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Forças Armadas Peronistas - Por que Somos Peronistas?

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por Forças Armadas Peronistas



Em 1945 o país estava em um período de progresso e ascensão econômica. Estava crescendo internamente, à medida que os centros industriais cresciam no interior do país e o governo podia contar com grandes reservas monetárias externamente. Esta situação geral tornou possível o aparecimento do fenômeno peronista, principalmente devido a três fatores:

1 - O aparecimento da indústria nacional, fruto da prosperidade geral, das condições do mercado internacional do pós-guerra e das condições do mercado interno devido à escassez de material manufaturado.
2 - Os inícios da penetração dos ianques como consequência do enfraquecimento do Império Britânico e da expansão da América do Norte.
3 - Migração interna. Como consequência do crescimento da indústria surgiu um novo proletariado urbano proveniente do interior do país de origem crioula, não politizado e numa situação de desorientação total. No entanto, apesar da prosperidade econômica florescente, a situação da classe trabalhadora era de exploração, condições de trabalho precárias e ausência de regulamentações trabalhistas, aposentadorias e proteção social.

O coronel Perón colocou-se à frente do movimento nacionalista - unido por setores da burguesia nacional e do exército - e a classe operária organizada com este novo proletariado urbano, tomando como bandeiras a defesa da indústria nacional nascente, a luta contra a penetração ianque e as exigências sociais da classe trabalhadora.

O 17 de outubro de 1945 foi a primeira ação de massas da classe operária argentina, foi o despertar político dos descamisados, foi o encontro do Povo com seu líder, que o elevou para que atingisse seu mais alto nível de consciência: a consciência de sua missão e destino históricos. Centenas de milhares de homens e mulheres foram mobilizados em massa para impor sua vontade e reconquistar o poder. Tivemos aqui a poderosa e nova força dos trabalhadores contra os valores obsoletos da oligarquia imperialista e exploradora.

O peronismo deve seu nascimento à erupção dos trabalhadores na vida nacional como co-participantes na construção da nova Argentina. No campo internacional significou o avanço dos países do Terceiro Mundo, que buscavam seu próprio caminho fora das duas potências hegemônicas.

A partir de 1945, o peronismo, como movimento antiimperialista, popular e nacionalista, iniciou o processo democrático burguês no país. No campo econômico representou a defesa da riqueza do país contra mãos estrangeiras. A dívida externa foi reembolsada (somando 40% de nossos recursos e reservas). Os transportes, gás, telefone e eletricidade foram nacionalizados. A nacionalização do Banco Central permitiu o uso da poupança nacional para o desenvolvimento do país. O preço dos materiais primários exportados e importados foi assegurado através do IAPI.

No entanto, as estruturas de poder oligárquico não foram modificadas em seus aspectos econômicos.

Uma série de reivindicações sociais autênticas foram expressas: os direitos dos trabalhadores, da família, dos idosos e o direito à educação foram regulamentados. A participação no governo foi concedida ao povo, concedendo o voto às mulheres e aos povos indígenas; A classe trabalhadora participava diretamente no poder político e havia ministros, governadores, deputados, senadores e diplomatas operários; A distribuição da renda nacional permitiu a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora. As proporções foram revertidas em favor dos trabalhadores, que recebiam 66% da renda nacional.

Politicamente, o proletariado recebeu consciência de classe e consciência de seu poder, e graças a isso a possibilidade de participar da liderança do país.

Os confrontos começaram com o desaparecimento das prósperas condições do pós-guerra. Houve luta de classes dentro do movimento peronista. O exército participou da industrialização, mas não com uma política socialmente progressista. A burguesia queria aumentar ainda mais seus próprios lucros, negociando com o imperialismo, e os burocratas não fizeram nada além de paralisar o processo. Diante deles, as "pequenas cabeças negras" e os "gordurosos" - como eles chamavam o povo - tendiam a radicalizar a política social. O aumento da consciência política exigiu o aprofundamento dos slogans e políticas nacionais revolucionários, bem como a participação dos trabalhadores nas decisões da liderança.

No entanto, a liderança do movimento permaneceu nas mãos da burguesia nacional todo-poderosa e da burocracia sindical e política. Sem combatividade de classe, sem a presença revolucionária de Evita, abundaram as conquistas fáceis. O Povo viveu a euforia do progresso ilimitado, não tomando consciência da necessidade de destruir as estruturas que sustentam a oligarquia e seus interesses, a fim de conseguir uma distribuição efetiva dos bens de produção. A democracia do movimento estava paralisada.

Foi assim que o processo foi paralisado e as forças anteriormente unidas em uma ampla frente anti-imperialista se dispensaram e se acabaram com um choque: a frente foi rompida.

Desde 1955 14 anos se passaram nos quais a minoria oligárquica assumiu o poder, espoliando o povo e Perón do governo. Neste 14 anos o peronismo instituiu uma luta nas frentes mais diversas para reconquistar o poder. Durante estes 14 anos os caminhos tomados não estiveram no ápice de sua condição revolucionária e tiveram em comum seu espontaneísmo. Eles foram: golpismo, eleitoralismo, burocracia reformista ou traidora usualmente em contato com comandantes militares, terrorismo e sabotagem, que só levaram a becos-sem-saída. As sucessivas crises militares, o triunfo militar, o massivo e popular triunfo do peronismo em 18 de março de 1962, a derrubada de Frondizi, a nova crise militar demonstraram isso.

O 18 de março demonstrou que a oligarquia não estava disposta a render o governo ou o poder por uma questão de mais ou menos votos. O golpe de 28 de junho de 1966 representou a continuação genuína da oligarquia, despida hoje de falsas máscaras pelas forças armadas que, nessa conjuntura, são a única estrutura capaz de defender efetivamente os interesses da oligarquia e do imperialismo.

A falta de uma ideologia coerente e de uma estratégia revolucionária que fornecesse um esquema, os distintos métodos separadamente empregados provocaram a dispersão atual do peronismo, e o levou à derrota várias vezes.

Mas estes anos de luta permitiram que ele aprendesse, permitiram ver que a situação da Argentina e do peronismo é aprte de um processo de libertação da América Latina. Estes anos de luta e rebelião permitiram a formação de um novo peronismo que tenta integrar todas as suas derrotas, todas as suas experiências.

Hoje, quando a burguesia é incapaz de liderar qualquer processo histórico revolucionário; hoje quando o processo se apresenta em termos inseparáveis da Revolução Social e da Libertação Nacional, a força histórica do peronismo como expressão da classe trabalhadora não pode ser igualada.

SOMOS PERONISTAS porque, crendo na força do peronismo, devemos continuar e aprofundar suas atividades segundo as novas demandas históricas e as novas conjunturas nacionais e internacionais.

SOMOS PERONISTAS porque existe uma continuidade clara entre a grandeza nacional iniciada pelo peronismo no governo e aquela que reaparecerá com novas e superiores formas de luta, tudo enquanto integramos estas com os estandartes de nossos primeiros dias. À estratégia contrarrevolucionária de opressão e miséria, de vergonha e privilégio do regime que existiu desde 1955, oporemos a estratégia revolucionária de tomar o poder pela luta armada.

Aqueles que veem em Perón um obstáculo para levar à frente a luta armada carecem da clareza de ver a continuidade histórica que existe entre o processo de 1945-1955, a busca pela estrada que leva ao poder nos últimos 14 anos, e o novo caminho através da luta revolucionária que o peronismo está iniciando e que é a culminação das duas fases anteriores.

SOMOS PERONISTAS e afirmamos o estandarte do retorno de Perón, porque esta é uma autêntica demanda popular. Porque para além da forma e da aparência, o povo não pede pelo retorno de um homem, mas do que ele encarna e é; sua participação na lidernaça do país.

Pois Perón é um fenômeno que não pode ser contido em qualquer sistema. A possibilidade de negociação entre Perón e o regime não tem existência real, e o significado de Perón na Argentina são os milhares e milhares de descamisados nas ruas. Por isso Perón e o peronismo são uma oposição inassimilável ao regime, e essa realidade é independente do próprio Perón.

SOMOS PERONISTAS e lutamos pelo retorno de Perón porque temos confiança no povo, sentimos com ele e não o consideramos como algo que possa ser conquistado por uma seita de iluminados. Só podemos ter um método: tomar as demandas do povo como nossa bandeira e aspirar a outras ainda maiores junto ao povo.

Che disse que não se deve se afastar demais do povo, nem se misturar totalmente com ele, deixando assim de ser a vanguarda. Fazer isso significaria não ver as necessidades reais do povo e assumir outras que até agora foram pura teoria e que o povo não sente ser suas. A segunda seria aceitar que Perón deve vir para fazer a revolução, sem explicar que apenas uma revolução em marcha pode trazer Perón.

SOMOS PERONISTAS e por causa disso afirmamos que da tuba do peronismo deve vir a Vanguarda Revolucionária capaz de liderar o Povo à única solução para o país e para a classe trabalhadora, A TOMADA POLÍTICA E ECONÔMICA DO PODER, para a criação de uma Argentina Justa, Livre e Soberana.

FORÇAS ARMADAS PERONISTAS
Argentina 1969

Aleksandr Bovdunov - Zbigniew Brzezinski: A Morte do Demiurgo

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por Aleksandr Bovdunov



Brzezinski morreu, mas continuamos a viver no mundo que ele criou

Zbignew Brzezinski está morto. Um proeminente globalista e atlantista deixou este mundo em 27 de maio de 2017. A morte foi anunciada primeiro por sua filha, a famosa apresentadora americana de TV Mika Brzezinski. Nos obituários subsequentes, apesar das diferentes cores ideológicas, a maioria ressaltou as notáveis habilidades intelectuais do morto, seu papel como conselheiro do presidente Carter de 1977 a 1981, e também sua contribuição significativa para o estudo das relações internacionais. Porém, Brzezinski não era apenas um cientista político ou estadista talentoso. Ele foi um dos arquitetos da ordem mundial existente em todos os seus aspectos: das estruturas globalistas influentes ao terrorismo internacional, do conceito de "totalitarismo" enfiado na mente de todo graduado nas faculdades de ciência política ao bloco sino-americano que pôs fim ao projeto soviético. Brzezinski foi de soldado a un dos generais da Guerra Fria, vencida pelos EUA

Geopolítica como Destino

Zbignew Brzezinski era um atlantista consistente. A escolha geopolítica a favor das Potências Marítimas, Grã-Bretanha, e posteriormente EUA, se tornou a questão principal no destino desse filho da Polônia. Como atlantista, ele era bastante consciente de que a principal ameaça aos planos de dominação mundial dos EUA era o poder continental da Rússia, e posteriormente o soviético. A confronto com a Rússia se tornou o sentido de sua vida. E mesmo após o colapso da URSS e do comunismo, Brzezinski se opôs radicalmente a todos os intentos imperiais de Moscou. Ao mesmo tempo, Brzezinski era um liberal consistente no sentido de que, em contraste com realistas nas relações internacionais, ele tinha o fator ideológico em alta conta, acreditava na necessidade de promover valores liberal-democráticos por todo o mundo e acreditava em uma utopia globalista. Brzezinski fundiu uma profunda compreensão da geopolítica (a mais brilhante obra "geopolítica", "O Grande Tabuleiro de Xadrez") e a adesão à abordagem liberal nas relações internacionais. Neste sentido, a Rússia era para ele o inimigo ideal, já que sua oposição ao Ocidente era causado não só por razões geopolíticas, mas não raro estava pintada em cores ideológicas. Quando Brzezinski disse amar a Rússia, ele não mentiu: em seus conceitos, ele deixava um lugar para ela, mas essa seria uma outra Rússia, com outra configuração territorial e orientação ideológica.

Avô do Terror

No esquema da doutrina do confronto com a Rússia durante a Guerra do Afeganistão, Brzezinski fez o possível para ressuscitar o islamismo militante das cinzas e voltá-lo contra os soviéticos. Ele se encontrou pessoalmente com seus líderes, inclusive com o bilionário saudita Osama bin Laden, e persuadiu o presidente Carter a apoiar os mujahideen no Afeganistão. O processo inaugurado por Brzezinski levou à emergência de um novo fenômeno no mundo islâmico, o terrorismo global. Islamistas educados pelos EUA se tornaram um novo fator nas relações internacionais, ultrapassando os terroristas esquerdistas e nacionalistas dos anos 70 em todos os sentidos. Posteriormente, quando os próprios EUA entraram em rota de colisão com este inimigo, Brzezinski afirmou que ele não se arrependia da escolha feita na virada da década de 80. Os islamistas esmagaram o principal inimigo ideológico e geopolítico dos EUA, a Rússia soviética, apesar de eles próprios representarem uma ameaça, mas uma menos perigosa do seu ponto de vista. 

Pai da Trilateral

Brzezinski foi um dos que esteve nas origens da Comissão Trilateral. Junto a David Rockefeller em 1973, ele se tornou um dos fundadores da instituição globalista cujo objetivo era unificar as elites políticas e econômicas dos EUA, Europa e Japão. É claro, o objetivo imediato era fortalecer laços entre os centros do pólo pró-americano (o chamado "Mundo Livre") do sistema mundial bipolar. Mas nem o próprio Brzezinski, nem Rockefeller ocultavam que o objetivo final era um mundo unificado sob controle da elite global. Em sua obra dos anos 70 "Entre as Duas Eras: O Papel Americano na Era Tecnocrática", Brzezinski justificou a necessidade de criar tais centros de reconciliação e governança global. De 1973 a 1976 ele foi o presidente da Comissão Trilateral. Este famoso cientista político também se uniu ao Conselho de Relações Exteriores (CFR) e ao Clube Bilderberg.

A Teoria do Totalitarismo

Junto a outro cientista político americano, Carl Joachim Friedrich, Brzezinski promoveu a popularização da teoria do "totalitarismo". Desenvolvendo as ideias de Hannah Arendt, que uniu os regimes nazista e comunista em uma única categoria, Brzezinski e Friedrich não obstante desafiaram a tese de Arendt de que os regimes totalitários estão opostos, em suas origens, às autocracias tradicionais. Para Brzezinski, o totalitarismo é uma das formas de autocracia que é característica da era industrial. Assim, o totalitarismo soviético era para ele não algo novo, alienígena à história da Rússia, mas uma continuação do Estado autocrático histórico. Por outro lado, essa posição demonstra o rigorismo liberal de Brzezinski que essencialmente introduziu a classificação dicotômica de "regimes democráticos contra todos os outros".

Tudo que não fosse uma democracia liberal neste sistema, a qual, apesar de críticas, era usualmente tomada como garantida pelo pensamento ocidental comum, era situado na mesma categoria que o fascismo e, assim, ostracizado.

Escolha Chinesa

Um dos principais sucessos de Brzezinski em política externa foi a continuação da política de aproximação com a China, começada sob Henry Kissinger. Como resultado, foram estabelecidas relações diplomáticas entre EUA e China e a RPC se tornou um aliado de facto dos EUA na Guerra Fria contra a URSS. No caso da China, Brzezinski preferiu seguir a lógica geopolítica, como potência da Rimland (NT: a periferia da Eurásia, a região circundante da Heartland), a China podia ser tanto atlantista como eurasiana, mas diferentemente da Rússia ela não controlava territórios significativos do continente eurasiático, primariamente a Heartland. Posteriormente nos anos 2000, Brzezinski falou nos "Dois Grandes", um sistema mundial dominado pelas duas potências, EUA e China, como uma alternativa interessante à atual instabilidade. É graças a Brzezinski (mas não só a ele) que hoje vivemos em um mundo onde muito depende das relações entre EUA e RPC. Os dois vencedores e aliados inevitavelmente chegam a uma concorrência global tal como os aliados anglo-americanos e a URSS após a Segunda Guerra Mundial.

Fantoche Negro

A mais recente contribuição de Brzezinski à política mundial foi a presidência de Obama. O geopolítico foi um auxiliar ao candidato presidencial negro, e após a campanha eleitoral Brzezinski foi às vezes chamado "o cardinal cinzento de Obama". Parece que este definitivamente tentou seguir as recomendações de um idoso cientista político, como expressadas por ele no livro "Segunda Chance: Três Presidentes e a Crise da Superpotência Americana". Em particular, a "Primavera Árabe" pode ser explicada pelas tentativas americanas de adotar o conceito de "despertar democrático global" de Brzezinski. Os EUa tentaram reorientar forças no mundo árabe que estavam insatisfeitas com o déficit de democracia em seus países na direção dos EUA e seus ideais liberais, apesar de esse déficit geralmente estar organizado por regimes pró-americanos. Em relação à Rússia nessa obra, Brzezinski propunha aplicar a estratégia de engagamento, integração em projetos ocidentais, que se tornou base do famoso "reset". Mas algo deu errado.

A reunificação russa com a Crimeia foi um ponto de virada, quando todos perceberam que não haveria engajamento real no futuro próximo. A Primavera Árabe terminou com uma nova onda de terror. Terroristas islâmicos sempre foram uns dos principais beneficiários das ideias de Brzezinski. A ascensão de Trump ao poder supostamente arruinou o velho homem. Segundo suas próprias palavras, ele não acreditava que isso poderia ocorrer. A China, apesar do encontro entre Trump e Xi Jinping organizado por seu amigo e adversário Henry Kissinger, é mais um competidor que um parceiro na divisão do mundo. Brzezinski morreu, deixando o mundo criado por ele em uma condição enfraquecida.

Morte do Pensamento

Com sua morte, toda uma era e estilo de pensamento se vão. Não. A russofobia e a abordagem geopolítica continuarão presentes por um longo tempo na política externa americana. É algo mais. Na segunda metade do século XX, pelo menos no que concerne a política externa, imigrantes europeus pensavam no lugar dos americanos: fossem pessoas nascidas na Europa e migradas para os EUA, como Kissinger ou Morgenthau, ou o próprio Brzezinski, ou com raras mas importantes exceções, como Samuel Huntington, eles eram representantes da diáspora judaico-americana, filhos de emigrantes da Europa, criados na cultura europeia. Isso se aplica a neoconservadores, adeptos do judeu alemão Leo Strauss. Mesmo Francis Fukuyama e seu "Fim da História" não poderiam existir sem a influência do estudante de Strauss Alan Bloom. Em outras palavras, o sucesso intelectual da velha e não-americanizada Europa, paradoxalmente, serviu para o sucesso americano. Com a partida de dinossauros como Brzezinski e Kissinger, este recurso se exaurirá. A velha geração de neocons também morre, e a nova só aprendeu com eles a amar Israel e odiar a Rússia, mas não a pensar. Se a América será capaz de começar a pensar com sua própria cabeça após a partida de sua elite intelectual em política externa de origem europeia é uma grande questão. 

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José Alsina Calvés - A Dimensão Coletiva do "Dasein"

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por José Alsina Calvés



O Dasein é, segundo Heidegger, o ser humano entendido como "ser-aí"

O que para o liberalismo é o indivíduo, para o marxismo é a classe social e para o neoliberalismo o "pós-indivíduo", quer dizer, o sujeito sobre o qual se assenta uma teoria política, para a Quarta Teoria Política (daqui para a frente QTP) é o Dasein. O Dasein é, segundo Heidegger, o ser humano entendido como "ser-aí", como único ente capaz de "perguntar pelo ser" e que é ao mesmo tempo ser-no-mundo, ser-no-tempo e ser-com-os-outros. Neste artigo nos concentraremos no Dasein e em explicitar sua dimensão coletiva e suas características existenciais que o diferenciam do sujeito cartesiano, que é o correlato metafísico do indivíduo como sujeito do liberalismo, primeira teoria política da modernidade.

Para tentar entender a ideia de Dasein devemos fazer um percurso pelo pensamento de Heidegger, desde o pressuposto "esquecimento do ser", que se produz nos albores da filosofia grega, a "pergunta pelo ser" e a analítica existencial do ser humano como preparação para o estudo da essência do ser ou ontologia.

Intuição e o "Esquecimento do Ser"

Para Heidegger, nos primórdios da filosofia grega (séculos VI a V a.C.), surge uma nova maneira do homem estar no mundo: pensar que as coisas são [1]. Estas primeiras respostas dadas a este problema contém gérmens de solução verdadeira [2], mas estas não se desenvolveram normalmente. Na exegese do ser, especialmente a partir de Platão, se desenvolveu um dogma que, não somente declarava supérflua a pergunta que interroga sobre o ser, mas sancionou a omissão da pergunta [3]. A filosofia tradicional, quer dizer, a tradição filosófica ocidental desde Platão, considerou o ser da totalidade das coisas que são, isto é, dos entes, e dessa maneira oblíqua de pensar o ser nasceu a metafísica. A essa entidade dos entes se deu diversas interpretações: ideia platônica, enteléquia aristotélica, cogitatio cartesiana, etc.

Mas o Ser não é somente o ser dos entes. Para poder pensar o Ser, segundo Heidegger, há que inverter tudo que foi pensado até agora, há que voltar À fonte originária e entender que o Ser não é uma propriedade dos entes, mas sim que estes são o que são no Ser e graças ao Ser.

A Metafísica, a partir de seu olhar oblíquo do Ser, se ocupou do ser dos entes. A tradução do termo grego Alétheia (desocultamento) para o latim veritas (verdade) foi o início da "falta de fundamento" do pensar ocidental. Porque Alétheia nomeia a experiência grega inicial do Ser: o estar aberto, em brilho, luz e esplendor, luzindo cada coisa a sua maneira. Junto a ela está Physis, o brotar do Ser, o surgir. A tradução de Physis simplesmente por natureza (daí Física e Fisiologia) e as interpretações das ciências nos arrancaram de nosso lugar na "natureza natural" e nos levaram a uma natureza "tecnicamente domesticada".

Heidegger interpreta a história da filosofia ocidental como uma história de decadência; mas não é uma decadência "clássica": origem, desenvolvimento, esplendor e decadência, mas sim uma decadência que está nas próprias origens, que é consubstancial. Essa ideia conecta Heidegger com os autores da chamada "Revolução Conservadora", que também interpretaram a história ocidental como a história da decadência, mas de uma decadência que já se apontava em suas próprias origens.

A tarefa que propõe Heidegger é uma tarefa autenticamente revolucionária. A crítica a toda a metafísica ocidental e a volta às origens para reconstruí-la. Essa tarefa tem um nome: a pergunta pelo Ser.

A Pergunta pelo Ser. O Ser e o Tempo

Em 1927, quando ainda é um jovem professor de filosofia praticamente desconhecido, publica Heidegger sua obra principal, Sein und Zeit (O Ser e o Tempo) onde desenvolve a "pergunta pelo Ser". Mas O Ser e o Tempo é uma obra inacabada: depois de denunciar o "esquecimento do Ser" e apresentar a "pergunta" Heidegger recorre ao método fenomenológico [4], desenvolvido por seu mestre Husserl, e nos diz que antes de desenvolver uma ontologia (o estudo do Ser) há que começar previamente por uma analítica existencial do ser humano, pois este é o único ente capaz de se perguntar pelo Ser, e, portanto, o que vive na proximidade do Ser.

O ser humano é Dasein (ser-aí) e Heidegger dedica à analítica desse Dasein a maior parte de seu livro, que termina justamente onde deveria começar a tratar propriamente de ontologia.

Na Introdução de O Ser e o Tempo Heidegger apresenta sua "pergunta pelo Ser" e trata de redefinir os três preconceitos que ocultaram as respostas a tal pergunta. A seu entender são três:

1 - O Ser é o mais universal dos conceitos [5]. Mas essa universalidade não é a do "gênero". O Ser é um "transcendente" e Aristóteles já o identificou como a unidade da analogia. A ontologia medieval discutiu o problema e finalmente Hegel definiu o Ser como "imediato indeterminado". A universalidade do conceito não significa que ele seja o mais claro, mas sim que ele é o mais obscuro.

2 - O conceito de Ser é indefinível. O Ser não pode ser concebido como um ente, não é suscetível a uma definição que o derive de conceitos mais elevados ou que o explique por mais baixos. Mas a indefinibilidade do Ser não dispensa da pergunta que interroga por seu sentido, ao contrário, ela o empurra justamente à ela.

3 - O Ser é o mais compreensível de todos os conceitos. Em todo conhecer de um ente se faz uso do termo "ser", e o termo é compreensível sem mais. Todo o mundo nos entende se falamos "o céu é azul". Mas essa suposta compreensibilidade de fato, revela incompreensibilidade: em todo ser de um ente há, na verdade, um enigma. O fato de vivermos uma certa compreensão do Ser e ao mesmo tempo que este esteja oculto na obscuridade prova a necessidade fundamental de formular a pergunta que interroga pelo sentido do Ser.

Superados estes três preconceitos Heidegger reitera sua pergunta pelo sentido do Ser. O primeiro progresso filosófico é entender que o Ser dos entes não é ele mesmo um ente. Faz-se necessário, portanto, uma forma peculiar de demonstrá-lo, que se diferencia do descobrimento dos entes [6]. Para prosseguir, Heidegger propõe um método: a fenomenologia.

Fenomenologia e Analítica Existencial

O termo "fenomenologia" remete a Husserl e a sua máxima "às coisas mesmas", mas não há que entendê-lo como uma divisa destinada a restaurar o realismo ingênuo [7]. Enuncia a vontade de excluir da filosofia os conceitos mal fundados e as construções gratuitas. Mas Heidegger não admite a ideia de Husserl de uma "filosofia sem pressupostos" e de alguma maneira "toma emprestado" seu método sem aceitar suas conclusões finais.

Para Heidegger a fenomenologia não designa o objeto da investigação, senão se limita a indicar como mostrar e tratar o que estamos estudando [8]. Fenomenologia é, pois, leitura ou ciência dos fenômenos [9], e por fenômeno entendemos tudo que de alguma maneira se manifesta. Manifestar-se um fenômeno não equivale forçosamente à aparição sensível: uma cultura, uma instituição política ou uma doutrina filosófica se "manifestam" de modo tão real quanto uma cor, mas de maneira distinta. O sentido kantiano de fenômeno como oposto ao "noumenon" ou "coisa-em-si"é rechaçado, pois não se considera o fenômeno como expressão deformada de algo oculto.

A fenomenologia é, para Heidegger, um método, é a forma de aceder ao que deve ser tema da ontologia, de tal modo que esta só é possível como fenomenologia [10]. Agora bem, este exame fenomenológico como propedêutico ao estudo do Ser deve fazer-se sobre um objeto determinado. Toda ontologia geral (o estudo do Ser) deve inaugurar-se como exame fenomenológico da existência humana, do Dasein.

O ser humano é o único ente capaz de se perguntar pelo Ser. O ser humano, para Heidegger, vive na proximidade do Ser. O ser humano se distingue da pedra, que "não tem mundo" e do animal, que é "pobre de mundo", na medida em que é "ser-no-mundo".

O Dasein não é um existente fixo, mas se caracteriza em seu ser pela relação permanente de instabilidade que mantém em si. O ser da existência humana nunca é coisa feita (salvo quando morre e deixa de ser). O Dasein é um existente cujo ser esta sempre posto em jogo [12], é fundamentalmente poder-ser.

Assentadas as premissas, Heidegger avança para a analítica existencial do ser humano como Dasein [13] ou Ser-aí.

O Dasein como Ser-no-Mundo

A primeira característica existencial que nos oferece o ser humano é sua característica de Ser-no-Mundo. As três características desse existencial são: o existir-em, o ser desse existente, e o mundo no qual este ser existe [14].

Normalmente, o termo 'em' designa uma relação de pertença. A águal está 'no' copo ou o banco está 'na' aula designam uma relação da coisa material e espacial. O livro está 'na' biblioteca, mas posto 'em' outro lugar, segue sendo livro. Mas no caso que nos ocupa o termo 'em' toma um significado distinto, uma relação que no estilo clássico chamaríamos transcendente. Quando se afirma que o Dasein está 'no' mundo se ultrapassa a simples situação de fato [15], pois não pode haver um 'eu' senão por e em uma relação com algo distinto do 'eu'. Falar de existência humana, quer dizer, de Dasein, implica falar em esforço, em conquista e em luta contra uma resistência que é ao mesmo tempo inimiga e aliada de nossa ipsiedade.

Este ser-em próprio do Dasein não deve ser visto como um atributo mais, porque não há nenhum momento em que se possa dizer que ainda não está no mundo [16]. Portanto, o ser-em é um constituinte fundamental e irredutível de nossa existência.

Tudo isso tem consequências imediatas. Não existe o ser humano "anterior" ao social. De fato, a própria ideia de "sociedade" como associação voluntária de indivíduos fica impugnada. O ser humano vive em "comunidade", anterior a qualquer existência individual. Ademais o ser-no-mundo implica comunidade com as coisas, mas também, e acima de tudo, com os outros Dasein. Tal como assinala Gil [17], Heidegger, a partir de 1933 e sem explicação prévia, começa a falar de Dasein do povo. Em realidade, o Dasein sempre teve um sentido coletivo e comunitário do ser-com-os-outros enquanto ser-no-mundo.

O Dasein não tem nada a ver com o indivíduo cartesiano ou com o "bom selvagem" de Rousseau. Em primeiro lugar, o Dasein não é uma "coisa" que pensa, não é um ser dado e concluso, mas sim um processo, existência, drama. Parafraseando Ortega ele "não tem natureza (mais que a biológica), mas história". Mas ao ser ser-no-mundo está enraizado em uma família, em uma comunidade, em um território, em uma tradição, em uma história. Não é anterior a essas realidades, ao contrário estas formam parte do mundo, e o Dasein é ser-no-mundo.

Ocupemo-nos agora do ser do existente. O verdadeiro existencial do ser-em é a preocupação [18], o que significa que a ligação fundamental do Dasein com o mundo se traduz no fato de que o Dasein não exite senão enquanto preocupado. Não deve, portanto, nos estranhar que o conhecimento que o Dasein trata de obter dos objetos e do mundo seja, em princípio, profundamente interessado. O saber começa por ser o útil do obrar.

Tudo isso leva o perigo de uma deformação. A preocupação com as coisas e com o mundo leva o Dasein a uma falsa interpretação de si mesmo: em lugar de fazê-lo a partir de sua existência no mundo, o faz a partir dos objetos que seu mundo contém. Daí a tendência ao coisismo, a interpretar a si mesmo como uma realidade conclusa, fechada. O Dasein se esquece do ser-no-mundo para centrar-se em seu mundo. O que é fundamental se dissipa na banalidade do dia-a-dia, e se acabamos sendo o que fazemos [19].

Vamos nos ocupar finalmente do que é este mundo no qual estamos [20]. O mundo não pode ser concebido pela soma dos objetos que contém, ao contrário é necessário explicar os objetos pelo mundo, e não o mundo por seus objetos. O objeto, como o Dasein, mas de maneira distinta, também é ser-no-mundo.

Em qualquer caso, o mundo não é apenas um mundo de objetos, mas é acima de tudo um mundo do Dasein, porque somente o ser humano enquanto Dasein é configurador do mundo [21]. Não há, pois, um ponto de partida absoluta para o estudo do mundo, além de que para conhecer o mundo há que partir do Dasein.

A Temporalidade do Dasein

A análise da temporalidade do Dasein leva a analítica existencial a seu ponto de culminação [22]. O ser do Dasein só pode ser entendido se contemplado como um drama que se desdobra pelo tempo (e não 'no' tempo), e é constituído por este tempo, tal como o tempo é constituído pelo Dasein [23]. A temporalização se manifesta na diversidade dos modos de ser. Inversamente, a diversidade no Dasein e os modos de ser. Inversamente, a diversidade no Dasein e nos modos de ser entranha uma diversidade nos modos de temporalização. 

A temporalidade é um fenômeno complexo. Há um tempo físico, um tempo biológico e um tempo histórico, e este último é o que nos interessa, pois é o que corresponde ao Dasein, que faz a história, e ao mesmo tempo se faz na história. O Dasein está na temporalidade, mas essa temporalidade depende do modo de ser o Dasein.

Na Modernidade domina um conceito do tempo linear, progressista e que tende a um "fim da história". Neste fim da história se acabarão as contradições e a "natureza" humana se revelará em toda sua plenitude. A história se vê como uma sem-razão, mas no fim dos tempos a razão prevalecerá sobre a história, e o ser humano, como "coisa", poderá manifestar suas verdadeiras essências, livre de limitações. É o último homem do qual falam Nietzsche e Fukuyama. Essa teoria do tempo resulta da combinação do tempo absoluto de Newton com a secularização da seta do tempo da escatologia cristã [24].

Mas há outras visões da temporalidade. Ela pode ser interpretada como involução ou decadência, pode ser concebida como ciclos que se repetem, ou pode ser entendida como uma esfera, na qual o tempo pode fluir em qualquer direção. De fato, não nenhuma evidência da linearidade da história, e menos ainda do suposto "progresso", e a própria história se encarregou de desbaratar as supostas "profecias" sobre seu fim.

Aprisionados no conceito moderno do tempo entendemos um evento histórico como algo que ocorre no tempo, e nós mesmos seríamos pontos que ocorrem no contínuo espaço-temporal. Mas a história é criada pela liberdade, o tempo da história não é o tempo da física e a produção humana não está 'na' história, senão é a história [25]. Fazemos a história a partir das decisões, e levamos a cabo projetos de futuro a partir do que já somos no passado, quer dizer, a partir de uma tradição.

Os Modos de ser do Dasein

Vimos que o Dasein é ser-no-mundo (o que implica ser-com-os-outros) e ser-no-tempo, o que implica sua historicidade e que sua "essência" coincida com sua "existência". Mas nos falta um elemento fundamental para entender o Dasein: sua possibilidade de existir de forma inautêntica e de forma autêntica.

A existência inautêntica do Dasein vem dada por sua submissão ao impessoal. Na vida quotidiana sofremos uma dependência radical em relação ao "outro". Mas quando nos perguntamos a quem estamos submetidos não sabemos responder. Este inominado tirano é o sujeito neutro, impessoal, o 'se' do "diz-se...", "fala-se...", "veste-se agora assim". O verdadeiro sujeito dessa existência quotidiana é este 'se' impessoal (em alemão Man) [26].

O impessoal rende culto à banalidade média. O nivelamento universal é procurado encarniçadamente e a propósito de tudo. O segredo e a personalidade são combatidos sem trégua; fomenta-se a instauração de uma existência "aberta", completamente difundida e exposta a "todos os ventos". Cada um se dissolve em todos os outros. 

Frente a este modo de ser inautêntico (mas totalmente real) se levanta o Dasein autêntico. A passagem do Dasein inautêntico ao autêntico vem dado pela angústia. A angústia desperta no Dasein quando este toma consciência de sua finitude, de ser um Ser-para-a-morte. O Dasein autêntico despreza o impessial e o palavrório quotidiano que o acompanha. Não se aparta do mundo nem da vida quotidiana, mas contempla esta desde outra perspectiva, pois desde sua consciência de ser-para-a-morte vê a vida quotidiana em sua radical insignificância.

Para que o Dasein possa "antecipar" sua morte ele deve ser capaz de "dirigir-se à" seu porvir, deve ser futuro. Não se coloca na situação de sua existência, senão torna presentes, dominando-os, os diversos elementos que determinam suas possibilidades em cada instante determinado, quer dizer, seu presente, seu porvir e seu passado. Não pode existir autenticamente senão aceitando o levar sobre si o peso de seu passado: deve reconhecer-se seu herdeiro [27].

Portanto, a existência é a que assume a dupla herança de seu abandono no mundo, e do que fez no mundo, quer dizer, seu passado mundano. A autenticidade é herdeira, sob pena de abdicar de sua resolução.

Na medida em que o Dasein está mais resoluto em sua existência e seja mais dono de seu patrimônio, tanto menos aparecerá o que faz ou o que suceda como efeito do azar. Se esquece seu passado abandonará as rédeas de seu destino.

O Dasein inautêntico, que esqueceu seu passado, renuncia ao exercício de sua liberdade real. Enredado ao longo de sua vida, deixa de ter um destino para se converter em uma "coisa" joguete das circunstâncias. 

Agora, sendo a existência humana existência em comum, que deriva do caráter de ser-no-mundo, tudo que podemos predicar do Dasein individual, é também aplicável ao Dasein coletivo, comunidade ou povo. Este também pode levar uma existência autêntica ou inautêntica. Assim o povo é para Heidegger "ser nós mesmos" [28].

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1 Soler, F. (1993) Prologo a Ciencia y Técnica de Martin Heidegger. Santiago de Chile, Editorial Universitaria.

2 De Waelhens, A. (1952) La filosofia de Martin Heidegger. Madrid, CSIC, Instituto “Luis Vives” de filosofía, p. 9.

3 Heidegger, M. (1998) El Ser y el Tiempo. Traducción de José Gaos. México, Madrid, Fondo de Cultura económica, p. 11-

4 La Fenomenología, desarrollada por Husserl, es un intento de filosofar sin presupuestos, de volver a “las cosas mismas”. Heidegger, aunque no acepta la posibilidad de filosofar si presupuestos, considera adecuado el método fenomenológico de reducción.

5 El Ser y el Tiempo, p. 12.

6 Idem, p. 16.

7 De Waelhens, obra citada, p. 18

8 El Ser y el Tiempo, p. 45.

9 De Waelhens, obra citada, p. 19.

10 El Ser y el Tiempo, p. 46.

11 Heidegger, M. (2007) Los conceptos fundamentales de la Metafísica: mundo, finitud, soledad. Madrid, Alianza Editorial, p. 251 i sig.

12 De Waelhels, obra citada, p. 30

13 El Ser y el Tiempo, p. 50.

14 De Waelhels, obra citada, p. 39. El Ser y el Tiempo, p. 65.

15 De Walhens, obra citada, p. 40. El Ser y el Tiempo, p. 66.

16 De Waelhens, obra citada, p. 41. El Ser y el Tiempo, p. 67.

17 Gil, E. (2014) Heidegger y la política. Madrid, Editorial Retorno, p. 121

18 De Waelhens, oba citda, p. 41.El Ser y el Tiempo, pp. 74-75

19 El Ser y el Tiempo, p. 75.

20 El Ser y el Tiempo, p. 76.

21 Heidegger, M. (2007) Los conceptos fundamentales de la metafísica: mundo, finitud, soledad. Madrid, Alianza Editorial, p. 332 (cap. Sexto)

22 De Walehens, obra citada, p. 189.

23 Dugin, A. (2013) La Cuarta Teoría Política. Barcelona, Ediciones Nueva República, p. 90

24 Alsina Calvés, J. (2015) Aportaciones a la Cuarta Teoría Política. Tarragona, Ediciones Fides, p. 31

25 Gil, obra citada, p. 45.

26 De Waelhens, obra citada, p. 75.

27 El Ser y el Tiempo, p. 414.

28 Heidegger, M. (1991) Lógica. Lecciones de Heidegger (semestre de verano de 1934) Legado de Heleb Weiss. Barcelona, Ed. Anthropos, p. 17.

Wan Fayhsal - A Ascensão do Precariado

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por Wan Fayhsal



Foi um pesadelo para muitos liberais, tanto nos EUA como no mundo, ver uma figura controversa como Donald Trump vencer as eleições presidenciais e ser posto no leme do país mais poderoso do planeta (1). Apesar da barragem de exercícios difamatórios organizada pela mídia de massas durante a corrida presidencial, Trump venceu e causou enorme incômodo ao conseguir arrebanhar os votos cruciais do público americano: o proletariado e a classe média dos estados do Cinturão da Ferrugem, o centro pelo qual a América se fez conhecer como uma grande nação industrial e manufatureira(2).

Muitos analistas políticos entenderam tudo errado, mas os sinais já estavam no horizonte há anos indicando a possível reviravolta social que levou à vitória de Trump. Se pudéssemos classificar os eleitores, como poderíamos descrevê-los melhor? Talvez a resposta esteja na nova classe social chamada de "precariado".

O que é e quem são o precariado?

Nas palavras do economista britânico Guy Standing, "precariado", derivado da palavra 'precário', é uma nova classe surgindo na força de trabalho que passa por privação, raiva, ansiedade e alienação constantes em seu trabalho. Há três importantes dimensões do trabalho que definem tais qualidades: relações de produção, distribuição e o Estado(3).

Em termos de suas relações de produção, o precariado está em um estado instabilidade laboral que vai de contratos flexíveis, trabalhos casuais, freelance, trabalho a tempo parcial até ter emprego intermitente. Todas essas relações resultam em uma identidade ocupacional insegura e uma narrativa pouco clara no que concerne sua carreira.

Do ponto de vista das relações de distribuição, o precariado se apoia apenas em salário monetário, privado de pensões, abonos de custos e benefícios médicos. Eles também perdem o que o proletariado usualmente possuía: os benefícios baseados em direitos segundo o modelo do Estado de bem-estar social. Conforme os salários ficam estagnados, o precariado normalmente recorre a pegar dinheiro emprestado de bancos ou quaisquer outras instituições financeiras informais para continuarem vivendo. Tamanho desespero só aprofunda seu problema e exacerba a desigualdade social ainda mais.

Em relação às relações do precariado com o Estado, seu modo de vida é similar ao de moradores mais do que ao de cidadãos portando direitos civis, culturais, políticos sociais e econômicos claros. Na verdade, segundo o professor Standing, eles estão rapidamente se tornando suplicantes do Estado demandando benefícios ou serviços prestados pelos burocratas.

O que os separa da classe trabalhadora comum chamada proletariado é que o precariado usualmente tem mais educação do que seu trabalho exige. Eles foram criados para fazer algo ligado a seu conhecimento e habilidades adquiridos de suas iniciativas educacionais, mas acabam fritando hamburguer em um restaurante de fast food ou se tornando mão-de-obra na economia informal, dirigindo Uber, por exemplo(4).

O Precariado e o Tsunami Político Antiglobalização

É seguro assumir que aqueles que votaram por Trump e pelo Brexit são em sua maioria do precariado. Eles possuem valores conservadores no sentido de ansiar pelos "bons e velhos tempos" quando seus países eram prósperos e possuíam empregos estáveis e benefícios sociais que estão agora desaparecendo cada vez mais rápido graças ao envio de empregos para o exterior e um número cada vez maior de imigrantes competindo no mercado de trabalho.

Por exemplo, nos EUA, a The Economist reportou que os impactos negativos da NAFTA sobre os empregos americanos são bem claros: entre 1999 e 2011, a América perdeu algo por volta de 6 milhões de empregos na indústria(5). Somado à ascensão da China na arena comercial global após se tornar membro da OMC, uma pesquisa feita por David Autor, David Dorn e Gordon Hanson concluiu que até 2.4 milhões de empregos na América podem ter se perdido, diretamente ou não, graças a importações mais baratas da China(6).

Todos esses trabalhadores que perderam seus empregos por causa dos fatores acima formam o grosso dos eleitores do Cinturão da Ferrugem cujas opiniões ressoavam com o chamado de Trump de tornar a América grande de novo trazendo empregos de volta para o antigo coração industrial americano.

Os mais jovens do precariado podem ter valores diferentes do precariado do Cinturão de Ferro de Trump, mas seu apoio a Bernie Sanders, que perdeu para Hillary Clinton as primárias presidenciais do Partido Democrata, indicou uma precariedade similar em relação a questões econômicas e laborais(7).

Uma das maiores preocupações entre o precariado jovem são os empréstimos estudantis. Segundo estatísticas oficiais dos EUA, quase 40 milhões de americanos estão em débito estudantil, o que equivale a 1.2 trilhão de dólares. Esse é o segundo nível de dívida mais alto depois das hipotecas.

O Movimento Occupy que emergiu em 2011 foi impulsionado por este tipo de ressentimento do precariado mais jovem que demandava maior responsabilidade e uma melhor distribuição de riqueza. O movimento afirmava representar os 99% do povo em seu protesto contra o 1%, consistindo nos banqueiros e capitalistas de Wall Street, normalmente culpados pela crise econômica cíclica, especialmente na recente questão de 2008 dos subprime.

O Precariado e Bilderberg

A noção de precariado não é mero discurso acadêmico, nem um fenômeno isolado ocorrendo apenas no Ocidente. Sua presença entre nós até virou as cabeças das elites que governam e moldam a direção de nossa política e economia globais.

A 64ª Conferência Bilderberg, uma reunião elitista de líderes globais e capitães corporativos realizada em Dresden, Alemanha de 9 a 12 de junho de 2016 colocou a questão do "precariado e classe média" na agenda do ano. Chamada por alguns de a "Davos secreta" graças à natureza de seu encontro envolto em mistério e exclusividade, a conferência é um duro contraste a sua contraparte mais ilustre e espalhafatosa no Fórum Econômico Mundial(8).

A conferência de Bilderberg é conhecida por abordar grandes questões que moldam as tendências da política e economia internacionais. Uma reunião anual iniciada em 1964 ela foi projetada para fomentar diálogo entre Europa e América do Norte reunindo líderes nacionais, especialistas da indústria, das finanças, da academia e da mídia para participarem de discussões sobre grandes questões giados pela Regra da Casa Chatham(9).

O resultado das conferências não era relatado e só recentemente passou a se emitir um press release sobre a agenda das conferências e sua lista de participantes. Com o precariado posto na agenda desse ano da Bilderberg, o problema agora está sendo devidamente reconhecido pelos membros que consistem fundamentalmente no topo dos 1% possuem influência maciça em nosso mundo hoje(10).

Como a economia mundial permanece em crise e a desigualdade de renda aumenta globalmente, como relatado pelo Relatório de 2016 da Credit Suisse(11), a ascensão do precariado não estará mais confinada ao hemisfério norte. Ao contrário, ela será contagiosa para outras partes do mundo, especialmente entre economias emergentes já que seu modelo de desenvolvimento permanece similar ao das nações desenvolvidas onde o precariado primeiro emergiu.

Já é hora de cada governo na Eurásia prestar mais atenção a essa classe emergente, do contrário a estabilidade política das nações vai se reduzir dia após dia, tal como a do precariado o qual, caso não gerenciado, se tornará uma força política a se ter em conta, como demonstrado recentemente nos EUA e Grã-Bretanha.

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1 Zakaria, Fareed. From Wealth to Power: The Unusual Origins of America's World Role. Princeton, N.J: Princeton University Press, 1998.

