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Carlos Alberto Sanches - A Superação do Homem e a Civilização da Super-Humanidade

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por Carlos Alberto Sanches



Nosso objetivo é apresentar uma interpretação do Übermensch nietzscheano que esteja suficientemente livre das determinantes humanistas que o desfiguram e encobrem seu autêntico significado, bem como apresentar a “contraparte” do conceito situada na filosofia de Sri Aurobindo, que, por sua vez, possibilita uma significação espiritual, supraindividual e metapolítica à ideia da superação do homem.

Que as ideias de um filósofo sejam má compreendidas ou distorcidas interessadamente constitui talvez a própria tragoedia philosophae. O caso de Nietzsche, contudo, é especial, considerado que o estilo próprio de sua escrita - efusiva, intempestiva, aforismática -, inseparável do caráter essencial de sua filosofia, torna-o excepcionalmente pronto para fáceis deformações. Somente se contemplada em seu conjunto e sua evolução cronológica a filosofia de Nietzsche revela alguns de seus traços fundamentais e distintos, o que faz com que, como escreve Scarlett Marton, “quem julgou compreendê-lo equivocou-se a seu respeito; quem não o compreendeu julgou-o equivocado”.

Antes de tudo, o Übermensch nietzscheano não é o homem otimizado, não é o homem ampliado, o homem hipertrofiado - e menos ainda quando conceituamos “homem” a partir do que observamos da condição humana atual. O “homem” (mensch) dos discursos de Zaratustra não é o “homem” do Humanismo moderno. Este último se lhe apresenta apenas como resultado de uma escola de antropotécnica específica, apequenadora, esterilizadora. O “homem” de Zaratustra também não é simplesmente o animal rationale da tradição metafísica Ocidental, isto é, um animal acrescido de razão - ou “uma desarmonia e misto de planta e fantasma” (ein Zwiespalt und Zwitter von Pflanze und von Gespenst) -, embora contenha caracteres essenciais do mesmo, inevitavelmente. A essência do homem consiste no fato de ser ele próprio uma passagem: uma transição (Übergang) e um ocaso (Untergang). “O homem é corda estendida entre o animal e o Übermensch. O homem é o caminho entre uma “coisa” e um além não coisificável; e que se apaga a si mesmo neste cruzar de um pontoo ao outro. Deixemos em suspenso esta imagem por um momento, e passemos a uma consideração sobre a natureza do Übermensch. Para uma melhor visualização desta natureza e um mais rápida condução ao nosso objetivo, coloquemo-lo ao lado de dois tipos humanos: o “Último Homem” (Letzte Mensch) e o “Homem Superior” (Höhere Mensch).

O último homem é o resultado das antropotécnicas modernas da escola humanista cujas raízes retroagem à guerra contra o tipo de homem superior que coube ao cristianismo levar a cabo. Ele foi obtido após séculos de nanificação. O último homem desconhece o destino de sua humanidade. Ele é incapaz de enxergar a potência expressa no primeiro impulso da Vida e que lhe atravessa. Ter se esquecido de sua destinação, ter deixado de corresponder ao fluxo dos seres, faz dele “o mais macaco de todos os macacos”, uma anormalidade na escala dos seres. O último homem compreende a essência do ser humano a partir da observação de seu estado atual, como se os anteriores fossem necessariamente inferiores a ele (“No passado toda gente era louca!”, dizem os últimos homens), ou como se ao homem, visto tal como se encontra hoje, não houvesse mais nada a acrescentar ou nenhuma potencialidade a se desdobrar em fato; pressupõe que esta forma humana atualmente observável, com sua respectiva organização social, representa o estágio mais elevado atingível pelo impulso conformador do nosso gênero. Prova disto é que seus empenhos políticos consistem todos em proteger este homem, proteger esta humanidade. “Vida” é reduzida conceitualmente por ele a mera “sobreviva”, “sobrevivência”. Não sabe o que é exceder-se. Tudo o que quer é esticar sua existência a qualquer custo. O último homem não sabe morrer. “Sua raça é indestrutível como a da pulga”. Com sua risada de macaco, ri-se da pira dos sacrifícios. O mais importante: as potências criativas de um tal homem se encontram anuladas; ele é espiritualmente castrado. É por isto, aliás, que se chama o “último homem”: vive como se não houvesse nada além dele; representa a esterilização da terra; caos sem fertilidade. É por isto também que, em sua vigência, “o deserto cresce”, ou, como diria Heidegger, “cresce a escuridão sobre a terra”.

Os homens superiores são os prenunciadores e preparadores do Übermensch. Eles estariam sintonizados com a essência do homem como transição e ocaso, mencionada acima. Como anunciadores, são arautos do raio (pois o Übermensch, “der ist dieser Blitz”), são as pesadas gotas de chuva que o antecedem. O próprio Zaratustra assim se nomeia (“ein Verkündiger des Blitzes”, “ein schwerer Tropfen”). Os homens superiores, a que Zaratustra não apenas se refere objetivamente, mas os quais ele passa a procurar como auditório depois de ter desistido de falar à turba, não carregam nenhum caráter, digamos, tipicamente burguês. São uma elite visionária e criativa. Em sua temperança e simplicidade, são homens belicosos tanto quanto trabalhadores silenciosos. São tão raros que o autor não os vê entre seus contemporâneos. Lemos na Gaia Ciência:

Homens preparatórios – Eu saúdo todos os sinais de que se aproxima uma época mais viril, guerreira, que voltará a honrar acima de tudo a valentia! Ela deve abrir caminho para uma época ainda superior e juntar as forças que de que ele precisará – a época que levará heroísmo para o conhecimento e travará guerras em nome dos pensamentos e das conseqüências deles. Para isto são agora necessários muitos homens preparatórios valentes, que certamente não podem surgir do nada – muito menos da areia e do lodo da atual civilização, e educação citadina; homens que, silenciosos, solitários, resolutos, saibam estar satisfeitos e ser constantes na atividade invisível; homens interiormente inclinados a buscar, em todas as coisas, o que nelas deve ser superado; homens cuja animação, paciência, singeleza e desprezo das grandes vaidades seja tão característico quanto a generosidade na vitória e a indulgência para com as pequenas vaidades dos vencidos; homens de juízo agudo e livre acerca dos vencedores e do quinhão de acaso que há em toda vitória e toda glória; homens com suas próprias festas, dias de trabalho e momentos de luto, habituados e seguros no comandar e também prontos a obedecer, quando for o caso, igualmente orgulhosos nas duas situações, igualmente servindo a própria causa; homens mais ameaçados, fecundos e felizes![i]

Estes homens, a julgar pelas características listadas, têm correspondência histórica. Corresponderiam ao tipo humano a que Nietzsche se refere no Prefácio d'O Anticristo, o tipo almejado pelo “grande laboratório de pesquisa da Vontade de Potência” que é a história,[ii] mas que surgia no interior das sociedades antigas como um feliz acaso, “um golpe de sorte” (ein Glücksfall), uma exceção (eine Ausnahme);[iii] contudo, segundo Nietzsche, é contra este protótipo que luta o cristianismo, que em tal empenho produziu o tipo inverso, o animal de rebanho (Heerdenthier). Este último tipo, portanto, seria o tronco de cuja ramagem brotaria, dois milênios depois, o último homem.

De volta à terra firme, Zaratustra se pergunta o que acontecera ao homem durante sua ausência. Observando uma fileira de casas, lamenta que “tudo ficou menor”: “a virtude é para eles aquilo que torna modesto e domesticado: com ela fazem do lobo um cão, e dos próprios homens os melhores animais domésticos para os homens”.[iv] Neste discurso de Zaratustra que, segundo Peter Sloterdijk, oculta “um discurso teórico sobre o homem como força domesticadora e criadora”, o Humanismo aparece como escola de antropotécnica apequenadora. “Da perspectiva de Zaratustra, os homens da atualidade são uma coisa: bem-sucedidos criadores que conseguiram fazer do homem selvagem o último homem”.[v] O Humanismo visa a inocuidade; “o padre, o professor e todos aqueles que se apresentam como amigos dos homens”[vi] seriam agentes apequenadores. Poderíamos - por que não? – estender esta definição, “amigos dos homens”, com toda sua carga crítica, ao conjunto heterogêneo de agentes sociais sobre os quais repousa atualmente a responsabilidade do cuidado biopolítico dos seres humanos.

