beldades martirizadas e um draminha ou dois jogados no meio, já se tem a visibilidade internacional e a legitimidade necessárias para se obter financiamento. Mas, mais essencialmente, alimenta uma narrativa latente em que os homens são uniformemente retratados como opressivos, violentos, preguiçosos e irresponsáveis. E isso tem que servir, de fato, à mesma tática de dividir para conquistar, que é a de por os sexos um contra o outro. Na realidade, porém, entre as feministas da elite e o conjunto das mulheres libertinas de um lado, e as mulheres que são vítimas de abusos espetaculares e brutais do outro, há um meio social diversificado em que homens e mulheres, para o bem e para o mal dependendo das circunstâncias, possuem um modus vivendi maduro em um ambiente diário que é definido tanto por tradição como por globalização. Mas dificilmente há quem esteja interessado nisso. Simplesmente porque aí há muito menos miséria espetacular para ver e vender.
Mas a existência dessa maioria silenciosa, porém viva, sublinha algo muito mais importante. Assim como os estudantes de esquerda de origens elitistas na Europa Ocidental de 1965-75 - que foram às fábricas difundir o evangelho da revolução proletária e se depararam com a indiferença, senão com hostilidade marcada, dos próprios trabalhadores que eles queriam "emancipar" - feministas privilegiadas e profissionais do gênero ficam tão assombradas quanto quando elas finalmente percebem que a maioria esmagadora das mulheres árabes, afegãs ou africanas que elas querem "salvar" e "iluminar" estão esperando por qualquer coisa, menos por isso. E essa é ao mesmo tempo outra razão pela qual a estratégia do gênero pode eventualmente falhar.
Antes que alguém pense que isso é absurdo ou ilógico, fique claro que eu entendo essas críticas. Houve um tempo, já há muitos anos atrás, que eu também caía nessa história: afinal, quem poderia ser contra proteger e liberar as mulheres do abuso, da exploração e da discriminação? A questão é, quando se trabalha em diferentes esferas e sociedades por tempo suficiente e quando se tem olhos e ouvidos, se percebe em um certo momento que é necessário ser ou malévolo ou um idealista cabeça-dura para não perceber que o belo discurso e os slogans pegajosos não refletem a realidade de modo pleno. E que realidade é quando se consegue ver aonde as estradas pavimentadas com boas intenções às vezes podem levar.