2 Brownstein, Ronald. “How the Rustbelt Paved Trump's Road to Victory”. The Atlantic. http://www.theatlantic.com/politics/archive/2016/11/trumps-road-to-victory/507203/ (accessed January 1st 2017); Tão cedo quanto julho de 2016, Michael Moore, o cineasta americana renomado por sua crítica às políticas doméstica e externa dos EUA previu a vitória de Trump e apontou o fator do Cinturão da Ferrugem como uma de suas principais razões. Ver Rosenmann, Alexandra. “Michael Moore Gives 5 Scary Reasons Why Trump Will Win”. Alternet. http://www.alternet.org/election-2016/michael-moores-5-reasons-why-trump-will-win (accessed January 1st 2017); ver também Mellon, Steve. After the Smoke Clears: Struggling to Get by in Rustbelt America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2002.

3 Standing, Guy. The Precariat: The New Dangerous Class. London: Bloomsbury Academic, 2016. p11-40.

4 Standing, The Precariat. p159. Para uma projeção geral da natureza cambiante do trabalho na era da revolução tecnológica e especialmente da automação, pesquisar também em Avent, Ryan. The Wealth of Humans: Work, Power, and Status in the Twenty-First Century. New York: St. Martin’s Press, 2016.

5 The Economist. “Free Trade in America: Open Argument”. The Economist. http://www.economist.com/news/leaders/21695879-case-free-trade-overwhelming-losers-need-more-help-open-argument. (accessed 1st January 2017)

6 David, H., David Dorn, and Gordon H. Hanson. "The China syndrome: Local labor market effects of import competition in the United States." The American Economic Review 103, no. 6 (2013): 2121-2168.

7 O candidato presidencial democrata derrotado Bernie Sanders era apontado por muitos como o melhor candidato para enfrentar Trump na disputa pelos corações e mentes dos eleitores do Cinturão da Ferrugem graças à natureza e foco da campanha de Sanders, bem como de seu ativismo de longa data. Ver Gabatt, Adam. “Former Occupy Wall Street protesters rally around Bernie Sanders campaign”. The Guardian. https://www.theguardian.com/us-news/2015/sep/17/occupy-wall-street-protesters-bernie-sanders. (accessed 1st January 2017).

8 Em seu press release oficial, o 64º Encontro Bilderberg delineou o “precariado e a classe média” como parte de sua agenda de discussão. Ver Bilderberg, “Press Release”, Bilderbergmeeting.org.http://www.bilderbergmeetings.org/press-release.html (accessed 1st January 2017)

9 Para um tratamento acadêmico de Bilderberg, ver Richardson, Ian, Andrew Kakabadse, and Nada Kakabadse. Bilderberg People: Elite Power and Consensus in World Affairs. Abingdon, Oxon: Routledge, 2011.

10 Ver Jeffers, H P. The Bilderberg Conspiracy: Inside the World's Most Powerful Secret Society. New York: Citadel Press, 2009. Estulin, Daniel. The True Story of the Bilderberg Group. Walterville, OR: TrineDay, 2009.

11 Suisse, Credit. Global Wealth Report 2016. Zurich, Switzerland: Credit Suisse AG, Research Institute, 2016.

Jack London - O que a vida significa para mim

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por Jack London



Nasci na classe trabalhadora. Cedo descobri o entusiasmo, a ambição e os ideais; e satisfazê-los tornou-se o problema da minha infância. Meu ambiente era cru, áspero e rude. Não via nenhuma perspectiva ao meu redor, por isso, o melhor era olhar para cima. Meu lugar na sociedade era nos fundos. Aqui a vida não oferecia nada, além de sordidez e miséria, tanto para o corpo como para o espírito. Por aqui corpo e espírito andavam famintos e atormentados.

Acima de mim se erguia o imenso edifício da sociedade e, em minha mente, a única saída era para cima. Logo resolvi subir. Lá em cima, os homens vestiam ternos pretos e camisas engomadas e as mulheres usavam vestidos lindos. Havia também coisas boas para comer e muita fartura. Abundância para o corpo. Depois havia as coisas do espírito. Acima de mim, eu sabia, havia despojamento do espírito, pensamentos puros e nobres e uma vida intelectual intensa. Eu conhecia tudo isto porque lera romances na biblioteca Seaside, nos quais, com exceção dos vilões e dos aventureiros, todos os homens e mulheres tinham pensamentos puros, falavam uma linguagem bonita e realizavam ações generosas. Em resumo, assim como eu aceitava o nascer do Sol, aceitava que acima de mim estava tudo o que era fino, nobre e belo, tudo o que dá decência e dignidade à vida, tudo o que faz a vida valer a pena e recompensa um homem por seu sofrimento e esforço.

Mas não é muito fácil para um homem ascender e sair da classe trabalhadora - especialmente se está cheio de ambições e ideais. Eu vivia num rancho na Califórnia, e era duro descobrir o caminho para subir. Cedo quis saber qual a taxa de juros do dinheiro aplicado, e preocupava meu cérebro de criança a compreensão das virtudes e excelências desta notável invenção do homem, os juros compostos. Mais tarde conheci os níveis de salário praticados para trabalhadores de todas as idades, e o custo de vida. Com todos estes dados, conclui que, se começasse imediatamente, trabalhasse e poupasse até os cinquenta anos, poderia parar de trabalhar e desfrutar de uma pequena porção das delícias e maravilhas que estariam a meu alcance um pouco acima na sociedade. E, claro, decidi não me casar, ao mesmo tempo em que me esquecia inteiramente de considerar esta grande causa da catástrofe no universo da classe trabalhadora - a doença.

Mas a vida que havia em mim exigia mais que uma pobre existência de restos e de escassez. Aos dez anos de idade, tornei-me jornaleiro nas ruas da cidade e descobri uma nova perspectiva. Tudo ao meu redor estava impregnado da mesma sordidez e desgraça, e acima de mim existia ainda o mesmo paraíso, esperando para ser conquistado. Mas o caminho para subir era diferente. Era o mundo dos negócios. Por que poupar meus ganhos e investir em papéis do governo quando, comprando dois jornais por cinco centavos, num piscar de olhos, podia vendê-los por dez e dobrar meu capital? O mundo dos negócios era para mim o meio de subir na vida, e eu me via como negociante quadrado e bem-sucedido.

Ai das visões! Quando tinha dezesseis anos me chamavam de “príncipe”. Este título me foi dado por uma gangue de assassinos e ladrões, que me chamavam de “O príncipe dos piratas de água doce”.

Naquele tempo eu tinha galgado o primeiro degrau no mundo dos negócios. Era um capitalista. Possuía um barco e uma tripulação completa de piratas de água doce. Tinha começado a explorar meus semelhantes. Toda uma equipe estava sob meu comando. Como capitão e dono, ficava com dois terços do dinheiro e dava à tripulação o outro terço, embora eles trabalhassem tão duro quanto eu e arriscassem tanto quanto eu suas vidas e sua liberdade.

Este degrau foi o último que subi no mundo dos negócios. Uma noite, participei de um assalto a pescadores chineses. Suas linhas e redes valiam dólares e centavos. Era um roubo, claro, mas era este precisamente o espírito do capitalista. O capitalismo toma os bens de seus semelhantes a título de reembolso, traindo a confiança ou comprando senadores e juizes de tribunais superiores. Eu era apenas mais grosseiro. Essa era a única diferença. Eu usava um revólver.

Mas, naquela noite, minha equipe agiu como aqueles incompetentes que o capitalista está acostumado a fulminar, sem dúvida porque estes incompetentes aumentam os custos e reduzem os lucros. Minha quadrilha fez as duas coisas. Por falta de cuidado, tocou fogo na vela principal, destruindo-a totalmente. Não houve lucro aquela noite, e os pescadores chineses ficaram mais ricos pelas redes e linhas que não pagamos. Eu estava arruinado, sem condições sequer de pagar sessenta e cinco dólares por uma nova vela principal. Deixei meu barco ancorado e saí num barco de piratas na baía para uma viagem de saques pelo rio Sacramento. Enquanto estava fora, outro bando de piratas da baía saqueou meu barco. Roubaram tudo, até mesmo as âncoras; e mais tarde, quando recuperei o casco abandonado, obtive apenas vinte dólares por ele. Tinha descido o primeiro degrau galgado, e nunca mais tentei o caminho dos negócios.

Desde então fui implacavelmente explorado por outros capitalistas. Tinha força física, e eles faziam dinheiro com isso enquanto que, apesar do meu esforço, eu levava uma vida banal. Fui marinheiro, estivador e grumete. Trabalhei em fábricas de enlatados, indústrias e lavanderias. Cortei grama, limpei tapetes e lavei janelas. E não ganhava nunca o produto inteiro do meu trabalho. Olhava para a filha do dono da fábrica de enlatados, em sua carruagem, e sabia que eram meus músculos que ajudavam a empurrar aquela carruagem em seus pneus de borracha. Via o filho do industrial indo para a escola e sabia que era em parte a minha força que ajudava a pagar seu vinho e suas boas amizades.

Mas não ficava ressentido com isso. Fazia parte do jogo. Eles eram a força. Muito bem, eu era forte. Podia cavar um lugar entre eles e fazer dinheiro com a força de outros homens. Não tinha medo do trabalho. E quanto mais duro, melhor, mais me agradava. Gostaria de me entregar ao trabalho, trabalhar mais do que nunca e, eventualmente, me tornar um pilar da sociedade.

E a essa altura, com a sorte que eu gostaria de ter, descobri um patrão com a mesma mentalidade. Eu estava querendo trabalhar, e ele estava mais que querendo que eu trabalhasse. Pensei que estava aprendendo um ofício. Na realidade, havia substituído dois homens. Pensei que ele estava fazendo de mim um eletricista; de fato, estava ganhando, comigo, cinquenta dólares a mais por mês. Os dois homens que eu substituíra recebiam quarenta dólares por mês cada um, enquanto eu fazia o trabalho dos dois por trinta dólares.

Este patrão me fez trabalhar até a morte. Um homem pode adorar ostras, mas ostras demais vão deixá-lo enfastiado. E assim foi comigo. O excesso de trabalho me deixou doente. Eu não queria mais ver trabalho. Abandonei o emprego. Tornei-me um vagabundo, mendigando de porta em porta, perambulando pelos EUA e suando sangue em favelas e prisões.

Eu nascera na classe operária, e agora, aos dezoito anos, estava abaixo do ponto em que tinha começado. Caíra nos porões da sociedade, jogado no subterrâneo da miséria sobre o qual não é agradável nem digno falar: estava no fosso, no abismo, no esgoto humano, no matadouro, na capela mortuária da nossa civilização. Esta é a parte do edifício social que a sociedade prefere esquecer. A falta de espaço me leva aqui a ignorá-la, e devo dizer apenas que as coisas que vi lá me deram um medo terrível.

Estava apavorado até a alma. Vi a nu a complicada civilização em que vivia. A vida era uma questão de abrigo e de comida. Para conseguir abrigo e comida os homens vendem coisas. O comerciante vende seus sapatos, o político vende seu humanismo e o representante do povo, com exceções, é claro, vende sua credibilidade, enquanto quase todos vendem sua honra. As mulheres também, nas ruas ou na sagrada relação do casamento, estão prontas a vender seus corpos. Todas as coisas são mercadorias, todas as pessoas são compradas e vendidas. A primeira coisa que o trabalhador tem para vender é a força física. A honra do operariado não tem preço no mercado. O operariado tem músculos e somente músculos para vender.

Mas há uma diferença, uma diferença vital. Sapatos, credibilidade e honra têm como se renovar. Constituem estoques imperecíveis. Mas os músculos, estes não se renovam. Quando um comerciante vende seus sapatos, repõe o estoque. Mas não há como repor o estoque de energia do trabalhador. Quanto mais vende sua força, menos sobra para si. A força física é sua única mercadoria, e a cada dia seu estoque diminui. No fim, se não morreu antes, vendeu tudo e fechou as portas. Está arruinado fisicamente e nada lhe restou senão descer aos porões da sociedade e morrer na miséria.

Aprendi, ainda, que o cérebro também é uma mercadoria, ainda que diferente dos músculos. Um vendedor do cérebro está apenas no começo quando tem cinquenta ou sessenta anos, e seus produtos atingem preços mais altos do que nunca. Mas um operário está esgotado e alquebrado com quarenta e cinco ou cinquenta anos. Eu tinha estado nos porões da sociedade e não gostava do lugar para morar. Os canos e bueiros eram insalubres e o ar, ruim para respirar. Se não podia morar no andar de luxo da sociedade, podia, pelo menos, tentar a mansarda. Ela existia, a comida lá era escassa, mas pelo menos o ar era puro. Assim, resolvi não vender mais meus músculos e me tornar um vendedor de cérebro.

Começou então uma frenética perseguição ao conhecimento. Voltei para a Califórnia e mergulhei nos livros. Como me preparava para ser um mercador da inteligência, achei que devia me aprofundar em Sociologia. Assim, eu descobri, num certo tipo de livros, formulados cientificamente, os conceitos sociológicos simples que eu tinha tentado descobrir por mim mesmo. Outras grandes mentes, antes que eu tivesse nascido, tinham elaborado tudo que eu havia pensado e muitas coisas mais. Eu descobri que era um socialista.

Os socialistas eram revolucionários, porque lutavam para derrubar a sociedade do presente e tirar dela material para construir a sociedade do futuro. Eu, também, era um socialista e revolucionário. Liguei-me a grupos de trabalhadores e intelectuais revolucionários, e pela primeira vez entrei na vida intelectual. Aí descobri mentes aguçadas e cabeças brilhantes. Encontrei cérebros fortes e atentos, além de trabalhadores calejados; pregadores de mente muito aberta em seu cristianismo para pertencer a qualquer congregação de adoradores do dinheiro; professores torturados na roda da subserviência universitária à classe dominante e dispensados porque eram ágeis com o conhecimento que se esforçavam por aplicar às questões maiores da Humanidade.

Descobri, também, uma fé calorosa no ser humano, um idealismo apaixonante, a suavidade do despojamento, renúncia e martírio - todas as esplêndidas e comoventes qualidades do espírito. Naquele meio, a vida era honesta, nobre e intensa. Naquele meio, a vida se reabilitava, tornava-se maravilhosa. E eu estava alegre por estar vivo. Mantinha contato com grandes almas que punham o corpo e o espírito acima de dólares e centavos, e para quem o gemido fraco de crianças famintas das favelas vale mais do que toda a pompa e circunstância da expansão do comércio e do império mundial. Tudo à minha volta era nobreza de propósitos e heroísmo; meus dias e noites eram de sol e de estrelas brilhantes; tudo calor e frescor, como o Santo

Graal, o próprio Graal do Cristo, o ser humano caloroso, conformado e maltratado, mas pronto para ser resgatado e salvo no final, sempre ardente e resplandecente, diante de meus olhos.

E eu, pobre tolo, julgava ser aquilo apenas uma amostra das delícias de viver que eu deveria descobrir acima de mim na sociedade. Tinha perdido muitas ilusões desde os dias em que lera os romances da biblioteca Seaside, no rancho da Califórnia. E estava destinado a perder muitas das ilusões que me restavam.

Como mercador da inteligência, fui um sucesso. A sociedade abriu suas portas para mim. Entrei direto no andar de luxo; mas meu desencanto foi rápido. Sentei-me para jantar com os senhores da sociedade e com as esposas e mulheres dos donos da sociedade. As mulheres se vestiam muito bem, admito; mas para minha ingênua surpresa percebi que eram feitas do mesmo barro que todas as outras mulheres que eu tinha conhecido lá embaixo, nos porões. A esposa do coronel e Judy O’Grady eram irmãs sob suas peles e seus vestidos.

Não foi isto, porém, mas seu materialismo, o que mais me chocou. É verdade que estas mulheres lindas, ricamente vestidas tagarelavam sobre singelos ideais e pequenos moralismos; mas, ao contrário do teor de sua conversa mole, a tônica da vida que levavam era materialista. E como eram egoístas sentimentalmente. Contribuíam de todas as formas para pequenas caridades e se informavam sobre a realidade, mas, o tempo todo, os alimentos que comiam e as belas roupas que vestiam eram comprados com os lucros manchados pelo sangue do trabalho infantil, do trabalho exaustivo e mesmo da prostituição. Quando mencionei tais fatos, esperando em minha inocência que aquelas irmãs de Judy O’Grady arrancassem fora de uma vez suas sedas e joias tingidas de sangue, ficaram furiosas e excitadas, e leram para mim pregações sobre o desperdício, a bebida e a depravação inata que causavam toda a miséria nos porões da sociedade. Quando disse que não podia perceber bem qual era a falta de economia, a intemperança e a depravação de crianças quase famintas de seis anos que faziam trabalhar doze horas por noite numa fiação de algodão sulista, aquelas irmãs de Judy O’Grady atacaram minha vida pessoal e me chamaram de “agitador” - embora isto, na verdade, reforçasse meus argumentos.

Não me dei melhor com os senhores da sociedade. Esperava encontrar homens honestos, nobres e vivos cujos ideais fossem honestos, nobres e vivos. Andei com homens que estavam nos lugares mais altos - os pregadores, os políticos, os homens de negócios, professores e editores. Comi carne com eles, tomei vinho com eles, andei de automóvel com eles e estudei com eles. É verdade, encontrei muitos que eram honestos e nobres; mas, com raras exceções, não estavam vivos. Realmente acredito que poderia contar as exceções com os dedos das minhas mãos. Quando não estavam mortos pela podridão moral, atolados na vida suja, eram apenas a morte insepulta - como múmias bem preservadas, mas não vivas. Neste sentido, poderia especialmente citar professores que conheci, homens que vivem de acordo com o decadente ideal universitário, “a perseguição sem paixão da inteligência sem paixão”.

Conheci homens que invocavam o nome do Príncipe da Paz em seus discursos contra a guerra e que botaram nas mãos dos Pinkertons rifles que abateram grevistas em suas próprias fábricas. Encontrei homens incoerentes, indignados com a brutalidade de lutas de boxe e pugilismo, e que, ao mesmo tempo, participavam da adulteração de alimentos que a cada ano matam mais bebês do que qualquer Herodes de mãos rubras jamais havia matado.

Em hotéis, clubes, casas e vagões de luxo, em cadeiras de navios a vapor, conversei com capitães de indústria e me espantou como eram pouco viajados nos domínios do intelecto. Por outro lado, descobri que sua inteligência para negócios era excepcionalmente desenvolvida. Descobri também que sua moralidade, quando há negócios envolvidos, nada vale.

O delicado, destacado e aristocrático cavalheiro era um testa de ferro de corporações que secretamente roubavam viúvas e órfãos. Este cavalheiro, que colecionava edições de luxo e era patrocinador especial da literatura, pagou chantagem a um chefão político de queixo duro e sobrancelhas escuras da máquina municipal. Este editor, que publicou propaganda de medicamentos licenciados e não ousou divulgar a verdade em seu jornal sobre os mesmos medicamentos, com medo de perder o anunciante, me chamou de canalha demagogo porque lhe disse que sua economia política era antiquada e sua biologia, contemporânea de Plínio.

Este senador fora a ferramenta e escravo, o pequeno fantoche de uma máquina indecente e ignorante de um chefão político; assim eram o governador e seu juiz no Tribunal de Justiça; e todos os três tinham passes para viajar de graça na estrada de ferro. Este homem, falando seriamente sobre as belezas do idealismo e a bondade de Deus, acabara de trair seus camaradas numa questão de negócios. Aquele outro, pilar da igreja e grande contribuinte de missões no exterior, obrigava as garotas de suas lojas a trabalhar dez horas por dia por um salário de fome e, portanto, encorajava diretamente a prostituição. Este homem, que dá dinheiro à universidade, comete perjúrio em tribunais por causa de dólares e centavos. E o grande magnata da estrada de ferro quebrou sua palavra de cavalheiro e cristão quando admitiu abatimentos secretos para um de dois capitães de indústria empenhados numa luta de morte.

Era a mesma coisa em todo lugar, crime e traição, traição e crime - homens que estavam vivos não eram honestos nem nobres; homens que eram honestos e nobres não estavam vivos. E havia uma grande massa sem esperanças, nem nobre nem viva, mas simplesmente honesta. Esta não podia errar, positiva ou deliberadamente; mas errava de maneira passiva e ignorante ao concordar com a imoralidade generalizada e com os lucros que ela produz. Se fosse nobre e viva, não seria ignorante, e teria se recusado a dividir os lucros do crime e da traição.

Percebi que não gostava de viver no andar de luxo da sociedade. Intelectualmente era aborrecido. Moralmente e espiritualmente, eu me sentia enojado. Lembrava-me de meus intelectuais e idealistas, meus pregadores sem hábito, professores desempregados e trabalhadores honestos com consciência de classe. Lembrava meus dias e noites de sol e estrelas brilhando, quando a vida era uma maravilha doce e selvagem, um paraíso espiritual de aventuras não-egoístas e um romance ético. E diante de mim, sempre resplandecente e excitante, vislumbrava o Sagrado.

Então, voltei à classe operária, na qual havia nascido e à qual pertencia. Não me preocupava mais em subir. O imponente edifício da sociedade não reserva delícias para mim acima da minha cabeça. São os alicerces do edifício que me interessam. Lá, contente de trabalhar, de ferramenta na mão, ombro a ombro com intelectuais, idealistas e operários com consciência de classe, reunindo uma força sólida agora para fazer mais uma vez o edifício inteiro balançar. Algum dia, quando tivermos mais mãos e alavancas para trabalhar, vamos derrubá-lo, com toda sua vida podre e sua morte insepulta, seu egoísmo monstruoso e seu materialismo estúpido. Então vamos limpar os porões e construir uma nova moradia para a espécie humana, onde não haverá andar de luxo, na qual todos os quartos serão claros e arejados, e onde o ar para respirar será limpo, nobre e vivo.

Esta é a minha perspectiva. Vejo à frente um tempo em que o homem deverá caminhar para alguma coisa mais valiosa e mais elevada que seu estômago, quando haverá maiores estímulos para levar os homens à ação do que o incentivo de hoje, que é o incentivo do estômago. Conservo minha crença na nobreza e na excelência da Humanidade. Acredito que a doçura e o despojamento espiritual vão superar a gula grosseira dos dias de hoje. E, no fim de tudo, minha fé está na classe trabalhadora. Como diz um francês: “A escada do tempo está sempre ecoando com um tamanco subindo e uma bota engraxada descendo”.

Sebastian J. Lorenz - Sorel: O Primeiro Conservador Revolucionário

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por Sebastian J. Lorenz



De Georges Sorel se diz ter sido o primeiro conservador revolucionário, ou pelo menos um dos primeiros pais fundadores da chamada Revolução Conservadora. Assim o expressaram corretamente Julien Freund, Armin Mohler e Karlheinz Weissmann, estes dois últimos co-autores do manual Die Konservative Revolution in Deutschland, 1918-1932. Por isso dedicamos a ele este volume monográfico, que contém não só estudos sobre os aspectos mais conhecidos de seu pensamento, como podem ser o "mito revolucionário", a violência e o sindicalismo, como também outras abordagens divergentes, por exemplo, em relação com a liberdade e a religião. E para terminar, um fantástico artigo do dr. Weissmann sobre a recepção por Armin Mohler do pensamento soreliano.

Robert Steuckers sempre recorda, como uma referência constante, os conselhos de Armin Mohler convidando-o a reler Georges Sorel e a explorar o contexto de seu tempo. Segundo Steuckers, "Sorel, que às vezes foi chamado de 'tertuliano da revolução', era alérgico ao racionalismo estreito, aos pequenos cálculos políticos que realizava a social-democracia. A este espírito de lojista, guiado por uma ética eudemonista da convicção e por uma vontade de excluir da memória todos os grandes impulsos do passado e de apagar seus rastros, Sorel opunha o 'mito', a fé no mito da revolução proletária. A ética burguesa, apesar de sua pretensão de ser racional, conduziu à desorganização e inclusive à desagregação das sociedades. Nenhuma continuidade histórica e oficial é possível sem uma dose de fé, sem um impulso vital (Bergson). Basicamente, quando Sorel desafia os socialistas aburguesados de seu tempo, sugere uma antropologia distinta: o racionalismo corta o real, o que é nefasto, enquanto o mito fecha os fluxos. O mito, indiferente a todo 'final' tomado como definitivo ou criado como ídolo, é o núcleo da cultura (de toda cultura). Seu desaparecimento, seu rechaço, sua inutilização, conduzem a uma entropia perigosa, à decadência. Uma sociedade obstruída pelo filtro racionalista resulta incapaz de se regenerar, de desenhar e despertar suas próprias forças em seu relato fundador. A definição soreliana do mito proíbe pensar na história como um determinismo; a história está feita por raras personalidades que a impulsionam em certas direções, em períodos axiais (Armin Mohler reutiliza a terminologia de Karl Jaspers, que Raymond Ruyer utilizará por sua vez na França). A visão mítica das personalidades que a impulsionam e dos períodos axiais é a concepção 'esférica' da história, própria da Nouvelle Droite". 

Georges Sorel: Uma Biobibliografia

(Cherbourg, 1847 - Boulogne-sur-Seine, 1922) 

Filósofo e teórico político francês. Filho de uma família da burguesia provincial normanda, recebeu dela a fixação com o trabalho e os sentimentos morais e religiosos, que manteve sempre vivos e profundos, ainda depois da perda da fé. Realizados os estudos secundários na cidade natal, foi enviado ao Colégio Rollin de Paris; logo ingressou na École Polytechnique. Chegando em 1870 a engenheiro de estradas e pontes, viveu no território provincial durante vinte e cinco anos; finalmente, nomeado engenheir-chefe, abandonou o cargo sem nem mesmo pedir a licença correspondente e se entregou com plena liberdade à atividade meramente intelectual.

A partir de 1892 não conservou mais funções que as de adminsitrador da École des Hautes Études Sociales. Em 1895, junto com Bonnet e Deville, fundou Le Devenir Social, revista que persistiu até 1897; colaborou em Mouvement Socialiste, de Lagardelle; Ére Nouvelle, Revue de Metaphisique et de Morale, e várias publicações italianas e alemães. Em 1897 se retirou, com seu sobrinho e a esposa dele, à pequena casa de Boulogne-sur-Seine, onde permaneceu até o fim de seus dias.

Ainda conservador em 1889, passou ao socialismo democrático em 1893; logo aceitou o marxismo, com todas as suas perspectivas revolucionárias, e mais tarde, desenganado do proletariado, se aproximou, em 1911, aos nacionalistas da Action Française; finalmente, a Primeira Guerra Mundial reanimou sua oposição às democracias, o que o induziu a considerar a revolução russa como a aurora de uma nova era em Matériaux d'Une Théorie du Proletariat (1919) e Plaidoyer pour Lénine (1921).

O "caso" Dreyfus exerceu notável influência na orientação de seu pensamento. Partidário do célebre militar francês durante a discussão do caso, ou seja quando parecia que o processo de revisão haveria de tornar possível na França condições que permitiriam a instauração de uma nova forma de vida e um movimento de renovação, sofreu um grande desengano ao comprovar a degeneração de todos os chefes do socialismo chegados ao poder e de quantos políticos de suas mesmas ideias tendiam unicamente à exploração das massas trabalhadoras e à defesa de seus interesses pessoais; desiludido por tal experiência, condenou para sempre qualquer sistema político de caráter "reformador" e se inclinou para uma concepção revolucionária da política do proletariado.

Aos quarenta anos começou a escrever sobre os problemas sociais. Antes de sua notoriedade como aficionado ao estudo da Filosofia, devido a sua colaboração na Revue de Metaphisique et de Morale e na Revue Philosophique, e de sua fama como teórico do sindicalismo, era já, desde 1889, célebre como historiador, graças ao Procès de Socrate, complexo exame da sociedade ateniense e crítica do racionalismo socrático. Filósofo da técnica e da moral, afrontou questões e temas da civilização em Ruine du Monde Antique (1898) e Ilusions du Progrès (1908), e estudou o cristianismo em Système Historique de Renan (1906), que, sob a influência de Vico, julgou como um princípio.

Estabeleceu as bases da nova economia concreta em Introduction à l'Économie Moderne (1903), e estudou, meritoriamente, o aspecto jurídico do sindicato como nova forma de instituição em Reflexões sobre a Violência (1906), sua obra mais célebre, na qual propunha a formação de um sindicalismo operário forte, consciente e preparado para enfrentar-se com a sociedade burguesa, destruí-la e criar sobre suas ruínas uma nova sociedade baseada na produção livre das hierarquias e instituições do passado.

Grande importância apresenta sua aplicação da filosofia de Bergson aos problemas sociais; em 1889 havia sido já um dos primeiros que chamaram a atenção para o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, desse famoso pensador, a quem julgou "árvore vigorosa elevada em meio às desoladas estepes da filosofia contemporânea". Ao filósofo do sindicalismo correspondeu o mérito da transposição ao terreno social e econômico, em oposição ao critério meramente evolutivo do socialismo, da teoria bergsoniana do movimento único ao longo de uma linha ideológica de tendência antirracionalista.

Foi Sorel quem assinalou com eficácia, antes do desenvolvimento de novas orientações fenomenológicas e existencialistas, o caminho seguido por Bergson: a revalidação da ideia de instinto e mistério às quais este filósofo chegara através de reflexões sobre os fenômenos biológicos e as inclinações naturalistas. Em sua opinião, é possível deduzir variações e transformações da sociedade a partir de sinais ínfimos e pouco visíveis, contrariamente à afirmação de Darwin segundo a qual as modificações muito pequenas não podem assegurar o triunfo de espécies novas sobre as antigas.

Notável é também a atitude de Sorel na valoração das atividades espirituais mais elevadas e livres, como a ciência e a religião, das quais exclui, em franca oposição a Marx, todo caráter pragmático. Considera o hegelianismo transição entre a era do dogmatismo filosófico e a da filosofia que se propõe a oferecer ao espírito uma orientação suscetível de facilitar as descobertas, e atribui a Bergson a função de fevelador das forças jovens.

Confirma, ademais, uma das intuições mais originais de Hegel ao estabelecer uma correspondência entre mistério-misticismo-ciência e arte-religião-filosofia, ponto culminante do espírito; segundo ele, tais formas se renovam e decaem conjuntamente.

Sorel introduziu algumas dúvidas sobre vários pontos dos ensinamentos oficiais do marxismo: negligência dos fatores morais, confiança excessiva na ciência (que define como "pequena ciência"), e interpretação insuficiente ou errônea da evolução social e do movimento operário. Sob a influência de Vico aplicou seus cânones históricos ao cristianismo. Com elevada consciência reivindicou os valores do mesmo, e chegou, por isso, a ser julgado autor da revolução extrema do espírito cristão.

Considera o cristianismo como não destinado a perecer, tendo difundido no mundo três grandes princípios: a dignidade da pureza, os valores infinitos do homem e o sacrifício estabelecido sobre o amor. Condenou todas as formas de religião social, já enquanto falta de um verdadeiro mérito religioso ou por sua tendência à mediocridade, ao cálculo e ao utilitarismo.

As polêmicas e os estudos de Sorel acerca do marxismo foram reunidos por V. Racca nos Ensaios de Crítica do Marxismo (1903), que limitam o determinismo econômico das correntes ortodoxas marxistas e revelam alguns elementos éticos da filosofia do movimento operário. Nosso autor considera as reformas sociais como uma corrupção da classe trabalhadora em Décomposition du Marxisme (1908), e da evolução do sindicalismo operário em L'Avenir Socialiste des Syndicats (1898), Ensinamentos Sociais da Economia Contemporânea (texto publicado também por V. Racca, 1907), e nos artigos aparecidos no mesmo ano em Mouvement Socialiste.

Entre as numerosas obras restantes cabe mencionar Contribution a l'Étude de la Bible (1889), Essai sur l'Église et l'État (1902), La Révolution Dreyfusienne (1909), La Rivoluzione d'Oggi (Lanciano, 1909), Le Confessioni (come divenni sindicalista) (Roma, 1911) e De l'Utilité du Pragmatisme (1921).


Stefano Beccardi - Entrevista com Aleksandr Dugin: "Precisamos fazer explodir o sistema liberal"

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Entrevista de Stefano Beccardi para a revista Il Primato Nazionale



Aleksandr Gelyevich Dugin (1962) é um politólogo e filósofo russo, cuja fama está mais difundida fora dos confins nacionais do que dentro deles, onde permanece circunscrita aos círculos políticos e militares. Isso contribuiu para distorcer, para o bem ou para o mal, sua imagem, principalmente por parte dos meios de comunicação ocidentais que o elevaram a "o ideólogo de Putin" ou mesmo a "o Rasputin de Putin", mais além de qualquer influência real nas decisões do presidente russo, entre outras coisas, nunca mencionada pelo interessado direto. Dugin também figura na lista de personalidades russas sancionadas pelo governo americano, considerado como um inimigo público. Estudioso da tradição (entre suas referências se destacam Guénon e Evola, tendo supervisionado a tradução ao russo de vários volumes deles) e da Revolução Conservadora, é o ideólogo do eurasianismo, ou seja, da ideia de uma integração política, econômica e cultural entre os países do espaço pós-soviético, e de uma ordem mundial multipolar que não esteja homologada culturalmente ao liberalismo ocidental, e da Quarta Teoria Política, com a qual propõe a superação dos esquemas políticos clássicos para que se esteja à altura dos desafios impostos pela pós-modernidade, ou seja, pelo totalitarismo do século XIX.

Impulsionados pelo desejo de aprofundar estes temas sem o filtro da inclinação favorável ou desfavorável de outros meios, quisemos debater com Dugin em pessoa, o qual nos acolheu há uns dias em seu escritório moscovita nos saudando em um ótimo italiano.

SB - Prof. Dugin, a QTP enunciada pelo senhor se propõe hoje como um dique contra a pós-modernidade na qual estão empapados o pensamento e práxis políticas ocidentais, em uma época na qual o modelo liberal é imposto a nível mundial sobre os escombros das doutrinas marxistas e fascistas. Neste contexto, como se propõe a QTP como uma alternativa às teorias políticas já experimentadas?

Dugin - A QTP se considera como antiliberalismo porque identifica no liberalismo a essência da modernidade. A modernidade não estava politicamente definida antes da vitória total do liberalismo (primeira teoria política) sobre as outras versões da política moderna. Também o comunismo (segunda teoria política) e o fascismo (terceira teoria política) eram ideologias políticas modernas baseadas no conceito filosófico do "sujeito" cartesiano. Todas as aplicações desse "sujeito" criaram as três formas gerais da filosofia política: o sujeito, como indivíduo, é o centro ideológico do liberalismo; o sujeito, como classe, o do marxismo; finalmente, o sujeito como Estado ou como nação, era a essência do fascismo.

O liberalismo, no final do século passado, se impôs como a ideologia que melhor representa toda a modernidade. O século passado foi totalmente idealista, porque foi o choque entre as três ideologias políticas; assistimos primeiro a duas guerras mundiais para definir qual ideologia política representava a essência política e filosófica da modernidade, e aqui o fascismo, perdendo a guerra, perdeu a oportunidade de sê-lo. Logo veio o contexto da Guerra Fria que foi o choque entre liberalismo e socialismo. Depois de 1991, o liberalismo venceu totalmente e se afirmou como a única possível ideologia política em escala mundial: hoje temos um sistema econômico e político liberal, e um sistema cultural e filosófico baseado no individualismo. Como disse Fukuyama, "a história do mundo acabou", porque o liberalismo venceu, já não há alternativa e ele pode, portanto, mostrar sua natureza totalitária: trata-se da pós-modernidade. O liberalismo se afirma, então, dentro de um "sistema fechado", como a emancipação do indivíduo de todos os vínculos com a identidade e com a coletividade: é um processo que começou com a "liberação" das religiões, continuou com a "liberação" da nação e logo do gênero sexual e, por último, virá a emancipação da humanidade mesma (trans-humanismo pós-moderno). O liberalismo não é apenas ideologia, mas também é a essência dos "objetos", o centro da realidade, a ausência de qualquer transcendência.

Este é o ponto de partida da QTP, que não aceita o liberalismo como destino inevitável, quer negar a individualidade, mas sem voltar às ideologias do passado que eram modernas e, enquanto tais, representantes do estado mais puro do liberalismo. Reconhecemos este resultado da história ideológica da modernidade, reconhecemos que o liberalismo venceu e os motivos. Queremos, então, opôr ao liberalismo vitorioso algo que vá mais além da modernidade, auspiciando o retorno à pré-modernidade, ao mundo tradicional. Não obstante, devemos compreender que este não deve ser um "retorno ao passado", mas aos princípios eternos da Tradição que pertencem a toda época. Quando falamos de "tradição" temos a ideia do passado, do velho, da reação; a Quarta Teoria Política, não obstante, não é conservadorismo, mas sim uma chamada à eternidade, em cujo contexto podemos encontrar a dimensão do homem presente e futuro. Essa eternidade é justamente aquilo que é negado pela modernidade e pelo liberalismo. Neste retorno à pré-modernidade pode ser de ajuda Heidegger, com sua crítica do logos ocidental, moderno e pré-moderno; a pré-modernidade por si só não basta, porque quando ela é concebida apenas formalmente, e a Tradição perde seu sentido eterno, ela está destinada a se fazer superar pela modernidade, como já ocorreu quando perdeu seu caráter existencial, vivente, reduzida a uma pura forma vazia sem conteúdo sagrado. O retorno ao sagrado deve ser concebido, no contexto heideggeriano, como um novo começo, a ser construído em torno ao conceito do Dasein: isto é, a destruição do conceito individual em favor do fato humano, concreto, pensante.

SB - A propósito da Tradição, você nunca ocultou ter sido influenciado em sua trajetória teórica pela obra de dois grandes europeus, René Guénon e Julius Evola. Qual é a contribuição que o mundo russo pode dar para a recuperação de uma visão tradicional da vida?

Dugin - Creio que temos que fazer o sistema liberal "explodir" para chegar à alternativa, porque nada do presente corresponde ao que devemos construir; talvez esta seja a razão pela qual, para alguns meios de comunicação de massa ocidentais, eu sou "o homem mais perigoso do mundo". Essa é a potencialidade revolucionária do tradicionalismo de Evola e de Guénon, que eram verdadeiros revolucionários; marxistas e socialistas são "crianças" em relação à grande revolução espiritual, social, política e econômica que temos que realizar os representantes da QTP.

A validade do pensamento de Guénon e Evola consiste na formalidade da oposição entre modernidade e Tradição. Sua intuição mais grandiosa é a de concebê-la como duas formas, não como duas fases; duas formas coexistentes, que podem ser escolhidas como modelo de sociedade e de vida. Para a Rússia, essa possibilidade de escolha é importante, porque como russos conservamos muitos aspectos da sociedade tradicional: religião, família, coletivismo orgânico. A Tradição é a forma que podemos escolher hoje para defender estes nossos valores.

Podemos aplicar estes princípios à política, à cultura, à história, conciliando-os com o tradicionalismo russo. Na luta pela defesa de nossa tradição somos solidários com outros povos que lutam por sua tradição, porque temos o mesmo inimigo e o mesmo opressor: a modernidade, que destroi toda sociedade, a nossa, tal como a ocidental, a islâmica, a hindu ou a chinesa. É uma luta comum ainda que com valores distintos.

Sempre é possível opor a Tradição, enquanto forma, à modernidade. Essa escolha se traduz também na realidade política, e Putin joga precisamente com isso. Quando há possibilidade de escolher, a maioria do povo russo, mas também creio que do povo europeu, escolhe a Tradição. Os liberais, não obstante, com sua maneira totalitária de atuar, impõem a modernidade não como opção, mas como destino: não se pode não ser moderno.

SB - A crescente insatisfação para com os diversos aspectos da pós-modernidade se traduz, a nível político, na emergência de movimentos chamados "populistas" contra as elites liberais que ditam a agenda política liberal (que você chama de "pântano"). Pelo que você pode observar, estes "populismos" expressam efetivamente uma crítica radical do sistema liberal, pelo que se pode esperar uma mudança de paradigma real e efetiva, ou estão de toda forma imersos nele e se resolvem simplesmente como instâncias de correção marginais, mas sem um questionamento geral?

Dugin - O populismo, como fenômeno pós-moderno, é o rechaço do liberalismo, mas se trata de uma reação visceral, "das tripas", não intelectual. Como um órgão vivo reage ao que atenta contra sua vida, o populismo é a reação imediata da sociedade ainda viva contra a imposição do liberalismo que mata toda a vida. Também neste fenômeno podemos encontrar uma demonstração do Dasein. Heidegger escreveu: "Dasein existiert völkisch". O homem não pode existir sem o povo: sem a língua, sem a cultura e sem a tradição, porque o homem é um elemento do povo e o povo é a natureza do homem. Todo o conteúdo do homem é popular. Devemos compreender, então, o populismo como o despertar do povo que existe e que se opõe à metafísica da modernidade, contra os conceitos liberais do indivíduo e da sociedade civil.

A oposição ao liberalismo explica também por que o populismo declina facilmente para o "populismo de esquerda", pseudo-socialismo (Syriza na Grécia, Podemos na Espanha, Movimento 5 Estrelas na Itália), ou para o "populismo de direita", pseudo-fascismo (como Le Pen na França, a AfD na Alemanha, a Liga Norte na Itália). Não obstante, creio que o populismo não deve ser interpretado nem a partir da esquerda, nem a partir da direita, porque do contrário se cai na armadilha da modernidade e se reestabelece o círculo vicioso da história: outra vez se criaria uma sociedade "fechada" com o socialismo ou o fascismo, e o liberalismo novamente se converteria em uma alternativa atraente. É necessário evitar isso, portanto o populismo deve ser entendido em um sentido puro, sem intromissões de "direita" ou de "esquerda", como se tratasse de uma reação orgânica que deve ser cultivada intelectualmente. O populismo é a forma tosca, primitiva, da criação da cultura da Quarta Teoria Política, da qual ela representa o argumento mais importante de sua validade; deve ser entendido no sentido da superação do liberalismo e de suas outras formas críticas modernas, e só neste sentido pode ser considerado um instrumento para afirmar uma alternativa total ao liberalismo e à globalização. Nessa luta, os inimigos do populismo são as ideias manipuladas pelo próprio liberalismo: o neofascismo (como no caso ucraniano), e o neo-socialismo (como os movimentos financiados por Soros); o populismo deve se opôr então a essas interpretações distorcidas de "direita" ou de "esquerda", porque por aqui passa a diferença entre ser um obstáculo para o liberalismo ou ser um instrumento do próprio liberalismo. Não é suficiente, portanto, com a captação do dissenso ou do "voto de protesto": é necessário estar muito claro, na visão dos líderes políticos, a função histórica do populismo.

Com Macron vemos a situação muito mais clara da pós-modernidade: ele representa o liberalismo puro, globalista, mais além da direita e da esquerda, é o Anticristo político. Quem se opõe a ele é de direita (Le Pen) ou de esquerda (Mélenchon); mas o pólo do populismo puro, que é o centro da Quarta Teoria Política, se encontra entre Le Pen e Mélenchon. Também na Itália há que encontrar uma "quarta posição"; pessoalmente, creio que Salvini vai nessa direção, ainda que por razões de conveniência de propaganda política, para não perder o apoio dos liberais de direita do norte da Itália, este aspecto não esteja acentuado.

SB - A propósito do "populismo", não se pode deixar de mencionar o caso Trump. ainda que sua eleição tenha estado caracterizada por proclamações claras contra os dogmas liberais e mundialistas, os desenvolvimentos mais recentes de seu mandato parecem sugerir uma "normalização" política em ato. Nos enfrentamos à consumação de uma traição às expectativas, ou é na verdade um preço que Trump deve necessariamente pagar no curto prazo para poder trabalhar "em profundidade" na direção por ele indicada desde sua candidatura?

Dugin - Trump, inclusive se comportando muitas vezes de maneira irracional, não pode ser interpretado como um perfeito liberal, nem como comunista, nem como fascista. Sua visão sincrética e caótica do mundo denota populismo; mas o "trumpismo"é mais importante do que Trump, porque é a isso que o povo americano aspira e quis, o Trump "trumpista", não o Trump manipulado pelo Deep State, pelas estruturas liberais e globalistas.

Trump declarou na campanha eleitoral que deseja mudar o sistema, mas sem vontade revolucionária é impensável vencer contra o Pântano liberal. O sistema existente não pode ser melhorado modificando os procedimentos ou as elites, ele deve ser destruído em seus princípios. Isso só é possível através da revisão total da modernidade, impondo outra filosofia da política, da ciência e da sociedade. O caminho é de todo modo muito longo e pouco evidente. Talvez Trump subestime o desafio dessa revolução total e é por isso que há que trabalha para que outros líderes contem com os meios que faltem a ele.

SB - No âmbito europeu, o destino traçado imediatamente depois do fim da Segunda Guerra Mundial está marcado pela subordinação, política e ideológica, e pela incapacidade (ou mesmo pela renúncia) a expressar uma dimensão própria. Um longo "crepúsculo" que todavia parece em pleno devir. Quais são os imperativos que os europeus deveriam se propor, a nível político e pré-político, para se reapropriarem da história ao invés de padecê-la? Por onde passa, em outras palavras, um novo amanhecer europeu?

Dugin - É necessário concentrar-se sobre o conceito de logos europeu, como eu escrevi em Noomaquia. Há um logos da Europa que é apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo; é patriarcal e solar em seu conjunto e é o eixo da civilização europeia tradicional, presente na cultura da civilização grecorromana e indo-europeia. Hoje em dia, este eixo está dominado pelo logos de Cibele, do matriarcado e da forma ctônica. A mãe investe contra o pai, o princípio apolíneo, e contra o filho, o princípio dionisíaco; este logos liberal titânico expressa a modernidade europeia, que é anti-europeia. Essa luta pelo logos europeu é questão de vida ou morte; não é possível a paz entre o Diabo e Cristo, entre o Céu e a Terra, como disse Heidegger. É necessária uma revolução apolínea total, política, cultural e econômica contra as estruturas liberais. 

Creio que chegará um momento em que o sistema globalista produzirá transformações tão brutais a ponto de implodir. Nesse momento, o núcleo do logos europeu terá que voltar a emergir, sob pena do niilismo mais absoluto, o mundo das máquinas. Portanto, é necessário ter em vista este momento, que marcará a possibilidade de um novo começo: há que conservar a própria identidade contra todas as forças destrutivas. A educação alternativa é o caminho a seguir: pensem nos escritos do autor essencialmente europeu Dumézil, mas também nos da Nova Direita francesa, sem esquecer o patrimônio literário italiano. A romanidade deve ser salva contra todas as forças que não permitem que ela se manifeste. 