O Humanismo é inibidor por definição. O cataclismo cujo anúncio Nietzsche havia previsto como seu destino, a “profunda colisão de consciências” que se seguiria à sua morte, seria, em grande parte, esta batalha (para Sloterdijk eminente no horizonte do século XXI) entre aqueles que governam o homem para fazê-lo menor aqueles que governam o homem para fazê-lo maior; “os que criam o homem para ser pequeno e aqueles que o criam para ser grande”;[vii] é uma batalha entre “os humanistas e os super-humanistas”,[viii] “os amigos do homem e os amigos doÜbermensch.[ix] Isto não equivale a dizer que o Übermensch possa ser conseguido por um simples projeto de desinibição ou um retorno ao bestial ou pré-humanista. Em todo caso, trata-se de superar o diagrama humanista segundo o qual é dever das organizações humanas superiores  proteger o “homem”, e não apenas o indivíduo humano, como reza a cartilha globalista pós-Guerra, mas proteger igualmente as condições atuais da subjetividade do “homem”; proteger o homem no plano das ideias; conservar a ideia de homem; o que significa ao mesmo tempo proteger o sujeito autorreferente que observa a terra e a si mesmo, como diz Hannah Arendt, de um “ponto de vista arquimediano”, do lado de fora da terra, alienado das raízes que lhe prendem às entranhas da terra. Quando Heidegger define o homem como “o pastor do ser” (der Hirte des Seins) e a linguagem como a “casa do ser” (Haus des Seins), o que está contido nessas denominações é a ideia de que aquilo a ser “protegido”, “guardado”, não é o “homem” em si, o animal pensante esquadrinhado pelos discursos científicos biologizantes, mas sim aquela dimensão fundamental e transcendente à qual o ser humano se encontra aberto e da qual depende sua humanidade. Se Humanismo, também como diz Heidegger, significa cuidar para que o homem não resida fora de sua essência, o verdadeiro cuidado do homem se daria através da guarda não exatamente do ente humano, mas das condições da Abertura (Erschlossenheit).

A interpretação que faz do Übermensch um mero homem otimizado desaba no risco de concebê-lo como um moderno amplificado. Ela desconsidera as nuances supracitadas. Somente do último homem poderia vir a acepção que faz o Übermensch coincidir com o personagem dos quadrinhos norte-americanos. O Übermensch não é um indivíduo com super-poderes ou acoplado a próteses lutando para salvar a “humanidade” atual. Também não é um ou mais aspectos ou potências ampliados do homem. Seria lícito dizer que ele representa a força configuradora de toda uma nova forma social. O Übermensch é uma meta, em toda a plenitude significativa deste termo. A tradução mais adequada seria, aliás, Supra-homem, pois, como vimos, não se trata da superlativização da forma humana, menos ainda a atual, mas sim, digamos agora diretamente, do atingir de um novo estágio do Ser, do alcançar de um lócus ontológico diferenciado. Ele não pertence mais à formação epistemológica do humanismo moderno, de onde brotam as “Ciências Humanas”; ele se situa no estágio posterior à morte do “Homem” das ciências positivas; é por isto que ele surge no final do penetrar do sujeito na matéria infinitesimal; confunde-se com a vingança do silício sobre o carbono: o Übermensch, resume Deleuze citando Rimbaud, é “o homem carregado dos próprios animais”.[x] Ele é o portador do destino da Vida, pois nasce da união consciente do homem com o fluxo dos seres. Obedece soberanamente à vontade da terra. E é por isto que o Supra-homem é o sentido da terra (der Sinn der Erde).


***

Como interlúdio à crítica de um pensador indiano, que nos seja permitido fazer uso de uma imagem símbolo da transição, do Oriente e do novo começo: a aurora.

Nas culturas do passado, as palavras que se referem à aurora remetem diretamente a um campo significativo do qual nunca se pode dizer que dele o homem esteja fora. Mesmo que textos antigos possam se referir ou explicá-la enquanto fenômeno natural, a palavra que a designa como tal, seja em sânscrito, grego ou latim, é antes de tudo o nome de uma divindade, e não uma qualquer, mas uma divindade ligada à dádiva da forma dos homens, dos animais e dos próprios deuses. Na antiguidade mais remota, quando se dizia os nomes da aurora, pronunciava-se o nome de uma divindade das mais nobres. Uma divindade feminina. Uma divindade da prenhez. Que surge todas as manhãs trazendo pelas mãos nascimento e morte. Uma divindade da origem e do retorno certo da origem. A Ushas é dedicado um número relevante de hinos no Rig Veda: “Essa luz chegou, entre todas as luzes a mais bela. Nascida está a brilhante e extensa claridade. A Noite, expulsa por Savitar [o sol], revelou-se um berço para a Manhã. A justa e clara chegou com sua prole branca [Ushas surge numa carruagem puxada por sete vacas brancas]; o Escuro renunciou à sua morada. Imortais, ambos os firmamentos [heavens] seguem adiante, seguindo-se um ao outro, mudando suas cores. (…) A Aurora despertou todas as criaturas vivas” (Hino CXIII, versos 1-5). Na fórmula empregada repetidas vezes por Homero para descrever a passagem dos dias, do nascimento de um novo dia, a jovemEos surge com seu belo e famoso epíteto: “Quando surgiu a Aurora de dedos rosados...” (rhodo-dáktylos Eos). Em Hesíodo ela não surge apenas aos homens, mas também aos deuses, “brilha sobre tudo o que há na terra e sobre os deuses imortais que vivem no amplo firmamento”. Para os romanos, Aurora é irmã de Sol e Luna, e na fórmula de Virgílio se lê: “A Aurora agora deixou sua cama de açafrão, e feixes de luz matutina se espalham pelos céus...”. Digno de nota que os germânicos tinham Ostara, uma divindade equivalente, da qual se tem menção num tratado astronômico do ano 725 escrito por um monge anglo-saxão, onde se diz apenas que sua celebração ocorria em abril, ou seja, e isto é significativo, no mês em que o gelo se transforma em água e o chão no hemisfério Norte floresce. Todas as Auroras dos mundos antigos do hemisfério Norte eram celebradas na chegada da primavera. Nós, completos estranhos, comemoramos, no mês da primavera, a Páscoa. (Que também não nos é assim mais tão familiar.) Ou talvez não sejamos tão estranhos com relação à aurora dos antigos, talvez seja possível encontrar sentidos coincidentes entre “aurora” e “páscoa” se colocarmos lado a lado suas cadeias etimológicas: *hausos é a raiz proto-indo-europeia do sânscrito austra, brilhar, do grego astron, astro, e do proto-germânico *austron, aurora. Desta última, *aust gera o alemão Osten, leste, onde surge o sol. De *austron também vêm o nome da deusa germânica Ostara, o alemão Oestern e o inglês Easter, nomes da celebração cristã que chamamos em português de páscoa. A tudo isto também se liga Ister, como os antigos germânicos chamavam o rio Danúbio. Este, do latimdanuvius, do céltico *dan(w)-yo, que significa, em português, simplesmente, rio; *dan(w)-yo está relacionado com o inglês arcaico dauin, o período da passagem entre a escuridão e o alvorecer, com dagian, tornar-se dia, e com o inglês moderno dawn, aurora. Como Heidegger certa vez escreveu, aquilo que transporta Aurora em sua subida até nós é chamado por Homero de éosphoros, “portador da aurora”. Pherein, carregar, tem raiz no sânscrito panthah, caminho, do proto indo-europeu *pent, passar, passagem, mesma raiz de pontos, como os gregos chamavam o mar aberto. Já o português páscoa vem do grego pascha, passagem, no sentido do inglês passover, do aramaico pasha, com o mesmo significado. Aurora, rio, carregar, caminho, mar aberto, passagem. O sentido de transição liga a celebração cristã de abril àquela pagã dos mundos antigos. Uma transição, uma passagem, da escuridão à luz igualmente passageira. O retorno, a cada nova manhã, da primeira luz que os homens viram, da primeira luz que viu os homens. Através da aurora se observa o anúncio do eterno retorno do começo humano. No tumulto e confusão dessas línguas bárbaras, pode-se reconhecer uma experiência “humana” no interior do próprio fenômeno natural. O filólogo Nietzsche sabia disto. E o filósofo Nietzsche soube disto fazer bom uso. Antes de pôr suas palavras na boca de um (des)profeta batizado com o nome de um ícone primordial, Nietzsche o faz deixar sua pátria (Heimat), ir para as montanhas, lá permanecer por dez anos até se cansar da sua solidão, e então “se levantar com a aurora rosada” (stand er mit der Morgenröthe auf). A aurora não é um mero detalhe no ponto alto da indispensável iniciação pela qual Zaratustra tem que passar antes de se tornar anunciador do Übermensch. Dois anos antes, Nietzsche parecia já saber que, para fazer brilhar sua aurora, seria preciso retornar até o mais antigo nome pelo qual a aurora foi chamada (ao mais longe que pudesse ir nesta direção), e recolher, dessa fonte das fontes, um feixe de luz primordial a partir do qual pudesse irradiar os seus próprios, como um prisma. Somente então o filósofo que nasceu póstumo poderia falar aos ouvidos do futuro. Em seu idioma, curiosamente, quem escreve “luz primordial” com duas palavras escreve “luz” duas vezes: Urlicht Licht. Essa luz primordial, só lhe pôde ocorrer buscá-la onde acreditava ser o berço das culturas Ocidentais. Este raio capturado de luz primordial lá está: a epígrafe de sua Aurora. Só poderia ser a epígrafe. E não poderia ser creditada senão ao Rig Veda: “Há tantas auroras que não brilharam ainda...”



A relação entre o pensamento alemão (principalmente a partir do século XIX) e o pensamento Oriental (em toda sua diversidade e primordialidade) é um tópico intrigante. Do lado outro, o pensador indiano Sri Aurobindo (1872-1950) é um dos que promovem deliberadamente o intercâmbio. Aurobindo lançou o projeto urbano de um distrito experimental, uma espécie de “cidade espiritual universal”, realmente fundada após sua morte. Foi batizada de Auroville. É conhecida como a “Cidade da Aurora”. Eis o que escreve sobre a Aurora dos Vedas:

Ao longo dos Vedas, Ushas, irmã de Céu, tem sempre a mesma função. Ela é o meio [medium] do despertar, da atividade e do crescimento dos outros deuses; ela é a primeira condição da realização védica. Por meio de sua crescente iluminação toda a natureza do homem é clarificada; através dela ele chega à Verdade, através dela ele desfruta a Beatitude. A divina aurora dos Rishis é o advento da divina Luz retirando [throwing off] véu após véu e revelando nas atividades do homem a luminosa divindade [godhead]. Nesta luz a Obra é feita [the Work is done], o sacrifício ofertado, e seus frutos desejáveis reunidos pela humanidade.[xi]

A Aurora é a origem da forma (eidos) e de tudo o que é feito pelo homem (pragma). Mais do que isto, ela abre acesso a uma dimensão do destino humano que, apesar de compartilhada com todos os indivíduos humanos, individualmente nenhum homem pode viver:

E elas estarão juntas - Auroras que brilharam e Auroras que hão de brilhar. A Aurora anseia com voracidade pelas Auroras que a antecederam, e segue adiante, alegre, brilhando com as outras. Idos são os homens que nos dias antes de nós olharam [look] o surgimento da primeira Manhã [earlier Morning]. Nós, nós os vivos, agora contemplamos sua claridade, e eles se aproximam, os que hão de vê-la” (Hino CXIII, versos 10-11).

Em períodos históricos de grande recorrência do tema da “escuridão que sobrevêm sobre o mundo”, é bom lembrar que é a Aurora que “leva para longe a melancolia da sua irmã [a Noite], e, através de sua excelência, fá-la retraçar seu caminho” (Hino CLXXII, verso 4).

***

A filosofia de Sri Aurobindo se constitui no diálogo crítico e construtivo com os filósofos Ocidentais. No que diz respeito ao nosso tema, iniciemos por afirmar que Sri Aurobindo critica o Übermensch de Nietzsche por julgá-lo carregado de vícios modernos ou, em suma, Ocidentais. A noção de Super-Humanidadeda filosofia aurobindiana se expressa pelo conceito de Supermind, Supramente.
Antes de tudo, o que seria a Supramente?

Esse termo intermediário é (...) o princípio e o fim de toda ordem e criação, o Alfa e o Ômega, o ponto de partida de toda diferenciação, o instrumento de toda unificação, originativa, executiva e consumativa de todas as harmonias realizadas ou realizáveis. Ele tem o conhecimento do Uno, mas é capaz de extrair do Uno suas multitudes escondidas; Ele manifesta o Múltiplo, mas não perde a si próprio em suas diferenciações.[xii]

Sri Aurobindo também chama a Supramente, em certos contextos, de “Real-Ideia”, isto é, “um poder de Força Consciente expressiva do ser real, nascida do ser real e participante de sua natureza”. Escreve Joan Price:

[A Supramente] refere-se sempre à unidade acima de si e à multiplicidade abaixo de si, portanto atuando como uma ponte pela qual a maya inferior [matéria] se desenvolve a partir da maya superior [mente]e pela qual a maya inferior retorna novamente em direção à sua fonte. Do ponto de vista da Supramente (Consciência-Verdade), toda existência é um Ser tendo consciência como natureza essencial; é uma consciência cuja natureza ativa é vontade; é uma consciência-força que é deleite, quer esteja ativamente criativa, quer esteja em repouso. Isto, diz Sri Aurobindo, é Brahman - nós mesmos em nossa essência, nosso ser não fenomenal.[xiii]

            Segundo Aurobindo, no ato de Criação, a Consciência, primordialmente absoluta e perfeita, involui (involves) gerando a matéria limitada e, encerrando-se nela, inicia uma marcha de evolução (evolution) através de estágios sucessivos rumo à libertação de si mesma e reaquisição do estado primordial, perfeito, supramental. A Consciência-Força, dirigida pela unidade da Supramente, manifesta-se dando forma à multiplicidade. É o que Aurobindo chama “a involução do Espírito”. “Evolução” sendo, portanto, “um auto-desenvolvimento do Espírito”. Não apenas a Vida, a Mente e a Consciência, mas a própria Divindade se encontra involuída na matéria. Achamos oportuno recordar que o termo contém a raiz indo-europeia vol, que significa tanto esconder quanto revelar, “esconder revelando” e “revelar escondendo”, o que pode ser relevante para uma compreensão, diria, heideggeriana do que poderíamos muito bem tratar como um processo de (des)velamento do Ser. Aqui é impossível não recordar das narrativas tradicionais dos ciclos de decadência nas quais os seres divinos involuem em sucessivos estados obtusos.