Aleksandr Dugin - Economia e Multipolaridade

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por Aleksandr Dugin



(Do livro "Teoria do Mundo Multipolar", Capítulo "Base Teórica do Mundo Multipolar" - Economia)

De acordo com as regras do discurso moderno, nenhuma teoria ou projeto está isento de um programa econômico e de seguir aos cálculos e estimativas do mesmo. É natural que se coloque a seguinte questão: em que modelo econômico se baseará o multipolarismo?

No caso do mundo unipolar ou global, temos uma resposta bem definida: a economia mundial atual tem como base o sistema capitalista e qualquer projeto futuro será desenvolvido tendo-o como base. Aqui, torna-se quase axiomático que o capitalismo, atualmente, entrou em sua terceira fase de desenvolvimento (economia pós-industrial, sociedade da informação, economia do conhecimento, o turbo-capitalismo de E. Luttwak, etc.) e se caracteriza por: 

O domínio qualitativo do setor financeiro sobre o industrial e agrário; 
O aumento desproporcional do mercado de bolsas, dos fundos de retorno absoluto e de outros instrumentos estritamente financeiros; 
Mercados extremamente voláteis; 
O desenvolvimento de redes transnacionais; 
Absorção do setor secundário (produção) e primário (agrícola) pelo terciário (serviços);
Deslocamento da indústria dos países do Norte rico para os do Sul pobre;
A divisão global da mão de obra e o aumento da influência das empresas transnacionais; 
O rápido progresso das tecnologias de ponta (guiadas pela precisão e pela informação);
Aumento da relevância do espaço virtual para o desenvolvimento de processos econômicos e financeiros (mercados eletrônicos da bolsa, etc.).

Esse é o atual panorama da economia mundial e, caso tudo se mova a partir de um cenário de inércia, o do futuro imediato. No entanto, semelhante modelo econômico não é compatível com o multipolarismo, uma vez que está enraizado na implementação de códigos econômicos ocidentais em escala planetária; na homogeneização das práticas econômicas de todas as sociedades; no esvanecimento das diferenças civilizacionais e, consequentemente, na abolição das civilizações perante um sistema cosmopolita único, submetendo-as às regras e protocolos universais, formulados e aplicados pela primeira vez pelo Ocidente em seu próprio proveito. 

A economia global moderna é um fenômeno hegemônico. Isto é claramente demonstrado pelos neo-marxistas nas RI [Relações Internacionais], mas, de modo generalizado, é também reconhecido pelos realistas e pelos liberais – de modo contrário, em geral, se colocam as teorias pós-positivistas (a teoria crítica e o pós-modernismo). 

A preservação deste sistema econômico não é compatível com a efetivação do projeto multipolar. Assim sendo, a TMM [Teoria do Mundo Multipolar] tem de cingir-se de teorias econômicas alternativas. Como tal, será útil um exame atento da crítica marxista e neo-marxista do sistema capitalista e da análise de suas contradições fundacionais, bem como a identificação e a previsão da natureza de [suas] crises inevitáveis. 

Os marxistas falam normalmente acerca do colapso do capitalismo e veem a sua manifestação nas ondas das crises econômicas que chocam o mundo desde 2008, desde o colapso do sistema de hipotecas americano. Embora os próprios marxistas acreditem que a crise final do capitalismo só deva ocorrer após a internacionalização e advento final das duas classes globais (a burguesia mundial e o proletariado mundial), a interpretação e a previsão que fazem das crises são bastante realistas. Ao contrário dos marxistas, os apologistas da TMM não devem adiar o multipolarismo, aguardando a última trombeta da globalização. É bem provável que próxima crise inflija um golpe mortal no sistema capitalista mundial sem que se concretize a globalização e a cosmopolitização das classes. (Isso pode dar origem à Terceira Guerra Mundial). Seja como for, o atual modelo econômico global, no futuro mais próximo, irá muito provavelmente estar atado a uma crise estrutural e irreversível. Provavelmente deixará de existir – ao menos em sua forma atual. Já podendo testemunhar, hoje, as últimas limitações da nova economia e do modelo pós-industrial, é fácil vislumbrar que mais alguns passos e o sistema, provavelmente, entrará em colapso.

O que pode a TMM propor no lugar do pós-industrialismo na esfera econômica? As diretrizes deverão ser:

Derrubar a hegemonia capitalista do Ocidente; 
Rejeitar a ideia da economia liberal e do modelo de mercado como algo universal e como norma global autoevidente e, assim sendo,
Pluralismo econômico.

A economia multipolar deve se pautar no reconhecimento dos vários polos e, do mesmo modo, no mapa econômico do mundo.

A busca por alternativas econômicas deve ser levada a cabo no campo filosófico, rejeitando, ou ao menos relativizando, a importância e o valor do fator material e hedonista. Reconhecer o mundo material como o mais importante ou como o único, bem como o bem-estar material como o mais alto valor espiritual, social e cultural, levará necessariamente ao capitalismo e ao liberalismo, ou seja, a aceitação da legitimidade da hegemonia econômica do Ocidente. Mesmo que os países não-ocidentais queiram virar os processos econômicos ao seu favor, assim como minar o monopólio ocidental na esfera da economia de mercado em escala global, mais cedo ou mais tarde a lógica do Capital irá importar nestes países e em suas civilizações os mesmos padrões de hoje. Nisso têm razão os marxistas: o Capital tem sua própria lógica, que, uma vez aceita, conduzirá ao sistema político e social do tipo burguês, em tudo idêntico ao ocidental. Assim, fazer oposição à hegemonia do “Norte rico” exprimindo lealdade ao sistema capitalista é uma absoluta contradição e um obstáculo fundamental à construção do verdadeiro multipolarismo. 

O sociólogo americano P. Sorokin vislumbrou claramente as limitações da civilização materialista ocidental, a qual ele chamava de sistema sociocultural “sensual”. Em seu ponto de vista, a sociedade econômico-cêntrica, fundamentada no hedonismo, no individualismo, no consumismo e no conforto, está destinada à extinção iminente. Será substituída pela [sociedade] ideacional: a sociedade que dá primazia aos valores radicalmente espirituais e anti-materiais. Este prognóstico pode bem ser uma pista para a TMM quanto à sua relação com a economia de modo geral. Enxergamos no multipolarismo a via do futuro e não a continuação do [mundo] atual. Devemos, então, seguir a intuição deste grande sociólogo. 

Hoje, a maior parte dos economistas, tanto no Ocidente como no resto do mundo, estão convencidos de que não existem alternativas à economia de mercado. Tamanha confiança equivale a acreditar que todas as sociedades se movem pela sua tração pelo conformo material e pelo consumismo. Consequentemente, nem se cogita a ideia do multipolarismo. Uma vez, porém, quer reconheçamos que a economia é o destino final, reconhecemos automaticamente que a economia liberal é o destino final e, assim sendo, a hegemonia econômica do “Norte rico” torna-se natural, justificada e legítima. Os outros países têm meramente que se conformar: o que, na estruturação do sistema mundial, levará à globalização, à estratificação de classes e a dilapidação das fronteiras civilizacionais (I. Wallerstein tem toda razão aqui). 

Neste sentido, chegamos à conclusão mais lógica: o modelo econômico do mundo multipolar deve ter por base a rejeição do econômico-centrismo e à redução dos fatores econômicos a um patamar mais baixo que os fatores sociais, culturais, religiosos e políticos. O destino não é a matéria, mas o ideal, logo, não é a economia quem deve ditar a esfera política, mas a esfera política é quem deve dominar sobre as motivações e estruturações econômicas. Sem a relativização da economia, sem a subordinação do material ao espiritual, sem a transformação da esfera econômica em subordinada e secundária perante a dimensão da civilização em geral, o multipolarismo é impossível. Por conseguinte, a TMM tem que rejeitar todos os tipos de conceitos econômico-cêntricos – tanto liberais, quanto marxistas (considerando que a economia marxista também está estruturada como detentora de um destino histórico). O anticapitalismo e, principalmente, o antiliberalismo devem ser os principais vetores no desenvolvimento da TMM. 

Dada a necessidade de adoção de diretrizes positivas, temos que levar em consideração uma variedade de conceitos alternativos, até agora mantidos à margem das escolas econômicas clássicas (por razões meramente hegemônicas, obviamente). 

Como primeiro passo para a destruição do sistema econômico global, devemos, em algum grau, fazer referência à teoria da “autarquia dos grandes espaços” (Friedrich List), que inclui a criação de zonas econômicas circunscritas em territórios pertencentes a mesma civilização. No perímetro de tais territórios devem estar alinhadas as barreiras alfandegárias, configuradas de modo a promover, no seio da referida civilização, o mínimo de bens e serviços necessários à satisfação das necessidades da população e o desenvolvimento da capacidade produtiva interna. Mantém-se o comércio exterior com outros “grandes espaços”, organizado de modo que nenhum “grande espaço” torne-se dependente do abastecimento estrangeiro, assegurando a reestruturação de todo o sistema econômico no seio de cada civilização, de acordo com as características regionais e as necessidades do mercado interno. Uma vez que, por definição, as civilizações são zonas demograficamente relevantes, as perspectivas de mercado interno são mais que suficientes para um desenvolvimento intensivo. 

Paralelamente, devemos levantar já a questão da criação de um sistema de moedas regionais, bem como a rejeição do dólar como moeda de reserva mundial. Cada civilização deve criar sua própria moeda, garantida pelo potencial econômico de seu “grande espaço”. O policentrismo das entidades emissoras, neste caso, seriam uma expressão direta do multipolarismo econômico. Aqui, devemos também rejeitar qualquer tipo de padrão universal de pagamentos intercivilizacionais: as taxas de câmbio devem ser determinadas pelas estruturas qualitativas dos negócios estrangeiros entre duas ou mais civilizações. Acima de tudo, deve-se colocar a economia real, que diz respeito especificamente à quantidade de bens e serviços.

A aceitação de tais regras irá criar os pré-requisitos para uma maior diversificação dos modelos econômicos de cada civilização. Abandonando o terreno do capitalismo liberal global e tendo organizado os “grandes espaços” em consonância com suas características civilizacionais (ainda na base do mercado), as civilizações, futuramente, conseguirão construir um modelo econômico de acordo com suas tradições culturais e históricas. 

Na civilização islâmica, provavelmente, será imposta a moratória acerca do crescimento bancário do dinheiro. Em outras civilizações, será possível que se edifiquem práticas socialistas da redistribuição dos excedentes por um esquema qualquer (por intermédio do controle tributário – pela teoria do economista francês Jean C. Sismondi, ou outros – até à introdução de métodos de economia planificada e de dirigismo).

O pluralismo econômico das civilizações deve ser desenvolvido etapa por etapa, sem qualquer prescrição universalista. Sociedades diferentes podem criar modelos econômicos diferentes – tanto de mercado, como mistos, planificados, tendo como base as práticas econômicas da sociedade tradicional, bem como as novas tecnologias pós-industriais. A principal tarefa é a destruição do dogmatismo liberal, da hegemonia da ortodoxia capitalista e o enfraquecimento da função global do “Norte rico” como principal beneficiário da organização da divisão planetária do trabalho. A divisão da mão de obra deve ser empregada apenas dentro dos “grandes espaços”, caso contrário, as civilizações ficarão dependentes umas das outras, o que causaria o surgimento de novas hegemonias.  

Aleksandr Dugin - Pós-Antropologia

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por Aleksandr Dugin



Sociedade Humana após a Crise: Inferno na Terra pela Lente da Sociologia Profunda


A Sociologia das Profundezas

Uma sociedade concreta (fenomênica) sempre consiste em duas partes, a superficial e a subterrânea. A parte superficial é a que normalmente chamamos "sociedade", significando uma esfera de atividade racional onde o logos (λόγος) prevalece. Este é o domínio do "diurno". A parte subterrânea é a ilha escura, subaquática, do inconsciente coletivo, a região da noite social (o "noturno"), onde o mito (μύθος) governa.

Por um algum tempo, a ciência progressivista acreditou que essas duas partes estavam situadas em uma ordem diacrônica. Em tempos antigos (e entre povos "primitivos", o infeliz "resíduo" de tempos antigos), o mito era predominante. Mas o progresso da civilização gradualmente suplantou a ordem mitológica e a substituiu com uma ordem baseada no logos. A comunidade, ou Gemeinschaft, é substituída pela sociedade, ou Gesellschaft (F. Tönnies). Mas essa exaltação otimista não durou muito. Conquanto a fé cega no progresso reinou quase de forma inquestionável na Europa Ocidental dos séculos XVIII e XIX, o inconsciente, onde as leis eternas e imutáveis do mito predominam, foi descoberto no início do século XX.

As obras de Jung desenvolveram a teoria freudiana e estabeleceram uma nova topologia da psicologia humana. Freud já havia mostrado que além do "Eu" (o "ego"), um "Isso" (em alemão "es", em latim "Id") invisível e reprimido opera ativamente dentro do homem. Jung demonstrou que a base desse "Isso" está enraizada em uma realidade especial comum a todas as pessoas. O inconsciente coletivo é um para todos.

O seguidor de Jung, o sociólogo francês G. Durand, se apoiando na teoria jungiana do inconsciente coletivo e seus arquétipos, complementou a topologia psicanalítica com uma sociológica, deitando assim as bases para uma "sociologia das profundezas", "sociologia profunda", ou "sociologia da imaginação". Assim, a segunda parte, subterrânea, da sociedade, em cujo coração jaz o mito, foi descoberta, estudada e descrita.

Sociólogos comuns como Weber, Sombart, Durkheim, Moss, Sorokin e outros, não raro descreviam a sociedade superficial, diurna, e suas propriedades, ou seja, o logos social. Sociólogos das profundezas, por outro lado, como G. Durand ou M. Maffessoli, empreenderam a exploração dos mitos sociais, elaborando um tipo de sociologia do mito.

O estudo da interconexão entre os dois níveis principais dessa topologia, ou seja, entre logos e mito, enterrou o conceito de racionalidade e a noção de "progresso" já na primeira fase. Segundo G. Durand, acontece que essa não é mais que uma racionalização do mito de Prometeu. O próximo passo foi a descoberta de que o próprio Logos, como destino axial da cultura europeia ocidental (de Platão ao positivismo, passando por Descartes) não era mais que uma edição especial do mito (um "mito ascendente" na teoria de G. Bachelard ou o "regime diurno" na teoria de Durand). Essa é a descoberta da sociologia profunda (a sociologia da imaginação) baseada no estruturalismo de C. Lévi-Strauss, na história da religião (H. Corbin, M. Eliade), na psicanálise (C.G. Jung), na reflexologia (M. Bekhterev), na física e matemática modernas (R. Tohm, V. Pauli). Isso abriu uma perspectiva completamente diferente da essência, conteúdo, significado, natureza e qualidade dos processos sociais. A sociologia clássica, que havia detectado inúmeras falhas do logos na sociedade (por exemplo, o princípio da "heterotelia", uma lei sociológica que afirma que os processos sociais quase sempre atingem objetivos outros do que os intencionados, invertendo assim a lógica causal na qual os pais fundadores da sociologia, os positivistas Kant e Durkheim, tão firmemente acreditavam) veio através da sociologia profunda para formar um sistema consistente e semanticamente completo. O enorme material metodológico e documental acumulado pelos sociólogos clássicos começou, assim, a ser interpretado de uma maneira inteiramente nova.

Assim, ao fim do século XX, uma "sociologia em dois níveis" foi estabelecida na qual a pesquisa sobre o logos social foi paralelada por estudos do "subterrâneo social" ("masmorra social") e do "mito social". Em outras palavras, o "inconsciente social" foi descoberto.

Logos Social

Por sua profissão, um sociólogo é chamado a olhar para além da "opinião pública", das "ideias comuns", e do "senso comum", ou seja, aquelas crenças e ideias que circulam entre as massas em sua "maioria" e constituem o esquema da "sabedoria convencional". A "opinião pública" jamais reflete a imagem completa. Seu lugar natural está situado no espaço entre a verdade científica e o que é uma quimera pura, ou nada. Mesmo Platão, em sua República, definiu "opinião" (δόξα) como nos mostrando algo ao mesmo tempo que nos oculta outra coisa, em todos os casos nos revelando não o que jaz na superfície da expressão, mas outra coisa, e assim sempre nos enganando. Especialistas americanos em especulação financeira e mercados de ações formularam a mesma lei em termos mais grosseiros: "a maioria está sempre errada".

Ao analisar a "opinião", os sociólogos derivam de tal a verdade semi-manifesta e semi-oculta, e explicam assim o mecanismo e, por sua vez, a estrutura semântica das mentiras (silêncio, eufemismos, projeções, transposição, e outros artifícios retóricos). É assim a soma de verdades científicas extraídas, esclarecimentos, e etiologias de equívocos e mentiras, o conteúdo do logos social, que constitui o objeto da sociologia clássica.

O Pessimismo dos Sociólogos Clássicos: o Logos à Beira da Catástrofe

A maioria das maiores reconstruções ("grandes teorias") dos sociólogos clássicos estava marcada pela natureza perturbadora dos processos sociais do século XX. A própria ideia de "progresso", que se tornou algo tomado como dado na "opinião pública", foi em dado momento reconhecida como um eufemismo projetado para iluminar premonições de desastre iminente.

A maioria dos sociólogos, e Pitirim Sorokin em particular, enfatizou de forma unânime a natureza hedonista, material, sensual e sensata da civilização ocidental moderna, e essa qualidade afetou o "logos social" muito mais profundamente ao longo do século XX. Valores materiais, envolvendo uma "obsessão com a economia", a busca por uma liberdade material egoísta e por prazer, assuniram protagonismo e solaparam, erodiram a estrutura da organização racional da sociedade. Quase todos os sociólogos previram de uma maneira ou de outra que o logos social do Ocidente e toda a civilização mundial estando sob influência ocidental decisiva, está sob ameaça de colapso.

Esse sentimento se intensificou especialmente na era pós-moderna, quando muitos começaram a falar na "sociedade do espetáculo" (G. Debord), na "ordem dos simulacros" (J. Baudrillard), ou no "fim da história" (F. Fukuyama). De fato, Fukuyama falou em uma "sociedade de vácuos", ampliando a "fragmentação dos laços sociais", etc. O logos social havia se desintegrado diante de nossos olhos, se transformando em algo só verificado com grande dificuldade e demandando novos métodos sociológicos para entender e explicar.

Alguns, como Castells, sugeriram timidamente que o logos não morre, mas passa a uma nova forma de existência como rede. Mas isso não soa muito convincente. Em todo caso, começando no século XX, a sociedade clássica esteve no limiar, como dizem os otimistas, de uma metamorfose qualitativa fundamental ou, como suspeitavam os pessimistas (como Spengler), do colapso.

O momento social através dos olhos de sociólogos profundos: deslizando para a noite

Ainda mais alertados pelo esgotamento da modernidade estão os sociólogos profundos, que tem em por princípio acreditado que reavaliar o logos a partir do mito equivale a um desastre, o que por definição e de partida já está acometido por colapso e uma inflação colossal do logos. Não sendo opositores do logos, eles apenas apontam que o gigantesco esforço de reavaliar metade da sociedade (a metade diurna) está repleta de possibilidade de regressão rápida e de cair no extremo oposto, as regiões do inconsciente, sem alívio ou estágios intermediários. Eles consideraram corretamente que os totalitarismos europeus do século 20 eram uma queda tão rápida para o mito, por exemplo, o regime nazista (com seu "Mito do Século XX", que é, admitidamente, uma paródia pálida e pobre do mito em si) e a URSS com sua tentativa quiliástica de construir um "paraíso na terra" (o mito diacrônico-trinitário de Joachim de Flora, ignorado por Hegel, e especificamente o messianismo cúltico russo).

Mas a inflação do logos não cessou com a vitória sobre o fascismo ou após o fim do comunismo. Na década de 1990 surgiu a ilusão temporária de que o logos social finalmente havia encontrado sua encarnação final no paradigma americano liberal-democrático (daí o globalismo e o "fim da história") que duraria para sempre (como os neoconservadores americanos tentaram inaugurar com o "Projeto para um Novo Século Americano" e teorias de "hegemonia benevolente" e "império benevolente"). Nos anos 2000, tudo isso tornou-se cada vez mais duvidoso. Quando a crise financeira de 2008 eclodiu e o democrata negro Barack Obama chegou ao poder nos EUA, ficou claro que a rodada anterior não era o estabelecimento de uma "nova ordem mundial", mas a agonia final do logos ocidentocêntrico.

Do ponto de vista dos sociólogos profundos, o ponto em questão foi a colisão de dois mitos que atuaram durante três séculos nas "masmorras" das sociedades da Europa Ocidental (e daquelas que caíram sob sua influência).

A era moderna e o Iluminismo refletiram o surgimento do mito de Prometeu, que inspirou tanto os racionalistas como os românticos, o povo do dia e os poetas da noite. O titã, o trapaceiro, o enganador dos deuses (noite), Prometeu, atuando como Fausto e Lúcifer, traz às pessoas o fogo e o conhecimento (dia). Schelling, Hugo, Hegel, Marx e os liberais e os socialistas foram inspirados pelo mito de Prometeu. Mesmo no fascismo, através da lente nietzscheana do "Super-Homem" e do wagnerianismo, Prometeu encontrou expressão peculiar.

Mas, com o final do século XIX, Prometeu começou a dar lugar ao mito de Dionísio. Emanando de salões decadentes, ele penetrou a cultura e, posteriormente, tornou-se o principal mito das pessoas envolvidas na mídia (e, como regra geral, marginais, bêbados, pervertidos e viciados, como observou acertadamente Durand), no cinema e mais tarde na televisão, intelectuais e artistas - pessoas típicas da noite em praticamente todas as sociedades. Gradualmente imbuída do estilo individualista-hedonista de "jornalistas", dos céticos inveterados e dos adversários de toda organização racional (inimigos do logos social), a sociedade tornou-se uma sociedade de entretenimento e prazer, a "sociedade do espetáculo".

Dionísio deslocou Prometeu, de cujo mito o fim é descrito no livro esplêndido e irônico de Andre Gide, Prometeu Mal Acorrentado. Mas o próprio Dionísio, gradualmente, perdeu o apelo, o ímpeto e a energia na medida em que as perversões decadentes da elite, portando algo estilisticamente atraente, transformou-se na podridão nociva das massas em decomposição deslizando para a noite. Paradas gay plebeias transformaram a atmosfera refinada dos salões de Oscar Wilde, a insanidade solar de Arthur Rimbaud e o gesto poético do Apolo de Kuzmin em kitsch plebeu (mais um exemplo do significado da expressão "não jogue pérolas aos porcos"). O mito de Dionísio, por sua vez, atingiu o ponto de saturação e tornou-se uma das fontes de frescura do pântano estancado e estilifaliano.

O ciclo da cultura ocidental chegou ao fim. A pós-modernidade com seus epifenômenos é uma ilustração convincente disso.

De qualquer forma, os sociólogos das profundezas estão aguardando um novo mito (talvez esperem que este seja o mito equilibrado e integrador de Hermes -, como o grupo Eranos, que incluiu Jung, Eliade, Bachelard, Corbin, Dumezil, Scholem e Durand), Mas eles entendem claramente que o logos europeu está prestes a finalmente deslizar para a noite. Falando francamente, parece-me bastante duvidoso que essas pessoas maravilhosas, esses neo-hermetistas, consigam deter o que está caindo, muito menos mudar este outono...

Topologia Jungiana

As observações anteriores eram necessárias para chegar ao tema principal, isto é, nossa tentativa de conceber o que aguarda a humanidade uma vez que a pós-modernidade finalmente se torne manifesta e o logos social finalmente pereça na noite do mito. Em outras palavras, estamos interessados ​​em reconstruir a imagem da dimensão sociológica iminente, levando em consideração os significados estruturais e semânticos que nós (ou não) devemos sobreviver (ou não). Com base numa reconstrução sociológica das teorias clássicas e não-clássicas, podemos construir diferentes modelos do futuro, baseando-nos na topologia psicanalítica de Jung, que se preocupou com o destino do homem e tentou, com a maior imparcialidade possível, descrever a plenitude do fator humano em suas diversas dimensões em diferentes estágios. Antes de "pintar" a "sociologia do Apocalipse" com a "pintura de Jung", lembremos os principais parâmetros de sua topologia.

De acordo com Jung, um ser humano é um sistema complexo composto por vários pólos, os principais sendo "ego", "persona", "anima/animus", "sombra" e Selbst ("self"). Adicione o "superego" de Freud por uma questão de completude.

Meu "Eu" e minha Máscara

O homem é considerado um indivíduo racional que chama a si mesmo "eu". Na psicanálise, esta função é denotada pelo termo latino "ego", cujas propriedades são o intelecto, a capacidade para as operações mentais, a posse de estruturas lógicas (ou "proto-lógicas", como as chamadas tribos primitivas" e "selvagens"), a capacidade de auto-reflexão e separação clara de si mesmo ("ego") do mundo exterior, dos "outros" e "o outro".

O logos social generalizado é a projeção coletiva do "ego", o que Freud chamou de "superego" ou "super-Eu".O "ego" sempre se correlaciona com o "superego", que assim dá origem a um sistema de normas sociais e determina uma grande parte do ser do "Eu".

No que diz respeito a outros "Eu" sociais e ao logos social agregado (superego), o ego atua como persona, personalidade ou máscara. Existe uma lacuna entre o ego e a personalidade que consiste no "ego" possuir outra dimensão, invertida em si mesma, que a distingue da personalidade ou "persona" através de uma função sócio-lógica plenamente exaustiva. O ego tem uma psique, enquanto uma persona não (tal é cuidadosamente escondida e ignorada). A psique do ego se faz conhecer apenas quando uma persona começa a se comportar ou se sentir de forma inadequada na sociedade ou diante do superego dado como padrão na moralidade e nas regras do pensamento (uma desordem mental).

"Eu" geralmente parece estar sozinho como resultado do reflexo do logos sobre a separação física do corpo humano. Mas isso não é necessário, enfatiza Jung. A deformação das estruturas lógicas, um rebaixamento do nível mental (abaissement du niveau mental) ou simplesmente sonhar pode facilmente desfocar a singularidade do "Eu", sua identidade e dispersar em várias frações o "alter ego". Em alguns casos de psicose, isso se manifesta através de vozes, através da visão, ou mesmo através de visões de si mesmo. Em alguns casos, vários "egos" podem formar uma forma de identidade bastante estável (como no Dr. Jekyll e no Sr. Hyde de Stevenson).

O "Eu" de Jung não é uma constante de uma vez por todas, mas é plural. Às vezes, Jung fala do ego como uma parte de uma psique complexa ao lado de outros "complexos".

O Reino do Inconsciente Coletivo e o Selbst

Dentro do "ego" começa o espaço da psique contendo diferentes camadas, algumas próximas do "ego" (como memória, avaliação subjetiva de ações e "invasão" de baixo) e as mais afastadas dele, como o inconsciente .

Freud chamou o inconsciente de "es" ou "id". Ele próprio restringiu o inconsciente aos sentimentos e instintos individuais formados como regra durante a infância e até mesmo no período pré-natal. No famoso sonho de Jung de 1909, no qual ele percorreu o Atlântico por navio com seu professor, viu que, no inconsciente, há um nível ainda mais profundo que deixa de ser individual e torna-se coletivo. O domínio do inconsciente coletivo é o centro da topologia conceitualizada de Jung.

O inconsciente coletivo, de acordo com Jung, é o mesmo para todos e é habitado por mitos e arquétipos eternos. Este inconsciente coletivo é explicado por parcelas estáveis ​​de certos sonhos (grandes sonhos), mitos, histórias, contos de fadas, visões religiosas e obras artísticas. O inconsciente coletivo percebido, integrado, aceito e sacralmente exaltado, dirigido acima para a luz na superfície é o que Jung denomina Selbst ou "self".

Animus/Anima e o Duplo Obscuro

Além disso, entre o ego e o inconsciente coletivo existem duas das principais instâncias intermediárias: o animus/anima (a alma que Jung divide por gênero) e a "sombra" (umbra, die Schatten).

Animus/anima (como os Seraphitus e Seraphita de Balzac) é uma imagem do inconsciente coletivo, pois aparece em forma pura no ego masculino ou feminino. No decorrer de sua pesquisa (incluindo estudos clínicos), Jung observou que os homens imaginam constantemente o "inconsciente" ("es" e "id") como feminino (daí "anima", a alma feminina), enquanto as mulheres o imaginam como masculino (daí "animus", a alma masculina). Em russo, seria tentador usar os cognatos dusha ("alma") e dukh ("espírito"), mas eles têm um significado constantemente diferente (embora se poderia perguntar: algum deles tem algum significado hoje em dia? ).

Há também a "sombra" que representa o gêmeo escuro do ego, que consiste nos produtos negativos do diálogo entre o ego e o inconsciente coletivo. Tudo o que a mente diurna reprime, exclui, expulsa, censura e não reconhece nos impulsos que se elevam das profundidades inconscientes, compõe a "sombra", moldando sua estrutura e uma espécie de "anti-persona" (simetricamente oposta a uma persona). O diabo é a forma generalizada da sombra.

Individuação como a Realização do Selbst

De grande importância nas obras de Jung é o sujeito da "individuação". A individuação é a transferência harmoniosa, equilibrada, incremental e mensurada das estruturas inconscientes coletivas ao nível do logos. Uma vida humana corretamente orientada é a realização do Selbst, isto é, a individuação. Somente neste caso, o ego serve o propósito de deixar o que está no nível do mito adentrar no reino do logos.

Jung esclareceu a relação entre instâncias dadas em sua topologia, forneceu nuances, explicou detalhes e resolveu os enigmas de suas relações dialéticas. Ele delineou a dialética desta estrutura em seus pacientes e em obras de arte, doutrinas religiosas, teorias filosóficas, biografias famosas e nos preconceitos dos cidadãos comuns. Praticamente todo o seu trabalho criativo foi dedicado a esse fim.

Sociologia da Imaginação

Aplicar a topologia de Jung à sociedade (com certos ajustes) produz a sociologia profunda ou a sociologia da imaginação como desenvolvida principalmente por R. Bastide e G. Durand. O logos social ("consciência pública" de Durkheim) é o ego generalizado (superego). No outro extremo está o inconsciente coletivo (ou inconsciente social). Entre eles está o ego humano que enfrenta a sociedade através da sua personalidade (persona) e enfrentando o inconsciente coletivo (o reino noturno dos mitos) através da sua psique e suas figuras (a anima, o animus e a sombra).

Entre a consciência coletiva e o inconsciente coletivo existe uma dinâmica na medida em que ressoam em certas questões e são homólogas, enquanto em alguns casos entram em discórdia e conflito. Isto é devido à cinética social (incluindo a mobilidade) e ao conteúdo profundo dos processos sociais. O indivíduo ou o humano é um ponto nesta dialética complexa de dois estágios de noite e dia, ou diurno e noturno.

O modelo tripartite de topologia social de Pitirim Sorokin, que distingue três tipos de sociedades e estruturas sociais (ideacionais, idealistas e sensuais) com base em uma abordagem puramente heurística, recebe bons alicerces nas três estruturas arquetípicas de Durand - a "heróica", a "cíclica" e a "mística", que são um homólogo mitológico direto para os construtos sociológicos de Sorokin. A escola de Durand, o Centro de Pesquisa sobre o Imaginário, tem nos 50 anos de sua existência produzido uma enorme quantidade de trabalho hermenêutico sobre a "mito-análise" de sistemas sociológicos e a "mito-crítica" de obras literárias ou registros históricos.

Sonhando o Mundo

Agora a crise econômica. Acima, dissemos que é altamente provável que a crise financeira atual seja uma expressão de um processo muito mais profundo, ou seja, o declínio do logos social borrado ou saturado de momentos sensuais (à la Sorokin) ou do mito dionisíaco tomado pelas massas osculadoras (à la Durand). No sistema de Jung, esse processo pode ser visto como o "rebaixamento do nível mental" (abaissement du niveau mental). Suponhamos que as estruturas lógicas do ego e do superego se desmoronem em um limite crítico - e isso é muito provável se considerarmos as observações sobre a sociedade russa, que se degradou rapidamente no sentido intelectual e moral, bem como nos processos ocorrendo na cultura e na política ocidentais. Neste caso, devemos esperar que a humanidade mergulhe de cabeça no regime noturno.

Na topologia junguiana, isso significa que descemos para o inconsciente coletivo. Isso não é simplesmente niilismo. O próprio conceito de nada, ou nihil, pertence à ordem das estruturas lógicas capazes de representar abstratamente a negatividade pura em contraste com a presença pura. Mas, na medida em que a lógica é corroída, o nada cristalino do niilismo lógico não nos parece tão vazio, mas cheio de significados indescritíveis, imagens inconsistentes e sons cacofônicos arranjados desarmoniosamente. O niilismo da noite é cheio de sons, cores e formas, mas apenas do ponto de vista do dia. Isso é nada.

Começaremos a ver os pontos críticos enumerados abaixo na escuridão. Afinal, sempre há objetos mais escuros do que outros. É neste ponto que chegamos à versão junguiana da futurologia pós-crise.

O logos social caiu. Apesar de ter derrotado exitosamente todos os seus concorrentes lógicos e ideológicos (teocracia, monarquia, fascismo e comunismo), o liberalismo não lidou com o fardo do logos social, ou seja, é incapaz de defender a ordem do dia sozinho contra a noite se aproximando de todos os lados e de dentro. A última tentativa desse tipo foi a aventura imperial dos neoconservadores americanos. Enquanto isso, os logoi anteriores são deixados irremediavelmente repudiados e perturbados.

O caráter diurno do liberalismo é relativo. Talvez ele tenha vencido precisamente porque ofereceu o mais suave de todas as ordens, o logos mais discreto, o instrumento mais comprometedor e tolerante da repressão diurna do inconsciente noturno. Mas agora tem sido deixado um a um em face do caos - o mesmo caos em que se baseou anteriormente.

Se a atual crise econômica (para a civilização liberal, a economia é um substituto da ordem e do logos) acaba por ser a última, então ocorrerá um "rebaixamento do nível mental da humanidade" fundamental. O mundo será mergulhado em um sonho.

Que tipo de sonho será esse?

Os Novos Atores da Pós-Antropologia

O desmantelamento do "ego" e do "superego", seu retorno à neblina escura da psicose, leva ao surgimento de novos atores na vanguarda. Esses atores não serão nem as classes (como no comunismo), nem raças (como no nacional-socialismo), nem mesmo o indivíduo (como no liberalismo) - todas essas ideologias sociais foram fundadas em sistemas lógicos específicos e, paralelamente a isso, em mitos razoavelmente distinguíveis noturnamente estruturados. Esses atores serão as formas do inconsciente que sobraram a partir da época da dominação luminosa do logos. Esta será uma ordem pós-logos que levará à introdução da pós-antropologia.

As principais figuras da relação entre o ego e o inconsciente adquirirão autonomia e se tornarão o substituto do ego. A humanidade vai ouvir "vozes".

O fato de que o ego do homem moderno se tornará dinâmico, plural, lúdico e aleatório já pode ser visto em todos os lugares - na constante mudança de profissões, mudanças de residência (o novo nomadismo), mudança de gênero, apelidos, o aparecimento de duplos e clones (primeiro na literatura, filmes e jogos de computador, mas amanhã na prática). Isso se tornará comum, pois a vida adquire mais uma natureza irônica e lúdica. O ciclo encolherá quando famílias, parceiros, amigos, países e ocupações forem alterados com velocidade caleidoscópica. As pessoas mudarão seu gênero com maior freqüência, e as operações de mudança de sexo virão a ser mais do que um caso único - alguém é uma mulher, fica farta disso, torna-se um homem, depois uma mulher de novo, e assim por diante. Mas depois de um certo ponto - dificilmente perceberemos - a noção de identidade individual se dissolverá e o princípio da liberdade corroerá os "grilhões totalitários" da individualidade. No átomo humano, os componentes separados serão "descobertos" - elétrons, prótons, quarks que exigirão para si mesmas "novas liberdades" (como o escritor belga Jean Ray antecipou em seu A Mão de Götz von Berlichingen).

E é neste momento que enfrentaremos uma série de fenômenos e adventos muito interessantes que definirão o panorama da paisagem pós-antropológica.

A Vinda da Sombra

A "sombra" será um dos atores principais do "Apocalipse Jungiano". As fantasias de sombras vivas (nas obras de Anderson e no folclore popular) são um relato famoso que aparece repetidamente na literatura, no teatro e na ópera. "Sombra"é um sinônimo para o diabo, e podemos dizer que essa imagem coincide com as amplas e variadas descrições do anticristo ou da "vinda de Satanás". A perspectiva de Jung difere das opiniões religiosas e teológicas sobre esse assunto, na medida em que examina a figura do diabo - no espírito da "Apocatastasis" de Orígenes Adamantius - como relativamente negativa. De acordo com Jung, no "diabo-sombra" acumula-se tudo o que foi descartado pelo ego ao longo de uma individuação mal sucedida, isto é, ao longo da tradução do inconsciente coletivo e seus arquétipos na esfera do logos. Assim, o diabo não é independente ou primordial, mas meramente simboliza a totalidade das falhas humanas e os resultados da fricção com o "superego", que por sua vez não está associado tanto a erros individuais como com a dissonância e o conflito do logos social (incluindo os aspectos religiosos e morais) com o complexo mitológico situado sob os alicerces da sociedade. A sombra é o Selbst que falhou. Afinal, o diabo foi uma vez um anjo de luz que caiu...

A sombra que se revelará no futuro próximo não deve ser necessariamente considerada como o "diabo" da religião cristã. Em termos sociais e psicanalíticos, isso simplesmente será um "resíduo", algum tipo de substituto de um "eu" desaparecido e diante do inconsciente coletivo indiferenciado, essa figura parecerá como "palha salvacional" que, no que concerne sua identificação, será maior do que o caos mitológico nadando abaixo. Portanto, para a pós-humanidade, a "sombra", como uma imagem preservada do "ego" perdido, se apresentará como uma espécie de tentação. A sombra não agirá como um inimigo da humanidade (especialmente porque o homem, nesse momento, dará lugar ao pós-homem). Em vez disso, ele atuará como um inimigo do abismo indiferenciado dos sonhos indistinguíveis.

O que esta "sombra" será em sua vinda? Isso é difícil de imaginar, uma vez que a paisagem social mudará significativamente. O colapso do logos não irá cancelar a ciência, ou mais precisamente a tecnologia, daí a dissolução do indivíduo pode muito bem ser combinada com a continuação do progresso tecnológico pela inércia. Portanto, a sombra virá na comitiva de máquinas e dispositivos. Mas não será um ser humano singular ou grupo de seres. Será algo parecido com uma nuvem, névoa, uma nebulosa de pensamento que pode assumir várias identidades, nomes e tipos. Essas imagens serão um pouco vagas, como se estivessem cobertas de neblina. A sombra quase não aparecerá na forma de monstros, mas sim na forma de memórias e sonhos lânguidos e densos.

Este é um pólo.

Operação Alraune

Outra figura do Apocalipse Jungiano será a anima feminina desencarnada. Esta não será uma fêmea humana, mas a feminilidade em seu aspecto coletivo e aparicional.

Aqui vale a pena abordar a idéia da anima nas obras de Jung com mais detalhes. A anima de Jung não é uma imagem de uma mulher baseada no instinto animal ou na observação luxuriosa do sexo feminino, nem mesmo na memória genética, como o freudismo e a psicologia materialista apresentam. É a criação de um ego puramente masculino que, através da anima, estrutura tanto a si mesmo como as relações com o outro interno (o que é o mesmo), procedendo a projetar essa relação para o exterior sobre o outro e si mesmo agora dentro da estrutura da forma - isto é uma mulher no sentido de gênero social.

O ego masculino não sabe nada sobre o ego feminino, e não quer nem pode saber nada sobre isso. Ele meramente projeta uma imagem viva, na qual ele é apelado pelo inconsciente coletivo ("es"), na matéria sócio-biológica circundante. A anima interna e a mulher externa são para o ego masculino (logos) estritamente um e o mesmo. A anima é primária e aquilo que não coincide com a anima em uma mulher não é notado, é rejeitado, é censurado ou odiado pelo ego masculino. Tudo isso foi rastreado pelos psicanalistas em milhões de exemplos.

Se a anima masculina é atraída para a figura da Melusina (a mulher-peixe feérica com uma cauda e sem órgãos genitais que habita a água), então uma falta de correspondência em mulheres externas em relação a este padrão será apresentada como sua culpa e não como culpa da imagem (na qual, de fato, não há nada de patológico - afinal, ela está harmoniosa e firmemente tecida no léxico sagrado dos grandes sonhos).

Pesquisas paralelas foram conduzidas por Levi-Strauss no estudo da estrutura de parentesco. Nos mitos de muitas tribos americanas, bem como de outros povos da África e da Melanésia ou, mais amplamente, do mundo inteiro, o tema de uma "escala adequada do casamento"é recorrente. Para mostrar o que é correto, um mito mostra o que é incorreto. Existem inúmeros motivos estáveis ​​sobre o casamento com animais (Masha e o urso etc.), espíritos, demônios e anjos (o Livro de Enoque), objetos, monstros e assim por diante. Estes são muito distantes de relacionamentos, o que significa que o ego se moveu muito longe nos horizontes do inconsciente e, como regra, as lendas alertam que nada de bom pode vir disso.

Parentesco próximo demais é algo representado pelo incesto, um tabu que reside no coração de todas as estruturas sociais conhecidas com apenas as exceções mais raras (como o zoroastrismo que legalizou e até prescreveu o incesto e na prática das seitas sabáticas judaicas na Turquia - veja M. Maffesoli). Em relação à anima, isso significa que o ego chegou muito perto do inconsciente coletivo, que está repleto de dissolução ou poderia em seu lugar apresentar suas próprias projeções "egoístas" levando à esterilidade ou à geração de monstros, ou seja, a fluir para o reino da sombra. A sombra é a totalidade desses tabus que o homem tem sido tentado a violar.

Aqui surge uma pergunta: de onde vem o ego masculino? Diferentes sociólogos, filósofos e psicólogos ofereceram diferentes respostas. O sociólogo marxista Bourdieu, por exemplo, acredita que o gênero é um fenômeno puramente social, ou seja, o ego é dotado de uma qualidade masculina exclusivamente pela sociedade - a ditadura do "superego" - e, na prática, através da educação e da estruturação das relações familiares. De acordo com Bourdieu, se um menino é criado e tratado como uma menina, ele será uma menina, e seu ego e personalidade serão totalmente femininos em personalidade. Nisso está baseada a "tolerância de gênero" contemporânea e a interpretação ocidental dos direitos humanos, em que o homem (como o clássico do liberalismo, Locke, afirmou) é uma tabula rasa sobre a qual a sociedade escreve o que agrada. Marx também pensou assim.

Em qualquer caso, pode-se supor que não é o gênero de uma alma (anima-animus) que depende em se o ego é masculino ou feminino, mas pelo contrário - o gênero de uma alma através de uma lógica inversa determina a identidade de gênero do ego. A anima leva a que o ego seja masculino, a fim de tornar o processo de individuação harmonioso, ou seja, sua emergência à luz do logos. Por outro lado, o animus extrapola-se na região do lógico através do ego feminino para exercer a mesma individuação. Notemos que todas essas considerações se aplicam apenas à teoria de Jung, segundo a qual uma alma tem um gênero.

De qualquer forma, compreender a autonomia particular da alma imbuída de gênero nos permite visualizar a figura da Anima que provavelmente nos encontrará ao longo da crise financeira global. Esta feminilidade "sem mulheres" ou "além das mulheres" pode muito bem aparecer através de uma série de arquétipos que se manifestarão diacronicamente ou de modo sincrônico sob a forma de figuras femininas gigantes, mulheres escuras, feias e velhas, fadas, ondinas, ninfas, e salamandras, ou na forma de elementos femininos diretamente, como água e terra. A fantasia plástica do logos social decadente produz formas técnicas ou virtuais. No entanto, não é importante se essas figuras da Anima aparecerão por meio de um mau funcionamento no processo de clonagem ou como resultado do desenvolvimento das ilusões visuais da tela totalitária. O mais importante nisso não é a tecnologia do fenômeno da Anima, mas seu significado filosófico. O logos social tem sido, no último milênio, predominantemente masculino. Ao se decompor, ele derramará a fantasia feminina final, assim como, de acordo com a lenda, a semente largada pelo enforcado produz a mandragora ou Alraune (vejam o maravilhoso romance de Hanns Heinz Ewers, Alraune).

Quando pensamos na feminilidade sem as mulheres, queremos enfatizar apenas como a anima está associada ao ego masculino, e isso significa que o pólo pós-antropológico da anima provavelmente estará vinculado aos homens desaparecidos e seu "Eu" naufragante, em vez das mulheres as quais, do ponto de vista lógico, serão relegadas a um nicho existencial específico. Vamos agora considerar exatamente qual tipo de nicho este será.

Animus

Se a anima é o produto do ego masculino puro, então o animus é o produto do puramente feminino. O homem que constitui o sonho da mulher, ou seja, a forma masculina de "es", nunca existiu e não existe. Este não é o ego masculino, mas algo completamente diferente. Príncipe encantado, o cavaleiro nobre, o herói - a mulher dá à luz e povoa a cultura com eles. A mulher criou o homem. No sentido literal, ela o deu à luz. Figurativamente, ela o inventou. O homem foi pensado pela mulher em três formas - como o bebê, o herói e o professor sábio. Estas são as três instâncias do inconsciente. Puer ludens, homúnculo, lilliputiano, a criança que brinca e ri - são sugestões do inconsciente que o ego feminino é capaz de abraçar, compreender e englobar. O marido heróico é o inconsciente na forma com a qual a batalha existencial pode ser travada para apostar sua existência (já que os homens reais que mereceriam isso simplesmente não existem). Finalmente, o professor idoso é o inconsciente na forma de morte que captura a dinâmica do ego feminino e congela-a no gelo da eternidade. Tais homens vivem apenas na psique da mulher e, a partir daí, aparecem nas obras de arte. Os talentosos artistas feminizados leem as delgadas dobras dos sonhos das mulheres e as levam à cultura. E, a partir daí, como padrões, eles assumem o ego masculino, inteiramente diferente em estrutura e estilo, conforme as normas sociais, a ditadura do "superego" e mantêm o status de persona.