No mundo material que nós habitamos, a Mente está involuída e subconsciente na Vida, como a Supramente está involuída e subconsciente na Mente, e esse instinto de Vida com uma Mente subconsciente involuída está novamente ela própria involuída na Matéria (…) O universo material principia com o átomo formal sobrecarregado com energia, instinto com a substância não formada de um subconsciente desejo, vontade e inteligência.[xiv]

A Consciência é, em si, onipresente; é a substância tanto da matéria grosseira quanto da matéria sutil, tanto da maya inferior (matéria) quanto da maya superior (mente). Para Sri Aurobindo, não faria sentido fazer da Consciência um epifenômeno ou um acaso da evolução material, tal como tende a conceber a ciência materialista dos Ocidentais. É a Consciência que utiliza o órgão cerebral, não o órgão cerebral que utiliza a Consciência. “(…) a consciência usa o cérebro que nossos esforços em direção ao alto têm produzido, o cérebro não tem produzido a consciência nem usa a consciência”.[xv] E usa nossos esforços em direção ao alto – com o intuído, diríamos, em resumo, de liberar-se da matéria buscando (re)atingir o estado de perfeição. A matéria mais limitada contém todos os princípios da realidade última, isto é, a Vida, a Mente e a Consciência. “Essa teoria de Sri Aurobindo reconcilia a realidade sem tempo de Ser com o mundo temporal de vir a ser e explica a evolução teleológica como um derradeiramente livre ato de criação.”[xvi]
Sri Aurobindo escreve:

Nós falamos da evolução da Vida na Matéria, a evolução da Mente na Matéria; mas evolução é uma palavra que meramente refere-se ao fenômeno sem explicá-lo. Pois parece não haver nenhuma razão para a Vida evoluir de elementos materiais ou a Mente de formas viventes, a menos que aceitemos a solução vedântica de que a Vida já está involuída na Matéria e a Mente na Vida porque, em essência, a Matéria é uma forma de Vida velada, e Vida uma forma de Consciência velada.[xvii]

Todo o processo evolutivo é tornado possível pela involução de princípios-força superiores para dentro da matéria, do átomo; são estes princípios que carregam a matéria da força consciente necessária para sua propulsão em direção a estados materiais e mentais cada vez mais perfeitos. No átomo jaz em estado latente tudo o que irá se desdobrar. Se a Matéria com a Vida e a Mente em estado latente se restringe a movimentações involuntárias de atração e repulsa, é a Supramente, também involuída nela, que a possibilita constituir organismos primários, nos quais já se verifica em estado manifesto, além da Vida, uma crescente atividade mental. Nas palavras de Joan Price: “Desde que ele é capaz de fazer associações e tem memória, nós podemos observar uma inteligência prática; alguns animais são capazes de fazer planos, usar estratégias e astúcia. Tudo isso, diz Sri Aurobindo, é uma preparação para a evolução de uma ainda mais consciente inteligência”, a humana.[xviii]

A partir do estado animal, em que Vida e Mente ainda inconsciente já se encontram manifestados, a evolução alcança com o ser humano o estágio da Mente consciente, isto é, da Sobremente. Trata-se do desvelar, na terra, de um nível superior da Consciência caracterizado pelas capacidades de raciocínio, objetividade etc:

[no ser humano] ...há uma transição da mente vital para a mente reflexiva e pensante, há desenvolvido um mais alto poder de observação e invenção, coletando e conectando dados; consciente do processo e resultado, uma força de imaginação e criação estética, uma sensibilidade mais plástica superior, a razão coordenadora e interpretadora, os valores de uma inteligência não mais de reflexos ou reações mas de domínio, compreensão e auto-desapego.[xix]

Importante notar que é sobre este nível de Consciência que se desdobra o domínio técnico do homem sobre o mundo. Como lemos no brilhante comentário de Joan Price:

Devido a essa complexa mente humana ter uma consciência superior, ela torna-se dominante na terra. Aqui é importante reiterar que nada na evolução é destruído ou deixado para trás. O ser humano carrega consigo a vida física e mental dos animais e transforma-as em valores mais altos. Se os estados de animal inferior lutam contra serem elevados, a mais complexa mente racional lida com eles desenvolvendo ética, disciplina, ascese e eventualmente integração.[xx]

O homem conduz o processo evolutivo conscientemente subjugando os animais que traz dentro de si e que lhe puxam constantemente para os níveis de consciência mais baixos. A Ignorância, produto da involução da consciência na matéria (digamos, o cegar-se a si mesma da Consciência) é fundamental para o processo evolutivo, exercendo a função da camada de obscuridade da qual os estados superiores devem se desvencilhar. Ainda Joan Price: “Para Sri Aurobindo a criação é uma involução do Espírito para dentro da Ignorância, que é o elemento necessário da evolução para dar a nosso mundo a promessa da perfeição. Através dos séculos, pensadores e pessoas criativas do mundo todo têm realizado a ignorância da natureza e a verdade de Deus interligados por uma realidade”. Segundo Sri Aurobindo: “a perfectibilidade do homem, a perfectibilidade da sociedade, a visão de Alwar da descida de Vishnu e dos Deuses sobre a terra, o reino dos santos... a cidade de Deus, o milênio, o novo céu e terra do apocalipse...”,[xxi] estas intuições, mesmo oscilantes, não são construções míticas ou simbólicas arbitrárias ou gratuitas. “De acordo com Sri Aurobindo, a vida divina evoluindo na natureza-terra não é apenas nossa imaginação esforçando-se por alcançar, em falsa esperança, um futuro brilhante; existe uma base racional para tal ponto de vista”. De fato, as representações dos Deuses seriam como projeções fixadas da Supramente para manter o homem tensionado com seu polo superior, com seu destino evolutivo, a saber, a liberação, dentro e fora de si, da Vida Divina. Porém, a maioria dos indivíduos tem dificuldade de superar a plataforma da Sobremente, que Sri Aurobindo, aliás, chama mesmo de “mente física” devido ao fato de carecer sempre da sensibilidade física e de suportes materiais para operar. A transição evolucionária se dá pela superação do animal no homem: “O animal foi uma ajuda; o animal é o impedimento.”[xxii]

O estágio seguinte ao da Sobremente se alcança por meio de uma gradativa abertura ao nível da Supramente. Isto se dá pelo surgimento, aparentemente ocasional, de indivíduos que Sri Aurobindo chama de Seres Gnósticos. Estes seres transcendem a multiplicidade de centros do Ser e atingem a unidade primordial na plataforma da Supramente. “A crescente posse do ser individual e do mundo pela presença Divina, Luz, Poder, Amor, Deleite, Beleza irá ser o sentido da vida para o ser gnóstico”. Os Seres Gnósticos experimentam um contínuo estado de fusão com o Brahman impessoal sem contudo deixarem de experimentar a personalidade – tanto a da Divindade quanto a deles próprios.[xxiii]


Isto não significa um desprendimento ou simples abnegação da matéria ou do corpo. Como escreve Joan Price:

Na pessoa ordinária o corpo é, em parte, o instrumento da alma e desde que o corpo é físico, mesmo se ele obedece a alma, sua ação é limitada. O corpo tem também uma lei de sua própria ação física que a alma não pode inteiramente controlar. Mas no ser gnóstico a lei do corpo e os movimentos do corpo são diretamente determinados pela Vontade e Espírito da Consciência-Verdade superior precisamente por essa consciência espiritual que o corpo será tornado um 'verdadeiro e pronto e perfeitamente responsivo instrumento do Espírito'. O que é importante sobre a nova relação entre Espírito e corpo é 'uma livre aceitação do todo da Natureza material em lugar de uma rejeição'.[xxiv]

Lemos em Sri Aurobindo:

O ser gnóstico utilizando a Matéria, mas utilizando-a sem desejo ou apego material ou vital, sentirá que ele está utilizando o Espírito nesta forma de si próprio com seu consentimento e sanção para seus próprios propósitos. Existirá nele um certo respeito por coisas físicas, um sentido de presença de... consciência nelas, de sua vontade cega de utilidade e serviço, ... um cuidado por um perfeito e não faltoso uso desse material divino, por um verdadeiro ritmo, ordenada harmonia, beleza na vida da Matéria, na utilização da Matéria.[xxv]

Os Seres Gnósticos, inicialmente raros, situam-se além dos limites da determinação moral ou mesmo das formas religiosas; encontram-se além dos códigos valorativos binários ou, digamos, além do bem e do mal do mundo dos homens. “Aqui os princípios de liberdade e ordem são basicamente unos; eles são dois aspectos da verdade espiritual e inerentes um ao outro.”[xxvi] Porém, transcendem igualmente a ideia rasa segundo a qual estes códigos seriam “inúteis”. Como lemos em um dos aforismos de Sri Aurobindo:

O poder de acatar a lei rigidamente é a base da liberdade; é por isto que a maioria das disciplinas da alma têm de suportar e cumprir a lei em seu ser inferior antes de poderem elevar-se à liberdade perfeita de seu ser divino. As disciplinas que já começam pela liberdade foram feitas apenas para seres poderosos e naturalmente livres que em vidas anteriores cimentaram sua liberdade. Aqueles que são deficientes na observância livre, plena e inteligente de sua própria lei devem ser submetidos à vontade de outros. Esta é uma das principais causas da submissão das nações. Somente quando o alarmante egoísmo for esmagado pelos pés de um amo, dar-se-á, mediante prova de força própria, uma nova oportunidade de merecer a liberdade. Somente em Deus e mediante a supremacia do espírito podemos desfrutar de uma liberdade perfeita.[xxvii]

Vê-se em Sri Aurobindo que, junto às classes de seres humanos intermediários, os Seres Gnósticos formam uma espécie de comunidade metafísica na qual se opera a construção do destino da humanidade como um todo: libertar aVida Divina encerrada dentro da matéria, que é a Vida Divina mesma involuída.

Na parte não transformada da humanidade poderia muito bem surgir uma nova e maior ordem de seres humanos mentais; para o ser mental diretamente intuitivo ou parcialmente tornado intuitivo, mas não ainda gnóstico, para o ser mental diretamente ou parcialmente iluminado, poderia surgir o ser mental em direta ou parcial comunhão com o plano de pensamento superior: esses poderiam tornar-se mais e mais numerosos, mais e mais evoluídos e seguros em seu tipo e poderiam mesmo existir como uma raça formada de humanidade superior conduzindo para cima os menos evoluídos em uma verdadeira fraternidade nascida do sentido da manifestação do Divino Uno em todos os seres.[xxviii]

Nenhum esforço é perdido. Nenhuma ideia, nenhum pensamento individual é desperdiçado no arrancar da espécie rumo à Supramente.

Assim como foi estabelecida na terra uma consciência e Poder mentais que moldam uma raça de seres mentais e trazem para dentro de si tudo da natureza terrestre que está pronto para a transformação, assim agora serão estabelecidas na terra uma Consciência e Poder gnósticos que irão moldar uma raça de seres espirituais gnósticos e trarão para dentro de si tudo da natureza terrestre que está pronto para essa nova transformação. [xxix]


***

Antes de apresentar a crítica de Aurobindo ao Übermensch nietzscheano, é importante antecipar certas deficiências. Como nota Renato Alejandro Huerta, “nas críticas do filósofo oriental (...) não encontramos nenhuma menção do eterno retorno e do amor fati”,[xxx] o que sugere que, como iremos ver, Sri Aurobindo toma o conceito de Übermensch a partir de sua acepção humanista, ignora as nuances que marcam sua autenticidade frente o humanismo moderno, o que já vimos ser problemático. Contudo, como tentaremos demonstrar, o que seria uma deficiência nos oferece na verdade uma ótima oportunidade para ensaiar uma integração crítica das ideias destes pensadores.

Sri Aurobindo dedica um artigo especial ao protótipo do Superman (Übermensch),[xxxi] publicado na revista Arya em 1915. Para ele, é extremamente natural que o Superman desponte no horizonte de uma humanidade que assume conscientemente a tarefa evolutiva.

Nietzsche foi o primeiro que tirou [esta conclusão], o místico do culto da Vontade, o problemático, o profundo, o quase luminoso Eslavo Helênico (o termo Helênico implica um amor pagão e sem restrições em contraste com o Judaísmo que implica uma austeridade moralista, uma maneira de viver menos sensual da vida) com suas claridades estranhas, suas ideias violentas, suas raras intuições cintilantes que vinham marcadas com o selo de uma absoluta verdade e soberania da luz. Mas Nietzsche foi um apóstolo que nunca entendeu inteiramente sua própria mensagem. Seu estilo profético era como o dos oráculos de Delfos, que convertiam a verdade em mentira para satisfazer a seus ouvintes e crentes. [xxxii]

Através do Übermensch nietzscheano, Sri Aurobindo entrevê não a Vontade de Potência compreendida no sentido ontológico ou metafísico como o que lhe atribui Heidegger ou Müller-Lauter, por exemplo, mas algo como uma “Vontade de Domínio” de caráter essencialmente materialista.“Nietzsche o cantou no Olimpo mas o apresentou com o aspecto de um Asura.”[xxxiii] Na filosofia aurobindiana, Asura  equivale e de fato também é chamado de Titã. O Titã seria um ser vital mentalizado cujo pensamento e vontade são governados pela Ignorância (atributo da Consciência em estado involuído) e pela falsa identidade (a identificação da Consciência com o limitado ego anímico). “Para Sri Aurobindo o titã será filho da obscuridade e da divisão”[xxxiv] Devido ao fato de a Natureza começar com a divisão e o egoísmo (isto é, com a involução do Ser em centros múltiplos), “o Titã emerge primeiro que o Deus”; os Asuras sempre surgem antes dos Devas. Isto aliás significa que o Titã “ocupa um lugar determinado na economia do universo”. Os Titãs preparam o caminho para o desabrochar dos Deuses, tal como pode se vislumbrar no episódio védico do “batimento do leite”.

O asura (titán) tem a porção da carga mais pesada e menos agradável. Ele é o que começa a tarefa e a dirige; ele vai em seu caminho macheteando, dando forma e plantando: o deus segue, retificando [enmendando], concluindo, colhendo. Ele prepara ferozmente, com angústia e contra milhares de obstáculos, a força que nós usaremos: o outro desfruta da vitória e da delícia.[xxxv]

Para Sri Aurobindo, o Superman nietzscheano é um ideal de Super-Humanidade legítimo somente até certo ponto, pois ainda imperfeito e já obsoleto; ou seja, é um ideal titânico.

Para o titã seria impossível compreender a grandeza da missão do deus. Os instintos do titã reclamam, em verdade, um domínio tangível, concreto e visível. O titã estaria seguro de seu império somente se tivesse as coisas debaixo de seus pés. Aquilo que enche o titã com a sensação de glória e senhoridade é sua capacidade de forçar, exigir abertamente. E ele, porque é titã, é o filho da divisão e do potente florescimento do egotismo. Para o titã, ademais, seria necessário sentir a limitação dos outros para sentir-se imensurável. E isto porque ele não tem um sentido de infinidade autoexistente que não depende nem que pode ser anulada por circunstâncias externas. Par ao titã o contraste, a divisão, a negação das vontades dos outros são coisas fundamentais para seu desenvolvimento e autoafirmação. O titã deve conquistar e menosprezar o que não é ele para que sua própria imagem possa se marcar, estampar todas as coisas e dominar todo seu meio ambiente.[xxxvi]

Sri Aurobindo cogita as razões pelas quais Nietzsche não pôde se desvencilhar do titanismo. O ímpeto anticristão do filósofo alemão o teria impedido de enxergar a unidade por trás da multiplicidade; impedido de enxergar o sentido da crucificação: os deuses exigem a crucificação do egoísmo dos homens para se desvencilharem da natureza titânica.