O enfraquecimento da pressão da cultura leva os homens a se transformarem no que vemos ao nosso redor hoje, do que o ego feminino recua em desgosto. Estes são os bebês chorões e de nariz escorrendo de hoje, os homens porcos, imundos (na melhor das hipóteses), covardes e gananciosos homens, os velhos e rudes que acumularam durante toda a vida apenas conflitos e maus hábitos. As projeções sociais do espírito feminino mais cedo juntaram imagens de homens heróicos e as impuseram como o padrão. Quando este trabalho foi enfraquecido em um segmento do logos social pelo qual as personalidades femininas eram responsáveis ​​na era do patriarcado, então tudo colapsou. Somente seres estranhos e desordenados de orientações não-tradicionais permanecem - aberrações e esquisitões. O patriarcado era um produto da extrapolação da fantasia feminina.

Então quem o Animus será sem os homens?

Esta será a figura da liberação final da energia feminina, o herói solar, o "super-homem" - inocente como uma criança, cruel como um homem e sábio como um ancião. O diálogo feminino com o inconsciente produzirá a última emissão de energia erótica em uma figura voadora e dourada. Será efêmera e se dissolverá rapidamente, uma vez que, dada a ausência de ordem social (na superfície da qual o resíduo restante irá nadar em algo similar da política rodoviária, que sobreviverá facilmente ao desaparecimento do sentido e da lógica nas coisas), o Animus terá nada através do que garantir sua vontade de poder. Este será o raio de luz do amanhecer absoluto do "fascismo" metafísico, que se mostrará no horizonte apenas para se fundir na iminente noite em um instante.

No entanto, quem sabe, talvez até a contemplação momentânea do nascimento e do desaparecimento de Animus seja um espetáculo que, de forma ilusória, satisfará as grandes expectativas femininas.

O Sujeito Radical

Ainda outra figura terá seu lugar na (anti) utopia pós-crise. Dessa vez, essa personagem não é do arsenal da topologia junguiana, mas das intuições pós-filosóficas da "nova metafísica". Este é o Sujeito Radical descrito esquematicamente em meus livros A Filosofia do Tradicionalismo, A Pós Filosofia e O Sujeito Radical e o seu Duplo. Embora não seja uma figura junguiana, ela pode, no entanto, ser descrita nos termos do "Apocalipse Jungiano".

O Sujeito Radical é a realização da explosão dos arquétipos do inconsciente coletivo à luz do dia junto a um modelo diferente do logos social e cultural que dominou no ciclo da civilização humana conhecida. O Sujeito Radical é o logos alternativo (ou, mais precisamente, o logos em potencialidade portando um número de logoi) que partilha com o logos conhecido até então a sua natureza diurna, mas que pertence ao fundamento inconsciente e mitológico coletivos da sociedade (cultura, civilização) de uma maneira diferente. Em comparação com isso, a gênese do logos anterior (velho) a partir do mythos era questionável em seu próprio início, se não fatalmente equivocada.

Do ponto de vista filosófico, a teoria mais próxima deste modelo é a "Ereignis" de Heidegger, que ele desenvolveu de 1936 a 1944.

O Sujeito Radical é capaz de individuação sob qualquer circunstância na medida em que opere com o logos não como atualidade, mas com o logos como potencialidade, isto é, na esfera que se situa entre o inconsciente coletivo (mito) e sua concentração na atualidade do logos - antes que essa concentração se torne irreversível.

Este é o logos dissolvido, o proto-logos. O Sujeito Radical é a realização do Selbst na sua forma incondicional livre de todas as circunstâncias, e a psique não participa dessa realização, pois estamos lidando (de acordo com Jung e Otto) com os horizontes numinosos do espírito em pura forma além das águas psíquicas, uma espécie de "caminho seco".

A Composição Final 

O escritor Mamleev escreveu uma vez no título de uma de suas histórias: "Estamos prontos para a Segunda Vinda". Isso é certo.

Qual será a combinação dos pólos da pós-antropologia?

Teoricamente, e seguindo simetrias formais, haverá quatro pós-identidades dinâmicas que são relativamente autônomas - a sombra, o anima, o animus e o Sujeito Radical. Pode-se supor que o "diabo-sombra" tentará expandir seu campo para a extensão máxima disponível, ou seja, contra o anima, o animus e o Sujeito Radical.

Como a reduplicação do Sujeito Radical acontecerá, ou seja, o estabelecimento de seu simulacro diabólico - tentei descrever isso no meu livro O Sujeito Radical e seu Duplo no qual com "duplo" temos em mente estritamente isso que Jung se refere como a "sombra", apenas na perspectiva apocalíptica e sociológica que estamos examinando - a sombra do macrocosmo, e não a micropsicologia. Para resumir este livro em uma única frase: distinguir o Sujeito Radical do seu duplo será difícil, e nisso reside o nervo metafísico de todo o drama do mundo (o mundo foi criado à luz do telos desse discernimento final) .

A valência da relação entre a sombra e o Sujeito Radical, entre outras coisas, dará à sombra um valor metafísico, e desse resíduo inercial do logos em dispersão o transformará em uma figura "socialmente" significativa. Aqui, aliás, é bastante pertinente o modelo teológico da compreensão do diabo que, ao contrário do pragmatismo psicológico de Jung (e sua dependência dos gnósticos) forma em relação a esse personagem as proporções adequadas de reação, luta e fuga (se em tal ponto alguém ainda está "tentando decidir", e agora a mente não é simplesmente "não sua", mas desaparece completamente como fumaça).

O Animus dourado, partindo da periferia do horizonte feminino sob o brilho do fascismo absoluto (jamais do histórico) provavelmente não terá relação com Anima ou com a sombra. Para a sombra ela é inacessível, pois nela o ego feminino é liberado de si mesmo, de seu próprio pecado, de sua própria sombra. O ego feminino é a sombra. Mas o que, então, é o ego masculino? Talvez apenas um mal-entendido? Como o Sujeito Radical se relaciona com o Animus desencarnado ainda não está claro. E terá isso algum significado para ele? ...

Agora, a sombra definitivamente tenta aproveitar o Anima líquido, incluí-lo em sua estrutura, talvez pela inércia da memória. Como a física moderna sabe, mesmo as substâncias materiais têm memória. A sombra verá a simetria pós-antropológica com seu ego feminino desaparecendo no nada.

Um outro, quinto, elemento será o pano de fundo, que só pode ser descrito como o "retorno dos deuses antigos" (a fórmula de Heidegger), o surgimento do inconsciente coletivo ou do inferno em sua forma etimológica, à medida que o invisível (Hades) se torna visível (idéia, forma). Na ausência de um logos repressivo, todos os mitos se elevarão sem qualquer controle diacronico ou qualquer ordem (Ordnung). A consciência cristã também consegue compreender isso, como demanda a religião. Em um sentido moral, estritamente religioso, a tentação não deve ter poder ou força sobre o homem salvo, se o mal não assume, em algum momento, características ambíguas que formam uma escolha espiritual e moral - porque o discernimento dos espíritos é um desafio verdadeiramente heróico e um grande feito - e não se dar por garantido como uma banalidade sociocultural. Quando o mal vem sob o disfarce do mal, não é tão difícil rejeitá-lo. Quando ele vem como algo incompreensível e avassalador, de uma só vez, então tomar uma posição estrita é muito mais difícil. Tudo gira e sai do lugar, e é impossível distinguir uma coisa da outra. Este é o mal vigoroso e eficaz.

Isso acontecerá?

Necessariamente acontecerá, uma vez que, por um lado, esse cenário, em termos gerais, tem estado escrito nos textos sagrados da humanidade, enquanto, por outro lado, a sociologia moderna, os estudos culturais, a filosofia e a psicologia analítica têm em suas próprias línguas e terminologias chegado a uma visão mais ou menos parecida. Certamente acontecerá, e precisamente como foi descrito. A questão é quando exatamente?

Todo fracasso na história da civilização, todas as grandes guerras, desastres naturais, revoluções sangrentas e ciclos insanos de desenvolvimento cultural, político, social, econômico e tecnológico pode significar potencialmente o colapso do logos social, que tem claramente e já há muito alcançado a sua saturação e passou pelas principais etapas de sua jornada. O logos social já "nasceu, casou-se e morreu". Isso se tornou óbvio na época de Nietzsche. Heidegger, Spengler, e em um sentido mais amplo, a maioria dos conservadores revolucionários da Alemanha nos anos 20 e 30 viviam exclusivamente com a sensação desse fim.

A Revolução Russa cavalgou essa mesma onda, pelo menos como os poetas, os filósofos e os artistas da Idade da Prata o entendiam (e eles eram os únicos a entender isso corretamente). A proposta de que o proletariado se reconhecesse como uma identidade de classe (especialmente na década de 1920), a literatura de A. Planatov e as poesias de Klyuev, Blok e Mayakovsky já haviam antecipado o movimento pós-antropológico das energias desencarnadas e desumanizadas. A Rus-Sofia de Blok é Anima. Klyuev descreveu em detalhes a geografia do inconsciente coletivo com a minuciosidade de um zoologista ou inspetor alemão. Mayakovsky criou uma ontologia poética dos seres de classe. Platonov explicou como viver e trabalhar através das comunas luminosas, como seus heróis comem a terra (como o personagem Chevengur que chama a si mesmo "Deus"), se transformam em Dostoiévski e prejudicam violentamente e voluptueiramente a realidade de Rosa Luxemburg e da revolução mundial.

Se analisarmos mais profundamente a história, o que a Rus viveu na era do cisma e a Europa durante a Reforma pode muito bem ser atribuído à mesma categoria. O mundo terminou, o logos social se quebrou e desabou, e, por debaixo dos escombros, rastejaram as figuras gigantes do subconsciente indomado.

Não houve poucas repetições da crise atual, e a humanidade está culturalmente pronta para tal. O escárnio que chamamos de "modernidade" com suas quimeras e vazio acabará mais cedo ou mais tarde. Assim, tudo acontecerá, acontecerá em breve e acontecerá exatamente assim. Claro, não descrevemos como, porque vemos tudo como aberto e estamos nos preparando para participar.

E ainda assim existe a probabilidade de que essa bolha explosiva não seja a última (ou a quase última). Heidegger ponderou metafisicamente: "Vivemos perto do ponto da meia-noite - não, parece que ainda não - sempre o eterno 'ainda não'"...

Mas não importa quão frustradas as expectativas de um resultado rápido possam ser, isso não significa que nunca haverá um fim. Pode demorar, mas olhem ao redor. Tudo porta sinais disso. Talvez ele seja adiado mais uma vez, ele vai se dissolver, e a escória vai mais uma vez se alegrará, sentindo que desta vez é "ainda não..." Poderíamos permitir isso, mas, novamente, talvez não ele seja adiado. Mesmo que fosse, é preciso viver - já hoje - como se não fosse ser adiado. E quando viveremos verdadeiramente, fixos no resultado pós-antropológico, vivendo dentro dele mesmo e talvez antecipando seus eventos, então tudo acontecerá.


Acontecerá, ele necessariamente acontecerá.

Mark Hackard - Disney Manifesta

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por Mark Hackard



Ao passo que nos aproximamos de outro dia da independência na América, vale a pena refletir sobre o significado do status excepcional tão anunciado de nosso país. Nossa terra é de fato bela e abençoada de muitas maneiras, lar de milhões de almas amáveis e generosas. Mas fingir que tudo está bem seria como assobiar ao passar por um cemitério. Os Estados Unidos, devemos lembrar, nunca foi concebido como uma nação orgânica, mas como um construto revolucionário, o arauto de uma Novus Ordo Seclorum em seu alvorecer. E então o seu progresso está sempre irrealizado, sua natureza não é o ser, mas o transformar-se, a sua vastidão um laboratório para alquimia social em escala continental. E ainda, de todas as tentativas para identificar o significado do sonho americano, nenhuma representou sua essência de maneira mais apta do que um humilde monge ortodoxo, o abençoado Fr. Seraphim Rose:

"Pode-se tomar, como símbolo de nossos tempos despreocupados, divertidos, de auto adoração, a Disneylândia americana; se assim o for, nós não devemos deixar de reconhecer por trás dela o símbolo mais sinistro que mostra para onde a “geração eu” está realmente indo: o Gulag soviético".

Fr. Seraphim escreveu essas palavras em 1982, o ano de seu repouso aos 48 anos, e o seu significado hoje só pode ser considerado profético. Nativo do sul da Califórnia, Fr. Seraphim viu a Disneylândia como a analogia mais apropriada para o Ocidente moderno e seu principal estado, a América. Nenhum lugar encerra melhor uma sociedade de falsidade, “diversão”, e narcisismo do que o reino mágico, ele próprio o centro de um império midiático cujos tentáculos governam incansavelmente segmentos de mercado da infância à maioridade, bombardeando populações em todo o mundo com “entretenimento” instrumentado, ou seja, guerra psicológica, subversão com um sorriso. E enquanto a América batalha pelo seu destino, realizando de maneira cada vez mais perfeita os princípios revolucionários de liberdade e igualdade, então nós testemunhamos a evolução da Civilização da Disneylândia em sua expressão máxima, o Gulag digital.

Nunca antes, dizemos a nós mesmos freneticamente, fomos tão livres, enquanto a NSA e transnacionais gigantes do ramo da tecnologia constroem uma rede de monitoramento outorgando aos nossos soberanos um controle sem precedentes sobre cada aspecto da vida. Nunca fomos tão liberados e “empoderados” como agora, nós declaramos em frenesi orgiástico, enquanto toda e qualquer ligação tradicional é sistematicamente reduzida a trilhas de risadas enlatadas. Nações, tribos, culturas, devem todas desaparecer para incorporar uma nova e melhorada classe de escravos consumidores para servir melhor aos desígnios de nossos mestres oligarcas. Cada distinção humana, até mesmo entre homem e mulher, deve ser eliminada à medida que o poder sobre a hereditariedade será domínio da elite tecnocrática governante, os incipientes deuses-máquinas. 

A distopia não está em um futuro remoto e obscuro; a distopia é agora. Bem-vindo à Terra do Amanhã. Nós descendemos mais em direção à fantasia ao invés de trilhar o caminho difícil do arrependimento, escravizados a telas brilhantes que jogam com nossos desejos mais ínferos. A América Disney, o fim da história, representa o triunfo do simulacro de apocalipse de Jean Baudrillard. Uma cópia sem o original, o simulacro chega como anunciante da nossa dissolução, com o absurdo cartunesco e irreal defendido como nobre e correto. Uma falsa religião no espírito do Grande Inquisidor de Dostoiévski ganha forma perante nossos olhos – o tour misterioso do milagre pós-moderno. Sacramentos são invertidos para celebração pública, e a própria humanidade desintegra-se no reino da quantidade. Eu me tornei Pateta, o destruidor de mundos.

“Não viva de mentiras”, Aleksandr Solzhenitsyn nos aconselhou. Se aproxima rapidamente o tempo em que desafiar a falsidade da ordem estabelecida irá trazer não só sanções legais e administrativas, mas violência organizada. As mentiras desmascaradas revelam a face de seu criador, que deseja apenas morte espiritual. O homem faustiano trocou sua alma pelo reino mágico de Mamon, um parque de diversões-e-campo de concentração de alta tecnologia. A civilização da Disneylândia e suas ilusões vai durar apenas por um curto período de tempo, assim como o mundo e toda a sua glória, embora nesse meio tempo ela irá tornar-se mais bestial em sua desumanização e perseguição da verdade. Que Deus nos conceda – tanto homens como todos os povos, especialmente os americanos nesse dia – a força férrea do arrependimento, que possamos suportar até o final.

Alain de Benoist - Terra do Leite e do Mel

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por Alain de Benoist



Ninguém gosta de ser objeto de crítica, e os americanos não são exceção. E quando alguém é o alvo de críticas, não se deve esperar que ele sempre concorde com elas. É importante, porém, compreender essa crítica, levá-la a sério em seus próprios termos, e não simplesmente descartá-la como se fosse inspirada por malícia, inveja ou ignorância.

A crítica que a Nova Direita francesa lançou contra a América a fez receber um rótulo injustificado de ser inspirada por algum tipo de chauvinismo francês oculto ou por algum tipo de fobia "anti-americana". E vezes demais a crítica da Nova Direita não foi entendida bem o bastante. Alguns americanos (eles próprios críticos do que seu país se tornou agora e de como ele evoluiu) assumem que a crítica é dirigida primariamente à América de hoje. Isso não é verdade. A crítica que a ND dirige contra a América tem como alvo, na verdade, a própria base do que chamamos de "ideologia americana", uma ideologia que tem suas origens nos Pais Fundadores. Ou para falar de outro jeito, essa não é uma crítica da América multirracial (ou "multicultural") dos tempos modernos e pós-modernos, mas essencialmente uma crítica dirigida contra a América criada por brancos e cristãos anglo-saxões.

A Europa jamais declarou guerra contra os EUA. É evidente, porém, que desde seu início, os Estados Unidos da América tem tido contas a acertar com a Europa. A Europa nasceu de um desejo de ruptura com a Europa. O que as comunidades imigrantes no Novo Mundo desejavam em primeiro lugar era se livrar das regras e princípios políticos que dominavam na Europa. A nação americana nasceu de uma forma contratual durante a era da modernidade, evocando bastante a "cena primal" como imaginada por Sigmund Freud: os filhos se unem para matar seu pai e, depois, eles rascunham um contrato sancionando a relação entre iguais.

Evidentemente, o pai nesse esquema era a Europa. Foi necessário romper com o passado para criar uma nova humanidade. Assim, em O Federalista nós lemos:

"Se medidas importantes não tivessem sido tomadas pelos líderes da Revolução para as quais não era possível descobrir precedentes; nenhum governo estabelecido do qual um modelo exato não fosse apresentado, o povo dos Estados Unidos poderia, neste momento, ser contato entre as vítimas melancólicas de conselhos equivocados, estaria na melhor das hipóteses estar labutando sob o peso de algumas daquelas formas que esmagaram as liberdades do resto da humanidade. Felizmente, para a América e nós confiamos para toda a raça humana, eles buscaram um caminho novo e mais nobre. Eles realizaram uma revolução que não tem paralelo nos anais da sociedade humana. Eles criaram os tecidos de governos que não tem modelo sobre a face do mundo". (1)


Similarmente, foi contra a Europa que em dezembro de 1823 James Monroe afirmou a posição central de sua famosa "Doutrina", isto é, que nenhuma intervenção europeia deveria ser tolerada em qualquer ponto que seja do continente americnano. "Temos ouvido por tempo demais às musas cortesãs da Europa", exclamou por sua vez o poeta e filósofo Ralph Waldo Emerson no século XIX. "Em muitos sentidos" como Dominique Moisi e Jacques Rupnik afirmam, "América é a anti-Europa. Ela nasceu de um desejo de criar uma 'nova Jerusalém' na terra para superar os limites e erros da história europeia".



Dado que a cidadania americana está fundada em um contrato entre imigrantes de diversas origens, segue-se que todas idiossincrasias culturais devem ser relegadas à esfera privada, o que significa que elas devem ser temporariamente mantidas fora da noção de cidadania. Essa demanda se encaixa perfeitamente com a filosofia individualista dos Pais Fundadores. Foi na América, pela primeira vez, que uma sociedade construída composta exclusivamente de indivíduos e não de grupos, tal como o próprio capitalismo pressupunha um tipo de individualismo orientado em primeiro lugar para a possessão privada.


Às vezes a indiferença dos americanos pela história é explicada por uma duração relativamente curta da existência de seu país. Essa explicação não parece convincente. Afinal, dois séculos é um período de tempo longo. Na verdade, o problema não é tanto que os americanos "não tem história", mas que eles não querem ter uma. Eles não terem ter uma porque, para eles, o passado é reminiscente de suas raízes europeias, que eles outrora tentaram descartar. "Este é o único povo sem quaisquer raízes e genealogia", escreveu, afetuosamente, o autor liberal Guy Sorman. Thomas Jefferson expressou a mesma ideia ao dizer que cada geração forma uma "nação separada". "Os mortos", disse ele, "não possuem direitos". Daniel Boorstin, ex-diretor da Biblioteca do Congresso, escreveu que "a noção de americanos hifenados é anti-americana. Eu creio haver apenas americanos. Polaco-americanos, ítalo-americanos ou afro-americanos são uma ênfase infértil.... Os americanos preferem ser chamados por seus primeiros nomes e abandonam os nomes de sua herança. O mesmo se aplica a objetos, a tendência sendo na direção do insustentável e do descartável".

A mesma observação foi feita por Christopher Lasch, que escreveu que nos EUA "a remoção das raízes sempre foi vista como pré-requisito para liberdades ampliadas". Daí, a América pode ser descrita como uma civilização do espaço e não uma civilização do tempo. Seu mito fundador não é a origem, mas a fronteira, o que em 1893 Frederick Jackson Turner interpretou como a noção mais representativa do ideal americano, isto é, a aspiração à "conquista do espaço". "O que outras pessoas experimentam como história", observa Jean-Paul Dollé, "os americanos percebem como um sinal de subdesenvolvimento".

E os americanos não quiseram romper apenas com a Europa. Eles também quiseram criar uma nova sociedade que regenerasse a humanidade. Eles queriam criar uma nova "terra prometida" que se tornaria o modelo da República Universal. Esse tema de inspiração bíblica, baeado na ideia de uma América "escolhida", desde seus primórdios e por uma escolha supostamente divina, constituiu a fundação de uma "religião civil" e do "excepcionalismo" americano. Ele seguiu ressurgindo como leitmotif ao longo da história americana, desde os dias dos Peregrinos, como quando o teólogo da Baía de Massachusetts John Cotton sugeriu a adoção do hebraico como idioma oficial para as  ex-colônias britânicas. John Winthrop, o primeiro governador da Colônia da Baía de Massachusetts, que foi fundada em 1629, afirmou:

"Devemos sempre considerar que seremos como uma cidade sobre uma colina, os olhos de todos estão sobre nós. Hoje os olhos de todos estão verdadeiramente sobre nós, e nossos governos, em cada seção, em cada nível, estado nacional e local deve ser como uma cidade sobre uma colina". (2)

Declarações similares foram feitas por William Penn, o chefe da colônia quaker da futura Pensilvânia, apenas para ser ecoado pelos colonos da Virgínia. Tão cedo quanto 1668, William Stoughton exclamou: "Deus peneirou uma nação inteira para que ele pudesse enviar os melhores grãos para este ermo" (3). Para Daniel Webster, os Estados Unidos são uma "terra prometida":


"Se de fato ele designou pro Providência que a mais grandiosa exibição de caráter humano e acontecimentos humanos seria feita neste teatro do mundo ocidental". (4)


Thomas Jefferson define um único conjunto de direitos individuais e coletivos para todos os homens. Influenciado pela doutrina dos direitos naturais, esses direitos eram tidos com osendo universal e válidos em todos os tempos e lugares. Em 13 de novembro de 1813, John Adams exortou os americanos em prol de "nossa pura, virtuosa e pública república federativa que durará para sempre, governará o globo e introduzirá a perfeição do homem" (5). Mesmo em 1996, o senador "conservador" americano Jesse Helms exclamou, "Os Estados Unidos devem liderar o mundo com a tocha moral... e servir como um exemplo para todos os povos".

O objetivo não é apenas receber os pobres e refugiados, como proclamado na inscrição no pedestal da Estátua da Liberdade:


"'Mantenham antigas terras sua pompa histórica!', grita ela

Com lábios silenciosos 'Dai-me os seus fatigados, os seus pobres,
As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade
O miserável refugo das suas costas apinhadas
Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades,
Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado'" (6)


O objetivo também é permitir que os recém-chegados se vinguem contra o país de sua origem. E também continuar a proceder de uma maneira que eventualmente levaria todo o mundo a se impregnar com a ideia de que a sociedade americana é a sociedade perfeita e que os descendentes dos puritanos são os eleitos de Deus. Ademais, foi a teologia puritana do "Pacto" que inspirou a doutrina do Destino Manifesto, como apresentada por John L. O'Sullivan em 1839:


"Nosso nascimento nacional foi o comçeo de uma nova história de formação e progresso de um sistema político ainda não experimentado, que nos separa do passado e nos conecta apenas com o futuro; e no que concerne todo o desenvolvimento dos direitos naturais do homem, na vida nacional, política e moral, nós podemos confiantemente assumir que nosso país está destinado a ser a maior nação do futuro.... Quem, então, pode duvidar que nosso país esteja destinado a ser a maior nação do futuro?" (7)


Em outras palavras, se Deus escolheu favorecer os americanos, eles devem ter o direito a converter outros povos no que quer que eles achem melhor e mais prático.


Daí, por um lado estamos testemunhando isolacionismo; a América deve se separar do mundo exterior, que é visto como corrupto. Por outro lado, há uma necessidade por uma "cruzada", o mundo deve ser gradativamente penetrado pelos valores universais do sistema americano. Na economia, políticas de livre-comércio jamais proibiram o uso de protecionismo, quando quer que fosse necessário; similarmente, na política externa, o isolacionismo, associado ao espírito de "cruzada", podem marchar lado-a-lado. Estes são dois lados da mesma vocação messiânica e um exemplo típico de como o universalismo político é só uma máscara para o etnocentrismo, isto é, um modelo peculiar com ambições planetárias.

Essa certeza subjacente explica a estabilidade extraordinária do sistema americana. No curso de sua história, os EUA só conheceram um único modelo político importante, um modelo que permaneceu virtualmente imutável desde os dias dos Pais Fundadores. A Constituição, bastante inspirada por Locke, e falando de modo geral pela filosofia do Iluminismo, e peneirada por meio do puritanismo, se tornou um tipo de monumento sagrado que faz do americanismo uma religião genuína. Estejam eles à direita ou à esquerda, todos os americanos estão de acordo no fato de terem uma missão de espalhar "a palavra" para a humanidade. Mesmo os utopistas mais frenéticos não põem em questão a autoridade da Constituição ou a superioridade da iniciativa individual. O sistema pode ser razoavelmente melhorado ou reformado, mas ele deve permanecer fundamentalmente imutável, na medida em que ele se mistura com a própria existência do país. Enquanto na Europa ainda é possível fazer referência a alguns entre incontáveis modelos políticos que existiram no passado, o debate político na América se reduz a discussões sobre os méritos relativos de Hamilton, Jefferson, Washington, et al. Fascismo e comunismo nunca tiveram qualquer impacto real nos EUA, nem a ideia de contrarrevolução, nem o marxismo crítico, nem o sindicalismo revolucionário, nem o anarcossindicalismo, o situacionismo, etc. Nas universidades, os cursos de Ciência Política usualmente envolvem longas discussões sobre a obra dos Pais Fundadores, que são retratados como pessoas com um legado insuperável. Mesmo o eterno debate entre federalistas e anti-federalistas, entre hamiltonianos e jeffersonianos, é, na verdade, uma disputa familiar, que jamais questiona o consenso político subjacente.

A política doméstica americana é muitas vezes reduzida a uma competição entre os dois principais partidos, que aos olhos dos europeus dizem mais ou menos a mesma coisa. As competições eleitorais, com as suas convenções organizadas como espectáculos de circo, são inteiramente dependentes do dinheiro. A "democracia" na América equivale a oligarquia financeira. As eleições são efusões financeiras da classe bilionária. Para os americanos, é considerado natural que os políticos sejam ricos (na minha opinião, a sociedade deve ser extremamente cética de qualquer pessoa que seja rica e poderosa ao mesmo tempo) assim como é natural que os políticos exibam suas esposas e filhos em eventos públicos, enquanto multiplicam slogans religiosos em seus discursos. Na Europa continental, um Chefe de Estado dirigindo-se seus eleitores com um "Deus te abençoe" e convidando os parlamentares para um dia de oração e jejum seria visto por muitos como uma pessoa pronta para o hospício...

O outro lado dessa paralisia institucional é o formidável conformismo e a extraordinária monotonia de uma sociedade que, década após década, afirma, com a mesma convicção dócil, que a América é um "país livre", enquanto adere aos mesmos modos, cumprindo as mesmas convenções, repetindo os mesmos slogans e, claro, usando os mesmos uniformes (jeans e t-shirts com um logotipo de uma universidade jamais frequentada ou uma equipe de beisebol da qual não se é membro). Esta monotonia já foi descrita por Alexis de Tocqueville, que observou que a sequência de comoção e modas fugazes nunca augura nada novo na América. Aproximadamente ao mesmo tempo, a Condessa de Merlin também observou que a vida dos americanos é "um curso eterno de geometria".

A mesma certeza messiânica inspira a política externa americana, cujo princípio principal é que o que é bom para a América deve também ser bom para o resto do mundo, o que, por sua vez, deve permitir que a América espere de seus aliados contribuições financeiras e aplausos. Como um disfarce secularizado do ideal puritano, a política externa está baseada na ideia de queapenas a falta de informação ou o mal intrínseco de líderes estrangeiros explica a relutância de pessoas ao redor do mundo em abraçar o modo de vida americano. Como Jean Baudrillard escreveu, os Estados Unidos são uma sociedade "cuja ingenuidade pode ser descrita como insuportável e cuja ideia fixa é a de que a América é a completude perfeita de tudo com que os outros sonham". (8)


As "relações internacionais" não passam de uma difusão global do ideal americano a nível planetário. Como assumem que representam o modelo de perfeição, os americanos não se sentem obrigados a conhecer os outros. Resta para os outros adotar o jeito americano. "A troca é desigual", observa Thomas Molnar, "porque a América não tem nada a aprender, mas tudo a ensinar" (9). E, de fato, tudo o que acontece na América deve eventualmente acontecer em outro lugar do mundo. Em outras palavras, a política externa tem como objetivo a criação de uma humanidade unificada que não precise mais de nenhuma política externa. Nessas circunstâncias, não se deve surpreender que as derrotas enfrentadas pelos Estados Unidos na arena internacional sejam freqüentemente resultados da incapacidade dos EUA de compreender que outros povos pensam de forma diferente do que eles. Na verdade, para os americanos, o mundo externo ("o resto do mundo") simplesmente não existe, ou melhor, só existe na medida em que se torna americanizado - uma condição prévia necessária para tornar-se compreensível.


Muitos observadores notaram a importância da religião na sociedade americana. "Em Deus confiamos" está escrito em todas as notas bancárias, e desde 1956, tornou-se lema nacional. Nos EUA, quase todas as cerimônias oficiais são precedidas ou seguidas por uma oração. Já em 1923, o Reverendo B. Soames declarou em Washington, durante uma bênção solene do equipamento militar: "Se Jesus Cristo voltasse à Terra ele seria branco, americano e orgulhoso disso!". Tocqueville já havia notado:

"É a religião que pariu as sociedades anglo-americanas. Nunca se deve esquecer isso; nos EUA, a religião está, portanto, misturada com todos os hábitos nacionais e com todos os sentimentos aos quais um país nativo dá origem". (10)


A religião é normalmente redefinida em um sentido otimista, consistente com as demandas do materialismo prático e com as aspirações do povo que nunca deixou de crer nas virtudes da tecnologia e que espontaneamente assume, dado que o sentido do trágico é alheio a ele, que de alguma forma as coisas sempre se acertarão no fim. O conhecido professor americano Thomas L. Pangle, em seu estudo sobre Montesquieu e sua influência sobre os Pais Fundadores, sugere que a adoração do republicanismo liberal comercial e do espírito do comércio como o melhor regime "se opunha fundamentalmente, não apenas à insegurança, mas também à virtude cívica austera da antiguidade republicana e à autotranscendência religiosa ou sobrenatural". (11)



O ponto principal é a reconciliação da religião com o otimismo herdado do Iluminismo e arraigado na direção que aponta para o futuro e para a mística do progresso. De John Winthrop a George W. Bush e Barack Obama, os americanos jamais desistiram da crença no progresso, que usualmente os leva à conclusão de que desenvolvimentos materiais e tecnológicos também melhorarão a humanidade. Nesse nosso mundo, somente pelo acúmulo de bens materiais pode uma pessoa ser salva. Daí a ideia de "redenção" pela conversão ao modo de vida americano. O calvinismo já havia tentado resolver este problema da "predestinação" interpretando o sucesso material como sinal de escolha divina. A glorificação da performance individual, o espírito do capitalismo, as virtudes pacificadoras do comércio, tudo isso nutre esperança de que o acúmulo de riqueza eventualmente aniuilará todo mal. O mal se torna um "erro", um estado de imperfeição que deve ser eventualmente ultrapassado por mais comércio e "desenvolvimento" econômico. A partir de agora, não é mais a ética que justifica os interesses, mas o interesse que tenta justificar a ética. Em sua carta de 1814, dirigida a Thomas Law, Jefferson escreveu: "A resposta é que a natureza constituiu a utilidade para o homem como a maior das virtudes" (12). Cem anos depois, o juiz Oliver Wendell Holmes acrescentou:


"O melhor teste da verdade é o do pensamento de conseguir ser aceito na competição do mercado, e essa verdade é o único fundamento sobre o qual seus desejos podem ser realizados com segurança".(13)


Parece que na América a verdade se tornou uma questão comercial. Televangelistas pregam o "evangelho da prosperidade", ficar rico é sinal de ser salvo, antes de fazer seus constantes apelos por doações.


Os puritanos retiveram de Locke a ideia de que todos os outros direitos humanos derivam do "direito natural à propriedade". Para Madison, "o primeiro objetivo do governo"é garantir a aquisição de propriedade. Em 1792, ele disse: Em uma palavra, como é dito que o homem tem um direito à sua propriedade, pode-se dizer igualmente que ele tem uma propriedade em seus direitos" (14). Direitos são interpretados como atributos inerentes à natureza humana, algo que os indivíduos possuem por causa de sua pertença à espécie humana, e são estes direitos que os governos devem "garantir".

A Nova Direita rejeita totalmente essa noção de direitos subjetivos, que se opõe de forma absoluta à noção tradicional de lei objetiva. Nessa perspectiva, o direito é uma relação de equidade, que permite a todos conquistar o que lhe cabe. Similarmente, a Nova Direita rejeita a ideia de que a propriedade privada deva ser um absoluto.

Tal ideia do homem era inerente às bases de uma sociedade apropriadamente descrita por Ezra Pound como uma "civilização puramente comercial". Suas palavras ecoam as de Tocqueville:

"As paixões que agitam os americanos mais profundamente são paixões comerciais e não paixões políticas, ou melhor, eles levam os hábitos do comércio para a política". (15)


A América certamente não é a primeira república comercial na história, mas ela é a primeira a ter afirmado que absolutamente nada deve limitar as atividades econômicas, por elas serem os melhores meios para se atingir o melhoramento de toda a humanidade. Estando por conta própria, o indivíduo conta na medida em que sua atividade externa segue crescendo. Naturalmente, apenas sua performance econômica pode medir adequadamente o seu valor. "Na América", escreveu Hermann Keyserling, "as pessoas realmente creem que os ricos são superiores simplesmente por terem dinheiro; na América, ter dinheiro cria, de fato, direitos morais".


Max Horkheimer e Theodor W. Adorno observaram a partir de sua perspectiva:

"Aqui na América, não há diferença entre um homem e deu destino econômico. Um homem é feito de seus bens, renda, posição e prospectos. A mistura econômica coincide completamente com o caráter interior de um homem. Todo mundo vale o que ganha e ganha o que vale". (16)


A competição capitalista representa o mais ético tribunal: os ricos são os "vencedores", e os "vencedores" são os justos. Essa é a primazia da civilização do ter sobre a civilização do ser.


Tais traços não contribuem muito para o pensamento meditativo e para a reflexão interior. Quando o elo com outros é nutrido apenas pelo respeito por bens materiais e pelo Todo-Poderoso Dólar, o resultado é alienação sem fronteiras. Para os americanos, nota Anaïs Nin em seu diário, "é um pecado ter uma vida interior". Essas palavras podem soar excessivas, mas ainda assim elas refletem as mesmas conclusões do americano Christopher Lasch. Nos EUA há uma tendência consistente de crer que a inteligência deve ser reduzida a conhecimento técnico e que a fixação com questões econômicas deve ajudar a dispensar com o mundo das ideias puras. Quem quer que tente expressar uma ideia original e profunda corre o risco de se deparar com a resposta: "Não seja tão negativo. Seja prático! Pense positivo!".

Para os Pais Fundadores o propósito do governo era garantir os "direitos inalienáveis" dos indivíduos que foram "criados iguais". Assim, a vida política foi reduzida à moralidade e à lei. O dissidente americano H.L. Mencken brincou que o exato oposto era verdadeiro:

"O pior governo é o mais moral. Um governo composto de cínicos é não raro bastante tolerante e humanista. Mas quando fanáticos estão no topo não há limite para a opressão". (17)


Nos Estados Unidos, a ação política deve sempre começar com uma súbita onda de consciência moral ("Algo deve ser feito em relação a isso!"), o que invariavelmente leva a um exame "técnico" do assunto em questão. A própria lei é um modo de expressão que estabelece formas jurídicas de características morais inerentes à ideologia dos direitos humanos. Daí a extraordinária importância dos advogados na política americana, que Michel Crozier chama de "delírio dos procedimentos" e "loucura legal". Enquanto isso, a superioridade intrínseca da vida privada sobre a vida pública deve ser declarada em voz alta em todos os lugares; a "sociedade civil" sobre o mundo da política, os negócios e a competição econômica sobre o bem comum. "Um americano, seja ele um funcionário do governo ou homem na rua", escreve Thomas Molnar, "está convencido de que a política enquanto tal é uma coisa ruim e que as pessoas precisam encontrar outra coisa para se comunicar e estabelecer relações pacíficas". Como afirmei acima, os americanos estão inclinados a pensar que o mal poderia desaparecer e que é possível remover o traço trágico da existência humana. É por isso que eles querem abolir a política e, ao mesmo tempo, levar a história a um fim. "A América foi construída para que ela possa sair da história", escreveu Octavio Paz. O "neoconservador" americano Francis Fukuyama acreditava poder anunciar seu fim.


Travar guerras sempre significou para os americanos uma "cruzada" de moralidade. É por isso que não é suficiente para eles obter apenas a vitória militar. Eles também devem aniquilar o inimigo, que é invariavelmente retratado não como um líder ou um Estado que por acaso é adversário, mas como a encarnação do mal. Sob o disfarce de "intervenção humanitária" ou batalhas contra "terroristas", as guerras americanas são sempre "guerras justas", isto é, guerras de justa causa - e não guerras contra um justus hostis ("inimigo justo"). Por isso, o inimigo deve ser invariavelmente descrito não apenas como o inimigo do momento (que poderia eventualmente se tornar um aliado no futuro), mas como um criminoso que merece punição e reeducação.

As diferenças parecem ser profundas entre o pensamento político na Europa continental e a mentalidade americana, marcada por uma visão econômica, comercial e processual do mundo, pela onipresença dos valores bíblicos, bem como pelo otimismo tecnológico, pelo contratualismo, a linguagem de "direitos", e a crença no progresso.

Eu acho que conheço os Estados Unidos bem, como eu perambulei por lá em muitas ocasiões. Eu viajei em todas as direções, de Washington, DC, para Los Angeles, de Nova Orleans para Key Largo, de San Francisco para Atlanta, de Nova York para Chicago. Eu, obviamente, me deparei com uma série de coisas de que gostei muito. Os americanos são amigáveis ​​e acolhedores (mesmo que o relacionamento humano seja frequentemente superficial). Eles têm um senso tangível de comunidade. Suas maiores universidades oferecem condições de trabalho com as quais os europeus só poderiam sonhar. Não consigo esquecer a influência que os filmes americanos tinham sobre mim em um momento em que eles não estavam limitados a efeitos especiais ou besteirol de super heróis. Especialmente impressionante para mim, eram figuras da literatura americana como Mark Twain, Edgar Allan Poe, Herman Melville, John Steinbeck, Ernest Hemingway, John Dos Passos, William Faulkner e outros. Mas também detecto o lado reverso do "modo de vida americano": a cultura vista como mercadorias perecíveis ou como "entretenimento", uma concepção tecnomórfica da vida humana, destinada a transformar as pessoas em terminais remotamente controlados ou computadores, relações de gênero falsas, uma civilização automobilística e arquitetura comercial (há uma sociabilidade mais genuína em um mercado local africano do que em um supermercado americano - um símbolo privilegiado do niilismo ocidental), crianças obesas educadas pela televisão, glorificação dos "vencedores" e a obsessão pelo consumo, fast food, uma mistura de decretos puritanos e transgressões histéricas, corrupção hipócrita, etc. Sim, estou ciente do risco de ser acusado de parcialidade. Mas devo admitir que, para a América dos "meninos dourados", dos "rednecks", dos "fisioculturistas" e "bimbos", do "sonho americano" e das líderes de torcida, dos "fazedores de dinheiro" e "corretores" em Wall Street, não tenho a menor simpatia.

O globalismo é hoje sinônimo de americanismo? Somos tentados a responder afirmativamente. O fato é que os Estados Unidos nunca deixaram de exportar seus problemas para o resto do mundo, começando pela Europa. Nas pesquisas de opinião, a hostilidade em relação à globalização é muitas vezes acompanhada pela rejeição da hegemonia americana. Políticamente e culturalmente, a globalização significa, em grande parte, um processo de americanização, já que a superpotência dominante continua exportando suas mercadorias, seu capital, seus serviços, sua tecnologia, mas também sua "indústria do imaginário", sua cultura, sua linguagem, seus padrões de vida e sua própria cosmovisão.

Mas ao invés de americanização, não seria mais apropriado falar em "ocidentalização"? Muitos americanos se consideram "ocidentais", com alguns até mesmo usando o termo "O Ocidente" como sinônimo do "mundo branco" (politicamente uma expressão sem sentido).

Etimologicamente, "o Ocidente"é um lugar onde o sol se põe, um lugar onde as coisas perecem, e onde a história chega ao fim. No passado, este termo designava um dos dois impérios (pars occidentalis) nascidos do desmembramento do Império Romano. Subsequentemente, o termo se tornou sinônimo da "civilização ocidental". Hoje, como muitos outros termos, ele está em processo de assumir uma aura econômica, na medida em que os países ocidentais são primariamente designados como países "desenvolvidos". Este não é um termo, porém, que eu uso em sentido positivo. Em minha opinião, "o Ocidente" se tornou agora o veículo, em contraste com a Europa, de um modelo social que se tornou a imagem espelhada do niilismo. Durante minhas viagens ao redor do mundo, eu testemunhei o que acontece a culturas enraizadas quando elas são afetadas pelo "Ocidente": tradições rapidamente são transformadas em folclore para turistas, laços sociais são desfeitos, os mores se tornam utilitários, a linguagem e a música americana permeiam a mente, e a paixão pelo dinheiro se torna sobrepujante.

Muitas vezes, é entendido pela expressão "O Ocidente", o agregado composto pelos Estados Unidos da América e pela Europa. Mas este agregado, supondo que alguma vez tenha existido, já está desmoronando, como já foi observado há alguns anos por Immanuel Wallerstein.(18) A lacuna transatlântica se amplia cada dia mais e mais. A globalização, ao mesmo tempo que exacerba a concorrência, revela profundas divergências entre interesses europeus e interesses americanos. No nível geopolítico, as divergências são ainda mais flagrantes: os Estados Unidos são um poder marítimo, enquanto a Europa é um poder continental. Como foi demonstrado por Carl Schmitt, a lógica de Terra vs. Mar representa duas lógicas conflitantes.(19) A Terra se opõe ao Mar, assim como a política se opõe ao comércio, o limite à onda, o elemento telúrico ao elemento oceânico. Portanto, eu não me identifico como "ocidental". Eu sou europeu.

Visto do ângulo da economia, o capitalismo não nasceu em todo o Atlântico, embora tenha sido lá que ele foi incorporado à ideologia nacional: o primado do contrato, a redução do Estado, a crítica do "governo grande", a defesa da concorrência e do livre comércio, etc. É também nos Estados Unidos que nasceu o conceito de "governança" - primeiro aplicado aos negócios e depois à vida política e social. Não deve ser uma surpresa que, desde 1945, a economia dos EUA se tornou o palco central do sistema financeiro internacional. Foram os Estados Unidos que estabeleceram em 1947 o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), sucedido em 1995 pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Essas foram as instituições que liberaram os movimentos de capital em 1974, a fim de financiar os déficits da América. No âmbito do capital financeiro, a América ainda mantém uma participação muito maior em relação ao seu setor industrial. Ela estabelece as regras para o comércio internacional, enquanto suas políticas monetárias continuam sendo o principal mecanismo de regulamentação da acumulação financeira em todo o mundo.

Assim como muitos europeus, eu fico impressionado com o fato de os conservadores americanos defenderem, quase sem exceção, um sistema capitalista cuja expansão destrua metodicamente tudo o que supostamente desejam conservar. Apesar da crise estrutural que o sistema capitalista experimentou nos últimos dois anos, os conservadores americanos continuam a celebrar o capitalismo como um sistema que supostamente respeita e garante a liberdade individual, a propriedade privada e o livre comércio. Eles acreditam nas virtudes intrínsecas do mercado, cujo mecanismo eles apreciam como um paradigma de todas as relações sociais. Eles acreditam que o capitalismo tem algo a ver com democracia e liberdade. Eles acreditam na necessidade metafísica, não apenas econômica, do "crescimento" perpétuo. Eles pensam que o consumo é igual à felicidade e que "mais"é sinônimo de "melhor".

O capitalismo, no entanto, não é "conservador". É o oposto disso. Karl Marx já observou que o desmantelamento do feudalismo e a erradicação das culturas e valores tradicionais são o resultado do capitalismo que, por sua vez, afoga tudo na "água gelada do cálculo egoísta". (20) Hoje, o sistema capitalista, mais do que nunca antes, está voltado para o excesso de acumulação de capital. Precisa de mais lojas de comércio, mais e mais mercados e mais e mais lucro. Bem, tal objetivo não pode ser alcançado a menos que tudo o que esteja no caminho seja desmantelado, começando pelas identidades coletivas. Uma economia de mercado de pleno direito não pode operar de forma sustentada, a menos que as pessoas internalizem uma cultura modista, o consumo e o crescimento ilimitado. O capitalismo não pode transformar o mundo em um mercado vasto - o que, com certeza, é seu principal objetivo - a menos que o planeta seja achatado e todas as pessoas renunciem à sua imaginação simbólica e continuem a indulgir em uma febre pela acumulação infinita de algo novo.