Portanto, à via titânica de Super-humanidade se segue outra, evolutivamente posterior e superior àquela: a divina. A Super-Humanidade enquanto Vida Divina  é a superação do estágio da limitada Consciência titânica, isto é, ao estágio da Sobremente, ou seja, da humanidade tecnológica. É esta a via que realiza a plenitude da Supramente. O Ser Supramental “se ergue vitorioso sobre a mortalidade e os sofrimentos”. Se o titânico se lança ao domínio cego da exterioridade, este, o divino, rege a exterioridade mediante uma simultânea conquista interna


Ser o homem divino é reger a si mesmo e ao mundo, mas não em um sentido externo. Esta é uma lei que depende da afinidade secreta da unidade que conhece a lei do outro ser e do ser do mundo e o ajuda ou, se há necessidade, o compele ou obriga a realizar suas grandes possibilidades próprias, mas por um mandato divino e essencialmente interno.[xxxvii]

É por isto que o Bhagavad-Gita só poderia ser ensinado por Krishna a um guerreiro ário, Arjuna, somente em pleno campo de batalha e, mais especificamente ainda, no centro, entre os dois exércitos, circunscrevendo simbolicamente uma batalha ao mesmo tempo interna e externa na qual esta mesma dicotomia será suplantada, e na qual vencer a morte servir de instrumento à vontade divina (“Todos estes já estão mortos, seja apenas meu instrumento e lute) significa transcender a plataforma titânica da dualidade.


Segundo Sri Aurobindo, superar o homem significa:

evolucionar no sentido do deus ou do deva, é crescer em intuição, em luz, em gozo, em amor, em maestria feliz; servir pela lei e para a lei pelo serviço mesmo; ser capaz de ser valente e diligente e inclusive violento, mas sem ferir nem abusar, e, à vez, ser suave e gentil e inclusive auto-indulgente sem
, y a la vez, ser suave y gentil e incluso autoindulgente sem negligência, vício ou debilidade; ser um mesmo, uma unidade completa, brilhante e feliz por simpatia à humanidade e todas as suas criaturas. E, afinal, isto é evolucionar uma grande personalidade impessoal e elevar a simpatia em uma experiência constante da unidade do mundo. Porque assim são os deuses, conscientes sempre de sua universalidade e, portanto, divinos.[xxxviii]

É este, o divino, o estágio para o qual a humanidade transita ascendentemente, não o titânico que, como vimos, o precede. O Superman representa uma etapa necessária, “porém de uma evolução já pretérita”. O homem já a realizou, já completou o estágio da  Sobremente, a mente física, a mentalidade mais próxima da natureza anímica do que da natureza divina, restando a ele, agora, operar a transição para a plena liberação da sua essência: a Supramente. A transição evolucionária, como já vimos, será realizada por indivíduos pioneiros, Seres Gnósticos, e, “seguindo estes, existirá um maior número, atuando por conhecimento, que um dia irão tornar-se tão dominantes no mundo quanto são hoje os seres mentais”.



***

Do ponto de vista de Sri Aurobindo tanto quanto das doutrinas tradicionais, a figura do Übermensch faz, sim, todo sentido, sob as figuras míticas dos Asuras, no vocabulário védico, ou dos Titãs, no vocabulários greco-romano. Muitos souberam identificar no discurso de Nietzsche (a determinação da essência do homem como transição e ocaso) um certo sentido “teológico”. Se este fala em Supra-homem (tradução que, recorde-se, julgamos a mais adequada para Übermensch) e não em “Deuses”, é porque fala a partir da experiência da “Morte de Deus”, isto é, a partir da experiência do vazio, da ausência de fundamento ontológico escancarada na última fase do processo de Esquecimento do Ser – é esta, aliás, a razão pela qual sua saída metafísica é nomear o fundamento do ente em sua totalidade a partir da única “coisa” que resta, ou seja, a Vontade de Poder. O homem é corda estendida entre dois extremos sobre a qual é impossível se deter: porém, completaríamos, dando voz às doutrinas tradicionais, que, sobre esta corda, ou se caminha em direção aos deuses ou se retroage ao animal. Imaginemos um elástico tensionado entre estes dois extremos: se ele se soltar de uma extremidade irá automaticamente de encontro à outra. Ou as antropotécnicas mantém o homem tensionado com o polo de cima ou elas servirão para deixá-lo cada vez menor. Ora, o que caracteriza a pequenez do homem do Humanismo moderno, o nanismo do último homem, é suaincapacidade de transcendência. Se do Oriente vem alguma luz, ela vem anunciar, dentre outras coisas, a necessidade de pensar fora do homem, de estender a vontade para além do homem. Não é o homem que deve ser protegido, mas a humanidade do homem, as condições da Abertura, isto é, sua inerente capacidade de transcender, de carregar em si o destino de todos os animais, de dar sentido à vida na terra, enfim, o que deve ser resguardado. Um tal empreendimento, por sua inerente grandeza, não pode ser levado a cabo sem a concepção de uma nova forma social capaz de proporcionar as condições historial do escancaramento ontológico ou, dito de outro modo, uma nova Civilização. É por isto que as sociedades atuais, que se converteram em estufas de procriação do último homem, devem ser demolidas a fim de que se erijam condições de elevação do homem a um novo estágio do Ser. É forçoso que no presente texto não deixemos esta questão intocada.

Vimos na primeira parte que o Übermensch nietzscheano é um destino, uma meta, um lugar, e terminamos a última seção afirmando que a ele corresponde uma nova Civilização. Claro que este termo é problemático para quem sabe haver em Nietzsche uma tensão conceitual estrutural entre cultura (Kultur) e civilização (Zivilisation/Bildung), mas chamemos civilização à imagem ideal de sociedade de que as novas tábuas de Zaratustra seriam os alicerces. O que está em jogo neste termo, “Civilização”, já o sabemos: quem diz “Civilização” diz “Estado”; e em Nietzsche o “Estado” primordial se identifica justamente com a tarefa de atribuição de forma à massa amorfa da humanidade anímica.

...a inserção de uma população sem normas e sem freios numa forma estável, assim como tivera início com um ato de violência, foi levada a termo somente com atos de violência - que o mais antigo 'Estado', em conseqüência, apareceu como uma terrível tirania, uma maquinaria esmagadora e implacável, e assim prosseguiu seu trabalho, até que tal matéria-prima humana e semi-animal ficou não só amassada e maleável, mas também dotada de uma forma. Utilizei a palavra 'Estado': está claro a que me refiro - algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste modo começa a existir o 'Estado' na terra: penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que o fazia começar com um 'contrato'.[xxxix]

O “Estado” idealizável da Super-humanidade nietzscheana não seria o mesmo “Estado” do último homem, aquele que Zaratustra chama de “O Novo Ídolo” (neuen Götzen), do discurso homônimo. O Estado que Nietzsche (farto do nacionalismo wagneriano) tem diante de si é o Estado moderno, corresponde ao esfacelamento dos povos. Não por acaso este termo, Volk, ainda denota em Nietzsche uma unidade social de caráter mais ou menos autêntico, enquanto Staat, o Estado (o Estado moderno), denota uma unidade superestrutural artificial sem qualquer enraizamento naquela Vontade de Potência particular de cada povo.

Estado chama-se o mais frio dos monstros. Mente também friamente, e eis que mentira rasteira sai da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”. É uma mentira! Os que criaram os povos e suspenderam sobre eles uma fé e um amor, esses eram criadores: serviam a vida. Os que armam laços ao maior número e chamam a isso um Estado são destruidores; suspendem sobre si uma espada e mil apetites. Onde há ainda povo não se compreende o Estado, que é detestado como uma transgressão aos costumes e às leis. Eu vos dou este sinal: cada povo fala uma língua do bem e do mal, que o vizinho não compreende. Inventou a sua língua para os seus costumes e as suas leis. Mas o Estado mente em todas as línguas do bem e do mal, e em tudo quanto diz mente, tudo quanto tem roubou-o. Tudo nele é falso; morde com dentes roubados. Até as suas entranhas são falsas. Uma confusão das línguas do bem e do mal: é este o sinal do Estado.[xl]

Este caráter assinalado do Estado moderno se repete no “País da Civilização” (Lande der Bildung), que nada mais é do que “o país dos vasos coloridos” (die Heimat aller Farbentöpf), dos homens tornados sem consistência (discurso que serviria muito bem para uma crítica do multiculturalismo). Portanto, que se elimine da idealização de um “Estado” nietzscheano qualquer força que desfigure o ethnos, e que seja apenas uma confusão babilônica de unidades étnicas unidas por laços meramente jurídicos ou econômicos.

Eliminemos também de um tal “Estado” a ética burocrata que faz de toda empresa ou agente “estatal” um servidor do “bem-estar do povo”, pois, como sabemos, esta noção coletivista e utilitarista de sociedade é absolutamente contrária a uma sociologia nietzscheana. Se falamos na missão antropotécnica de uma nova Civilização, da forjadura de uma condição humana ontologicamente diferenciada, devemos excluir dos fundamentos da ação social filosoficamente orientada qualquer risco de torná-la refém de determinações hedonistas, utilitaristas ou eudemonistas.



Hedonismo, pessimismo, utilitarismo ou eudemonismo: todos esses modos de pensar, que têm por medida o prazer e o sofrimento, isto é, certos estados acessórios, são modos de pensar primitivos e ingênuos, que cada um que se sinta de posse de forças criadoras e de uma consciência artística olhará com ar de desprezo (…) O bem-estar, como o entendeis, não representa um fim, mas, pelo menos para nós, o fim! Significa um estado que acaba por tornar o homem ridículo e desprezível — que faz com que deseje a perdição. A escola da dor, da grande dor — não sabeis que esta escola permitiu ao homem atingir certas atitudes? Aquela tensão da alma na desventura, proveniente da própria força, os calafrios que o perpassam quando assiste a uma grande ruína, o engenho, a bravura que se demonstra no suportar, no perseverar, no interpretar, no desfrutar a desventura, tudo isso que a alma ganhou em profundidade, segredo, dissimulação, espírito, astúcia, grandeza, não há talvez conquistado sob o signo da dor, na escola da grande dor? No homem se encontram reunidos a criatura e o criador, no homem está a matéria, isto é, o incompleto, o supérfluo, isto é, a argila, o lodo, o absurdo, o caos, mas no homem também está o sopro que cria, que plasma, isto é, a dureza do martelo, quer dizer, o espectador, a divina contemplação do sétimo dia. Observai o contraste entre a vossa compaixão, que é a revolta da 'criatura que há no homem', isto é, aquilo que deve ser plasmado, estampado, batido como o ferro, afinado, passado pelo fogo e purificado — aquilo que deve e é constrangido a sofrer, e a nossa compaixão? Não adivinhais contra o que se revolta nossa compaixão, que se rebela contra a vossa, porque a vossa significa o resumo de toda debilidade? E então, compaixão contra compaixão! Mas, como já dissemos, existem problemas mais altos que aqueles que têm por objeto o prazer e o sofrimento e a compaixão e toda filosofia que se devesse ocupar exclusivamente disso seria sempre uma criancice.[xli]

A ascensão do Criador no homem, da força conformativa exercida pelo polo superior sobre o polo inferior, exige o Grande Desprezo (Grossen Verachtung) a que Zaratustra se refere desde seu primeiro discurso – desprezo tanto do “si” (desprezo da “felicidade” e afirmação do autossacrifício) e desprezo do homem figurado como a pedra irregular a ser batida. Duas “compaixões” rivalizam: a compaixão para com a massa amorfa, e que inutiliza o martelo, e a compaixão para com a força conformadora, que o impele adiante. O que poderíamos dizer acerca disto a não ser que Nietzsche fala do homem da perspectiva de quem está fora dele, acima do homem-criatura? “A minha ardente vontade de criar impele-me sempre de novo para os homens, assim como é impelido o martelo para a pedra. Ai, homens! Uma imagem dormita para mim na pedra, a imagem das minhas imagens”.[xlii]

Mas quem diz Civilização diz estabilidade. E aqui encontramos um empecilho heraclitiano a superar. Apenas para citar uma de suas recorrências:


Quando há madeiras estendidas sobre a água, quando há pontes e parapeitos através do rio, não se dá crédito a ninguém que diga: “Tudo corre”. Pelo contrário: até os imbecis o contradizem. “Que! — exclamam. — Tudo corre? Então as madeiras e os parapeitos que estão sobre o rio?” (…) O vento do degelo, um vento que não lavra, um touro furioso e destruidor que quebra o gelo, com hastes coléricas! O gelo, por sua parte, quebra as pontes! Ó! meus irmãos! Não corre agora tudo! Não cairam à água todos os parapeitos e todas as pontes![xliii]

Não há melhor maneira de assimilar este brilhante discurso de Zaratustra, repleto de simbologia, do que situando Nietzsche na crise transicional do Ocidente. Para dizê-lo simplesmente: em toda transição civilizacional os Zeitgeistern cantam que “tudo flui”, endossam a preponderância do movimento, da passagem e do fluxo perpétuo das coisas sobre a estabilidade e a fixidez. Cabe à genialidade dos Orientais (e dos Antigos) mostrar que ambos, movimento e estabilidade, não são excludentes. Ora, as imagens projetadas do futuro por Zaratustra são tecidas no jogo estrutural arquetípico entre estabilidade e instabilidade. Apenas a título de exemplo, citemos o belíssimo trecho no qual os leitores familiarizados com a simbologia tradicional saberão entrever, no símbolo da ilha, da terra firme cercada por águas, uma significação ao mesmo tempo hiperbórea e antropotécnica (civilizacional).

Os homens atuais, para quem há pouco se inclinava o meu coração, agora são-me estranhos e já não amo, pois, senão o país dos meus filhos, a terra incógnita entre mares longínquos: é essa que a minha vela deve, incessante, procurar.[xliv]

Os homens superiores, para Nietzsche, devem ser “criadores e educadores” de um novo tipo de homem, um tipo que, ontologicamente diferenciado, já não pode mais ser considerado simplesmente “homem”. Está claro que a independência, digamos, “política” do filósofo não permite que se elimine este caráter revolucionário, fundamental, de sua obra. O Supra-homem não pode surgir nas condições politicas Ocidentais que Nietzsche encontrava em torno de si, e que hoje se encontram agravadas. A nobreza da qual brotarão os exemplares da Super-humanidade não pode ser a elite burguesa e liberal, que se caracteriza rigorosamente pela mania (no sentido genuíno do termo) de reduzir tudo mediante critérios econômicos e utilitaristas (razão pela qual não poderiam ser conseguidos, igualmente, através do projeto de sociedade comunista, também caracterizado pelo economicismo, utilitarismo e coletivismo).

Ó! Meus irmãos! Ao ensinar-vos que deveis ser para mim criadores e educadores — semeadores do futuro — invisto-vos de uma nova pobreza; não é, na verdade, nobreza que possais comprar como bufarinheiros, e com ouro de bufarinheiros, porque tudo quanto tem preço, pouco valor tem.[xlv]


Mesmo com toda sua crítica ao Übermensch nietzscheano, Sri Aurobindo soube admitir, pontualmente, que o filósofo alemão “soube superar a si mesmo”. E de fato percebemos que, a despeito do caráter titânico do Übermensch, Nietzsche, ao atacar as bases da civilização moderna, abre caminho para a superação da mesma. Fica claro que partimos do pressuposto (examinado da perspectiva heideggeriana e tradicionalista) de que esta superação, a aquisição do estágio ontológico superior ao da presente “humanidade”, não pode se abster da tarefa de incluir o elemento do Espírito.[xlvi]


De fato, diz Sri Aurobindo, a insistência na vida material e econômica é uma reversão ao nosso estado e preocupação bárbaros com apenas a vida e a matéria. O desenvolvimento espiritual é deixado para trás e é por isso que a evolução está cheia de perigos; esse ressurgir do velho barbarismo material em uma forma civilizada significa que a ciência colocou à nossa disposição uma vida material que poderia cristalizar-se em uma 'vida social estável, confortável e mecanizada sem ideal ou cuidado'.[xlvii]