Esta é a razão pela qual o capitalismo, na tentativa de apagar as fronteiras, também é um sistema que se tornou muito mais efetivo e muito mais destrutivo do que o comunismo. A razão para isso é que a lógica econômica coloca lucro acima de tudo. Adam Smith escreveu que o comerciante não possui pátria além do território onde ele consegue o maior lucro. É a essa lógica da mercadoria, inspirada frequentemente pelos Estados Unidos da América, que a Nova Direita se opõe firmemente.

Lucian Tudor - A Revolução Conservadora e seu legado

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por Lucian Tudor


Durante os anos entre a Primeira Guerra Mundial e o estabelecimento do Terceiro Reich, as crises políticas, econômicas e sociais que a Alemanha experimentou de repente como resultado de sua derrota na Primeira Guerra Mundial deram origem a um movimento conhecido como "Revolução Conservadora" que também é comumente referido como "Movimento Revolucionário Conservador", com seus membros às vezes chamados de "Conservadores Revolucionários" ou até "Neoconservadores".

A frase "Revolução Conservadora" foi popularizada como resultado de um discurso em 1927 pelo famoso poeta Hugo von Hofmannsthal, que era um católico conservador cultural e monarquista [1]. Aqui, Hofmannsthal declarou: "O processo do qual falo é nada menos que uma revolução conservadora a uma escala tal como a história da Europa nunca conheceu. Seu objeto é a forma, uma nova realidade alemã, na qual toda a nação irá compartilhar". [2]

Embora essas frases dêem a impressão de que a Revolução Conservadora foi composta por pessoas que compartilhavam a mesma visão de mundo, isso não foi o caso porque os pensadores e líderes da Revolução Conservadora geralmente tinham desentendimentos. Além disso, apesar do fato de que as ideias filosóficas produzidas por este "novo conservadorismo" influenciaram o nacional-socialismo alemão e também tinham vínculos com o fascismo, é incorreto assumir que as pessoas que o pertencem são fascistas ou "proto-nazistas". Embora alguns conservadores revolucionários elogiaram o fascismo italiano e alguns, eventualmente, aderiram ao movimento Nacional Socialista (embora muitos não), em geral suas visões de mundo eram distintas desses dois grupos políticos.

É difícil resumir adequadamente os pontos de vista dos conservadores revolucionários, devido ao fato de que muitos deles tinham pontos de vista que contrastavam com certos pontos de vista de outros no mesmo movimento. O que eles geralmente tinham em comum era a consciência da importância de Volk (este termo pode ser traduzido como "povo", "nação", "etnia" ou "pessoa") e a cultura, a ideia de Volksgemeinschaft ("comunidade do povo"), e uma rejeição do marxismo, do liberalismo e da democracia (particularmente a democracia parlamentar). Ideias que também eram comuns entre eles era uma rejeição do conceito linear de história a favor do conceito cíclico, uma forma conservadora e não marxista de socialismo e o estabelecimento de uma elite autoritária. [3]

Em suma, o movimento era feito de alemães que tinham tendências conservadoras de algum tipo, mas que estavam desapontados com o estado em que a Alemanha foi colocada pela perda da Primeira Guerra Mundial e procurou avançar ideias de natureza conservadora e revolucionária.

A fim de obter uma ideia adequada sobre a natureza da Revolução Conservadora e sua visão, é melhor examinar os principais intelectuais e seus pensamentos. As seções a seguir fornecerão uma breve visão geral dos mais importantes intelectuais conservadores revolucionários e suas principais contribuições filosóficas.

Os visionários de um novo Reich

Os alemães mais notáveis ​​que tiveram uma visão otimista do estabelecimento de um "Terceiro Reich" foram Stefan George, Arthur Moeller van den Bruck e Edgar Julius Jung. Stefan George, ao contrário dos outros dois, não era um intelectual típico, mas um poeta. George expressou sua visão revolucionária conservadora do "novo Reich" em grande parte na poesia, e essa poesia, de fato, atingiu e afeta muitos jovens nacionalistas alemães e até intelectuais; e para isso ele é historicamente notáve [4]. Mas no nível intelectual, Arthur Moeller van den Bruck (que popularizou o termo "Terceiro Reich") e Edgar Julius Jung tiveram um impacto filosófico mais profundo.

Arthur Moeller van den Bruck

Moeller van den Bruck foi um historiador cultural que se tornou politicamente ativo no final da Primeira Guerra Mundial. Ele foi um membro fundador do conservador "June Club", do qual ele se tornou o líder ideológico [5]. Em "Der preussische Stil" ("O estilo prussiano"), ele descreveu o que ele acreditava ser o personagem prussiano, cuja característica fundamental era a "vontade para o estado", e em Das Recht der jungen Volker ("O Direito das Jovens Nações") ele apresentou a ideia de "jovens" (incluindo a Alemanha, a Rússia e a América) e os "velhos" (incluindo a Inglaterra e a França), defendendo uma aliança entre as nações "mais jovens" com mais vitalidade para derrotar a hegemonia da Grã-Bretanha e da França. [6]

Em 1922, ele contribuiu, juntamente com Heinrich von Gleichen e Max Hildebert Boehm, para o livro Die Neue Front ("O Novo Front"), um manifesto do Jungkonservativen ("Jovens Conservadores") [7]. Um ano depois, Moeller van den Bruck produziu seu trabalho mais famoso que continha uma exposição abrangente de sua visão de mundo, Das Dritte Reich, traduzida como O Terceiro Império. [8]

No Terceiro Império, Moeller fez uma divisão entre quatro posições políticas: revolucionária, liberal, reacionária e conservadora. Os revolucionários, que incluíam principalmente os comunistas, não eram irrealistas no sentido de que eles acreditavam que poderiam ignorar todos os valores e tradições passadas. O liberalismo foi criticado por seu individualismo radical, que essencialmente equivale a egoísmo e desintegra as nações e as tradições. Os reacionários, por outro lado, foram criticados por ter a posição irrealista de desejar um completo reavivamento de formas passadas, acreditando que tudo na sociedade passada era positivo. O conservador, argumentou Moeller, era superior aos três anteriores porque "o conservadorismo procura preservar os valores de uma nação, tanto pela conservação dos valores tradicionais, quanto ainda possuem o poder do crescimento e assimilando todos os valores novos que aumentam a vitalidade de uma nação "[9] O" conservador "de Moeller era essencialmente um conservador revolucionário.

Moeller rejeitou o marxismo devido ao seu racionalismo e materialismo, que ele argumentou eram ideologias defeituosas que não conseguiam entender o lado melhor das sociedades humanas e da vida. "O socialismo começa onde termina o marxismo", declarou. [10] Moeller defendeu um socialismo corporativista alemão que reconhecesse a importância da nacionalidade e recusou a guerra de classes.

Em termos de política, Moeller rejeitou o republicanismo e afirmou que a verdadeira democracia era sobre a participação das pessoas na determinação do seu destino. Ele rejeitou a monarquia como desatualizada e antecipou uma nova forma de governo em que um líder forte que estava ligado ao povo emergiria. "Precisamos de líderes que se sintam um com a nação, que identificam o destino da nação com os seus próprios". [11] Este líder estabeleceria um "Império terceiro, um Império novo e final", que resolveria os problemas políticos da Alemanha (especialmente Seu problema de população).

Edgar Julius Jung

Outra ótima visão de um Terceiro Reich veio de Edgar Julius Jung, um intelectual politicamente ativo que escreveu o grande livro "Die Herrschaft der Minderwertigen" [12], que algumas vezes foi chamado de "bíblia do neo-conservadorismo" [13]. Este livro apresentou uma crítica devastadora do liberalismo e ideias combinadas de Spann, Schmitt, Pareto e outros pensadores.

A democracia liberal foi rejeitada por Jung como a regra das massas que foram manipuladas por demagogos e também a regra do dinheiro porque tinha tendências inerentes à plutocracia. As ideias revolucionárias francesas de "liberdade, igualdade, fraternidade" foram rejeitadas como influências corrosivas prejudiciais para a sociedade e fontes de individualismo, que Jung considerava uma causa chave da decadência. Jung também rejeitou o marxismo como um produto corrupto da Revolução Francesa. [14] A Revolução Conservadora para Jung foi, em suas palavras, a

Restauração de todas as leis e valores elementares sem os quais o homem perde seus laços com a natureza e Deus e sem o qual ele é incapaz de construir uma verdadeira ordem. No lugar da igualdade, haverá padrões inerentes, no lugar da consciência social, uma integração justa na sociedade hierárquica, no lugar da eleição mecânica, uma elite orgânica, no lugar do nivelamento burocrático da responsabilidade interna do autônomo autêntico, No lugar da prosperidade em massa os direitos de um povo orgulhoso. [15]

No lugar das formas liberais e marxistas, Jung imaginou o estabelecimento de um Novo Reich que usaria economia corporativista (relacionado ao sistema da guilda medieval), seria organizado em uma base federalista, seria animado pela espiritualidade cristã e pelo poder da Igreja, e seria liderada por uma monarquia autoritária e uma elite composta por membros qualificados selecionados. Nas palavras de Jung: "O Estado como a mais alta ordem da comunidade orgânica deve ser uma aristocracia; No último e mais alto senso: a regra do melhor. Mesmo a democracia foi fundada com essa afirmação ". [16]

Ele também criticou o conceito materialista da raça como "materialismo biológico" e afirmou, em vez disso, o primado da entidade cultural-espiritual (foi sobre essa base, e não sobre a biologia, que o problema judaico fosse tratado). Além disso, ele rejeitou o nacionalismo no sentido normal do termo, apoiando o conceito de um império federalista, supra-nacional e pan-europeu, enquanto ainda reconhece a realidade e a importância do Volk e a separação dos grupos étnicos. Na verdade, Jung acreditava que o novo Reich deveria ser formado em "um fundamento volksisch indestrutível a partir do qual a luta volkisch pode assumir forma". [17]

Edgar Jung, no entanto, não se contentava em escrever apenas sobre suas idéias; Ele teve grandes ambições políticas e trabalhou ativamente com festas e conservadores que concordaram com ele na década de 1920 até 1934. [18] A necessidade da batalha já fazia parte da filosofia de Jung: "Se o povo alemão vê isso, entre eles, os combatentes ainda vivem, então eles se tornam conscientes também do combate como a mais alta forma de existência. O destino alemão exige que os homens dominem. Pois, a história mundial faz o homem. "[19]

Durante sua atividade política, ele não gostava do movimento nacional-socialista devido a uma aversão pessoal para Hitler, bem como a sua visão de que o nacional-socialismo era um produto da modernidade e estava ideologicamente ligado ao marxismo e ao liberalismo. Jung foi altamente ativo em sua oposição ao NSDAP e eventualmente foi responsável por escrever o endereço de Papen em Marburg, que criticou o governo de Hitler em 1934, o que resultou na morte de Jung na Noite das Long Knives. [20]

Oswald Spengler

O mais famoso teórico do declínio é Oswald Spengler, o "profeta" que previu a queda da Alta Cultura Ocidental em sua magnum opus, "O declínio do ocidente". De acordo com Spengler, toda Alta Cultura tem sua própria "alma" (isto refere-se ao caráter essencial de uma Cultura) e passa por ciclos previsíveis de nascimento, crescimento, realização, declínio e desaparecimento que se assemelham à vida de uma planta [21]. Para citar Spengler:

"Uma Cultura nasce no momento em que uma grande alma desperta da proto-espiritualidade da sempre infantil humanidade, e se aparta, uma forma a partir do informe, uma coisa limitada e mortal a partir do ilimitado e duradouro. Ela floresce sobre o solo de uma paisagem precisamente definível, à qual, tal qual planta, ela permanece atada. Ela morre quando a alma atualizou a soma plena de suas possibilidade na forma de povos, línguas, dogmas, artes, Estados, ciências, e reverte à proto-alma". [22]

Há uma distinção importante nessa teoria entre Kultur ("Cultura") e Zivilisation ("Civilização"). Cultura concerne a fase inicial de uma Alta Cultura que é marcada pela vida rural, religiosidade, vitalidade, vontade de poder, e instintos ascendentes, enquanto Civilização concerne a fase posterior que é marcada pela urbanização, irreligião, intelecto puramente racional, vida mecanizada, e decadência. Ainda que ele reconhecesse a existência de outras Altas Culturas, Spengler focou particularmente em três Altas Culturas as quais ele distinguiu e teceu comparações entre: a Magiana, a Clássica (greco-romana), e a atual Alta Cultura Ocidental. Ele mantinha a visão de que o Ocidente, que estava em sua fase tardia de Civilização, logo entraria em uma fase final imperialista e 'cesarista'– uma fase que, segundo Spengler, marca o lampejo final antes do fim de uma Alta Cultura. [23]

Talvez a contribuição mais importante de Spengler para a Revolução Conservadora, no entanto, é a sua teoria do "socialismo prussiano" que ele expressou no "Prussianismo e Socialismo" e que constituiu a base de sua visão de que os conservadores e os socialistas deveriam se unir. Neste breve libro, ele argumentou que o caráter prussiano, que era o caráter alemão por excelência, era essencialmente socialista. Para Spengler, o verdadeiro socialismo era principalmente uma questão de ética e não de economia. [24]

Este socialismo ético e prussiano significou o desenvolvimento e a prática de éticas de trabalho, disciplina, obediência, um senso de dever para o bem maior e para o Estado, o autosacrifício e a possibilidade de alcançar qualquer classificação pelo talento. O socialismo prussiano era diferenciado do marxismo e do liberalismo. O marxismo não era o verdadeiro socialismo porque era materialista e baseado no conflito de classes, que contrastava com a ética prussiana do Estado. Também em contraste com o socialismo prussiano, o liberalismo e o capitalismo, que negavam a ideia do dever, praticavam um "princípio de pirataria" e criavam o governo do dinheiro. [25]

Ludwig Klages

Ludwig Klages foi menos influente, embora ainda digno de nota, teórico do declínio que não se concentrasse em Altas Culturas, mas no declínio da vida (o que contrasta com a mera existência). A teoria de Klages, chamada "Biocentrismo", postulou uma dicotomia entre Seele ("Alma") e Geist ("Espírito"); duas forças na vida humana que estavam em uma batalha psicológica entre si. A alma pode ser entendida como impulso vital, sentimento e Vida, enquanto o Espírito pode ser entendido como intelecto abstrato, pensamento mecânico e conceitual, razão e Vontade. [26]

De acordo com a teoria biocêntrica, nos tempos pré-históricos primordiais, a alma e o corpo do homem estavam unidos e, assim, os seres humanos viveram em êxtase de acordo com o princípio da vida. Ao longo do tempo, a Vida humana foi interferida pelo Espírito, o que fez com que os seres humanos usassem o pensamento conceitual (ao contrário do simbólico) e o intelecto racional, começando assim a separação do corpo e da Alma. Nessa teoria, quanto mais a história humana progride, mais a vida é limitada e arruinada pelo Espírito em um processo longo, mas impossível de parar, que acaba em pessoas completamente mecanizadas, excessivamente civilizadas e sem almas. "Já, a máquina se libertou do controle do homem", escreveu Klages, "não é mais a serva do homem: na realidade, o próprio homem agora está sendo escravizado pela máquina". [27]

Este estágio final é marcado por coisas como uma desconexão completa da natureza, a destruição do ambiente natural, a mistura massiva de raças e a falta de vida verdadeira, que se prevê que acabe finalmente na morte da humanidade devido ao dano ao mundo natural. Klages declarou, "A destruição final de todos parece ser uma conclusão inevitável". [28]

Spann e o Estado Unificado

Othmar Spann foi, de 1919 a 1938, professor da Universidade de Viena na Áustria, que era influente, mas que, apesar do seu entusiasmo apoio ao nacional-socialismo, foi removido pelo governo do Terceiro Reich devido a alguns desentendimentos ideológicos [29]. Ele era o exponente de uma teoria conhecida como "Universalismo" (que é completamente diferente do universalismo no sentido normal do termo). Sua visão universalista da economia, da política, da sociedade e da ciência foi exposta em numerosos livros, o mais importante dos quais foi seu trabalho mais memorável, "Der wahre staat" (O verdadeiro Estado). [30]

O universalismo de Spann foi uma teoria corporativa que rejeitou o individualismo. Para entender a rejeição do individualismo por parte de Spann, é necessário entender o que "individualismo"é, porque definições diferentes e até contraditórias são dadas a esse termo; o individualismo aqui refere-se ao conceito de que o indivíduo é absoluto e não existe uma realidade supra-individual (e, portanto, a sociedade não é mais do que uma coleção de átomos). O leitor deve estar ciente de que Spann não fez uma completa negação do indivíduo, mas sim uma negação completa da ideologia individualista. [31]

De acordo com a teoria universalista, o indivíduo existe apenas dentro de uma comunidade ou sociedade particular; o todo (a totalidade da sociedade) precede as partes (indivíduos) porque as partes não existem verdadeiramente independentes do todo [32]. Spann escreveu: "É a verdade fundamental de todas as ciências sociais (...) Que não são os indivíduos que são verdadeiramente reais, mas o todo, e que os indivíduos têm realidade e existência apenas na medida em que são membros do todo". [33]

Além disso, a sociedade e o Estado não eram inteiramente separáveis, porque do Estado vem os direitos do indivíduo, da família e de outros grupos. O liberalismo, o capitalismo, a democracia e o socialismo marxista foram todos rejeitados por Spann como produtos individualistas ou materialistas e corruptos das ideias revolucionárias francesas. Enquanto que nas sociedades passadas o indivíduo estava integrado na comunidade, a vida moderna, com o seu liberalismo, atomizara a sociedade. De acordo com Spann, "a humanidade pode conciliar-se com a pobreza porque será e permanecerá pobre para sempre. Mas para a perda de propriedade, insegurança existencial, desarraigo e nada, as massas de pessoas afetadas nunca podem reconciliar-se" [34]. Como solução para a decadência moderna, Spann vislumbrou a formação de um Estado cristão, corporativista, hierárquico e autoritário semelhante ao Primeiro Reich (o Sacro Império Romano). [35] 

Um historiador conservador revolucionário menos conhecido, Hans Freyer, também teve visões semelhantes a Spann e desafiou as ideias e os resultados do "Iluminismo", particularmente o secularismo, a ideia da razão universal, o conceito de humanidade universal, urbanização e democratização. Contra a sociedade moderna corrompida por essas coisas, Freyer postulou a ideia de uma "sociedade totalmente integrada" que seria completada por um poderoso e não democrático Estado. Cultura, Volk, raça e religião formariam a base da sociedade e do Estado para restaurar um senso de comunidade e valores comuns. Freyer também se juntou aos nacional-socialistas acreditando que o movimento realizaria seus objetivos, mas depois se decepcionou com isso por causa do que viu como sua natureza repressiva durante o Terceiro Reich. [36]

Hans Zehrer

Hans Zehrer foi um colaborador notável e editor da revista "Neoconservador", Die Tat, e, portanto, também é um membro fundador de um grupo de intelectuais conhecido como Tat-Kreis. Zehrer considerava que "todos os movimentos começaram como movimentos intelectuais de minorias inteligentes e bem qualificadas que, devido à discrepância entre o que é e o que deveria ser, aproveitaram a iniciativa" [37]. Sua teoria era algo relacionada com o conceito de Vilfredo Pareto de uma "circulação de elites" na medida em que acreditava que os intelectuais, na maioria dos casos, homens talentosos e inteligentes emergentes de qualquer classe social, eram cruciais para determinar a ordem social e suas ideias.

Na Alemanha daquela época, a classe média, que constituía um grande segmento da sociedade e de que Zehrer era membro, enfrentava uma série de problemas econômicos. Era o sonho de Zehrer que uma nova ordem política poderia ser estabelecida por jovens intelectuais da classe média que ele tentou alcançar. Esta nova ordem resultaria na abolição da insegura república de Weimar e no estabelecimento de uma elite autoritária constituída em grande parte de tais intelectuais. Esta elite não seria sujeita ao controle das massas e escolheria seus próprios membros com base no critério de qualidade e habilidade pessoal, sem considerar a classe social ou a riqueza. [38]

A visão de Zehrer não foi cumprida devido a uma série de falhas para estabelecer um novo Estado por uma "revolução de cima" também por causa do surgimento do NSDAP, que ele tentou influenciar no início dos anos 1930, apesar do seu desdém pelas leis do partido e, depois de não ter conseguido, recuou da atividade política. No entanto, embora a maioria dos pensadores conservadores revolucionários não visse uma elite composta quase que exclusivamente de intelectuais, é notável que eles compartilhavam com Zehrer a visão de que uma elite autoritária deveria ter sua adesão aberta para indivíduos qualificados de todas as classes e classes. [39]

Werner Sombart

Os socialistas com tendências nacionalistas e conservadoras como Paul Lensch, Johann Plenge, Werner Sombart, Arthur Moeller van den Bruck e Oswald Spengler ao surgimento de um novo socialismo conservador e nacional. Claro, deve-se lembrar que o socialismo não marxista já tinha uma longa história na Alemanha, incluindo pessoas como Kathedersozialisten ("socialistas catedráticos"), Adolf Stöcker e Ferdinand Tönnies [40]. O próprio Werner Sombart começou como um marxista, mas depois se desiludiu com a teoria marxista, que ele percebeu era destrutiva do espírito humano e da comunidade orgânica, do mesmo modo que o capitalismo era.

Sombart é, em sua maior parte, lembrado por seu trabalho sobre a natureza do capitalismo, especialmente suas obras ligando o caráter materialista dos judeus ao capitalismo. A obsessão com o lucro, as práticas comerciais implacáveis, a indiferença com a qualidade e as "características meramente racionalizadoras e absurdas do comerciante" que eram produtos-chave do capitalismo, destruíram qualquer "comunidade de trabalho" e desintegram laços entre pessoas que eram mais comuns na sociedade medieval [41]. Sombart escreveu: "Antes que o capitalismo pudesse se desenvolver, o homem natural precisava ser alterado de todo o reconhecimento, e mecanismo racionalista mental introduzido em seu lugar. Devia que haver uma transvalorização de todos os valores econômicos". [42]

As maiores objeções de Sombart ao marxismo consistiram no fato de que o marxismo visava suprimir todos os sentimentos religiosos, bem como os sentimentos nacionais e os valores da cultura indígena enraizada; o marxismo não visava uma humanidade superior, mas uma mera base de "felicidade". Em contraste com o marxismo e o capitalismo, Sombart defendeu um socialismo alemão em que as políticas econômicas seriam "direcionadas de forma corporativa", a exploração seria encerrada e a hierarquia e o bem-estar de todo o estado seria confirmado [43].

Ernst Jünger

Ernst Jünger é bem conhecido por seu trabalho sobre o que viu como os efeitos positivos da guerra e da batalha, com ele mesmo experimentando estes na Primeira Guerra Mundial. Jünger rejeitava a civilização burguesa de conforto e segurança, que ele via como fraca e moribunda, em favor da experiência de ação duradoura e "magnífica" e de aventura na guerra, que transformaria um homem do mundo burguês em um "guerreiro". O tipo guerreiro lutava contra a "eterna utopia da paz, a busca da felicidade e Perfeição" [44]. Jünger acreditava que a crise e a inquietação dos alemães após a Guerra Mundial eram essencialmente uma coisa boa.

Em seu livro "Der Arbeiter", o "guerreiro" era seguido pelo "trabalhador", um novo tipo que se tornaria dominante após o fim da ordem burguesa. Jünger percebeu que a tecnologia moderna estava mudando o mundo; o homem individual estava perdendo sua individualidade e liberdade em um mundo mecanizado. Assim, antecipou uma sociedade em que as pessoas aceitariam o anonimato nas massas e o serviço obediente ao Estado; a população passaria por "mobilização total" [45]. Para citar Jünger:

"A mobilização total é muito menos consumada do que consuma; na guerra e na paz, expressa a afirmação secreta e inexorável de que nossa vida na era das massas e das máquinas nos sujeita. Assim, resulta que cada vida individual se torna cada vez mais inequívoca a vida de um trabalhador; e que, seguindo as guerras de cavaleiros, reis e cidadãos, agora temos guerras de trabalhadores. O primeiro grande conflito do século XX nos ofereceu um pressentimento de sua estrutura racional e sua implacabilidade". [46]

A aceitação da tecnologia por Ernst Jünger no estágio "trabalhador" está em contraste com a posição de seu irmão, Friedrich Georg Jünger, que escreveu críticas à civilização tecnológica moderna (embora Ernst mais tarde concordasse com essa visão) [47]. Ernst Jünger mudou mais tarde em suas atitudes durante a Segunda Guerra Mundial, e depois quase inverteu toda a sua cosmovisão, louvando a paz e o individualismo; uma mudança que não veio sem críticas da Direita [48].

Ernst Niekisch

Outro nacionalista radical notável na Revolução Conservadora foi Ernst Niekisch, que começou como comunista, mas acabou se dirigindo para uma mistura aparentemente paradoxal de nacionalismo alemão e comunismo russo: o nacional bolchevismo. De acordo com esta nova doutrina, Niekisch defendia uma aliança entre a Rússia soviética e a Alemanha, a fim de superar o Tratado de Versalhes, bem como contrariar o poder das nações ocidentais capitalistas e antinacionalistas. No entanto, essa facção desviante, em concorrência com comunistas e nacionalistas anticomunistas, continuou sendo uma minoria mal sucedida. [49]

Carl Schmitt 

Carl Schmitt foi um filósofo católico  notável de política e jurista que foi uma grande influência sobre o pensamento político e que também apoiava o governo do Terceiro Reich após sua formação. Seu livro mais famoso foi "O conceito do político", embora ele também seja autor de inúmeras outras obras, incluindo a "Teologia política" e "A crise da democracia parlamentar".

O "político", para Schmitt, era um conceito distinto da política no sentido normal do termo, e se baseava na distinção entre "amigo" e "inimigo". O político existe sempre que existe um inimigo, um grupo que é diferente e tem interesses diferentes, e com quem existe uma possibilidade de conflito. Esse critério inclui tanto grupos fora do Estado quanto dentro do Estado e, portanto, tanto a guerra interestatal quanto a guerra civil são levadas em consideração. Uma população pode ser unificada e mobilizada através do ato político, no qual um inimigo é identificado e batalhado. [50]

Schmitt também defendeu a prática da ditadura, que ele distinguiu da "tirania". A ditadura é uma forma de governo que é estabelecida quando existe um "estado de exceção" ou emergência em que é necessário ignorar processos parlamentares lentos para defender a lei. De acordo com Schmitt, o poder ditatorial está presente em qualquer caso em que um Estado ou líder exerça o poder independentemente da aprovação das maiorias, independentemente de esse estado ser ou não "democrático". A soberania é o poder de decidir o Estado de exceção e assim, "soberano é ele quem decide a exceção". [51]

Schmitt criticou ainda mais a democracia parlamentar ou liberal argumentando que a base original do parlamentarismo — que considerava que a separação de poderes e o diálogo aberto e racional entre os partidos resultaria em um Estado em bom estado — foi de fato negado pela realidade da política partidária, em que os líderes do partido, as coalizões e os grupos de interesse tomam decisões sobre políticas sem discussão. Outro argumento notável feito por Schmitt foi que a verdadeira democracia não é uma democracia liberal, na qual uma pluralidade de grupos são tratados igualmente sob um único Estado, mas um Estado unificado e homogêneo em que as decisões dos líderes expressam a vontade do povo unificado. Nas palavras de Schmitt, "Toda democracia real se baseia no princípio de que não só iguais são iguais, mas as desigualdades não serão tratadas de forma igual. A democracia exige, portanto, a primeira homogeneidade e a segunda — se for necessária a eliminação ou a erradicação da heterogeneidade". [52]

Karl Haushofer 

Karl Haushofer foi outro filósofo da política que é conhecido por seu trabalho teórico sobre a "geopolítica", que visava avançar a compreensão da Alemanha sobre política internacional e geografia. Haushofer afirmou que as nações não só tinham o direito de defender suas terras, mas também expandir e colonizar novas terras, especialmente quando viviam em excesso de população. A Alemanha era uma nação em tal posição e, portanto, tinha direito a Lebensraum ("espaço vital") pelo excesso de população. Para superar a dominação da estrutura de poder anglo-americana, Haushofer defendeu um novo sistema de alianças que envolvia particularmente uma aliança germano-russa (assim Haushofer pode ser visto como um "eurasiático"). Haushofer se juntou aos nacional-socialistas, mas suas ideias foram eventualmente rejeitadas pelos geopolíticos do Terceiro Reich por causa de sua hostilidade à Rússia. [53]

As influências da revolução conservadora

Os pensadores da Revolução Conservadora não tiveram apenas uma influência imediata na Alemanha no início do século XX, mas também um impacto profundo e duradouro na Direita (e, em alguns casos, mesmo na Esquerda) até o presente. Além da influência óbvia sobre o nacional-socialismo, e se assumirmos que Otto Strasser não pode ser incluído como parte da Revolução conservadora, o Strasserismo ainda estava claramente influenciado por Arthur Moeller van den Bruck e Oswald Spengler. [54]

Francis Parker Yockey, o autor de "Imperium", também revelou influência de Spengler, Schmitt, Sombart e Haushofer [55]. Julius Evola, o famoso tradicionalista italiano, é mais um escritor que foi afetado por intelectuais conservadores revolucionários, como é claro em obras tão importantes como "Homens e as ruínas" [56] e "O caminho do cinábrio". [57]

Mais recentemente, a Nova Direito Europeia mostra uma grande inspiração dos conservadores revolucionários. Armin Mohler, que pode ser considerado uma parte da Revolução Conservadora da Alemanha, bem como o Novo Direito, é conhecido por seu trabalho seminal Die Konservative Revolution in Deutschland 1918-1932. [58] Além disso, Tomislav Sunic também desenha muitos conceitos intelectuais dos conservadores revolucionários em seu importante livro, "Against Democracy and Equality", incluindo Schmitt, Spengler e, em menor medida, Spann e Sombart. [59]

Mais um intelectual em liga com a Nova Direita, Alexander Jacob, é o tradutor da alguns livros de Jung e também é responsável por múltiplos trabalhos em vários conservadores revolucionários. [60] Quando se considera esses fatos, torna-se evidente que muito pode ser aprendido ao estudar a história e as ideias da Revolução Conservadora alemã. É uma fonte de riqueza filosófica que pode avançar na posição conservadora e que deixa sua marca no pensamento da direita, mesmo hoje.

NOTAS

[1] On Hofmannsthal’s political views, see Paul Gottfried, “Hugo von Hofmannsthal and the Interwar European Right.” Modern Age, Vol. 49, No. 4 (Fall 2007), pp. 508–19.
[2] Hugo von Hofmannsthal, Das Schrifttum als geistiger Raum der Nation (Munich, 1927). Quoted in Klemens von Klemperer, Germany’s New Conservatism; Its History And Dilemma In The Twentieth Century (Princeton: Princeton University Press, 1968), p. 9.
[3] Armin Mohler, Die Konservative Revolution in Deutschland 1918–1932 (Stuttgart: Friedrich Vorwerk Verlag, 1950).
[4] Robert Edward Norton, Secret Germany: Stefan George and his Circle (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2002).
[5] Klemperer, Germany’s New Conservatism, pp. 102–111.
[6] Klemperer, Germany’s New Conservatism, pp. 156–159.
[7] Mohler, Die Konservative Revolution in Deutschland, p. 329.
[8] Arthur Moeller van den Bruck, Germany’s Third Empire (New York: Howard Fertig, 1971).
[9] Ibid. p. 76.
[10] Ibid. p. 245.
[11] Ibid. p. 227.
[12] Edgar Julius Jung, The Rule of the Inferiour, trans. Alexander Jacob (Lewiston, New York: Edwin Mellon Press, 1995).
[13] Larry Eugene Jones, “Edgar Julius Jung: The Conservative Revolution in Theory and Practice,” Conference Group for Central European History of the American Historical Association, vol. 21, Issue 02 (June 1988), p. 142.
[14] Ibid.
[15] Edgar J. Jung, Deutsche uber Deutschland (Munich, 1932), p. 380. Quoted in Klemperer, Germany’s New Conservatism, pp. 121–22.
[16] Jung, The Rule of the Inferiour, p. 138.
[17] Jung, “Sinndeutung der konservativen Revolution in Deutschland.” Quoted inJones, “Edgar Julius Jung,” p. 167. For an overview of Jung’s philosophy, see: Jones, “Edgar Julius Jung,” pp. 144–47, 149; Walter Struve, Elites Against Democracy; Leadership Ideals in Bourgeois Political Thought in Germany, 1890-1933 (Princeton, N.J.: Princeton University, 1973), pp. 317–52; Alexander Jacob’s introduction to Europa: German Conservative Foreign Policy 1870–1940 (Lanham, MD, USA: University Press of America, 2002), pp. 10–16.
[18] Jones, “Edgar Julius Jung,” pp. 145–48.
[19] Jung, The Rule of the Inferiour, p. 368.
[20] Jones, “Edgar Julius Jung,” pp. 147–73.
[21] Oswald Spengler, The Decline of the West Vol. 1: Form and Actuality (New York: Alfred A. Knopf, 1926).
[22] Ibid. p. 106.
[23] Ibid. For a good overview of Spengler’s theory, see Tomislav Sunic, Against Democracy and Equality: The European New Right (Third Edition. London: Arktos, 2010), pp. 91–98.
[24] Oswald Spengler, Selected Essays (Chicago: Gateway/Henry Regnery, 1967).
[25] Ibid.
[26] See: Joe Pryce, “On The Biocentric Metaphysics of Ludwig Klages,” Revilo-Oliver.com, 2001, http://www.revilo-oliver.com/Writers/Klages/Ludwig_Klages.html, and Lydia Baer, “The Literary Criticism of Ludwig Klages and the Klages School: An Introduction to Biocentric Thought.” The Journal of English and Germanic Philology, Vol. 40, No. 1 (Jan., 1941), pp. 91–138.
[27] Ludwig Klages, Cosmogonic Reflections, trans. Joe Pryce, 14 May 2001, http://www.revilo-oliver.com/Writers/Klages/515.html, 453.
[29] Klemperer, Germany’s New Conservatism, pp. 204–5.
[30] Othmar Spann, Der Wahre Staat (Leipzig: Verlag von Quelle und Meyer, 1921).
[31] Barth Landheer, “Othmar Spann’s Social Theories.” Journal of Political Economy, Vol. 39, No. 2 (Apr., 1931), pp. 239–48.
[32] Ibid.
[33] Spann, quoted in Ernest Mort, “Christian Corporatism.” Modern Age, Vol. 3, No. 3 (Summer 1959), p. 249.  http://www.mmisi.org/ma/03_03/mort.pdf.
[34] Spann, Der wahre Staat, p. 120. Quoted in Sunic, Against Democracy and Equality, pp. 163–64.
[35] Janek Wasserman, Black Vienna, Red Vienna: The Struggle for Intellectual and Political Hegemony in Interwar Vienna, 19181938 (Saint Louis, Missouri: Washington University, 2010), pp. 73–85.
[36] Jerry Z. Muller, The Other God that Failed: Hans Freyer and the Deradicalization of German Conservatism (Princeton: Princeton University Press, 1988). The single book by Hans Freyer to be translated into English is Theory of Objective Mind, trans. Steven Grosby (Athens, OH: Ohio University Press, 1998).
[37] Hans Zehrer, “Die Revolution der Intelligenz,” Tat, XXI (Oct. I929), 488. Quoted in Walter Struve, “Hans Zehrer as a Neoconservative Elite Theorist,” The American Historical Review, Vol. 70, No. 4 (Jul., 1965), p. 1035.
[38] Struve, “Hans Zehrer as a Neoconservative Elite Theorist.”
[39] Ibid.
[40] Klemperer, Germany’s New Conservatism, pp. 57–58. On Tönnies, see Christopher Adair-Toteff, “Ferdinand Tonnies: Utopian Visionary,” Sociological Theory, Vol. 13, No. 1 (Mar., 1995), pp. 58-65.
[41] Alexander Jacob, “German Socialism as an Alternative to Marxism,” The Scorpion, Issue 21. http://thescorp.multics.org/21spengler.html.
[42] Werner Sombart, Economic Life in the Modern Age (New Brunswick, NJ, and London: Transaction Publishers, 2001), p. 129.
[43] Jacob, “German Socialism as an Alternative to Marxism.”
[44] Ernst Jünger, ed., Krieg und Krieger (Berlin, 1930), 59. Quoted in Klemperer, Germany’s New Conservatism, p. 183. See also Ernst Jünger’s Storm of Steel, trans. Basil Greighton (London: Chatto & Windus, 1929) and Copse 125 (London: Chatto & Windus, 1930).
[45] Klemperer, Germany’s New Conservatism, pp. 185–88.
[46] Ernst Jünger, “Total Mobilization,” trans. Joel Golb, in The Heidegger Controversy(Boston: MIT Press, 1992), p. 129.http://anarchistwithoutcontent.files.wordpress.com/2010/12/junger-total-mobilization-booklet.pdf.
[47] Alain de Benoist, “Soldier Worker, Rebel, Anarch: An Introduction to Ernst Jünger,” trans. Greg Johnson, The Occidental Quarterly, vol. 8, no. 3 (Fall 2008), p. 52.
[48] Julius Evola, The Path of Cinnabar (London: Integral Tradition Publishing, 2009), pp. 216–21.
[49] Klemens von Klemperer, “Towards a Fourth Reich? The History of National Bolshevism in Germany,” The Review of Politics, Vol. 13, No. 2 (Apr., 1951), pp. 191–210.
[50] Carl Schmitt, The Concept of the Political, expanded edition, trans. G. Schwab (Chicago: University of Chicago Press, 2007).
[51] Carl Schmitt, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty, trans. G. Schwab (Chicago: University of Chicago Press, 2005), p. 1.
[52] Carl Schmitt, The Crisis of Parliamentary Democracy, trans. E. Kennedy, (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985), p. 9.
[53] Andrew Gyorgy, “The Geopolitics of War: Total War and Geostrategy.” The Journal of Politics, Vol. 5, No. 4 (Nov., 1943), pp. 347–62. See also Mohler, Die Konservative Revolution in Deutschland, p. 474.
[54] Otto Strasser, Hitler and I (Boston: Houghton Mifflin Co., 1940), pp. 38–39.
[55] Francis Parker Yockey, Imperium: The Philosophy of History and Politics(Sausalito, Cal.: Noontide Press, 1962).
[56] Julius Evola, Men Among the Ruins (Rochester, Vt.: Inner Traditions, 2002).
[57] Evola, The Path of Cinnabar, pp. 150–55.
[58] See note #3.
[59] See Sunic, Against Democracy and Equality, pp. 75–98, 159–64.
[60] See Jacob, Europa; “German Socialism as an Alternative to Marxism”; Introduction to Political Ideals by Houston Stewart Chamberlain (Lanham, Md.: University Press of America, 2005).

Doug Enaa Greene - O Ato Heroico: Mito e Revolução

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por Doug Enaa Greene



Segundo a lenda, as últimas palavras de Che Guevara antes de sua execução foram "Eu sei que você veio me matar. Atire covarde, você só vai matar um homem". O que Che queria dizer aqui era que a causa da revolução seguiria viva apesar de sua morte. Seja o mito verdade ou não, o sentido por trás dele inspirou revolucionários por todo o mundo. De certa maneira, o mito que cerca Che Guevara foi tão importante quanto a verdade. Na verdade, os mitos fornecem um sustentáculo crucial para como ideologia e sociedade são capazes de funcionar. Os mitos desempenham um papel importante não só na sociedade, nas em movimentos políticos radicais, como foi reconhecido pelo sindicalista francês Georges Sorel e pelo comunista peruviano José Carlos Mariátegui. E apesar das pretensões científicas de boa parte da esquerda, os mitos também fornecem inspiração, paixão e fé para militantes no curso da luta.

I. Mito

Antes de discutir o papel do mito na esquerda, precisamos ter alguma ideia de como o mito funciona no mundo. Segundo Joseph Campbell, um estudioso dos mitos, a mitologia realiza quatro funções na sociedade humana. A primeira é a função mística onde "O mito abre o mundo para a dimensão do mistério, para a realização do mistério que subjaz a todas as formas". [1] O universo está repleto de maravilhas, glórias e mistérios perante os quais ficamos assombrados. Esses mistérios jazem além do reino da experiência humana e não podem ser capturados em nossa linguagem comum. Ainda assim, os símbolos e rituais da mitologia são uma maneira de abordar e entender essa realidade que jaz além de nossa compreensão.

A segunda função do mito, diz Campbell, é cosmológica. O mito nesse sentido pode ser pensado como uma forma de protociência, exibindo como o universo funciona ao fornecer explicações para a criação do mundo, a origem da vida humana, a mudança das estações, etc. Na sociedade moderna, a função cosmológica é assumida cada vez mais pela ciência. Porém, Campbell afirma que mitos e ciência não conflitam, na realidade a ciência expande as fronteiras do mistério, na direção do que jamais pode ser conhecido, tal como a fonte da vida.

Campbell identifica a terceira função do mito como sua função sociológica de "apoiar e validar uma certa ordem social". [2] Este propósito do mito pode variar bastante dependendo da sociedade em questão. Nós podemos esperar naturalmente que a sociedade feudal considere a usura e a busca do lucro como sendo vícios, enquanto a sociedade capitalista as verá como virtudes. Naturalmente, os mitos de uma ordem social dominante, tal como do capitalismo, promovem aquele sistema e seus valores. Ainda assim, mesmo dentro de diferentes sociedades capitalistas, o papel do mito pode variar bastante. Vamos expandir este ponto.

Por exemplo, os mitos predominantes nos EUA promovem o individualismo, o sonho americano e a supremacia WASP. O mito fundacional é o de que a Revolução Americana trouxe "liberdade e democracia". Mas essa "revolução", na verdade, foi marcada por envolvimento popular limitado (principalmente da população masculina e branca) que criou instituições para solidifcar o governo de uma nova elite governante local baseado no expansionismo, no genocídio e na escravidão. Esse legado da Revolução Americana se tornou bem fácil de ser usado, de forma obsessiva até, para que líderes americanos promovam os valores dominantes da sociedade capitalista que se refletem no proletariado. A realidade da Revolução Americana, na verdade, tornou difícil que ela fosse abraçada por aqueles que defendem mudanças igualitárias.

Por outro lado, a sociedade francesa, apesar de também capitalista, possui uma ética de consciência de classe bem mais economicista entre o proletariado do que nos EUA. A França moderna deve suas origens à Revolução de 1789 que foi uma imensa reviravolta social vinda de baixo (ultrapassando em muito a Revolução Americana) que trouxe mudanças radicais que conflitavam com a liderança burguesa. Enquanto a ordem social hegemônica na França pode ser traçada até 1789, há uma ambivalência na adoção dos valores da revolução pela classe governante. Figuras políticas podem reverenciar a "República", mas não há culto civil correspondente de seus "pais fundadores" (como encontramos nos EUA). Apesar de conservadores poderem se trajar na Tricolor, o slogan "Liberté, Égalité, Fraternité" pode ser facilmente apropriado pelos opositores do capitalismo, como socialistas, comunistas e anarquistas.

A mitologia, como a ideologia, serve ao papel de iniciar e interpelar indivíduos em temas. Os mitos dominantes associados com eles na sociedade, tal como o Sonho Americano ou valores cristãos, não são simples ideias equivocadas ou exemplos de "falsa consciência", mas ao contrário existem em práticas materiais (como escolas ou igrejas). Segundo Louis Althusser, "A ideologia não existe no 'mundo das ideias' concebido como um 'mundo espiritual'. A ideologia existe em instituições e nas práticas específicas a elas. Somos até tentados a dizer, mais precisamente: a ideologia existe nos aparatos e nas práticas específicas a eles". [3] A ideologia (como os mitos) existe através dos Aparatos Ideológicos Estatais (AIE), mesmo sendo privados - igrejas, escolas, famílias, etc., eles ainda reforçam o domínio da classe dominante através da ideologia. Podemos ver isso no exemplo do fundamentalismo cristão, cujos adeptos não só creem em Deus, oram e vão à igreja. Como diz Althusser, "Se ele crê em Dever, ele terá as atitudes correspondentes, inscritas em práticas rituais 'segundos os princípios corretos'." [4] Assim, um fundamentalista cristão provavelmente será um patriota americano que hasteia a bandeira, cria os filhos para reverenciarem as instituições e leis do país (desde que elas estejam em conformidade com seus valores), serve ao exército, etc.

Enquanto a igreja era dominante na sociedade feudal, Althusser identifica a escola como a principal AIE na sociedade moderna. [5] Na escola, os estudantes aprendem não só habilidades como ler e escrever, mas a socialização nos valores dominantes e na cultura da sociedade, para que eles possam se tornar eventualmente cidadãos "bons" e "obedientes". Em outras palavras, a escola serve para preparar a maioria dos estudantes para que sejam trabalhadores obedientes que aceitam os mitos e valores da sociedade e aceitam seu papel subordinado na vida como natural.

Não devemos olhar para a interpelação de sujeitos pelas AIEs como negando a agência humana (o que é uma objeção comum a Althusser). As AIEs são necessárias não só porque é necessário mais do que força repressiva para que a ordem dominante mantenha seu poder (ainda que eles se apoiem nela apenas como último recurso), mas porque a luta de classes nunca termina. "Tal como a luta de classes nunca termina, também o combate da classe dominante para unificar os elementos e formas ideológicos existentes nunca termina. Isso significa que a ideologia dominante não consegue nunca resolver completamente suas próprias contradições, que são um reflexo da luta de classes - ainda que sua função seja resolvê-las". [6] Ideologia e mitos permanecem um campo de batalha. Os mesmos fundamentalistas cristãos podem se considerar americanos patrióticos que acreditam na livre iniciativa, mas se eles estiverem em greve, eles sem dúvida reagirão com hostilidade perante fura-greves. Ou os fundamentalistas podem ir a uma manifestação do Tea Party para protestar contra um governo mais "liberal" ou "socialista" que eles veem como se distanciando ou traindo os "verdadeiros" valores americanos.

Mesmo o não-marxista Campbell afirma que o que conta em termos de figuras de autoridade como juízes, presidentes ou generais não é o que eles são individualmente. Não importa se o presidente é adúltero ou corrupto, ele ainda deve ser saudado e respeitado pelo papel que ele desempenha na sociedade. Como Campbell diz, quando você respeita presidentes "você não está respondendo a eles enquanto personalidades, você está respondendo a eles em seus papeis mitológicos". [7] Segundo Campbell, o presidente não deve ser corrupto, ele precisa entender que para realizar o papel mitológico demandado dele, "ele precisa sacrificar seus desejos pessoais e mesmo possibilidades de vida para o papel que ele agora significa". [8] O papel mitológico do presidente é refletido em como os "Pais Fundadores" como Washington e Jefferson ou presidentes posteriores como Abraham Lincoln são reverenciados.