Um dos principais argumentos de Zaratustra contra a existência de “deuses” é o de que “se existissem deuses, o que mais restaria para criar?”, “Podes criar um deus? Então não me faleis em deuses!”. Para Sri Aurobindo, sim, é não apenas possível, como é destino dos homens parir os deuses conforme penetram na dimensão além da mente física. As imagens da Vida Divina visitam o homem constantemente por este motivo. “A evolução não terminou; a razão não é a última palavra e bem o animal racional a figura suprema da Natureza. Assim como o homem surgiu do animal, do mesmo modo, do homem surge o Supra-Homem”.[xlviii] 

Tanto a noção de Super-Humanidade de Nietzsche quanto a de Sri Aurobindo contém a ideia de que os olhos dos homens são os olhos da terra; suas mãos são as mãos da terra; sua vontade, em estado genuíno, despoluído, é a vontade da terraO homem traz dentro de si o sentido do ser de todos os animais. Há agora que levá-los à combustão na pira do sacrifício em que ele, homem, é a oferenda.  Todas as tradições concordariam que o homem é uma transição; seu lugar é Midgard, a “terra do meio”. Escreve Sri Aurobindo: “O homem se ergue entre o céu superior e a natureza inferior”. “O animal humano é o obscuro ponto de partida; o humano natural de hoje, diverso e emaranhado, é a metade do caminho; mas o homem supranatural é o destino luminoso e transcendental de nossa travessia humana”.[xlvix] 

Não há que poupar a “humanidade” do sofrimento necessário na travessia. “Aquele que não mata quando Deus o ordena ocasiona no mundo incalculável caos.”[l] É o fogo dos sacrifícios que faz surgir todas as manhãs a esperada Aurora. “A genialidade é o primeiro intento da Natureza para liberar o deus aprisionado no molde humano; o molde tem que sofrer no processo. É surpreendente que as fissuras sejam tão escassas e tão insignificantes”.[li]

Façamos a síntese crítica dos conteúdos que determinam a fisionomia dos Homens Superiores de Nietzsche e dos Seres Gnósticos de Sri Aurobindo, ambos tipos anunciadores de uma nova Aurora, tão esperada pelos antigos; mas não esqueçamos de transcender a plataforma titânica que o filósofo alemão somente em parte soube superar. O sentido do titanismo, da civilização tecnológica, depende de sua superação através da liberação da divindade; assim justificamos o passado no futuro. Libertemos os Deuses aprisionados na matéria. A saga da Supramente é a da superação do homem; e a construção da Civilização do Supra-Homem pode, ou melhor, deve ser concebida como ligada à construção de dutos capazes de conduzir os homens vindouros aos estados superiores da Consciência - sob o risco de, negligenciada tal necessidade, erigirmos uma Civilização meramente tecnocrática que não passa da realização dos sonhos do homem pequeno, da perpetuação ad infinitum da menor raça que já grassou sobre a terra.

Tal deve ser o heroísmo dos homens preparatórios. O heroísmo de Héracles, que liberou das correntes o titã Prometeu; Héracles, filho de Zeus e aliado dos deuses olímpicos.

Referências Bibliográficas



1. NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, 283.Expressão de Jean Beaufret.
2. NIETZSCHE, F. O Anticristo, III.
3. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. [Da Virtude Amesquinhadora].
4. SLOTERDIJK, 2000, p. 39.Idem, p. 40.
5. Idem, p. 40.
6. Ibidem.            
7. ibidem.
8. Ibidem.
9. Ibidem.
10. DELEUZE, J. Nietzsche e a Filosofia, Editora Rio, Rio de janeiro, 1976.
11. AUROBINDO. The Secret of the Veda. 2008, p. 295; tradução minha.
12. AUROBINDO. The Life Divine. Vol. 18, p. 126.
13. PRICE, J. Introdução à Filosofia de Sri Aurobindo. Sri Aurobindo Ashram Press, 1977, p. 22.
14. AUROBINDO. The Life Divine. Vol. 18, p. 84.PRICE, J. op. cit. p. 30.
15. AUROBINDO. op. cit. p. 3.AUROBINDO. op. cit. p. 188.
16. PRICE. op. cit. p. 36.AUROBINDO. op. cit. p. 713
17. PRICE. op. cit. p. 36.AUROBINDO, op. cit. p. 485-86.
18. AUROBINDO & ALFASSA. Pensamientos y aforismos de Sri Aurobindo. Bogotá, Colombia, 2013. p. 1. “Entre los seres del mundo supramental y los hombres existe más o menos la misma separación que entre los hombres y los animales. Hace algún tiempo tuve la experiencia de la identificación con la vida animal, y es un hecho que los animales no nos entienden; su conciencia está construida de tal manera que eludimos su comprensión casi por completo. Y aun así conocí animales domésticos –gatos y perros, pero sobre todo gatos– que hacían un esfuerzo de conciencia casi yóguico por alcanzarnos. Pero usualmente, cuando nos miran vivir, actuar, no entienden, no nos ven tal como somos, y sufren por nosotros. Somos un enigma constante para ellos.”
19. “Lemos em um de seus aforismos: “Até mesmo Vivekananda, no estresse da emoção, admitiu em certa ocasião a falácia de que seria demasiado imoral padecer a um Deus personificado e que seria o dever de todo bom homem resistir-lhe. Mas se uma Vontade Inteligente supramoral e onipresente governa o mundo, com toda segurança é impossível resistir a Ela; nossa resistência serviria apenas a Seus fins, e em realidade estaria sendo ditada por Ela. Então, ao invés de condená-la ou negá-la, não seria melhor estudá-la e entendê-la?”
20. AUROBINDO & ALFASSA. Pensamientos y aforismos de Sri Aurobindo. Bogotá, Colombia, 2013. p. 242.
21. PRICE. op. cit. p. 55.
22. AUROBINDO. op. cit. p. 984.
23. PRICE, op. cit. p. 52.
24. AUROBINDO & ALFASSA. op. cit. p. 238.
25. AUROBINDO. op. cit. pp. 1012-13.
21.AUROBINDO. op. cit. p. 969.
36. HUERTA, R. A. La Crítica de Sri Aurobindo al Superhombre de Nietzsche. Disponível em: http://www.geocities.ws/sapiencia.geo/superhombre.htm
37. A partir daqui, utilizaremos o termo Superman para nos referirmos ao Übermensch conforme interpretado por Sri Aurobindo.

38. Arya, Vol. I, No. 9 (Abril de 1915)Arya, Vol. I, No. 9 (Abril de 1915)
39. HUERTA, R. A. La Crítica de Sri Aurobindo al Superhombre de Nietzsche.
40. Arya, Vol. I, No. 9 (Abril de 1915)
41. HUERTA, R. A. La Crítica de Sri Aurobindo al Superhombre de Nietzsche. http://www.geocities.ws/sapiencia.geo/superhombre.htmArya, Vol. I, No. 9 (Abril de 1915)Arya, Vol. I, No. 9 (Abril de 1915)
42. NIETZSCHE, F. A Genealogia da Moral, 17.NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Do Novo Ídolo.
43. NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. 247.NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Nas Ilhas Bem-Aventuradas.
44. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Das Antigas e das Novas Tábuas, VIII.
45. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Do País da Civilização.
46. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Das Antigas e das Novas Tábuas, XII. “Somente um mundo espiritual garante ao povo sua grandeza. Pois ele força a constante decisão, entre a vontade de grandeza e o deixar livre curso à decadência, a se tornar a lei a ditar o passo à marcha que o nosso povo iniciou adentro à sua história futura.” (Heidegger)
47. AUROBINDO & ALFASSA. op. cit. p. 238.
48. AUROBINDO & ALFASSA. op. cit. p. 252.
49. AUROBINDO & ALFASSA. op. cit. p. 259.
50. AUROBINDO & ALFASSA. op. cit. p. 256.
51. PRICE, J. Introdução à Filosofia de Sri Aurobindo. Sri Aurobindo Ashram Press, 1977, p. 64.


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