Nós podemos ver o papel mitológico encenado na campanha presidencial de candidatos, seja Bush, Clinton ou Sanders, que são retratados como combatendo pela "América" (retratada com pequenas variações em significado). Não importa que tudo isso seja uma fabricação total, o que importa é que o papel do presidente, independentemente do indivíduo, desempenhe uma força de coesão social e na promoção dos mitos e ideologia da América. Assim, para que o papel mitológico do presidente funcione, são necessários cidadãos interpelados que o aceitem por um lado e um candidato individual que pelo menos pareça abrir mão de suas vontades e necessidades em prol do bem maior do país. O presidente, assim, se torna a personificação literal da nação.

A última função do mito que Campbell identifica é sua função pedagógica: "como viver uma vida humana sob quaisquer circunstâncias. Os mitos podem ensinar isso". [9] Os seres humanos, independentemente da sociedade em que vivem, passam por diferentes fases na vida, passando da infância à idade adulta com novas responsabilidades que podem incluir casamento e família. Há diferentes ritos e rituais pelos quais se espera que passemos para aprender como funcionar como membros responsáveis e éticos da sociedade, seja pela graduação na faculdade, indo à comunhão ou ao bar mitzvah. Os valores ensinados são, naturalmente, coloridos pela classe, de modo que os rituais de uma igreja feudal são diferentes dos de uma escola de negócios.

As quatro funções do mito de Campbell se aplicam também aos movimentos socialistas. Como veremos depois, ao discutir Mariátegui, apesar do socialismo estar fundado em princípios materialistas e científicos, os mitos, símbolos e rituais desempenham papeis centrais em ensinar aos militantes como viver, lutar e morrer como camaradas por seu ideal.

II. Georges Sorel

Uma das principais influência sobre o marxismo de Mariátegui e sua compreensão do mito veio da obra do teórico sindicalista francês Georges Sorel. Mariátegui saudava Sorel como um igual de Lênin por empreender "a verdadeira revisão do marxismo, no sentido de renovação e continuação da obra de Marx...". [10] Sorel foi elogiado por retornar o socialismo ao "sentimento original de luta de classes, como um protesto contra a pacificação parlamentar, contra o socialismo aburguesado", que era encontrado no socialismo reformista. Posteriormente, Mariátegui disse, Sorel estabeleceu "o caráter religioso, místico, metafísico do socialismo" que demonstrou que "a força dos revolucionários não está em sua ciência; mas em sua fé, em sua paixão, em sua vontade. Ela é uma força religiosa, mística, espiritual". [11]

Mariátegui se baseou no entendimento soreliano do mito e seu ethos voluntarista para informar seu próximo marxismo criativo e não-dogmático. Porém, o próprio Sorel permanece extremamente controverso, e seus escritos sobre o poder do mito e a defesa da violência, expressados mais claramente em Reflexões sobre a Violência, inspiraram não só marxistas como Mariátegui e Antonio Gramsci, mas fascistas como Benito Mussolini.

Sorel era originalmente um engenheiro por treinamento, que se voltou para a política marxista após sua aposentadoria nos anos 90 do século XIX. Ele contribuiu para um certo número de publicações marxistas e esteve envolvido no apoio a Alfred Dreyfus, um oficial militar judeu acusado de traição. Porém, Sorel não aderia ao determinismo encontrado na Segunda Internacional que explicava a história e o comportamento das pessoas através de suas motivações econômicas. Sorel assumiu a defesa do marxismo contra aqueles que ele percebia como vulgarizadores porque para ele, o conteúdo moral era vital. [12] Sorel estava convicto de que a teoria marxista precisava ser renovada e revisada particularmente em relação a seu entendimento da economia, da moralidade e da ação humana.

Para este fim, Sorel perscrutou com admiração a obra do marxista italiano Antonio Labriola e brevemente a do alemão Eduard Bernstein durante a controvérsia revisionista. Labriola foi elogiado por sua defesa do materialismo histórico e do marxismo como teoria de ação. [13] Sorel saudou Labriola por romper com o determinismo econômico do marxismo e enfatizar a importância da ética. [14] Como parte da própria revisão de Sorel do marxismo, ele chegou à conclusão de que "a teoria do valor-trabalho...não tem mais utilidade científica e...origina muitas incompreensões". [15] Labriola jamais contemplou que seus próprios escritos seriam usados para declarar a economia marxista obsoleta, então ele rompeu relações com Sorel.

A defesa que Sorel fez de Dreyfus era informada pelo desejo mortal de defender as noções de verdade e justiça. A mesma preocupação moral posteriormente encontraria lugar em suas Reflexões sobre a Violência e na importância da mobilização de mitos.

Após a absolvição de Dreufys, Sorel se sentiu traído pelo resultado já que ele só beneficiou socialistas oportunistas, carreiristas e parlamentares. Sorel se sentiu enojado pela política reformista de Jean Jaures e Alexander Millerand, este tendo ingressado em um governo de "defesa republicana". Sorel ficou alarmado com o que ele percebeu como sendo o estatismo e jacobinismo encontrados no governo. Ele acreditava que a autonomia do socialismo arriscava ser perdida na areia movediça do oportunismo e da corrupção da política burguesa. [16] O Caso Dreyfus não havia insuflado o élan revolucionário do proletariado, mas sufocado-o. Sorel acreditava que qualquer revolução deve destruir as instituições e valores da democracia liberal que levava a civilização rumo à decadência.

Para Sorel, o parlamentarismo, o gradualismo, o oportunismo e o reformismo encontrados nos partidos da Segunda Internacional o levavam a concluir que "os anarquistas estavam certos sobre isso, e que, ao ingressar nas instituições burguesas, os revolucionários foram transformados adotando o espírito dessas instituições: todos os deputados parlamentares concordam que há pouca diferença entre um representante da burguesia e um representante do proletariado". [17] A crítica de Sorel da ortodoxia dominante do marxismo oficial era ecoada nos movimentos sindicalistas que se desenvolveram em oposição a ela. Organizações sindicalistas emergiram na França, como a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), que se distanciavam de qualquer forma de ação política, se apoiando na ação direta, e na greve geral dos trabalhadores para promoverem a revolução. Após 1906, houve um crescimento nos conflitos laborais na França que levaram a greves entre trabalhadores postais, ferroviários e muitos outros. Em 1909, as greves levaram o governo, liderado pelo ex-blanquista Georges Clemenceau a convocar o exército, que disparou contra os trabalhadores. [18]

À essa época, Sorel havia adotado o sindicalismo e tentava teorizar o movimento em Reflexões sobre a Violência. Nessa obra, Sorel completou sua revisão do marxismo, extirpando qualquer traço de determinismo ou seu uso como método para compreender as leis do capitalismo. Sorel abraçou as teorias de Henri Bergson do irracional e do poder da intuição, bem como a ética nietzscheana de revolta e desprezo em relação à moralidade estabelecida. Para Sorel, o marxismo se resumia à luta de classes, e seus postulados centrais deveriam ser interpretados como mitos.

Em contraste com os prolixos e mentirosos socialistas parlamentares, Sorel elogiou o movimento sindicalista como a "grande força educativa que a sociedade contemporânea tem a sua disposição para preparar o trabalho do futuro". [19] Central para o sindicalismo era que ele era um reflexo da greve geral revolucionária que produz "um estado mental inteiramente épico" que transforma "os homens de hoje nos produtores livres de amanhã trabalhando em oficinas onde não há mestres". [20] Esses trabalhadores seriam transformados, através de seu fortalecimento no "épico econômico" das fábricas modernas e pela participação na greve geral onde o proletariado se organiza para a batalha, se separando de forma distinta das outras partes da nação, e considerando a si mesmo como a grande força motora da história, todas as outras considerações sociais sendo subordinadas à do combate; ele é claramente consciente da glória que estará ligada a este papel histórico e do heroísmo de sua atitude militante; ele anseia pela disputa final na qual ele dará prova da medida completa de seu valor. [21]

Esses trabalhadores heroicos não precisavam de plano de batalha para a conquista do poder estatal, sua vitória e a queda do capital resultariam da emergência na classe trabalhadora de uma nova mentalidade heroica e da paixão da violência, inspirada pelo mito da greve geral. Após a batalha cataclísmica, os trabalhadores, agora transformados em produtores ergueriam sobre suas cinzas uma nova civilização. Para Sorel, enquanto outrora a burguesia, "estava ainda, em grande maioria, animada pelo espírito insaciável e conquistador que, no início da época moderna, havia caracterizado os criadores das novas indústrias e os descobridores de terras desconhecidas", ela havia agora se degenerado e "se tornado quase tão estúpida quanto a nobreza do século XVIII". [22]

O argumento de Sorel se apoia na alegação de que o mito encerra "a totalidade do socialismo na greve geral... [que vê] em cada greve um modelo, um teste, um ensaio para o grande levante final". [23] Apesar de outros teóricos marxistas da greve geral, como Rosa de Luxemburgo, terem visto seu poder ético em preparar o proletariado para o combate, ela era vista por ela como uma tática específica, não como uma teoria universal da revolução. Tampouco ela negou a necessidade da teoria marxista para o proletariado ou fetichizou a violência.

Para Sorel, não havia maneira de refutar historicamente ou praticamente a validade da greve geral porque ele era um mito "seguro frente a qualquer refutação". [24] Não importa quão válida fosse a ciência ou a crítica, ela não pode abalar a fé do povo em mitos como os da religião ou a greve geral. Um mito não pode ser refutado "já que ele é, no fundo, idêntico às convicções de um grupo, sendo a expressão dessas convicções na linguagem do movimento; e ele é, consequentemente, inanalisável em partes que pudessem ser situados no plano das descrições históricas". [25] Um mito está para além da razão e da análise. Mitos como a greve geral eram importantes para Sorel porque eles "são quase sempre puros; eles nos permitem entender a atividade; os sentimentos e ideias das massas conforme elas se preparam para adentrar um confronto decisivo; eles não são descrições de coisas, mas expressões de uma vontade de agir". [26] Assim, um mito no mundo moderno é uma ferramente de combate que pode inspirar o povo a destruir a ordem existente.

Ainda assim Sorel distinguia o mito da utopia porque esta era um produto intelectual que é uma combinação de instituições imaginárias com analogias suficientes em relação a instituições reais para que o jurista seja capaz de raciocinar sobre elas; ela é uma construção que pode ser fragmentada em partes, algumas das quais estão moldadas de maneira que é possível que elas sejam (com algumas alterações) encaixadas em futuras legislações. [27]

Uma utopia pode ser refutada demonstrando que ela é incompatível com "as condições necessárias da produção moderna". [28] Assim, Sorel separou o marxismo de qualquer análise da sociedade ou racionalidade e substituiu a teoria com mitos revolucionários necessários para trazer a violência apocalíptica. O socialismo na mente de Sorel era pouco diferente de uma religião ao encorajar uma nova moralidade entre as pessoas. [29] Os mitos revolucionários podiam fornecer isso de uma maneira que a razão e o materialismo marxista não poderiam. O mito da greve geral era uma fonte inexaurível de regeneração que serviria como catalisador para novos rituais, símbolos lendas e criação para permitir que o proletariado afirme e se conecte a algo transcendente e eterno.

Apesar da fé e confiança ilimitadas que Sorel tinha no movimento sindicalista, ele não correspondeu às suas expectativas. Sorel se distanciou do sindicalismo e do proletariado, flertando brevemente com a extrema-direita francesa. Antes de sua morte em 1922, as paixões políticas de Sorel foram acesas novamente tanto por Mussolini (que reivindicava Sorel como inspiração) como por Lênin.

Os movimentos sindicalistas da Europa e dos Estados Unidos, apesar das grandes greves, não conseguiram derrubar o Estado burguês. Nem o movimento sindicalista sobreviveu ao desafio da Primeira Guerra Mundial, com a maioria capitulando ou perante sentimentos patrióticos ou sendo suprimida. O sindicalismo também mostrou-se completamente deficiente em relação ao papel do partido e à questão do poder do Estado. No final, nenhuma greve geral em qualquer lugar derrubou a regra do capital, provando que o sindicalismo falhou na prova do poder. Foi o Partido Bolchevique, organizado por comunistas revolucionários, que foram capazes de revitalizar o marxismo em 1917, levando a uma conquista revolucionária bem sucedida do poder e estabelecendo uma nova ordem na Rússia. O sucesso bolchevique foi construído sobre o conceito de um partido revolucionário, a unidade da teoria e da prática e o exemplo dos sovietes. Essas idéias inspirariam comunistas em todo o mundo, como José Carlos Mariátegui. [30]

E, como veremos, Mariategui, ao mesmo tempo em que se apega ao marxismo como método e doutrina, descobriria que as idéias de Sorel sobre o mito ajudavam a combater o determinismo, encorajavam a ação revolucionária heróica entre o proletariado e, finalmente, inspiravam os trabalhadores a criarem um novo mundo socialista sobre os escombros de uma sociedade burguesa degenerada.

III. Mariátegui

José Carlos Mariátegui nasceu em 14 de julho de 1894 (Dia da Bastilha) em Moquegua, Peru, como o sexto filho de um humilde pai liberal e uma devota mãe católica (que o criou). Mariategui passou sua juventude na loja de couro de seu avô, ouvindo as histórias dos trabalhadores que passavam e relatavam histórias das condições de trabalho e de vida nos latifúndios, que se assemelhavam aos da servidão. Aos oito anos, após um acidente, Mariategui desenvolveu problemas persistentes em sua perna esquerda que eventualmente levaram à sua amputação em 1924, confinando-o à cadeira de rodas pelo resto de sua vida.

Devido à pobreza de sua família, Mariátegui deixou a escola na oitava série, para encontrar um emprego para ajudá-los. Ele conseguiu adquirir emprego como um linotipista aos quinze anos com o jornal peruano La Presna. Ele mostrou talento no jornalismo que rapidamente o levou a se tornar um escritor e um editor. Aos dezesseis anos, ele já estava interessado no socialismo. Eventualmente, Mariátegui fundou dois jornais pró-trabalhador de curta duração. Em 1919, Mariátegui não só apoiou as demandas de trabalhadores e estudantes, mas se tornou crítico em relação ao presidente peruano Leguia, que dissolveu o congresso e se tornou ditador. O governo fechou os jornais críticos e exilou Mariategui para a Europa como um "agente de informação".

Mariátegui ficou na Europa de 1919 a 23, a experiência o ajudou a amadurecer como marxista. Ele viveu principalmente na França e na Itália, encontrando vários socialistas e intelectuais como Antonio Gramsci, Benedetto Croce, Romain Rolland e Henri Barbusse. Enquanto na Itália, ele testemunhou o "biennio rosso" dos dois anos vermelhos de ocupações de fábrica de 1919-20 que levaram a Itália à beira da revolução socialista. Mariátegui esteve presente na fundação do Partido Comunista Italiano em 1921 no famoso congresso de Livorono. Ele também conheceu uma mulher italiana, a quem ele se casou e deu-lhe quatro filhos. Quando voltou ao Peru, ele era um marxista dedicado e bem-formado.

Mariátegui ficou na Europa de 1919 a 23, a experiência o ajudou a amadurecer como marxista. Ele viveu principalmente na França e na Itália, encontrando vários socialistas e intelectuais como Antonio Gramsci, Benedetto Croce, Romain Rolland e Henri Barbusse. Enquanto na Itália, ele testemunhou o "biennio rosso", os dois anos vermelhos de ocupações de fábricas de 1919-20 que levaram a Itália à beira da revolução socialista. Mariátegui esteve presente na fundação do Partido Comunista Italiano em 1921 no famoso congresso de Livorno. Ele também conheceu uma mulher italiana, com quem ele se casou e teve quatro filhos. Quando voltou ao Peru, ele era um marxista dedicado e bem-formado.

Enquanto no Peru, Mariátegui conduzia uma grande gama de trabalhos políticos. Ele lecionou aos trabalhadores da Universidade Popular González Prada. Ele também trabalhou com trabalhadores, socialistas e sindicalistas para formar a Confederação Geral dos Trabalhadores peruanos e o Partido Socialista Peruano, que se tornaria o Partido Comunista após sua morte. Ele também formou o periódico Labor e a revista Amauta (ou professor sábio) para espalhar idéias de esquerda e socialistas em todo Peru e América Latina. Ele também escreveu três livros durante sua vida. O primeiro, A Cena Contemporânea, é uma coleção de artigos que ele escreveu para várias revistas. O segundo e seu trabalho mais famoso, Sete Ensaios Interpretativos sobre a Realidade Peruana, uma aplicação original e criativa da análise marxista ao Peru, destacando a importância dos indígenas para a revolução, além de percepções penetrantes sobre história, cultura e educação. O trabalho foi aclamado em toda a América Latina e influenciou não apenas os marxistas como o Che Guevara, mas também os movimentos indígenas e os teólogos da libertação. E o seu último trabalho publicado, o mais relevante para os nossos propósitos, foi A Defesa do Marxismo (publicado postumamente), uma crítica do revisionismo e uma defesa do marxismo revolucionário desde uma perspectiva leninista. A escrita de Mariátegui não é objetiva, mas ferozmente partidária: "Mais uma vez repito que não sou um crítico imparcial e objetivo. Meus julgamentos são nutridos por meus ideais, meus sentimentos, minhas paixões. Tenho uma ambição declarada e resoluta: ajudar na criação do socialismo peruano ". [31] Infelizmente, devido à debilitação de sua saúde, Mariátegui morreu em 16 de abril de 1930 aos trinta e seis anos.

É em Defesa do Marxismo que Mariátegui expõe mais claramente a sua abordagem não dogmática e antideterminista do marxismo e discute a importância dos mitos, ética e símbolos (com base em Sorel). Diferentemente de Sorel, Mariátegui enfatiza a importância da teoria marxista, afirmando que "Agora, mais do que nunca, o proletariado precisa saber o que está acontecendo no mundo". [32] E para ele, a única teoria que pode fornecer orientação para o proletariado é o marxismo: "O socialismo, começando com Marx, apareceu como a concepção de uma nova classe, como uma teoria e um movimento que não tinham nada em comum com o romantismo daqueles que repudiaram a obra do capitalismo como uma abominação". [33] Para Mariátegui, uma visão marxista forneciam não só clareza quanto ao objetivo, mas serviu de guia para a ação política revolucionária para chegar lá.

No entanto, o marxismo não era o evolucionismo gradualista encontrado no revisionismo social-democrata. Em vez disso, precisava germinar a consciência revolucionária entre a classe trabalhadora para estimular sua ação. "O marxismo, onde se mostrou revolucionário - isto é, onde ele tem sido marxismo - nunca obedeceu a um determinismo passivo e rígido". [34] Mariátegui argumentou que o capitalismo não iria cair por conta própria, mas demandaria esforço consciente dos explorados. Caso contrário, não havia saída. Mais do que isso, a crítica de Marx permanecia válida enquanto o capitalismo existisse - foi na luta contínua para transformar o mundo, seja nas ações de massa do proletariado ou na construção do socialismo, que a teoria marxista foi continuamente renovada. Sem essa interação regenerativa da teoria com a prática, o marxismo estava condenado a se enfraquecer e morrer. "O socialismo ou, antes, a luta para transformar a ordem social de capitalista para coletivista, mantém esta crítica viva, continua ela, confirma-a, corrige-a. Qualquer tentativa de categorizá-lo como uma simples teoria científica é em vão, uma vez que ela opera na história como o evangelho e o método de um movimento de massa ". [35]

No entanto, existem teorias "marxistas" que afirmam ser puras e revolucionárias, acreditando que sua interpretação dos "textos sagrados" lhes fornece o único roteiro real para o futuro. Quando eles vêem as pessoas nas barricadas ou uma revolução que acende, que rompe com suas concepções ortodoxas de como os eventos devem se desenrolar, então, para elas, tal revolução é corrompida pelo demônio. Pulverizam a "água benta" de suas citações marxistas seletas para exorcizar este espírito demoníaco da revolução inesperada. Não é permitido estragar a "revolução real", que aguardam apaixonadamente. Uma vez que o capítulo e versículo corretos foram proferidos, então a penitência apropriada é feita. A revolução pode ser desprezada e os puristas podem voltar à espera. No entanto, o marxismo que não se nutre nos incêndios da luta, apesar de suas supostas aspirações revolucionárias, é de fato um cadáver que apodrece. Como Mariategui viu, a tarefa dos revolucionários era aplicar o marxismo à situação em questão, a fim de fazer uma investigação concreta do Peru (e do mundo em geral). A partir dessa análise, as estratégias e ações necessárias poderiam ser desenvolvidas.

Seguindo Sorel, Mariátegui argumentou que era imperativo que o proletariado fizesse uma revolução porque a sociedade burguesa estava tomada pela decadência. Isso pode ser visto em sua arte, literatura e intelectuais. Outrora a burguesia havia sido uma classe jovem, heróica e crescente, cheia de visão e destino, mas tudo isso mudou. A burguesia moderna era uma sombra pálida em comparação com os antepassados ​​jacobinos que derrubaram reis e fundaram repúblicas. A sociedade burguesa, com seus poderes produtivos, ciência e razão, agora cobria o mundo e dissolveu os laços do feudalismo e da fé religiosa. Após o cataclismo da primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, Mariátegui concluiu que "a civilização burguesa sofre de falta de mito, de fé e de esperança". [36] No entanto, no lugar desses altares derrubados, não havia nada para botar no lugar. Mariátegui acreditava que a ciência e a razão eram substitutos inadequados dos antigos mitos da religião: "Nem a Razão nem a Ciência podem satisfazer a necessidade do infinito que existe no homem. A própria razão foi desafiada, demonstrando à humanidade que não é suficiente ". [37]

Razão e ciência só podem ser levadas até certo tempo. Elas não podem preencher a lacuna na psique humana da mesma forma que o mito poderia. "Somente o Mito possui a preciosa virtude de satisfazer o seu eu mais profundo". [38] A civilização burguesa arrancou o santo e o sagrado, transformando a humanidade em indivíduos atomizados governados pelo mercado sem rosto com sua luxúria por lucros incessantes. A cultura burguesa é esmagadoramente permeada pelo chauvinismo, pela mediocridade, pelo racismo, pelo sexismo e pelo egoísmo. Como disse o marxista inglês Christopher Caudwell, essa era uma cultura moribunda. O resultado final disso é que a humanidade foi reduzida a ferramentas falantes em uma linha de montagem ou como soldados para serem massacrados em massa na guerra de trincheiras para determinar quais vampiros governariam escravos coloniais. Esta não era uma sociedade governada por qualquer ideal, mas uma decadente e doente que merecia morrer.

Então, o que deve substituir o mundo burguês carente de mitos? Para Mariátegui, o homem "é um animal metafísico. Ele não vive de forma produtiva sem uma concepção metafísica da vida. O mito move o homem na história. Sem mito, a história da humanidade não tem senso de história ". [39] Só um novo mito poderia substituir os ídolos caídos da burguesia. Esse novo mito era o da revolução comunista. O proletariado luta ativamente por esse mito "com uma fé apaixonada e ativa". [40] Ao contrário do capitalismo, que nada tinha a oferecer, Mariátegui afirmou que "o proletariado afirma" [41].

Para que o proletariado realize ações heróicas, é necessária uma transformação em sua consciência. O proletariado não pode ficar satisfeito com um pedaço maior da torta ou aceitar a maneira como o mundo é. Em vez disso, uma classe revolucionária não aceita a maneira como o mundo é, ela luta para mudá-lo. Para esse fim, os trabalhadores precisavam superar "o espírito anarcoide, individualista e egoísta, que, além de ser profundamente anti-social, não constitui nada além da exacerbação e degeneração do antigo liberalismo burguês; a segunda coisa que deve ser superada é o espírito do corporativismo do ofício, da categoria de trabalho. "[42] Para que a consciência de classe realmente se desenvolvesse e amadurecesse, era imperativo que os trabalhadores olhassem além de seus horizontes imediatos e negócios particulares para ver a posição comum que compartilham com seus colegas trabalhadores em todo o mundo. Ainda mais do que isso, a consciência comunista teve que abraçar o ideal de Lênin do tribuno do povo, que é "capaz de reagir a todas as manifestações de tirania e opressão, não importa onde ela apareça, independentemente do estrato ou classe das pessoas que afeta"[43] Isso implica a solidariedade dos revolucionários na França, na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, com os movimentos de libertação nacional nas colônias, mesmo que sejam vistos como "traidores" por seus compatriotas. Essa traição é lealdade à revolução e à humanidade.

No entanto, a consciência de classe vai além e não significa apenas solidariedade com os oprimidos e explorados, mas precisa de disciplina e organização, para ter força e direção. "Quero dizer a vocês que é necessário dar ao proletariado de vanguarda, juntamente com um sentido realista da história, uma vontade heróica de criação e implementação. O desejo de melhoramento, o apetite pelo bem-estar, não são suficientes". [44] Quando o proletariado é incendiado pela visão de uma nova sociedade, eles saberão que ela não descerá do céu devido ao desenvolvimento inexorável de "leis econômicas", mas através da organização e luta ativas. Esta luta implica uma vanguarda infundida com o "mito" de uma nova sociedade igualitária livre de exploração e opressão. É esse o ideal, não os textos da teoria ou da ciência marxista, que permite que os revolucionários sofram prisão, montem barricadas, cantem músicas e marchem em conjunto contra chances impossíveis. Na busca desse mito, a palavra "camarada" torna-se mais do que uma palavra, a solidariedade torna-se concreta e as letras da "Internacional" são ideais a serem alcançados. "A força dos revolucionários não está em sua ciência, é na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística e espiritual. É a força do mito". [45]

Em última análise, o proletariado não está lutando por um mito, mas para criar uma civilização nova e superior. Como disse Mariátegui, "não desejamos que o socialismo na América seja um rastreamento e uma cópia. Ele deve ser uma criação heróica". [46] Este heroísmo significa que o proletariado teve que tomar consciência de sua missão histórica, sacudir sua subserviência à classe dominante, levar o destino da humanidade firmemente em suas mãos e construir o socialismo. "Na luta de classes, onde todos os elementos sublimes e heróicos de sua ascensão residem, o proletariado deve elevar-se a uma "moralidade de produtores", bastante distante e distinta da "moralidade escrava" que seus professores de moral gratuitos, horrorizados por seu materialismo, tentam oficiosamente fornecer. Uma nova civilização não pode surgir de um mundo triste e humilhado de miseráveis ​​helotas sem maiores méritos ou faculdades do que seu servilismo e miséria". [47]

No entanto, os reformistas argumentam que tal visão é utópica, uma vez que a derrubada revolucionária do Estado capitalista inevitavelmente provocará perturbações na produção, grandes revoltas e que o socialismo começará em um nível produtivo mais baixo do que a sociedade burguesa. Com efeito, Mariátegui aceitaria isso porque "os revolucionários de todas as partes do mundo devem escolher entre serem vítimas da violência ou usá-la" [48]. É natural que uma revolução perturbe as coisas. O que mais se espera? No entanto, houve também épicos heróicos encontrados em cada revolução, seja aqueles de soldados esfarrapados do Exército Vermelho que resistindo a quatorze exércitos na Rússia, o inegável entusiasmo de construir novas fábricas durante um plano de quinquenal, trazer arte ao povo ou construir novos rituais, cultura e valores livres de submissão. Todos esses atos podem ocorrer em ruínas, mas um novo mundo socialista se elevará em seu lugar, para servir aos interesses da humanidade redimida. Mariátegui, sem dúvida, concordou com o anarquista espanhol Buenaventura Durruti, que expressou o seu otimismo revolucionário da seguinte forma: "Nós, os trabalhadores. Podemos construir outros para tomar seu lugar. E melhores. Não temos medo de ruínas. Vamos herdar a Terra; não há a menor dúvida disso. A burguesia pode explodir e arruinar seu próprio mundo antes de deixar o cenário da história. Nós carregamos um mundo novo aqui, em nossos corações. Esse mundo está crescendo neste minuto. "[49]

Para Mariátegui, em oposição a Sorel, os mitos não substituíram a teoria e a análise marxistas, mas eram um complemento necessário para ela. Enquanto o proletariado revolucionário precisava conhecer o mundo para mudá-lo, isso não era suficiente. Para que a classe trabalhadora adquira a verdadeira consciência de classe e construa uma nova ordem, eles precisavam se inspirar em mitos revolucionários. Os mitos elevariam o proletariado a uma concepção superior da vida e lhe dariam a fé necessária para encarar as dificuldades impossíveis e as difíceis experiências que os aguardavam. No entanto, Mariátegui argumentou que o poder dos mitos revolucionários não era apenas fé em um ideal distante, mas em permitir que as massas transformassem o mito do comunismo em realidade.

IV. Mitos do Movemento [50]

Apesar das reivindicações científicas e seculares do marxismo, do socialismo e do comunismo, esses movimentos não são imunes ao poder dos mitos, símbolos e rituais. Os mitos e a "falsa consciência" têm uma base material de existência que precisa ser reconhecida. De fato, a política de massas é inconcebível sem exaltar imagens e mitos. A política socialista não pode ser conduzida unicamente através da luta racional contra a "falsa consciência" nas cabeças das pessoas, explicando a teoria laboral do valor ou a relação entre base e superestrutura (embora a teoria seja definitivamente necessária) ou vendendo jornais. A política do socialismo e do comunismo opera em múltiplos níveis, sendo um para desafiar racionalmente idéias incorretas, enquanto outras envolvem o simbólico e o mítico.

Mesmo nos movimentos comunistas mais seculares e racionalistas, onde se supõe que os sacerdotes enganavam e manipulavam pessoas, elementos do mítico e simbólico desempenharam um papel importante. Tome o exemplo dos comunistas blanquistas na França durante o século 19 que foram liderados pelo insurrecionista Louis-Auguste Blanqui. Blanqui argumentou que "o comunismo só pode ser alcançado pelo triunfo absoluto do iluminismo". Um método que os blanquistas utilizavam era imprimir jornais anti-religiosos para atacar a Igreja Católica, que seria o "apoio espiritual" da classe dominante. Ao fazê-lo, eles acreditavam que isso despertaria as pessoas. O que os blanquistas finalmente acreditavam ser necessário para que a revolução triunfasse era uma conspiração organizada liderada por uma elite esclarecida, não dependendo da massa de trabalhadores para se revoltar, que eles acreditavam ser impossível porque estavam sob a influência dos sacerdotes e da classe dominante. Uma vez que o golpe blanquista conseguisse derrubar a antiga ordem, eles iriam instituir uma "ditadura esclarecida" que empreenderia a tarefa pedagógica de educar o povo nos valores seculares e republicanos.

Mesmo os blanquistas seculares também eram governados por rituais, símbolos e mitos. Quando um membro se juntava à sociedade secreta, eles participavam de uma elaborada cerimônia de iniciação onde eles eram vendados e tinham que jurar o ódio eterno aos aristocratas e reis, e lutar pela república. O fracasso em obedecer a este juramento era punível com a morte. Os ritos de iniciação blanquistas não foram inventados por eles, mas copiados de outros movimentos seculares como os maçons e os carbonários. A iniciação à conspiração revolucionária era, portanto, quase um ato sagrado como ser confirmado na Igreja Católica.

E enquanto os blanquistas juravam estabelecer a república, mesmo o significado desse termo era vago para eles. A maioria dos conspiradores eram homens jovens, eles nunca haviam vivido sob uma república. A "República" era um mito e um ideal, que lhes tinham sido transmitidos através do boca a boca dos homens mais velhos, da leitura da história ou dos discursos de Robespierre. No entanto, o mito de uma república os inspirou a arriscar suas vidas para conseguir a vitória final da revolução. Além disso, o nome de Blanqui também era um símbolo e um mito não apenas para os conspiradores, mas para os trabalhadores da França. Quaisquer que fossem as fraquezas teóricas de Blanqui ou a falência de sua abordagem da revolução, ele passou metade de sua vida na prisão, sofrendo tortura, sem se render. Para milhões, ele representava resistência à opressão e o ideal comunista. Como Alain Badiou argumenta, enquanto a política emancipatória é "essencialmente a política das massas anônimas", é através de nomes próprios como os de Blanqui (ou Che e Lênin) que "o indivíduo comum descobre indivíduos gloriosos e distintivos como a mediação para sua própria individualidade, como a prova de que ele pode forçar sua finitude. A ação anônima de milhões de militantes, rebeldes, combatentes, irrepresentável enquanto tal, é combinada e contada como uma no simples e poderoso símbolo do nome próprio". [51] Assim, o racionalista e ateu Blanqui assumiu o poder de um mito e um símbolo.

E, assim como as religiões, os movimentos trabalhistas, anarquistas, socialistas e comunistas criaram sua própria arte, símbolos, educação e um senso de comunidade. Qualquer outra crítica que possa ser dirigida a eles, nem o Partido Comunista Francês (PCF) e os social-democratas alemães (SPD) só elegiam representantes para o parlamento. Ambos proporcionavam modos de vida alternativos para seus membros e para a classe trabalhadora mais ampla. O SPD tinha bibliotecas, ligas esportivas, coros e clubes de xadrez para seus membros e simpatizantes. Mesmo que um trabalhador não fosse membro do PCF ou do SPD, eles poderiam encontrar um senso de comunidade e reforço para seus valores compartilhados de luta da classe trabalhadora e socialismo dentro da subcultura mais ampla que os partidos promoviam. Isso ajudava os militantes e outros a desenvolver uma "fé" compartilhada necessária para resistir às investidas da ideologia e da cultura burguesa dominantes. Os militantes do partido e os simpatizantes podiam não ser capazes de refutar os argumentos dos ideólogos burgueses, mas uma vez que eles estivessem convencidos do socialismo e tivessem essa crença reforçada por seus mitos, rituais e símbolos compartilhados encontrados na luta e cultura proletária promovidas pelo partido, então a convicção tornava-se inquebrável. Desta forma, os movimentos sociais não se tornam uma seita, mas uma fé compartilhada entre uma comunidade de militantes, abraçando todos os aspectos da vida política, econômica, ideológica, cultural e social.

Os movimentos também desenvolvem sua própria estética e estilo de vestimenta. Por exemplo, militantes do partido bolchevique durante a guerra civil usavam jaquetas de couro e botas de combate para simbolizar seu zelo revolucionário. Os bolcheviques também abraçaram a vanguarda artística, como pode ser visto na imagem simbólica do "Derrotar os Crancos com a cunha vermelha" ou o emblema do martelo e da foice que são representações poderosas para transmitir os valores da causa revolucionária aos comunistas, artistas e trabalhadores. E os movimentos revolucionários também proporcionaram espaços para os artistas experimentar e traduzir os valores do movimento em símbolos, história e imagens, seja em desenhos animados, pôsteres, literatura proletária, slogans, músicas, peças de teatro ou poesia. No entanto, a estética de cada movimento é única e específica do tempo. Por exemplo, apesar de ambos terem transmitido uma estética radical, a boina e as armas das Panteras Negras eram muito diferentes das longas barbas dos radicais alemães na década de 1840.

Existe um lado sombrio em mitos, rituais e simbolismos que afetam os movimentos socialistas e comunistas, assim como as religiões, que precisam ser reconhecidos. O PCF foi dito, não sem justificação, o equivalente secular à Igreja Católica: com seus próprios dogmas, ortodoxias, santos, mártires, heresias e demônios. Os dissidentes trotskistas ou maoístas expulsos do partido deveriam ser evitados, ignorados ou mesmo atacados fisicamente. Os militantes eram encorajados a não questionar as credenciais socialistas da União Soviética ou suas muitas reviravoltas abruptas na política externa, uma vez que isso poderia desmoralizar os trabalhadores ou fazer com que eles perdessem a fé na causa revolucionária. Os intelectuais do PCF, como Louis Althusser, trabalhavam suas críticas ao partido em linguagem deliberadamente obscura ou oblíqua ou ficavam em silêncio, porque, de outra forma, seriam expulsos e perderiam a chance de participar da grande missão histórica (supostamente incorporada pelo partido). E para os militantes comunistas, não poderem trabalhar pela causa, isso poderia ser um destino pior do que a morte.

Por exemplo, na União Soviética, aqueles que eram considerados como mostrando uma "falta de fé" na causa seja por críticas legítimas ou por defenderem linhas diferentes, não eram apenas vistos como uma "oposição leal", mas como traidores. Lançar dúvidas sobre a liderança ou questioná-la, era estar em liga em forças de classe alienígenas ou com o fascismo. Na verdade, os grandes julgamentos dos expurgos da década de 1930, apesar das aparências de legalidade e jurisprudência (apesar de falta de provas físicas ou corroboração) foram conduzidos mais como a inquisição católica do que como uma corte de justiça onde a heresia era sinônimo de traição e descrença. Em última análise, a única evidência oferecida para a culpa do acusado eram suas confissões. As semelhanças entre os métodos dos julgamentos soviéticos e da Inquisição foram apontadas por um dos acusados, Nikolai Bukharin, que disse: "A confissão do acusado não é essencial. A confissão do acusado é um princípio medieval da jurisprudência ". [52]

V. Conclusão

Apesar dos dogmas e inquisições que um abraçar dos mitos pode encorajar em movimentos radicais, é impossível imaginar a política sem eles. Há uma existência material nos mitos que as teorias racionalistas de "falsa consciência" não reconhecem. Os mitos, símbolos e ritos do radicalismo permanecem parte de como recordamos nosso passado, imaginamos nosso futuro, forjamos um elo comum de solidariedade para que saibamos como viver e como viver por nosso ideal. 

__________________________________________________

1 - Joseph Campbell, The Power of Myth (New York: Anchor Books, 1991), 38.
2 - Ibid. 39.
3 - Louis Althusser, On the Reproduction of Capitalism (New York: Verso Books, 2014), 156.
4 - Ibid. 259.
5 - Ibid. 251.
6 - Ibid. 220.
7 - Campbell 1991, 14.
8 - Ibid.
9 - Ibid. 39.
10 - Jose Carlos Mariátegui, “Henri de Man and the Crisis of Marxism” in Jose Carlos Mariátegui: An Anthology, ed. Harry E. Vanden and Marc Becker (New York: Monthly Review Press, 2011), 189.
11 - Mariategui, “Man and Myth,” in Mariategui: An Anthology 2011, 387.
12 - Zeev Sternhell, The Birth of Fascist Ideology (Princeton: Princeton University Press, 1994), 40.
13 - See John L. Stanley ed., From Georges Sorel: Essays in Socialism and Philosophy (New Brunswick: Transaction Publishers, 2002) 30-1 and 154-5; and Sternhell 1994, 21, 39-40.
14 - “The Ethics of Socialism” in From Georges Sorel 2002, 106; Sternhell 1994, 43-46.
15 - Quoted in Sternhell 1994, 42.
16 - See From Georges Sorel 2002, 10.
17 - Georges Sorel, Reflections on Violence (New York: Cambridge University Press, 2004), 34.
18 - See my “How anarchists, syndicalists, socialists and IWW militants were drawn to Bolshevism: four case studies,” LINKS International Journal of Socialist Renewal. http://links.org.au/node/2935
19 - Sorel 2004, 112 and 243.
20 - Ibid. 250 and 238.
21 - Ibid. 249 and 161.
22 - Ibid. 75 and 72.
23 - Ibid. 110.
24 - Ibid. 30.
25 - Ibid. 29.
26 - Ibid. 28.
27 - Ibid.
28 - Ibid. 29.
29 - Ibid. 30.
30 - See How anarchists, syndicalists, socialists and IWW militants were drawn to Bolshevism: four case studies” (note 18).
31 - Jose Carlos Mariátegui, Seven Interpretive Essays on Peruvian Reality (Austin: University of Texas Press, 1971), xxxiv.
32 - Mariátegui, “The World Crisis and the Peruvian Proletariat,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 296.
33 - Mariátegui, “The Heroic and Creative Sense of Socialism,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 212.
34 - Mariátegui, “Marxist Determinism,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 208.
35 - Mariátegui, “Modern Philosophy and Marxism,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 194.
36 - Mariátegui, “Man and Myth,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 383.
37 - Ibid.
38 - Ibid.
39 - Ibid. 384.
40 - Ibid. 387.
41 - Ibid.
42 - Mariátegui, “Message to the Workers' Congress,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 181.
43 - V. I. Lenin, “What is to be Done?” Marxists Internet Archive. https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1901/witbd/iii.htm
44 - Mariátegui, “Message to the Workers' Congress,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 185.
45 - Mariátegui, “Man and Myth,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 387.
46 - Mariátegui, “Anniversary and a Balance Sense,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 130.
47 - Mariátegui, “Heroic and Creative Sense of Socialism,” in Mariátegui: An Anthology 2011, 212-3.
48 - Jose Carlos Mariategui, “Ethics and Socialism,” Marxists Internet Archive. https://www.marxists.org/archive/mariateg/works/1930-ethics.htm
49 - Abel Paz, Durruti in the Spanish Revolution (Oakland: AK Press, 2007), 478.
50 - I have also drawn from the following two essays by Mike Ely: Sing our own song: “Igniting a communist aesthetic renaissance,” Kasama Project and “Communist foreshocks: Words, ritual and symbols,” Kasama Project. http://k2.kasamaproject.org/kasama/3938-70communist-foreshocks-words-ritual-and-symbols
51 - Alain Badiou, The Communist Hypothesis (New York: Verso, 2010), 249-50.
52 - Robert C. Tucker and Stephen Cohen, ed. The Great Purge Trial (New York: Grosset and Dunlap Publishers,1965), 667.  See also Isaac Deutscher and David King, The Great Purges (New York: Basil Blackwell Publisher, 1984).

Andrew Korybko - A América do Sul na Ordem Multipolar Emergente

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por Andrew Korybko



A Nova Rota da Seda

A China avança com seu plano de construir a primeira Ferrovia Transoceânica (TORR [Trans-Oceanic Railroad]) entre o porto atlântico brasileiro de Santos e sua contraparte pacífica peruviana de Ilo, e visualiza-se que este projeto formará a medula do futuro geopolítico sul-americano na Ordem Mundial Multipolar emergente. O continente está separado da Afro-Eurásia pelos Oceanos Atlântico e Pacífico, diminuindo assim a prioridade imediata que os motores multipolares da Rússia e da China dão a essa massa terrestre. É verdade que o Brasil é o único membro hemisférico ocidental do BRICS e que isso proporcionou um novo impulso para o envolvimento de Moscou e Pequim com Brasília, mas as distâncias geográficas que separam o Estado sul-americano de seus homólogos eurasianos sempre serão um obstáculo para relações comerciais mais próximas. A Rússia não tem a capacidade de satisfazer as expectativas econômicas do Brasil a esse respeito, mas a China é uma história completamente diferente e está muito mais em sintonia para abraçar novos parceiros neste setor.

A visão da China de Um Cinturão Uma Estrada (OBOR [One Belt One Road]), popularmente conhecida como Nova Rota da Seda, é uma política inovadora de investimentos globais em infraestrutura projetada para amarrar o resto do mundo mais perto da economia chinesa, abrindo assim novos mercados para todos os países conectados. Isto é especialmente importante para a China na medida em que ela procura novos parceiros para comprar os bens extras que são produzidos como resultado de sua crescente capacidade. O dilema da China é que sua industrialização historicamente rápida nos últimos 30 anos tem sido quase bem sucedida demais no sentido de que a estabilidade do país inteiro seria abalada se esse processo desaelerar ou desastrosamente reverter seu impulso. A República Popular não tem como suportar o grande descontentamento social que poderia explodir em Revoluções Coloridas ou pior no caso de milhões de chineses estarem sem trabalho e desempregados nas maiores megacidades do mundo. Portanto, a China é obrigada a manter a produção em seus níveis padrão como a maneira mais estável de enfrentar a crise econômica global, esperando que as novas rotas comerciais que se abrem nos próximos anos como parte do projeto OBOR compensem qualquer excesso de capacidade que inadvertidamente resulte durante este tempo.

A Ruptura Filipina e o "Mar da China Meridional Americano"

É uma aposta arriscada, e uma que poderia se voltar dramaticamente contra a China se a OBOR for completamente sabotada e daí a razão pela qual os EUA estão visando seus elos mais fracos com as suas guerras híbridas. A América do Sul figura nesta grande equação como sendo o fornecedor de matéria-prima mais distante da economia chinesa, além de seu mercado mais distante. A China só pode acessar a América do Sul e o resto da América Latina de forma mais ampla através de rotas comerciais marítimas, e é por isso que é tão importante para a China manter e expandir sua frota marinha mercante e garantir suas linhas marinhas de comunicação (SLOC [Sea Lines of Communication]). Do ponto de vista inverso, os EUA querem conter a China tanto quanto possível através do estreitamento dos pontos marítimos de congestão do Leste Asiático, a fim de pressionar Pequim no caso de um futuro conflito, o que explica por que está trabalhando em conjunto com o Japão na militarização das Ilhas Diaoyu/Senkaku do Mar da China Oriental. O pensamento é de que, se a China puder ser "cercada" nesta via navegável, o comércio de Pequim com o Hemisfério Ocidental poderia sofrer em momentos tensos, assim como os seus negócios comerciais marítimos com a UE e a África poderiam ser afetados através do aperto do nó da "Coalizão de Contenção Chinesa" no Mar da China Meridional.

Porque por mais teoricamente "brilhante" que este plano possa parecer no papel, essa estratégia é inerentemente falha porque nunca foi acomodada para nenhum dos possíveis pivôs geopolíticos pro-chineses dos estados da ASEAN [Associação de Nações do Sudeste Asiático], como o que o Duterte das Filipinas realizou magistralmente imediatamente após entrar no cargo. Como resultado desse divisor de águas, a China atravessou a "primeira cadeia de ilhas" do bloco de contenção dos EUA na Ásia e, desse modo, tem acesso marítimo mais seguro aos oceanos Índico e Pacífico. De acordo com este estudo, os grandes planejadores chineses podem agora avançar com seu objetivo final de transformar a América Latina em uma gigantesca "base operacional" para contra-atacar e conter estrategicamente os EUA através de "saltos entre ilhas" por todas as linhas marítimas de comunicação nos pequenos países do Pacífico, até o "quintal" dos EUA. A ambição de longo prazo sempre foi espelhar os movimentos dos EUA de uma maneira semelhante à que um jogador do antigo jogo chinês de "go" faz com seu oponente, o que, nesse sentido, se traduz na China transformando o Caribe na "Mar da China Meridional Americano" usando o Canal da Nicarágua e as relações econômico-estratégicas existentes no hemisfério para facilitar uma presença chinesa robusta de espectro completo no futuro, bem na porta dos EUA.

Atormentando os EUA com a Ferrovia Transoceânica

O componente inseparável centro-americano/caribenho desta política de mudança de paradigma é dependente dos sucessos que a China tenha na sua metade sul-americana complementar, daí a razão pela qual a massa terrestre é o foco dessa obra. A Ferrovia Transoceânica (TORR), também chamada de Oceano Gêmeo, é o primeiro investimento da Nova Rota da Seda da China na parte sul do supercontinente e tem o potencial emocionante para repaginar de forma fundamental a geopolítica da América do Sul na direção decisiva da multipolaridade. O projeto é essencialmente a primeira via ferroviária transcontinental nesta parte do mundo e visa conectar a megacidade do Brasil de São Paulo ao pequeno porto costeiro peruano de Ilo por meio da Bolívia. Os planos originais demandavam que ela seguisse a rota da Estrada Interoceânica através dos planaltos brasileiros e da Amazônia ocidental até os Andes peruanos, mas a versão modificada atualmente em discussão decidiu simplificar a rota geograficamente tortuosa e passar diretamente pela Bolívia. Embora seja uma escolha econômica sábia, isso perigosamente torna a viabilidade do projeto em grande parte dependente da estabilidade do Estado de trânsito da Bolívia, o qual, como será explicado mais adiante no trabalho, é excepcionalmente vulnerável a guerras híbridas provocadas pelos americanos no mesmo estilo que as que causaram tanto estrago nos estados do Hemisfério Oriental, como a Síria e a Ucrânia.

A título de comparação, aqui um mapa da Rodovia Interoceânica:

https://www.graphicnews.org/pages/nl/27409/ZUID-AMERIKA-InterOceanic-highway_infographic

Agora aqui a rota que a TORR tomaria originalmente (observem que ela era para começar perto do Rio de Janeiro e não de São Paulo):

https://www.theguardian.com/world/2015/may/16/amazon-china-railway-plan

Agora aqui com o que especialistas dizem que a TORR vai parecer se tudo seguir de acordo com os últimos planos:

http://1m1nttzpbhl3wbhhgahbu4ix.wpengine.netdna-cdn.com/wp-content/uploads/2016/06/Twin-Ocea-Railway-map.jpg

O que é mais importante a se prestar atenção é que São Paulo é mais uma vez o ponto terminal para o projeto e que também há planos para expandir essa coluna de infra-estrutura para o sul no resto do Cone Sul do continente (ou seja, Argentina e Chile). Isso poderia aprofundar substancialmente a integração entre todos os países parceiros, o que também resultaria em uma fusão logística de fato do Mercosul e da Aliança Pacífico. Esses dois blocos e a competição provocada pelos americanos entre eles serão elaborados em profundidade no capítulo final do livro, mas neste momento é suficiente para o leitor perceber que sua rivalidade poderia ser produtivamente superada de forma multipolar através do inovador corredor econômico chinês cuja ponta-de-lança é o TORR. As matérias-primas sul-americanas (lítio, energia, produtos florestais, minerais, etc.), recursos agrícolas e vários produtos industriais fluiriam para a Ásia ao mesmo tempo em que os produtos acabados chineses entrarão na massa continental meridional, iniciando assim um acordo de ganha-ganha para todas as partes envolvidas.

Por outro lado, no entanto, se os EUA pudessem adquirir o controle de cada um dos países ao longo desta rota, então seria em uma posição privilegiada para apertar o poder sobre a América do Sul e mover o continente progressivamente unificador na direção da servidão unipolar, daí a maior importância atribuída à Bolívia no presente. Os EUA também poderiam perturbar o comércio ao longo desta rota, se alguma vez se sentir ameaçado pelo influxo da influência econômica chinesa em seu "quintal", embora provavelmente se esbarrasse contra a oposição vocal de seus "parceiros" porque eles certamente terminariam perdendo o que seria previsivelmente um relacionamento comercial mutuamente produtivo. Para resumir tudo, os EUA são atormentados pelo pensamento de que a TORR poderia rapidamente criar uma avenida incontrolável para a influência chinesa para se infiltrar na América do Sul e empurrar a República Popular do segundo maior parceiro comercial do continente para o topo (com todos os benefícios estratégicos resultantes que o acompanham), o que motiva o aparato do "Estado Profundo" de Washington (as burocracias militar, de inteligência e diplomática permanentes) a tomar medidas pró-ativas para evitar que esse cenário ocorra, e daí a atratividade da Guerra Híbrida.

Esaúl Álvarez - Metapolítica e Tradição: Por uma Ciência Tradicional da Política

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por Esaúl R. Álvarez



Com certa frequência se ouve dizer que a Tradição, qualquer que seja, como caminho espiritual de realização deve estar separada da política. Muitas vezes, esta posição é defendida com um argumento de conveniência: quem segue um caminho espiritual não deve 'se meter' na política, mas deve tratar exclusivamente de sua realização pessoal.

Às vezes, se vai ainda mais longe na defesa da incompatibilidade entre os dois campos, sob a idéia geral de que a Tradição não pode desempenhar um papel político de algum tipo sem degenerar e trair a si mesma, o que resulta algo paradoxal, pois a Tradição trata precisamente de criar um quadro abrangente para a existência humana em que todo o humano fique incluído e seja harmonioso.

No fundo nós acreditamos que essas atitudes vêm de um duplo erro:

* uma ideia reducionista e errônea sobre o político, uma ideia que foi criada e ampliada precisamente por aqueles que têm contribuído para a destruição da política e o fagocitaram e puseram a seu serviço.

* uma ênfase excessiva colocada em determinados ambientes do marco esotérico sobre o exotérico, esquecendo quando não desprezando diretamente os aspectos exotéricos e sociais envolvidos em cada Tradição autêntica.

Esta atitude de rejeição da política, que parece cada vez mais comum em alguns círculos tradicionais, é um desejo de não participar na sociedade que realmente não tem nada tradicional, como veremos, e nos parece que mostra a assunção inconsciente de certas ideias e influências claramente anti-tradicionais.

Um desejo de não participar do comum que, nas atuais circunstâncias, dificulta ainda mais se possível a própria sobrevivência da Tradição e favorece a sua adulteração pelas numerosas seitas new-age, ao impedir que a Tradição se mostre aos homens como ela é, em todas as suas manifestações.

I

O argumento mais comum para justificar esta posição é que, do ponto de vista espiritual a política é sempre secundária, porque o primeiro e mais urgente seria o trabalho individual. Muitas vezes cita-se para apoiar este argumento, a passagem evangélica de Maria e Marta. Isso pode ser verdade em princípio, mas faz-se necessário matizar que, sendo secundário, é, contudo, necessário. E não só do ponto de vista social, mas também do ponto de vista particular de cada um, porque ao contrário do que a propaganda tenta fazer crer, o indivíduo não pode se desenvolver sem uma rede social ou comunidade de algum tipo.

Destacamos dois argumentos básicos contra essas ideias. A primeira é que para ao se retirar a Tradição e voluntariamente renunciar ao mundo deixa-se o campo livre para o adversário anti-tradicional fincar suas posições e semear sua propaganda sem oposição. Na sociedade isso é evidente para qualquer observador minimamente sensato.

Além disso o esquecimento ou negligência consciente e voluntária da posição que o indivíduo ocupa na sociedade é uma abdicação clara de responsabilidades para com a própria comunidade - abandono que só pode vir da aceitação do individualismo moderno - e abandonar à sua sorte os semelhantes, concidadãos com os quais se compartilha a sociedade e a vida, melhor ou pior. Tal atitude deve ser entendida como uma falta de solidariedade, ou em outras palavras, um pecado contra a caridade.

A renúncia desde instâncias tradicionais a exercer as suas funções no destino e bom governo da sua comunidade propicia que a política - no sentido amplo da palavra - seja seqüestrada por tecnocratas, políticos profissionais e forças capitalistas, facilitando o esvaziamento progressivo de seus conteúdos e sua redução ao ponto de vista economicista próprio da sociedade atual.

É muito provável que a maioria dos nossos contemporâneos não prestem qualquer atenção para o testemunho emitido a partir de Tradição, mas também é certo que há aqueles que procuram de boa-fé sem encontrar o caminho, o caminho reto. E isso, em grande parte, porque nas circunstâncias atuais é cada vez mais difícil separar o trigo do joio, por exemplo, entre esoterismo e ocultismo, ou entre Tradição e new-age, especialmente para aqueles que seguem dominados pela mentalidade profana, embora isso não os satisfaça completamente. Não se deve esquecer que o âmbito de organizações de origem tradicional é particularmente cheio de seitas e imposturas diversas muito perigosas, como é fácil perceber, por exemplo, no mundo do orientalismo, do ioga ou do Vedanta. Portanto, qualquer trabalho de conscientização que se faça e possa servir de ajuda na hora de discriminar pode ser valioso.

Sem dúvida, as circunstâncias atuais não são as mais favoráveis ​​para depor, mas precisamente por isso é um imperativo mais necessário e incontornável para qualquer que se considere ligado à Tradição. Em uma sociedade como a atual o homem tradicional deve primeiro ser exemplar: um exemplo de que outro tipo humano e outra sociedade são possíveis.

II

Além disso, o afastamento também é um erro em um sentido estratégico. Além de ser um sinal de fraqueza perante o mundo profano, o distanciamento tradicional que dura já décadas no caso do Ocidente, não foi benéfica em nada. Muito pelo contrário. O mundo secular não cessou seus ataques, ao contrário, tornou-os mais virulentos, assoberbado ao perceber a fraqueza e apatia da Tradição em todos os seus aspectos.

Aqui tem sido crucial historicamente a assunção por toda a sociedade - e, especialmente, pelos setores que se dizem conservadores - de certas idéias modernas e progressistas - ou seja, enquadradas sob a superstição do progresso - inoculados através de uma propaganda de mais de um século, muitas vezes sob aparência científica, e que moldam o pensamento inconsciente e automático da maioria dos nossos concidadãos.

Referimo-nos a ideias e conceitos como 'apolítico', 'secular', 'laico' ou 'agnóstico', para dar alguns exemplos que são repetidamente empregados pelo discurso do poder. Na verdade, um exercício simples de observação destinado a advertir a partir de que ambientes sociais e econômicos idéias como a do apolítico, do laicismo ou do agnosticismo são promovidas, deve ser suficiente para qualquer um não sobressocializado a desconfiar delas imediatamente, pois trata-se de propaganda.

O caso do conceito de apolítico é o mais diáfano para o que queremos mostrar: é uma falácia instigada a partir do poder para que a 'cidadania' se desvincule voluntariamente do espaço do comum. Ou seja, ele procura alcançar uma retirada semelhante à feita pelos núcleos tradicionais, mas a nível individual.

Além disso, o conceito de apolítico é uma impossibilidade prática tão óbvio que não merece muito tempo de nossa atenção. Digamos que todo espaço social, cultural, econômico ou de qualquer outro tipo deixado vazio em uma sociedade é sempre ocupado por outras forças sociais em um tempo muito curto - na sociedade ocidental de hoje essas forças vêm sem exceção das elites econômicas.

Nem o ente estatal com seu exército de tecnocratas, nem o capital, nem os políticos profissionais deixarão de ocupar esse lugar e exercer sua influência sempre que seja possível, de tal modo que tudo que os cidadãos delegam ao órgão administrativo do Estado - que esses mesmos cidadãos despojados chamado 'Estado de Bem-Estar' - imediatamente se torna um alvo prioritário para os poderes econômicos capitalistas, com a pretensão de rentabilizá-lo.

Em suma, a idéia de 'cidadão apolítico', cujo exemplo mais extremo e grotesco é o de reduzir a participação política a colocar um papel em uma urna - que é acima de tudo e antes de tudo um gesto de submissão - é extremamente prejudicial para toda a sociedade. Renunciando à política se abandona e cede o espaço da convivência e do comum. E é por esta razão que tais idéias são promovidas a partir do próprio poder, especialmente no que diz respeito à juventude.

Algo semelhante acontece com a ideia do Estado não-confessional/secular, embora talvez neste caso haja implicações ainda mais graves porque se renuncia explicitamente a partir do Estado a proteger à maioria, e se cede esse espaço para que outras crenças - sejam as ideologias modernas ou as muitas pseudo-religiões e seitas new age - assumam seu controle. E em alguns ambientes se dão ambos os casos: uma ideologização fanatizada ligada a práticas ocultas perigosas.

Todo este espaço abre precisamente graças à defesa do secularismo, o costume negar o uso continuado da defesa da 'liberdade individual' passado e tradições, e como se todos dispusiera um critério infalível para executar a vida. Própria riqueza e sucesso dos cultos da nova era na Espanha desmente essas fantasias sem uma discussão mais aprofundada.

Pode-se concluir que, sob o pretexto da liberdade e da tolerância, há uma clara intenção de laminar a sociedade e de romper os seus fundamentos. Como já dissemos muitas vezes trata-se de desenraizar o sujeito e deixá-lo sem tecido social. E isso se torna uma certeza indiscutível quando olhamos para os frutos que todas essas políticas de defesa da 'liberdade individual' geraram.

III.

Todas estas razões podem ser resumidas em uma só: a crença de que a política, quer dizer a ciência do governo da Pólis, é independente - inclusive no marco teórico ou filosófico - de qualquer Via tradicional.

É com base unicamente nessa ideia, a saber, que o comum pode e deve ser governado e administrado segundo o modo profano, que encontramos tantas contradições político-ideológicas entre pessoas pertencentes ao âmbito tradicional. Aqui vemos até que grau as ideias liberais e modernistas, que podemos resumor como "revolucionárias", penetraram na mentalidade corrente.

Trataremos de sintetizar os argumentos contra essa tese em seguida.

Na sociedade tradicional não há lugar para o profano: todas as atividades humanas são consideradas sagradas. Quando se pede mais espaço para o profano sob o já conhecido argumento da "liberdade" e dos "direitos" se trata simplesmente - e de forma bem consciente - de ganhar posições na demolição paulatina do mundo tradicional.

Este caráter sagrado dos atos, tanto quotidianos como excepcionais, do homem tradicional, está muito longe de consistir no ritualismo exagerado - ao modo das atuais coroações da realeza europeia - tal e como costumam imaginar nossos contemporâneos, que se acostumaram a confundir o tradicional com o mero folclorismo, que é uma espécie de relíquia que conserva - quando o faz, ultimamente nem isso - o mais formal e exterior do que fora em algum momento uma tradição.

O que o caráter tradicional pressupõe ou implica é nada menos que uma vinculação profunda ao Princípio Superior, de tal modo que a ação sagrada situa quem a realiza - desde a coroação de um rei à fabricação de sapatos ou à construção de uma casa - em seu contexto espiritual e universal. Dito de outro modo, mediante a ação sagrada - sacrifício - o microcosmo que é o ser humano se ressitua e se religa com o macrocosmo, macrocosmo que não é o "mundo" em sentido profano, mas a Totalidade da existência universal - a Criação - implicando por isso todos os níveis e modalidades do Ser. Por meio da ação sagrada o homem se reordena no universo e entra em comunhão com o resto da manifestação - Criação. É também por essa razão que a ação sagrada cria a comunidade e une o povo a um nível impensável para a mentalidade profana do homem moderno.

As consequências do que dissemos para o tema que tratamos resultam óbvias. Para a mentalidade tradicional a política não é e não pode ser algo alheio, independente ou distante, é ao contrário algo obrigado. E já indicamos em ocasiões que na sociedade tradicional nenhum saber é independente dos outros ou menos ainda dos Princípios metafísicos que constituem o fundamento - simbolicamente, o Eixo - de dita sociedade. De modo que uma verdadeira ciência da Política é inseparável dos princípios superiores que constituem sua Tradição.

A política na sociedade tradicional pode ser entendida como o meio pelo qual se constroi e funciona uma comunidade humana em harmonia com os princípios metafísicos sobre os quais dita sociedade se funda. Uma sociedade na qual, nas palavras de Guénon:

"Cada qual deve normalmente desempenhar a função a que está destinado por sua própria natureza; e não pode desempenhar outra sem que deixe de ocorrer por isso uma grave desordem, que terá repercussão sobre toda a organização social de que forma parte". [1]

Acrescentaremos a estas palavras de Guénon uma consideração mais, não raro passada por alto. Uma sociedade tradicional é aquela que além de permitir o cumprimento do swadharma de cada membro particular - que é exatamente a que se refere Guénon no parágrafo imediatamente anterior ao citado - garante a acessibilidade das vias de realização adequadas para aqueles que eventualmente o demandem e estejam naturalmente capacitados. É óbvio que essa condição não se cumpre no mundo de hoje. Ao contrário, cada vez é mais difícil encontrar vias iniciáticas efetivas e funcionais. E ainda diremos algo mais: este era e é o objetivo último - com frequência inconsciente - de toda a "revolução moderna", que pode resumir-se nisso: romper a cadeia iniciática e impedir o acesso efetivo à mesma daqueles que se encontrem potencialmente qualificados.

Como pode então alguém vinculado honestamente a uma Tradição permanecer à margem de tais acontecimentos? Se renuncia voluntariamente a dar batalha, rechaçando o estar presente no Fórum ou Assembleia, como podem então essas mesmas instituições ou pessoas - que deveriam ser um baluarte e um exemplo de resistência perante o avanço do ponto de vista profano e mercantilista - queixar-se ou mostrar sua insatisfação em relação aos desvios que a sociedade vai tomando?

Portanto, para os homens que se considerem vinculados a uma via tradicional, a ação política - sem reduzir esta em absoluto a seu sentido profano e moderno - é um imperativo. Tudo isso sem esquecer que, em um sentido amplo e sagrado, a própria ação ritual é já em si mesma uma manifestação política.

A razão que se argumenta geralmente sobre a inevitabilidade de certos acontecimentos devido ao avanço do ciclo cósmico não nos parece razão suficiente para justificar um distanciamento voluntário que parece mais exatamente uma antecipação da derrota.

IV.

Voltando ao início desse artigo queremos dizer algo mais para concluir. Dissemos que a defesa da Tradição e a ação política eram necessárias inclusive desde um ponto de vista pragmático, tão próprio de nossa sociedade, onde só o rentável a curto prazo é considerado útil.

Pois bem, desde o ponto de vista da Tradição, o marco exotérico cumpre a função de anel protetor - não só metaforicamente - do núcleo esotérico dessa mesma Tradição [2], de tal modo que a destruição ou perversão do exoterismo põe em grave risco o próprio núcleo esotérico. Isso não deve ser nunca perdido de vista.

Já dissemos que este desprezo pelo exoterismo e pelo papel sócio-político que pode e deve cumprir a Tradição deve ser considerado uma intoxicação moderna, e inclusive uma influência nefasta do new ge nas últimas décadas, pois tal ideia põe isso que chamam o "desenvolvimento pessoal" do indivíduo na frente e acima de sua comunidade, que é seu contexto e seu cosmo vital. Quer dizer, o "eu" - precisamente o que se trata de combater desde a perspectiva tradicional - se põe na frente de tudo, neste caso a comunidade, quer dizer, dos outros. Um ponto de vista individualista e egoísta sob todas as luzes.

Agora bem, sempre partindo do fato de que a disposição pessoal para a ação política será antes de tudo uma questão de temperamento, e portanto da natureza própria de cada ser - o que nos remete de novo à idei de swadharma - a única diferença assumível neste sentido é aquela que estriba entre a diversidade do ponto de vista bramânico e o ponto de vista kshatria.

Dito de outro modo, frequentemente se ouve lamentar, seguindo indubitavelmente Guénon, a ausência de uma "elite intelectual" no Ocidente, mas se esquece com muita frequência de uma elite kshatria, quer dizer, político-guerreira, e se a primeira pode passar despercebida para o homem corrente, a segunda de forma alguma pode permanecer oculta para a sociedade da qual ela faz parte.

Quiçá não é mal momento para recordar que a principal consequência sociopolítica da existência dessa elite intelectual e espiritual não é outra que a constituição das correspondentes elites a partir das outras duas castas: a kshatria e a vaishya. E ambas elites tem que estar inscritas de forma ativa e coerente no interior da sociedad e participar da mesma, sendo a atividade política enquanto governo do comum a atividade própria precisamente da segunda casta, coisa que não raro se esquece em favor do mito guerreiro.

Resumindo, a elite espiritual deve ser um tipo de catalizador que facilite e guie a ação política transformadora para sua sociedade. Mas isso só pode fazê-lo uma "elite espiritual" que assuma plenamente sua função educadora e formadora de maneira integral dos sujeitos que conformarão sua sociedade.

Do dito se conclui que - ainda que seja de um modo pouco visível - nem mesmo a chamada "elite intelectual" pode estar à margem do político, tal e como demonstram figuras como São Bernardo, Santa Hildegard ou tantos outros santos da cristandade.

A conclusão é que longe de sentir repugnância pela questão política a partir da Tradição é urgente a constituição e formação de uma elite política de caráter tradicional assim como a criação de uma ciência política tradicional destinada a reendereçar o colapso social atual, fazendo da sociedade um microcosmo e que não esqueça o valor do sagrado.

___________

(1) -  Guénon, R. La iniciación y los oficios.
(2) -  Pode-se descrever segundo o simbolismo do ovo como a clara e a gema do mesmo.

Aleksandr Dugin - Marine Le Pen vs Macron: Povo vs Sistema

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por Aleksandr Dugin



No segundo turno das eleições presidenciais na França, Marine Le Pen e Emmanuel Macron se enfrentarão.

Esta é uma situação muito interessante.

Em primeiro lugar, como no caso de uma votação nas eleições presidenciais dos EUA, observamos uma divisão estrita de todo o eleitorado - mais amplamente, de toda a sociedade francesa em duas partes:

1) o povo e 2) as elites políticas globalistas que influenciaram uma parte da sociedade francesa e conseguiram enganá-la.

O segundo turno ocorrerá inequivocamente como a batalha do povo da França contra as elites alienadas. Máscaras foram descartadas: o candidato do Povo (Marine Le Pen) contra o candidato do Sistema (Macron).

Marine Le Pen é uma figura política. Macron é um microchip do sistema (seu nome francês é "Micron").

Dois outros candidatos poderosos - Fillon e Mélenchon - perderam a disputa. O candidato de direita Fillon, que foi severamente atacado pelo Sistema desde o início da corrida por causa de suas declarações amigáveis ​​sobre a Rússia, curvou-se às elites a respeito da Rússia e começou a se expressar mais vagamente. E ainda assim ele perdeu.

Marine Le Pen foi a Moscou, encontrou-se com Putin e não ficou com medo. E ela ganhou. Portanto, ela é hoje o líder indiscutível de todas as forças conservadoras francesas. Os esforços para demonizá-la falharam, e seu avanço no segundo turno é uma vitória colossal. Nossa vitória. Agora, todos os adversários do «Pântano Mundial» têm um símbolo - a nova Joana d'Arc da política europeia.

O populista de esquerda, Mélenchon, não conseguiu entrar no segundo turno. ALiás ele estava conduzindo a campanha eleitoral com bastante sucesso. Este maçom hereditário, por um lado, assustou seus irmãos no sofá com suas críticas esquerdistas à União Européia e apelos diretos às massas, que já estão francamente odiando as elites globalistas. Mas, por outro lado, ele assustou os franceses mentalmente sãos exaustos com a migração descontrolada e com o politicamente correto Mélenchon cuspiu na cara do francês nativo, permitindo-se declarações racistas (anti-brancas), e foi rejeitado.

Portanto, no segundo turno não haverá uma luta de representante do populismo de direita e do representante do populismo de esquerda como poderia acontecer se Mélenchon tivesse se saído melhor do que Macron (que era estritamente nulo). Temos outro cenário: haverá um choque entre Marine Le Pen como uma candidata do Povo (representando ambos os lados do populismo - direita e esquerda) e Macron - candidato puro do Sistema. O Sistema se torna cada vez mais manifestamente contra o Povo de forma cada vez mais explícita. Isso significa que parte do eleitorado anti-Sistema de Mélenchon, assim como parte do eleitorado conservador de Fillon, virá a Marine Le Pen. Isso nem mesmo dependerá de por quem Fillon e Mélenchon convidem seus seguidores a votar. Fillon já covardemente chamou para votar contra Marine.

Mas o Povo é guiado por outra forma de raciocínio. E suas simpatias em todo o espectro - do populismo (direita e esquerda) ao conservadorismo - hoje pertence a Marine Le Pen, um candidato da Frente Nacional.

Entre o primeiro e o segundo turnos surpresas graves podem ocorrer, já que o sistema está mortalmente assustado. Podemos esperar provocações de extremistas "anti-fascistas" do exército de George Soros ou novos ataques terroristas de islamistas. Mas o mais importante já está claramente indicado: a Europa está profundamente dividida.

Há uma Europa dos Povos e a Europa do Sistema e eles entram em uma batalha radical uns com os outros. O Sistema é o que chamamos de «grande capital», «globalismo», «liberalismo de esquerda», «transnacionalismo», «política de gênero» e «incentivo à migração descontrolada». O Povo diz a isso seu decisivo "NÃO". O Povo escolhe ordem, identidade e valores tradicionais.

O nome da França hoje é Marine Le Pen. Macron é um biorobô do Sistema, um cyborg sem sentido da Matrix. Os vivos estão lutando contra os mortos e o campo de batalha é a França.

Julius Evola - Teologia do Estado Nacional

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por Julius Evola



(1935)

Resulta conhecido o nome de Wilhelm Stapel. O mesmo publicou recentemente um ensaio muito agudo em relação à crítica da teoria racial (janeiro de 1935). Acreditamos ser interessante dar a conhecer agora algo desse pensador. Ele é o autor de muitas obras de filosofia política e religiosa, conjuntamente com A.E. Günther dirige a revista Deutsches Volkstum e é por certo uma personalidade de primeiro plano na Alemanha contemporânea. A corrente à qual ele se remete tem um caráter espiritual e tradicional, e isso a distingue claramente daquelas formas em grande medida exaltadas e desequilibradas do nazismo racista e paganizante. Recentemente Stapel entrou na luta e demonstrou coragem na defesa da figura de Carlos Magno. Quiçá nem todos os leitores sabem que na Alemanha se desencadeou um processo verdadeiro e próprio contra Carlos Magno, ao qual se acusa de ter traído a causa nórdica, de ter submetido a ideia nórdica à romana, de ter massacrado os núcleos mais puros dos nórdicos, os saxões, em razão de seu fanatismo religioso, e assim sucessivamente: de modo tal que na Alemanha não se diz mais Carlos Magno, mas Carlos o Franco. Se bem vários professores se viram destituídos de sua cátedra por terem defendido Carlos Magno, ainda assim Stapel não hesitou em tomar parte em tal polêmica se declarando positivamente a favor dessa grande figura histórica.

Dar a conhecer as ideias político-espirituais de Stapel é interessante a fim de que na Itália se saiba a respeito do que existe ao lado das formas mais teatrais, bem como mais superficiais e frívolas, do pensamento político alemão: e de que forma se apresenta acima de tudo o problema de conciliar a ideia cristã com o nacionalismo e de dar uma justificativa antissecular e metafísica seja à ideia de Estado, como à de Império. Nós nos referimos ao livro de Stapel, Der christliche Staatsmann - Eine Theologie des Nationalismus (Hamburgo, 1935), que segue sendo sua principal obra.

Stapel manifesta em termos precisos o seu pertencimento à "frente antissecular": ele diz "cristão, conservador, fiel à nação e ao mesmo tempo imperialista" (pg. 6). Para ele, "o Império não é nem a miragem de um desejo subjetivo, nem uma fuga em ilusões, mas uma antiquíssima realidade política de tipo metafísico em relação à qual nos tornamos infieis" (pg. 7). Perante a clara visão da decadência política espiritual moderna, ele invoca a mais resoluta reação de parte de todos aqueles que ainda resistem e sabem combater por um princípio. Eis aqui como surge o problema inicial: "Quando o deísmo exilou Deus na esfera filosófica pondo em seu lugar a 'natureza' - uma natureza que nunca existiu, senão na superstição do século XVIII; quando o Estado não foi mais por graça de Deus, mas por graça do povo; quando os reis não receberam mais seu mandato de Deus, mas de uma obtusa maioria que denominava 'paz' o seu comer sem incômodos, de modo tal que os reis ficassem reduzidos à função de demagogos; quando Jean Jacques Rousseau triunfou em um mundo desdivinizado no ápice de uma Europa sem dignidade, ladeado por sacerdotes que não acreditavam mais em Deus, senão em seus arranjos políticos com os hierofantes da deusa 'Razão', então aos espíritos mais nobres não restou outra coisa que moldar com a substância 'povo' uma imagem divina e exaltar um deus da 'natureza' e da 'razão': a Nação" (pg. 12). Este Deus - o nacionalismo secularizado - nasceu na França e logo, do fluxo e refluxo das guerras napoleônicas, passou a transplantar-se um pouco pela Europa inteira.

Já aqui Stapel fixa, pois, um ponto fundamental, ao acusar um tipo de nacionalismo, que é sempre uma máscara do jacobinismo, uma criatura desconsagrada que nossas tradições não haviam conhecido nunca: fruto, por um lado de uma abdicação e pelo outro de uma prevaricação. O problema é: como liberar a partir de tal plano a ideia da Nação, como integrá-la espiritualmente remetendo-a àquele nível originário, no qual a mesma é vizinha da própria ideia de Império?

Mas um tal problema leva imediatamente Stapel a este outro: um nacionalismo espiritual é conciliável com a ideia cristã? É possível ser cristão sem menosprezar uma tradição de nacionalismo integral?

Para isso, Stapel interroga principalmente a história, considera ali às grandes etapas cumpridas a partir do problema do Estado no desenvolvimento histórico do próprio cristianismo.

Principalmente Jesus. Jesus, segundo Stapel, deixou intacta a autoridade do Estado romano, não se subtraiu à mesma, não a condenou, a suportou do mesmo modo que suportou qualquer outra lei "desse mundo".

Agostinho cria a grande oposição entre soberania terrestre e soberania divina. A cidade terrestre e a cidade celeste são duas realidades qualitativamente irreconciliáveis, e mais, inimigas: corpus diaboli e corpus Dei. Lutero trata de atingir uma conciliação, deduzindo a ideia do Estado e seu direito do mandamento divino: Governa! E acentuando o caráter de serviço implícito em tal mandamento (governo enquanto missão). Finalmente vem as correntes idealistas, as quais transportam o problema para o plano moral. Aqui o centro não é mais Deus, mas a "moral cristã" em maior ou menor medida imanentizada: e se trata de estudar um tipo de Estado conforme com a mesma, quer dizer, conforme com a "lei moral".

Naturalmente que aqui seria necessário fazer alguma observação. Por exemplo, não poderemos de maneira alguma concordar com ele quando afirma que "os romanos não sustentaram nunca pretensões religiosas" (pg. 35) e que, por isso, Cristo não teve nenhum motivo para se opôr a Roma. A verdade é, ao contrário, que Roma valeu para os romanos também como uma realidade sacral. A persuasão de que forças divinas houvessem determinado a aeternitas e o imperium da cidade capitolina, se manteve nos mesmos até o final. O culto imperial romano implicava uma fides não só como lealismo político, mas também como reconhecimento religioso, e justamente por isso, por não poder e não querer reconhecer a autoridade romana em um domínio não só político, mas também sacral, os cristãos se opuseram àquele culto e muitas vezes correram em massa para o martírio. Sustentar, portanto, que a Águia romana não tenha tido outra missão que a de preparar o caminho para a Cruz (pg. 228), resulta uma postura preconceituosa e, no fundo, arbitrária, baseada no preconceito da continuidade do evolucionismo na história. As relações entre o ideal romano do Império e o cristianismo primitivo são, portanto, tratadas por Stapel de forma extremamente simplista.

Uma segunda observação é que Stapel, pour cause, descuida de ressaltar as relações existentes entre o espírito da reforma luterana e a degeneração da ideia religiosa a um nível simplesmente moral, ou mesmo moralista. Basta observar o desenvolvimento da "civilização" anglossaxã protestante para dar-se conta da realidade de tais relações. Lutero, ao subtrair o indivíduo de toda autoridade hierárquica, ao eliminar nele o interesse por qualquer superação ascética enquanto via de participação efetiva, supramoral e suprarracional, no divino, ao dirigi-lo a um mero "serviço" acabaria necessariamente retirando força à ideia religiosa em algo que vive só nas "consciências" dos sujeitos e que se manifesta só como "critério ético" para a ação. Assim, pois, o idealismo ético germânico, ademais da pequena moral anglossaxã, é o herdeiro direto do desvio protestante.

Stapel não enxerga, assim, as raízes primeiras do mal, quando ele insurge decidida e justamente contra as pretensões da filosofia idealista de secularizar o cristianismo, de reduzir o elemento religioso ao moralista, desembocando em uma idolatria da eticidade para uso e consumo de um ritmo pequeno-burguês de vida, onde a "moralidade cristã" deixa de ter o sentido de sacrifício da vida, para se converter em sinônimo de segurança na vida, de pacifismo e de comodidade sem incômodos (pg. 137). Em todo caso, que a moralidade seja apenas religião secularizada, necessária tão só para homens secularizados em tempos secularizados, onde a mesma passa a ser aplicada de forma pedante não à essência, mas aos detalhes exteriores de uma vida (pg. 200); que o moralismo seja o estado de ânimo daqueles que no coração se encontram sem Deus, mas que não obstante não sabem que são cínicos (pg. 210), em suma, que a religião seja uma coisa totalmente diferente da moral, mais elevada, mais vasta, mais viril, mais incondicionada - estas são ideias que Stapel afirma vigorosamente e que se encontram inteiramente consentidas por ele.

Stapel, retomando o problema da justificação cristão do Estado tal como se reduziu nos tempos modernos, quer dizer, sobre uma base moralista, se entrega a demonstrar a absurdidade dessa questão. Ele inclusive formula a questão: existe uma moralidade cristã como um sistema bem definido, apto a fornecer os princípios àquele Estado e àquela política que mais que qualquer outra possa dizer-se "cristã"?

A resposta é claramente negativa. "Os Evangelhos nos oferecem em medida muito pequena um sistema ético fechado e especificamente cristão e por sua vez um sistema tal é muito pouco visível na história dos povos cristãos" (pg. 132). Partindo do princípio de que a moralidade é uma coisa viva, diferenciada e singularizada como tudo que vive, de modo tal que não se pode separar um preceito de uma determinada situação sem reduzi-lo a um fetiche formalista, Stapel mostra todos os absurdos e as impossibilidades sociais e jurídicas que seguiriam ao se generalizar e formalizar preceitos cristãos, por exemplo, os do Sermão da Montanha. A imagem dos lírios do vale, o dar o cobertor a quem só precisa de roupa, o não julgar para não ser julgado, e assim sucessivamente, devem ser considerados como metáforas, como alusões a uma determinada atitude especial. Transformados em princípios éticos positivos, converteriam em impossível todo sistema político, jurídico e inclusive econômico (pgs. 123-124). Por outra parte, a Idade Média não demonstra quiçá a possibilidade de duas éticas tão opostas, como a monástico-ascética e a cavalheiresca, as quais não obstante pretenderam trajar igualmente premissas cristãs? Enfim, pode-se descuidar do fato de que, em relação com simples preceitos éticos, muitos elementos do cristianismo se encontram longe de serem próprios exclusivamente dessa religião?

A conclusão é pois que, não existindo uma "eticidade cristã" como um sistema bem definido de princípios positivos de aplicabilidade social universal, não é possível, sobre uma base ética, definir a noção de um Estado que possa denominar-se específica e tipicamente "cristão".

Uma definição tal é, então, possível a nível de religião pura? Quer dizer, é possível deduzir um tipo cristão de Estado não da ética, mas da religião cristã? (pg. 138).

Aqui se entra na essência do problema. Religião, para Stapel, não é um problema de conhecimento, nem um problema ético, nem um problema psicológico. Ela é uma tomada de posição metafísica, é o ato espiritual com o qual se opta por um reino, por uma frente de combate, por um Senhor, jurando a ele fidelidade incondicionada: e é o reino divino, a milícia contra as forças da terra em nome de Deus. Tal milícia e tal obediência não podem ser traduzidas em fórmulas estereotipadas, justamente porque possuem caráter incondicionado. Implicam aceitar um lugar e uma ação simplesmente porque assim quer Aquele que manda e ao qual se é virilmente fiel aqui embaixo: para além de qualquer "bem" ou "mal", de qualquer felicidade ou desgraça em sentido terreno e ainda não terreno (pg. 152).

Dentro dessa concepção fundamental, fica um só princípio cristão de caráter "social": o do amor. O amor, não obstante, como máxima não tanto "moral" quanto guerreira: como princípio de uma comunidade metafísica, de um "espírito de corpo" que cimenta a unidade daqueles que pertencem à mesma frente. Este princípio, em si, não se deixa traduzir em nenhuma fórmula terrena, muito menos política, menos ainda "humanitária": não é amor terreno, mas amor de Deus, ou seja fidelidade a Deus. Mas então segue-se que "um Estado cristão é tão pouco dedutível a nível religioso quanto era a nível ético. Não há Estados cristãos, apenas homens cristãos. O que distingue estes homens não é uma sabedoria, ou moralidade, ou mansidão particulares, mas sim estarem sob o Senhor de todos os exércitos celestes. Portanto, eles pensem e agem em um espaço maior que o dos outros homens. Para eles não há apenas este mundo, mas também outro mundo por trás do primeiro. Eles agem não só na terra, mas simultaneamente no céu e na terra. Portanto, suas decisões são também diferentes das dos outros. Revestem um caráter absoluto que conduz mais além de tudo que é terreno e também de todas as morais dessa terra" (pg. 157-158). É uma tensão metafísica extremamente criativa, que se segue a isso: tensão apta para se traduzir em efeitos de grandeza ainda temporal. "A força de sofrimento e de domínio do homem cristão atua também de forma terrena. Os Estados nos quais a tensão histórico-metafísica do cristão adormece, os Estados cujos chefes se apoiam na mera moralidade e no humanitarismo, não podem manter a altura atingida. Eles decaem e perecem, para ceder lugar a outras nações ainda plenas de tensão metafísica" (pg. 158).

Não obstante seria necessário observar aqui que uma postura semelhante acaba não tendo qualquer caráter específica e exclusivamente cristão. O impulso a transfigurar em um elemento transcendente todo esforço terreno, uma tensão metafísica enquanto substrato da ideia e da afirmação do Estado, tudo isso se consegue igualmente encontrar no mundo não-cristão ou pré-cristão, partindo da civilização irânica, onde, como é sabido, a religião concebida como militia em nome do Deus da Luz contra as forças escuras de um contra-deus constituiu o pano-de-fundo a partir do qual se reclamavam as ações que conduzira à formação do império do "Rei dos Reis". Stapel, ao purificar a ideia da fidelidade ao outro Reino e da luta pelo mesmo em relação a qualquer elemento contingente, não negando-a perante qualquer sistema positivo de ética, de costumes e parece que mesmo de doutrina, vem no fundo se situar em um plano metafísico, mais que religioso: e ele indica um pressuposto genérico, a se denominar mais espiritual que propriamente cristão ou mesmo religioso, para sua concepção política. Passemos aos desenvolvimentos ulteriores de sua ideia.

O Estado terreno em seu tipo mais elevado, afirmativo, bem acabado, para Stapel se justifica como imagem terrestre de um tipo "divino". Em efeito, já a designação comum da divindade como Senhor, do mundo espiritual como hierarquia de naturezas celestiais implica relações bem determinadas de dominação e de subordinação. Em segundo lugar, a ideia mesma de Reino divino implica circunscrição e distinção: não igualdade e promiscuidade, mas repartição entre amigos e inimigos, entre aqueles que estão com Deus e aqueles que se encontram contra Deus, assim como também uma militia, uma ação militante absoluta. Em terceiro lugar, e de maneira consequente, surge a ideia de uma lei santa e intangível que agrupe conjuntamente àqueles que pertencem ao mesmo Reino e à mesma frente. Quer dizer: dominatio, discretio, nomos (lex). Mas com a posição e o ordenamento de um domínio; com a posição e distinção entre amigos e inimigos; com a posição e a veneração de uma lei, são dados três grandes princípios que servem como esquema metafísico para qualquer verdadeira vida estatal. São estes os princípios para uma teologia da Nação, enquanto Estado forte, hierárquico, ordenado (pgs. 66, 185). Em uma análise ulterior, Stapel mostra, por contraposição, que os direitos fundamentais do Estado tradicional - direito à guerra, à vida e à morte, direito ao juramento e à graça - não podem atingir nenhuma justificação verdadeira, se não estiverem sobre uma base espiritual, metafísica e suprapolítica (pg. 162).

Daí temos outro ponto importante: Stapel concebe o direito político como um "derivado secular" do direito religioso (pg. 178), e vê na ideia política a forma na qual se transferiu um tipo de autoridade e de lei que em sua origem tinha um caráter essencialmente sacral. Isso é efetivamente verdadeiro; são demasiados os testemunhos que tornam esta tese pacífica, em contraposição com as diferentes construções sociologistas ou naturalistas da teoria moderna do Estado. E se chega a esta conclusão: não só as instituições políticas de tipo hierárquico refletem um esquema transcendente, elas tomam "categorias" próprias, in primis et ante omnia, do mesmo "reino celeste", mas também os Estados, originariamente, mais que imagens temporais de uma realidade espiritual, eram já realidades sacrais, que formavam um corpo único com os respectivos cultos nacionais.

Cada um vê a importância desse ponto para a "teologia do Estado nacional" e se descobre também a tática e o fim da argumentação a propósito de Stapel. Aqui se tem, em efeito, o justo lugar para valorizar adequadamente tudo que é peculiar a uma raça, a um determinado corpo étnico, a um povo, não só a nível material, social e biológico, mas também a nível espiritual e religioso. Precisamente para tal fim Stapel varreu preliminarmente o terreno de qualquer pretensa "moralidade" de validade universal, quer dizer, indiferente em relação à raça e à nação, ainda que a mesma pretendesse remeter ao próprio cristianismo. Cada raça tem sua ética, seu direito, seus costumes, sua religiosidade de formas bem distintas e imutáveis. Assim pois, há pouco da "melhor ética", como pouco existe do "melhor Estado" ou da "melhor" economia ou da "melhor" cultura. Tudo isso é relativo. Um povo degenera e perece quando assume uma ética estranha, concepções e princípios que não são conformes com sua própria natureza. Um povo é eticamente sadio quando sua ética e seus costumes se encontram em harmonia com seu sangue e com seu espírito inato - poder-se-ia dizer: com seus "deuses" (Pas. 215-223). "Nós conhecemos somente o ethos conforme a um determinado povo sobre a terra e a lei de Deus no céu" (pg. 216).

Mas justamente aqui intervém a parte mais árdua do problema. Trata-se de ver como chegar a uma conexão entre estes dois termos e de evitar a solução particularista própria do racismo. A dificuldade não é grande, quando se dê ao elemento nacional um alcance simplesmente laico, fisicista, político em sentido estrito, posto que então, sobre um plano diferente e não gerador de distúrbios, pode bem ter peso a lei divina supranacional. Mas quando se passe a conceber o Estado nacional como espírito, como corpo de um culto nacional específico - digamos também: do "Deus" de uma raça - é natural que nos encontremos em um grave compromisso, isto é, frente à tarefa de conciliar Deus com os Deuses, a lei espiritual nacional, a qual não pode ser derrogada sem decair, com a lei espiritual supranacional.

O ponto no qual Stapel crê poder se apoiar para chegar a uma solução, é a afirmação de Jesus, que diz não ter vindo para destruir a lei, mas para cumpri-la, para levá-la à perfeição - plerosis. Aqui Stapel demonstra que por lei, nomos, não se deve entender apenas a lei hebraica, mas em geral qualquer lei ou culto nacional, quer dizer, cada um daqueles ordenamentos jurídico-sacrais que em qualquer Estado constituam o eixo de toda a vida social e espiritual de uma determinada nação. Uma vez formulado isso, a ideia de Stapel é que Deus teria dado cultos e leis diferentes a cada raça, quase no sentido de forças que limitassem os elementos corrompidos, para que as sustentassem e preparassem para acolher à revelação única apta a "salvar". Um único princípio se teria manifestado em uma multidão de divindades nacionais: entre uns como Jeová, entre outros como Zeus, entre outros como Wotan, e assim sucessivamente - e teria querido que tais deuses fossem adorados e que as leis sacrais para o Estado e para o ethos de cada raça particular fossem veneradas, para manter, em geral, um princípio de religiosidade, o qual alimentasse virtualmente a capacidade de acolher logo o cristianismo enquanto espiritualidade supranacional e princípio de verdadeira e universal salvação (pgs. 172-182). O Estado nacional espiritual seria, pois, uma realidade intermediária entre "natureza" (natureza decaída) e "redenção". Ainda se espiritualizado, o Estado não pode conduzir ao "cumprimento" ou plenitude - plerosis - da Lei, aportada por Jesus. O mesmo possui uma vis conservandi, mas não uma vis salutis, pode preservar e preparar, mas não redimir. Se a Igreja conhece um sacramento para o matrimônio - diz Stapel - a mesma não conhece, não obstante, um sacramento para o Estado, e tal sacramento seria, por outro lado, inconcebível (pgs. 119, 185).

No que se vê mais ou menos voltar a ideia tomista anti-augistiniana segundo a qual os Estados seriam já não corpora diaboli, mas ordenamentos queridos pela Providência, ainda que mesmo assim incapazes de conduzir à salvação mais que até certo limite, a partir do qual só é eficaz a força de cima mediada pela Igreja: Igreja a qual, por isso mesmo, é a que governa por cima das diferentes unidades nacionais e dos distintos reinos. Mas essa ideia, no enquadramento das premissas de Stapel, não se mostra muito persuasiva. Ele busca conciliá-la com uma espiritualização da raça e da nação que, se vão ao encontro das tendências mais vivas da Alemanha atual, não encontram vinculação com a antiga postura católica medieval, ponto de partida da qual estava o jusnaturalismo, uma concepção anti-sacral do Estado (formulada justamente para poder recolher na Igreja o monopólio do sagrado); concepção à qual, ademais, nem todos os soberanos da época se sentiam em condições de aderir, e menos que todos, os imperadores guibelinos. Quando Stapel nos diz que "a separação do poder político foi extremamente importante, posto que permitiu que a secularização do Estado não tivesse por consequência a da Igreja e que o Estado pudesse logo se regenerar através da religião" (pg. 161), se cai em um equívoco muito curioso. Deveria em efeito ser reconhecido que a causa maior da secularização da ideia de Estado reside justamente naquela separação dos dois poderes, e que é singular que se pense regenerar em um segundo tempo o Estado com a religião quando antes se reconheceu como um bem que os Estados tenham perdido o caráter sacral que anteriormente apresentavam.

E ainda mais viva é a dissidência quando o Estado, ademais de se espiritualizar, ao tender ao Império, se universaliza. Isso resulta da mesma doutrina de Stapel a respeito.

Nosso autor reconhece que aquela tensão espiritual, que em um primeiro grau atuou como elemento propulsor para a formação de uma sólida unidade nacional, pode dirigir-se em um momento sucessivo rumo a horizontes mais vastos, pode tender a formular um princípio de civilização apto para valer também mais além das fronteiras de uma determinada nação. Isso pode acontecer através de duas vias, negativa uma e positiva a outra - e uma é a via moralista e a outra é a via imperial. O primeiro caso, é o do proselitismo ético. Pretende-se que os valores próprios de uma determinada raça sejam "superiores" aos de outras raças ou nações e se crê ter o direito de impô-los por qualquer meio, não reconhecendo, sufocando, alterando ou desnaturalizando as éticas e as posturas que as outras raças possuem em relação à vida. O resultado é uma nivelação, uma desorganização, um retrocesso do diferenciado a uma uniformidade sem alma. Com tais considerações Stapel torna suas as teses que o racismo sustenta contra todo universalismo antinacional.

O segundo caso é, por sua vez, o de uma raça dominadora que se põe em um nível efetivamente superior e tende a realizar uma unidade na qual as características como as leis das nações particulares não são abolidas, mas respeitadas e integradas. Um elemento dirigente se põe à cabeça de um conjunto de forças diferenciadas e as conduz à sinergia: não como nação perante nação, mas como Império perante nação, portanto segundo uma dignidade muito diferente.

Mas chegando a este ponto, quer dizer, à transfiguração no universal da espiritualidade de uma nação, eis aqui que se formula um dilema: ou o Império aparece aqui como uma realidade verdadeiramente transcendente, supranacional, e então justamente isso constitui aquele cumprimento - plerosis - das várias leis espirituais nacionais, das quais se falou, e pelo que se queria recorrer à lei cristã, ou o mesmo não possui este caráter transcendente, e então decai em seu direito de ser verdadeiramente Império, quer dizer, de ser verdadeiramente de dignidade diferente da de um simples princípio nacional em maior ou menor medida potencializado, divinificado e exasperado. Ainda mais enérgico se formula este dilema para Stapel, na medida em que ele, em suas considerações, não faz nenhuma referência especial à Igreja: referindo-se ao Regnum como a uma realidade espiritual não vinculada a nenhuma organização visível (pg. 233), ele não tem maneira de nos indicar nada que possa limitar a ideia do Império, nada a que essa ideia deveria se subordinar.

Pelo que acontece que se volte diretamente às competições teológico-políticas da Idade Média, às alternativas de um Império que, ou se sente absoluto, e então não pode reconhecer a Igreja e, no fundo, nem mesmo o Cristianismo; ou põe a lei cristã como o verdadeiro lugar da universalidade, e então disso resulta gravemente comprometido como princípio que deva dominar - segundo um direito irredutível àquele que uma simples nação, uma simples raça, um simples Soberano podem reivindicar - o conjunto dos diferentes povos.

Vamos nos deter na metade do caminho e então temos por igual posições pouco satisfatórias, e portanto: ou a solução racista-nacionalista, que conclui em um pluralismo, põe como ideal a tantas raças-nações que em um porvir voltarão a ter cada uma os próprios deuses, as próprias verdades, as próprias éticas e se negarão a reconhecer todo ponto de referência mais elevado; ou bem a solução laica fisicista, na qual se mantém a secularização da ideia da nação e a redução do Estado a um conceito puramente político, no máximo ético, e só sobre essa base é possível fazer triunfar, mais além da multiplicidade de todas essas nações e deesses Estados não-espirituais, a unidade de uma lei espiritual, católica ou cristã.

Razão pela qual se vê que a "teologia do nacionalismo" desenvolvida por Stapel, apesar dos esforços dialéticos de seu autor, não leva a nenhum porto seguro, se a mesma deve ser pensada até o fundo: os vários elementos do problema não se consolidam em nenhuma síntese verdadeiramente homogênea.

Isso não altera o fato de que as exigências recolhidas por Stapel sejam da melhor qualidade, aptas a terem que ser mantidas a qualquer preço. A sincera aspiração por um Estado forte, espiritual e ao mesmo tempo nacional, animado por um entusiasmo pelo alto e pelo sentido de quase formar a frente em terra de fieis de uma realidade metafísica; o rechaço por qualquer psicologismo, por qualquer moralismo e por qualquer abstracionismo anônimo e universalista; a valorização teológica do conceito de poder; o reconhecimento da necessidade e da função do Império enquanto superação seja de um ideal inferior e particularista de nação, seja de qualquer forma de superação materialista (pseudo-império, militarista ou econômico), a aversão pelas hipócritas ideologias humanitárias e pacifistas, pelo ambiente mentiroso em geral, contra a secularização da vida e do homem moderno - todos estes são elementos que em nosso Autor mantém um valor autêntico.

Também há que estar de acordo quando Stapel diz que, na horda, na família, nos grupos e no Estado deve sempre haver UM Chefe, assim também "é necessário que UM povo, em sua grandeza e em seu esplendor, se eleve mais além dos outros; é necessário UM povo que afirme um direito imperial e constitua uma lei - NOMOS - europeia. O nacionalismo, resultado da revolução francesa, deve ser superado por um NOVO IMPERIALISMO" (pgs. 250-252-253). Mas o acordo não vai mais longe, quando Stapel faz pensar que um tal povo para ele é o alemão. Ao Magna Mater populorum nobilis Germania, em verdade nos resultaria demasiado fácil opôr o mais antigo e verdadeiro: Tu regere imperio populos, Romane, memento, e recordar que em todo caso a Alemanha não teve nunca um momento verdadeiramente imperial e universal, ela só o teve sob o signo de Roma e na pessoa dos Príncipes, os quais reivindicaram seu direito não enquanto teutões, mas enquanto "romanos", enquanto romanorum reges. E a contraprova disso é que hoje em dia os racistas extremistas coerentes se encontram na necessidade de renegar, junto a Carlos Magno, também os seus maiores imperadores propriamente guibelinos, e de considerá-los quase como traidores, justamente por todo o elemento "romano" (para os racistas, sinônimo, aproximado de...hebraico) que se encontra no primeiro plano em sua obra, em seu modo de sentir e de dominar.

É característico em toda raça ou povo em fase ascendente sonhar uma missão imperial. Povos que surgem ou que ressurgem - disse Mussolini - são imperialistas, povos que decaem são renunciatórios. A não ser por essa aspiração, só através do experimento da história se pode pretender o respeito e o reconhecimento. Stapel ressalta que "direitos iguais", se não deve equivaler a nivelação artificial e, portanto, a injustiça, pode significar somente: deixar a luta livre tendo concedido paridade de condições. Em tal sentido, o campo na Europa permanece ainda sempre livre para o que queira decidir, através do "experimento das armas", a adequação da própria dignidade e do próprio poder à função supranacional do Imperium.

Nisso, sempre ficaria firme uma superação precisa do nacionalismo jacobino, com seu particularismo desagregador, com seus apetites, com seus ódios, com seus afãs expansionistas e hegemonistas não iluminado por nenhum princípio superior. Quando o ideal pelo qual uns povos descem ao campo de batalha, um contra o outro, é o de uma nova civilização espiritualmente imperial, seu antagonismo, no fundo não é senão uma contingência, pois eles estão unidos apesar de tudo em uma mesma frente, sua luta será leal, e leal será o reconhecimento do inferior para aquele que se mostrou ser superior, será viva a alegria de poder estar à sua ordem na luta contra toda força antagônica e na reconstrução.

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Nota de Tradução: O autor utiliza os termos "racismo" e "racista" com o sentido que hoje tem os termos "racialismo" e "racialista". 

Alain de Benoist - Jünger & Drieu La Rochelle

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por Alain de Benoist



Nos seus Pariser Tagebücher [Diários Parisienses], Ernst Jünger se refere a seus encontros na Paris ocupada com Pierre Drieu La Rochelle (por exemplo, em 11 de outubro de 1941 e em 7 de abril de 1942). Drieu era então o editor-em-chefe da revista La Nouvelle Revue française, publicada por Gallimard. Às quintas-feiras, Jünger usualmente ia ao salão literário de Florence Gould, ao qual ele foi introduzido por Gerhard Heller, e onde ele conheceu Paul Léautaud, Henry de Montherland, Marcel Jouhandeau, Alfred Fabre-Luce, Jean Schlumberger, Jean Cocteau, Paul Morand, Jean Giraudoux, e muitos outros. Depois, Jouhandeau se lembraria dele como "um homem muito simples, de aparência muito jovem, com rosto delicado, e que usava roupas civis, com gravata borboleta". [1]

Em 16 de novembro de 1943, Jünger notou em seu diário que ele havia visto novamente Drieu La Rochelle no Instituto Alemão de Paris, então dirigido por Karl Epting. Ele lhe disse que eles haviam "trocado fogo em 1915. Foi perto de Godat, a aldeia em que Hermann Löns caiu. Drieu também recordou o sino que soava as horas ali: nós dois o havíamos ouvido". Muitos anos depois, em suas discussões com Antonio Gnoli e Franco Volpi, Jünger, agora já com 100 anos de idade, recordou essa memória novamente: "Quando nos encontrávamos, nós usualmente falávamos sobre nossas experiências da Primeira Guerra Mundial: nós havíamos combatido na mesma zona do front, ele do lado francês, eu do lado alemão, e ouvíamos, em lados opostos, o som dos sinos da mesma igreja". [2]

Não deveria surpreender que estes dois homens haviam se aproximado de início por suas memórias da Grande Guerra. Ela marcou ambos mais profundamente que qualquer outra coisa, como com muitos homens de sua geração. Mas entre Jünger e Drieu La Rochelle, houve muitos outros pontos em comum. Profundamente impressionados com a leitura de Nietzsche, ambos aspiravam a uma aventura africana em suas juventudes: Jünger se alistou na Legião Estrangeira Francesa, enquanto em 1914 Drieu requisitou ser designado para os rifleitos marroquinos (em ambos os casos, a experiência foi breve). Acima de tudo, ambos os homens foram teóricos políticos além de escritores, simultaneamente no caso de Drieu, sucessivamente no de Jünger. Ambos poderiam ser justificadamente descritos, em um ponto ou outro de suas vidas, como "nacional-revolucionários". Ambos, finalmente, foram incontestavelmente conservadores revolucionários, ávidos por salvguardar valores que eles consideravam eternos, mas ao mesmo tempo conscientes de que o advento do mundo moderno criou abismos através dos quais era impossível retornar. Ainda assim, apesar de tudo isso, muitos coisas os separavam.

Jünger descreveu a Primeira Guerra Mundial quase sob fogo, enquanto Drieu aguardou vinte anos para escrever La Comédie de Charleroi. [3] (Ademais, tendo sido dispensado em 1939, ele não participou na Segunda Guerra Mundial). Na primeira de seus seis contos desse livro, que é certamente uma de suas obras-primas, ele relembra um assalto contra os alemães em 1914 na área de Charleroi. Essa descrição é feita no esquema de uma visita ao campo de batalha realizada cinco anos mais tarde pelo narrador na companhia de um rico burguês que havia perdido seu filho nessa batalha. Nota-se que 20 anos depois, para além de qualquer justificativa ideológica, Jünger e Drieu percebiam a guerra como uma lei inerente na natureza humana, até como uma reabilitação do "homem natural" na totalidade de seus instintos. "É a vida na forma mais terrível que o criador já lhe deu", escreveu Jünger. [4] Para Drieu como para Jünger, a guerra é, primariamente, o que nos liberta do mundo burguês e revela o homem em sua autenticidade.

Porém, ambos também avaliaram o quanto a Grande Guerra, que começou em 1914 como uma guerra tradicional, se transformou aos poucos em uma guerra de um tipo completamente novo: uma disposição de forças gigantescamente impessoais, um "duelo de máquinas tão formidáveis que ao lado delas o homem não existe mais, por assim dizer". [5] Mas o advento da "guerra técnica" horrorizou Drieu de maneira particular, que a via como uma "revolta malévola da matéria contra o controle humano", uma verdadeira "chacina industrial", enquanto para Jünger ela paria a intuição de um novo tipo humano, completamente oposto ao burguês: o Trabalhador, cujo "realismo heroico" seria capaz de garantir a mobilização (Mobilmachung) do mundo. Para Jünger, os "exércitos de máquinas" inauguravam os "batalhões de trabalhadores", a experiência da guerra tendo conferido ao homem uma disposição (Bereitschaft) para a "mobilização total", isto é, uma vontade de dominação (Herrschaft) expressada por meio da Tecnologia.

Drieu não partilha em nada dessa visão otimista e voluntarista. No período entreguerras, ele se opunha a uma direita que continuava a pregar os velhos "valores guerreiros" sem perceber que estes valores não possuem inimigo pior que a guerra moderna. "A guerra militar moderna é uma abominação em todos os sentidos", ele escreveu em 1934 em Socialismo Fascista. [6] Segundo Drieu, o reino da Tecnologia, longe de prenunciar o advento de um novo homem, implica uma degradação do homem. Como é sabido, foi apenas depois, sob a dupla influência de Heidegger e de seu irmão, Friedrich Georg Jünger, que Jünger começou a refletir criticamente sobre a Tecnologia e sua natureza "titânica", ampliando e aprofundando a reação puramente instintiva de Drieu.

Após terem servido no front, o que lhes trouxe um tipo de experiência mística, ambos escritores acreditavam ser possível reter o que eles haviam adquirido nos campos de batalha na vida civil. "Seremos capazes de estabelecer a paz tal como travamos a guerra", Drieu escreveu em seu primeiro livro, uma coleção de poemas chamada Interrogação. [7] Ao mesmo tempo, Jünger também resolveu transformar a derrota militar em vitória civil. Essa resolução explica seu comprometimento político.

Seu relacionamento com a política, porém, não foi o mesmo. Na década de 20, Jünger se uniu às fileiras nacionalistas a partir de convicções profundas e ígneas. Drieu, porém, mergulhou para afastar suas próprias hesitações. O autor de O Fogo Fátuo [8] pertence àqueles homens que chegam à política partindo da filosofia, com a necessidade de encontrar encarnações concretas de ideias correspondentes à sua cosmovisão. Mais que um ator, ele queria ser um observador. Durante a Grande Guerra, ademais, enquanto Jünger esteve completamente engajado nas "tempestades de aço", Drieu esteve em combate apenas de forma intermitente, apesar de isso não o ter impedido de ser ferido três vezes.

Em muitos sentidos, Drieu foi um diletante. Sobre seu diário dos anos 1939-1945, publicado apenas em 1992, poder-se-ia até mesmo falar sobre sua "indiferença perante qualquer convicção ideológica profunda", de sua "inconstância" (Julien Hervier). Isso não é impreciso, mas não se deve de forma alguma ver qualquer traço de oportunismo nessa atitude. Germanófilo, mas anglomaníaco, assombrado pela decadência mas consciente de que sua própria obra se encaixava em certa definição dela, Drieu é um homem de dúvidas e oscilações - talvez manifestando suas origens burguesas.

Vê-se isso claramente em suas relações com as mulheres. O autor de um belo livro chamado O Homem Coberto de Mulheres (1925), [9] que talvez seja em boa parte autobiográfico, Drieu amava as mulheres, mas não por elas mesmas. Seu "don juanismo", de inspiração quase-platônica, é articulado ao redor do desejo de seduzir e da "ideia insana do belo": "Impossível para mim me apegar a uma mulher, impossível para mim abandoná-la. Eu não acho nenhuma delas bela o suficiente. Bela o suficiente internamente ou externamente". [10] É por isso que este homem "coberto de mulheres" esteve sempre sozinho. O mesmo se aplicava à política: nenhum regime político conseguia atraí-lo completamente, tal como nenhuma mulher era suficientemente "bela" para ele.

Mas é precisamente porque ele é atraído por um ideal inatingível e perpetuamente dividido entre impulsos contraditórios que Pierre Drieu La Rochelle não cessou de lutar contra o que ele considerava como falsas alternativas. Interrogação contém o poema "E Sonhos e Ação". A justaposição dessas duas palavras traduz muito precisamente o que ele buscou reconciliar durante toda sua vida. Drieu quis reconciliar sonho e ação, como ele quis reconciliar alma e corpo, o mundo da guerra e o do espírito.

Ele interpretava a história da Europa como a lenta ascensão da ideologia burguesa que levou à ruptura do equilíbrio entre alma e corpo e sujeitou o homem à influência venenosa da vida nas grandes cidades. Sua grande tarefa foi a reconciliação da alma e do corpo. Em suas Notas para Compreender o Século (1941), [11] ele escreve: "O novo homem participa no corpo, ele sabe que o corpo é a articulação da alma e que a alma não pode ser expressada, não pode se dispôr, senão através do corpo".

A atitude de Drieu é a de um dândi. Mesmo assim, muitos autores também consideram Jünger como um típico representante do dandismo. Nicolas Sombart escreve:

"O dândi representa o tipo de homem que estiliza a si mesmo... Ele sublimou a vontade de poder em uma vontade de estilo... Almejando estilizar a si mesmo, ele estiliza o mundo e realiza essa misão quando captura uma situação em uma formulação elegante... Para isso, ele deve se sujeitar a disciplina, abnegação e um ascetismo rigoroso". [12]

"Distância, beleza , impassibilidade, tais são os elementos do dandismo jüngeriano", escreve Julien Hervier de sua parte. [13] Poder-se-ia pensar aqui no ideal de "impessoalidade ativa" pregado por outro teórico do dandismo, o italiano Julius Evola. Porém, Drieu é mais um dândi que Jünger, porque o primeiro prega o "engajamento pelo engajamento", tal como outros poderiam falar em "arte pela arte".

Drieu dá à história a mesma atenção apaixonada que Jünger dá à botânica ou à entomologia. Mas para ele, a história está essencialmente em fluxo, governada pelo acaso, enquanto Jünger busca ler, por trás das aparências e movimentos superficiais, "a permanência harmoniosa de uma ordem estável" (Julien Hervier). Em Jünger, a história nunca é um fenômeno puramente humano. Ao contrário, ele a associa a uma necessidade invisível, um tipo de metafísica do destino, de forças que a excedem. É por isso que Jünger não está tão interessado na história quanto no que está por trás da história. É por isso que ele está interessado no mito.

Drieu, que havia sonhado em se tornar um padre ou monge, e que, no Prefácio de um de seus romances mais famosos, Gilles (1939), [14] escreveu que se ele pudesse reviver sua vida, ele a devotaria à história da religião, também estava apaixonadamente interessado no mito. Como Jünger, ele se refere constantemente ao sagrado, mas nunca tenta relacioná-lo com alguma religião específica. Para ele, o sagrado é sinônimo do divino, e o divino é mais imanente que transcendente.

Ele já usava termos religiosos para descrever a realidade brutal da Grande Guerra. Quando as bombas explodiam, ele exclamava: "Estes não são homens, é o Bom deus, o próprio Bom deus, o Duro, o Brutal!" (A Comédia de Charleroi). Para ele, a guerra era como a religião: um tipo de teste sagrado. Por toda a sua obra, o elo entre a vida do soldado e o ascetismo, o elo entre ação e religião, é manifesto.

Finalmente, Drieu, como Jünger - que diz que o cosmo para ele possui uma dimensão divina e sagrada - sustenta que "a natureza é animada, falante, inumeravelmente prodigiosa". Jünger raramente emprega a palavra "Deus", diferentemente de Drieu, que a emprega frequentemente. Mas, da afirmação de Nietzsche de que "Deus está morto", ele tira a conclusão de que "Deus deve ser concebido de uma nova maneira".

Jünger definitivamente se distanciou da política no início dos anos 30, enquanto Drieu jamais de desligou. Como Julien Hervier nota, a necessidade de engajamento leva Drieu a uma ética da ação pela ação. Sob a Ocupação, é essa preocupação com o engajamento por princípio que o levou a continuar a escrever artigos políticos, apesar da política o interessar muito pouco à época. Lendo seu diário, vê-se que seus verdadeiros interesses se inclinavam para a espiritualidade oriental.

Podemos dizer que para Drieu, a política jamais foi mais que "uma razão para a curiosidade e o objeto de uma especulação distante" que jamais exerceu mais que uma atração esporádica. [15] Rejeitando o mundo burguês e democrático, ele certamente jamais deixou de crer na possibilidade de um socialismo não-marxista. Mas à sua maneira, ou seja, erraticamente, e não sem uma certa cegueira para com a realidade das coisas.

Jünger se distanciou da política porque ele assumiu a medida plena do espírito "mauritaniano", enquanto Drieu, ao contrário, continuou seu engajamento porque ele acreditava que na vida, é-se obrigado a sujar as mãos. Ao adotar essa atitude, o dândi salva a si mesmo em relação ao colapso que ele observa ao seu redor. Quando a batalha é perdida, permanece ainda apenas a beleza do gesto.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, Drieu sentiu que ele testemunhava o fim de um mundo, o fim de uma era: "A França está acabada... Mas todas as pátrias estão acabadas". Deve-se, porém, lembrar que ele constantemente conclamou pela Europa. Em 1931, ele publicou um livro chamado A Europa contra as Pátrias. [16] Em 1934, em A Comédia de Charleroi, ele escreveu: "Hoje, França ou Alemanha, é pequeno demais".

Jünger - que sempre foi um francófilo, como Drieu era um germanófilo - também sabia como se afastar de pertenças nacionais estreitas: Der Arbeiter já propõe o problema do globalismo que após a guerra ele discutiu em seu ensaio sobre o Estado universal.

Drieu sonhava apenas com regeneração. Como Nietzsche, ele pensa que não se deve salvar o que desmorona, mas acelerar seu colapso. Em seu diário, ele declara que deseja a destruição do Ocidente e clama por uma invasão bárbara que varrerá essa civilização agonizante: "É com alegria que eu saúdo a ascensão da Rússia e do comunismo. Isso será atroz, atrozmente destrutivo". [17]

Ao mesmo tempo, ele também escreveu: "Eu considerei o fascismo apenas como um passo rumo ao comunismo". A facilidade com a qual Drieu elogiou o comunismo stalinista tanto quanto o fascismo ou o nacional-socialismo, colocando naquele as esperanças rapidamente desapontadas inspiradas por estes, só surpreenderá aqueles que são completamente ignorantes em relação ao nacional-bolchevismo, encarnado, por exemplo, por Ernst Niekisch, que foi um amigo próximo de Jünger nos anos 20.

Em sua juventude, sob a influência de Niekisch, Jünger também viu os comunistas como os melhores preparadores da "revolução sem qualificações" [18] que ele celebraria em Der Arbeiter. Depois, mas desde uma perspectiva completamente diferente, ele enfatizaria a medida em que comunismo e nacional-socialismo se paralelavam na introdução da Tecnologia na vida política, expressando assim uma adesão comum à modernidade, sob o horizonte de uma vontade de poder que Heidegger havia desmascarado como mera "vontade de vontade". Encontra-se reflexões similares em Genebra ou Moscou (1928), [19] onde Drieu enfatiza que capitalismo e comunismo são herdeiros gêmeos da Máquina: "Ambos são os filhos escuros e flamejantes da indústria". [20]

Porém, Drieu foi ao mesmo tempo tentado pelo recuo, pela fuga para as laterais. Um de seus últimos romances O Homem a Cavalo, [21] publicado em 1943, conta a história de um ditador sul-americano, Jame Torrijos, que, após tomar o poder na Bolívia, tentou criar um império. Incapaz de alcançar seu objetivo, ele se retira da política para ressuscitar os ritos incas.

Como o heroi de O Homem a Cavalo, Drieu sonhou com "algo mais profundo que a política, ou que uma política profunda e rara que se fundisse com a poesia, com a música e, quem sabe, com a alta religião". Mas ele não sabia como avançar nessa direção. Talvez ele não tivesse nele os recursos que o teriam permitido se tornar um Waldgänger ou Anarca.

Jünger também tinha a sensação de que uma época na história mundial estava finalizada. Ela foi completada com o aparecimento do Trabalhador, que inaugurou o reino global do "elemental". Os velhos deuses morreram ou fugiram; os novos deuses ainda estão por nascer. Entramos na era dos Titãs. Para se distanciar, Jünger sucessivamente criou a Figura (Gestalt) do Waldgänger, que assume uma distância, então a do Anarca, que toma altura.

A atitude do Anarca é similar em alguns sentidos à apoliteia pregada por Julius Evola. Mas essa Figura, como a do Waldgänger, claramente apresenta o problema do lugar do indivíduo em relação aos grandes processos históricos que afetam o mundo. Jünger evoca nesse sentido "o indivíduo tomado separadamente, o grande Solitário, capaz de resistir aos desafios espirituais daquilo que inaugurado e se tornará uma nova 'Idade do Ferro'." [22]

Poder-se-ia falar aqui em um "individualismo" jüngeriano. O individualismo de Jünger certamente não é o individualismo hedonista, que reflete o egoísmo e o utilitarismo do mundo burguês, mas a afirmação das prerrogativas do indivíduo isolado (der Einzelne) que pode espontaneamente reconhecer outros de seu tipo.

Em Drieu La Rochelle, por outro lado, há traços inquestionáveis desse individualismo burguês, que ele condena energicamente desde a perspectiva histórica, mas do qual ele nem sempre consegue escapar. A maioria de seus romances não são mais que histórias sobre indivíduos, e seus personagens são usualmente meras expressões dele mesmo. Também, ambos escritores dão papeis diferentes a indivíduos e elites. Enquanto Drieu aspira a uma nova aristocracia política, Jünger se situa em um plano superior: o acordo espiritual que pode ser estabelecido entre homens capazes de dominar espiritualmente a sua época.

Tal como Henry de Montherlant, tal como Yukio Mishima e muitos outros, Pierre Drieu La Rochelle finalmente cometeu suicídio. Mas seria um equívoco explicar seu suicídio meramente como uma derrota política, mesmo que ele próprio encorajasse isso ao dizer, em substância: "Eu joguei, eu perdi, eu reivindico a morte". Na verdade, Drieu havia sido tentado pelo suicídio desde a infância. Ele havia escrito: "Quando eu era adolescente, eu prometi a mim mesmo que permaneceria fiel à juventude: um dia, eu tentei manter a palavra". Ao morrer, como o heroi de seu romance O Fogo Fátuo, [23] Drieu permaneceu fiel a essa tentação de sua infância. Anteriormente, ele havia escrito em seu diário: "A beleza da morte consola uma vida mal vivida. Deus, o que foi minha vida? Algumas mulheres, a investida de Charleroi, algumas palavras, algumas paisagens, estátuas, quadros, e foi isso". [24]

Ernst Jünger escreveu que "o suicídio pertence ao capital da humanidade", e essa é uma máxima que Montherlant havia anotado em seus cadernos quando ele próprio decidiu cometer suicídio em setembro de 1972. Jünger também viu muitos amigos próximos cometerem suicídio, particularmente à época da tentativa de assassinato contra Hitler em 1944 (Hans von Kluge, Heinrich von Stülpnagel) e ao fim da Segunda Guerra Mundial. Mas para ele o suicídio permaneceu uma possibilidade abstrata, negativa em essência, enquanto para Drieu, para quem a morte era "o segredo da vida", o suicídio tinha um valor místico.

Em 7 de setembro de 1944, enquanto ele estava em Kirchhorst, Jünger soube do suicídio de Drieu em Paris. "Parece", ele escreveu, "que sob os termos de alguma lei, aqueles que tinham razões nobres para cultivar a amizade entre os povos caem sem mercê, enquanto os pequenos aproveitadores se safam". Em suas conversas com Julien Hervier, ele depois disse que estar "profundamente perturbado" por Drieu "ter cometido suicídio em um momento de desespero". "A sua morte", ele acrescentou", realmente me feriu. Ele era um homem que havia sofrido muito. Assim há pessoas que nutrem amizade por uma certa nação, como muitos franceses vieram sentir por nós, o que não lhes trouxe sorte alguma". [25] Em 6 de setembro de 1992, ele escreveu a Julien Hervier: "Gallimard me enviou sua edição dos diários de Drieu; lê-los foi comovente. Os críticos, até onde percebo, não entenderam a importância de sua obra. Eu fiz algumas notas sobre isso para o Siebzig verweht IV. Uma cópia está inclusa".

Palavras a recordar. Entre estes dois homens, houve irmandade.

________________________________

[1] Marcel Jouhandeau, “Mon ami Ernst Jünger” [“My friend Ernst Jünger”], in Hommage à Ernst Jünger [Homage to Ernst Jünger], ed. Georges Laffly, special issue of La Table ronde, Paris, Winter 1976, p. 9.

[2] Ernst Jünger, Les prochains Titans [The Coming Titans] (Paris: Grasset, 1998), 99.

[3] Pierre Drieu La Rochelle, The Comedy of Charleroi and Other Stories, trans. Douglas Gallagher (Cambridge: Rivers Press, 1973)—Ed.

[4] Ernst Jünger, Le combat comme expérience intérieure, trans. François Poncet (Paris: Christian Bourgois, 1997), 244.

[5] Le combat comme experience intérieure, 243.

[6] Pierre Drieu La Rochelle, Socialisme fasciste (Paris: Gallimard, 1934)—Ed.

[7] Pierre Drieu La Rochelle, Interrogation (Paris: Gallimard, 1917)—Ed.

[8] Pierre Drieu La Rochelle, Le Feu Follet (Paris: Gallimard, 1931)—Ed.

[9] Pierre Drieu La Rochelle, L’homme couvert de femmes (Paris: Gallimard, 1935)—Ed.

[10] Pierre Drieu La Rochelle, Journal (Paris: Gallimard, 1992), 512.

[11] Pierre Drieu La Rochelle, Notes pour comprendre le siècle (Paris: Gallimard, 1941)—Ed.

[12] Nicolas Sombart, “Le dandy dans sa maison forestière: remarques sur le cas Ernst Jünger” [“The dandy in his Forest House: Remarks on the Case of Ernst Jünger”], in Ernst Jünger, ed. Philippe Barthelet (Lausanne: L’Age d’Homme, 2000), 396.

[13] Julien Hervier, Deux individus contre l’histoire : Drieu La Rochelle, Ernst Jünger [Two Individuals against History: Drieu La Rochelle, Ernst Jünger] (Paris: Klincksieck, 1978), 86.

[14] Pierre Drieu La Rochelle, Gilles (Paris: Gallimard, 1939)—Ed.

[15] Journal, 437 and 309.

[16] Pierre Drieu La Rochelle, L’Europe contre les patries (Paris: Gallimard, 1931)—Ed.

[17] Journal, 379.

[18] Die Standarte, November 23, 1925.

[19] Pierre Drieu La Rochelle, Genève ou Moscou (Paris: Gallimard, 1928)—Ed.

[20] Genève ou Moscou, 131.

[21] Pierre Drieu La Rochelle, L’homme à cheval (Paris: Gallimard, 1943).

[22] Les prochains Titans, 102.

[23] Pierre Drieu la Rochelle, The Will o’ the Wisp, trans. Robinson Martin (London: Calder and Boyars, 1966)—Ed.

[24] Journal, 304.

[25] Julien Hervier, Entretiens avec Ernst Jünger (Paris: Gallimard, 1986), 127. In English: Julien Hervier, The Details of Time: Conversations with Ernst Jünger, trans. Joachim Neugroschel (New York: Marsilio, 1995), 106.

Marcelo Gullo - O Umbral do Poder

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por Marcelo Gullo



O Conceito de Umbral de Poder

Para entender com maior precisão os fatores e elementos que marcam, compõem e modificam a situação dos Estados no âmbito internacional, tornando alguns Estados subordinadores e outros subordinados - uma situação que é relativa e, por natureza, cambiante - é necessário criar uma nova categoria de análise interpretativa. Essa categoria, que denominaremos "umbral de poder", não consiste em uma mera "invenção" - arbitrária ou caprichosa - mas sim um conceito operativo que nos permite expôr, de um modo sintético, uma série de parâmetros que existem e são realizados no curso da realidade histórica das nações e que determina sua situação perante outras nações.

Assim, por "umbral de poder", entenderemos de agora em diante uma quantidade de poder mínimo necessário abaixo do qual cessa a capacidade autonômica de uma unidade política. "Umbral de poder"é, portanto, o mínimo poder de que um Estado necessita para criar o estado de subordinação, em um determinado momento da história. A natureza "variável" desse umbral de poder deriva em seu momento de sua natureza histórica e relativa. Na interpretação do mundo feita a partir dessa postura do direito internacional, todos os Estados formalmente independentes são sujeitos de direito. Na Assembleia Geral das Nações Unidas, tanto a República Dominicana, Jamaica, Madagascar como Estados Unidos ou Chine tem um voto, são merecedores de um voto. Não obstante, dentro da mesma instituição que consagra a igualdade jurídica dos Estados, emerge o Conselho de Segurança para nos recordar que todos os Estados são iguais, mas que há uns que são mais iguais que outros. Diferentes do "mundo imaginado" por alguns professores de direito internacional, na área da realidade internacional - onde o poder é a medida de todas as coisas - só aqueles Estados que alcançam o umbral de poder que é utilizável nesse momento da história são verdadeiros "sujeitos" da política internacional. Os Estados que não alcançam o umbral de poder, ainda que possam alcançar grande prosperidade econômica, tendem a se converter, inevitavelmente, em "objetos" da política internacional, significando que são Estados subordinados.

O umbral de poder necessário para que um Estado não caia no estado de subordinação sempre está relacionado com o poder gerado por outros Estados que compreendem o sistema internacional. Quando uma ou várias unidades políticas incrementam consideravelmente seu poder, provocam mudanças substanciais no umbral de poder de que outras unidades necessitam para não caírem no estado de subordinação. Nesse sentido, quando a formação dos grandes Estados nacionais se produziu, Espanha em 1492, França em 1453 e Inglaterra em 1558, estes elevaram o umbral de poder, e as unidades políticas que não foram capazes de se converter em Estados nacionais, como as cidades-Estado da península italiana, progressivamente se converteram em Estados subordinados. Ao mesmo tempo, quando a Grã-Bretanha se converteu no Estado-Nação que produziu plenamente a revolução industrial - inaugurando a categoria do Estado-Nação industrial - se incrementou o umbral de poder de que outros Estados necessitavam para manter sua capacidade autônoma, isto é, para não caírem sob a subordinação britânica. As quedas de Espanha e Portugal tiveram sua origem fundamentalmente na incapacidade dessas duas unidades primeiro, em se converterem em produtores de manufaturas, e depois, em completar suas próprias revoluções industriais [1].

A deterioração progressiva em termos de poder fez com que Portugal se convertesse em um Estado subordinado ao poder inglês e a Espanha se convertesse em um Estado subordinado, primeiro ao poder francês e mais tarde ao britânico. Portugal e Espanha lentamente deixaram de ser Estados centrais - "membros de pleno direito" da estrutura hegemônica de poder - para serem simples Estados periféricos, excluídos da estrutura hegemônica de poder. Deixaram de ser Estados subordinadores para serem Estados subordinados. A exclusão se tornou graficamente óbvia inclusive na expressão popular usada na França e Inglaterra, de que "a Europa termina nos Pirineus". Assim, o resto da Europa, espanhois e portugueses, eram "africanos".

Os Estados alemães - Prússia,  Bavária, Wurttemberg, Baden, Saxônia e Hannover, para mencionar alguns - só foram capazes de superar seu Estado de subordinação quando Otto von Bismarck realizou a unidade da Alemanha que vinha sendo preparada pelo Zollverein, a união comercial entre os micro-Estados alemães. Isso significa que a Alemanha só foi capaz de superar seu Estado de subordinação quando, graças à unidade política e à industrialização, foi capaz de alcançar o "novo" umbral de poder, este umbral que a Grã-Bretanha havia estabelecido com a industrialização. A península itálica só foi capaz de superar seu estado de subordinação quando o reino de Piemonte e seus industriais geraram unidade e aprofundaram o processo de industrialização para ampliar seus mercados, um fato que permite ao novo Estado alcançar o umbral de poder que a Grã-Bretanha havia estabelecido. Na Ásia, só o Japão com a Revolução Meiji, é capaz de alcançar o umbral de poder e se converter na única nação asiática não sujeita à subordinação europeia.

No continente americano, começando com a "insubordinação fundadora" de 1775, à parte da estrutura hegemônica de poder, um Estado de dimensões pouco usuais começou a ser construído. Quando em 2 de fevereiro de 1848, pelo Tratado de Guadalupe-Hidalgo, o México se viu forçado a abandonar a ampla extensão de território entre Texas e Califórnia, os Estados Unidos se converteram em um Estado continental. Os territórios tomados do México junto com os territórios que os Estados Unidos havia ganho no Oregon e no sudoeste, tomou uma superfície de uns sete milhões e meio quilômetros quadrados, o que significava um território aproximadamente igual à extensão da Europa inteira. Mais tarde, com a vitória do norte industrial sobre o sul escravista e agrário, um novo e gigante Estado-Nação industrial avançou - o que gerou uma nova categoria de Estado: O Estado-Nação Industrial Continental - que progressivamente eleva o umbral de poder uma vez mais. Portanto, a partir da finalização plenamente industrial dos Estados Unidos em diante, se torna claro para outras unidades políticas do sistema internacional que só seria possível manter sua capacidade autônoma plena se fossem capazes de se tornar um Estado nacional industrial similar em superfício e população aos Estados Unidos, quer dizer, em superfície continental. Na Europa isso foi percebido prontamente por Alexis de Tocqueville, Bruno Bauer e Friedrich Ratzel. Na América Latina também o sentiram José Enrique Rodo, Manuel Ugarte, Rufino Blanco Fombona, Francisco García Calderón e José Vasconcelos.

A Construção do Poder Nacional e do Impulso Estatal

Para os Estados periféricos, sujeitos no sistema internacional a uma dupla subordinação, o objetivo estratégico fundamental não pode ser qualquer coisa além de alcançar o umbral de poder. Naqueles Estados, a construção do poder nacional requer um grande impulso do Estado para pôr em ação o que a força é. O impulso conduzido pelo Estado permite a mobilização de recursos potenciais que transforma a força em poder, a força em ação. [2] Em realidade, através do estudo profundo da história da política internacional se vê derivado que na origem do poder nacional dos principais Estados que conformam o sistema internacional sempre está presente um impulso conduzido pelo Estado. Isso é assim porque o poder nacional não emerge espontaneamente do simples desenvolvimento dos recursos nacionais. É mais, nos Estados periféricos, a necessidade do impulso estatal é visto para que seja incrementado porque os Estados que tem mais poder tendem a inibir a exploração dos potenciais subordinadores para que a relação de forças não seja alterada em seu detrimento. Recordemos com Pinheiro Guimarães que "as estruturas hegemônicas de poder tendem, por natureza, a alimentar sua própria perpetuação" (Pinheiro Guimarães, 2005:25).

Denominamos "impulso estatal" a todas as políticas realizadas por um Estado para criar ou incrementar os elementos que compõem o poder do Estado. De uma forma geral, podemos afirmar que dentro do conceito de impulso estatal caem todas as ações levadas a cabo por uma unidade política tendente a fortalecer, incitar, induzir ou estimular o desenvolvimento ou o fortalecimento de qualquer dos elementos que compõem o poder nacional. De um modo restritivo também podemos usar o conceito para nos referirmos a todas as ações levadas a cabo por um Estado periférico tendente a mover o início de forças necessárias para superar o estado de subordinação. O exemplo paradigmático dos que denominamos "impulso estatal" foi a ordenação de navegação inglesa de 1651 e suas sucessivas reformas [3].

Os conceitos de umbral de poder e impulso estatal encabeçam a análise dos elementos que compõem o poder estatal. O poder do Estado está composto por um grupo de elementos, tangíveis e intangíveis, que estão interligados. Este grupo de elementos está permanentemente afetado por mudanças tecnológicas e culturais. Para construir o poder é necessário se perguntar constantemente quais são os fatores que dão ao Estado o poder mínimo necessário para manter a autonomia, com a condição de que estes fatores sejam, como já afirmamos, permanentemente transformados pela evolução da tecnologia. Um dos aspectos que preserva a maior validade do pensamento da escola realista pode ser o reflexo de Hans Morgenthau nos elementos que compõem o poder nacional. Para Morgenthau, existem fatores "relativamente estáveis" que compõem o poder estatal, tais como o elemento geográfico e os recursos naturais, e outros que se podem estimar como "dinâmicos", tais como população, forças armadas ou capacidade tecnológica.

Podemos dizer que Morgenthau concebe o poder deu ma nação como uma pirâmide egípcia composta de 10 níveis em que o fator geográfico se encontra na base. No segundo nível a possibilidade de garantir a própria comida. No terceiro, os materiais raros que se tem. No quarto, a produção industrial. No quinto, a infraestrutura militar. No sexto, o tamanho e qualidade da população estatal. Os níveis sétimo e oitavo estão compostos pelo caráter nacional e moral respectivamente. O nono, da diplomacia estatal - que Morgenthau entende em um sentido amplo - e, quando a pirâmide não está truncada, o cume está habitado pela personalidade de um grande homem, um homem de Estado, como o Cardeal Richelieu, George Washington ou Charles de Gaulle. [4]

Visto em perspectiva e à distância, a pirâmide de Morgenthau parece mais sólida, forte e impenetrável quanto mais importantes são os fatores materiais, os elementos tangíveis de coisas tais como o tamanho da população. Não obstante, uma vez que o viajante se aproxima da fortaleza e penetra na estrutura da pirâmide, é apreciável que sua consistência depende menos dos fatores tangíveis que dos intangíveis, tal como a moral e o caráter nacional. Refletindo sobre os fatores tangíveis e intangíveis que compreendem o poder nacional, Friedrich List afirmou que: "É difícil dizer se as forças materiais influenciam as espirituais mais que o contrário, e de modo análogo em relação aos indivíduos e forças sociais. Mas o que é certo é que alguns tanto quanto outros são influenciados de forma recíproca e poderosa, de tal modo que o crescimento de um provoca o crescimento dos outros e a decadência de um está sempre seguida pela dos outros" (List, 1955:59). O próprio List, quando analisa o poder nacional da Grã-Bretanha, pergunta a si mesmo:

"Quem pode dizer que parte desses resultados favoráveis corresponde à constituição e ao espírito nacional inglês, que outros a sua situação geográfica e circunstâncias prévias, e quais quiçá à oportunidade, à sorte ou à fortuna?" (List, 1955: 60).

As Correntes do Poder

Os elementos do poder não são fatores estáticos, situados em um tipo de mundo de ideias platônicas, mas sim elementos dinâmicos; a chuva da história pode, como o caso da água aplicada ao cimento, dissolvê-lo e solidificá-lo, mas acima de tudo transformá-lo. Assim Morgenthau adverte quando afirma:

"As mudanças diárias, tão pequenas quanto inapreciáveis como se pode ver no princípio, influenciam os fatores que afetam a formação do poder nacional, acrescentando um pouco de força de um lado e erodindo um pouco de poder do outro... Todos os fatores que mencionamos, com a exceção dos geográficos, se encontram em constante movimento, influenciando uns aos outros e recebendo ao mesmo tempo a influência imprevisível da natureza e das pessoas. Juntos então compõem o atual poder nacional, fluindo lentamente e às vezes alcançando um grande caudal por séculos, como no caso da Inglaterra, ou piorando de repente e caindo abruptamente desde sua crista, como no caso da Alemanha, ou movendo-se lentamente e enfrentando as incertezas do futuro, como no caso dos EUA".

"Desenhar o curso dessa corrente e dos diferentes afluentes que o compõem e prever as mudanças de direção e velocidade, essa é a tarefa ideal do observador de política internacional". (Morgenthau, 198:193)

Agora então, como desenhar o curso do poder mundial atual? Como se pode prever as mudanças na direção e velocidade? Há um método que exista e que nos permitiria conhecer onde se encabeça o poder atual? Como se pode detectar, sob a superfície das atuais relações de poder, os desenvolvimentos germinais do futuro? É peculiar que, para responder a essas questões, um pensador tal como Morgenthau confiou mais na "intuição" e na "imaginação criativa" do que na razão pura. Para Morgenthau, a avaliação de fatores de poder no presente e no futuro é sempre uma tarefa ideal que quando é completada com êxito, constrói "a realização intelectual suprema" do analista político internacional. Como uma tarefa ideal, Morgenthau adverte que nunca será perfeito, precisamente porque a natureza e o homem são imperfeitos, elementos imprevisíveis, fatores que não podem ser conhecidos com exatidão e que tornam os cálculos de avaliação sempre imprecisos. [5] Não obstante, ainda que essa tarefa ideal seja um "impossível" factual, ao mesmo tempo é possível se aproximar a ela. Morgenthau encontra o início da solução para resolver o problema da avaliação relativa do poder das nações no presente e no futuro mediante a utilização da "imaginação criativa", consistente na combinação de conhecimento do que está com os "bons instintos", com intuições do que "poderia" ser. A imaginação criativa pode nos proporcionar um "mapa" que contém "tendências prováveis" futuras. Através dessa imaginação podemos "detectar, sob as atuais relações de poder, os gérmens do desenvolvimento rumo ao futuro" (Morgenthau, 1986: 199). Sem embargo, essa imaginação criativa, ele adverte que deve ser imune ao "fascínio que os fatores preponderantes de poder oferecem tão facilmente" [6]. Um erro no qual as elites políticas e intelectuais da América do Sul caem constantemente [7].

Desenvolvimento Econômico, Riqueza Nacional e Poder Nacional

Normalmente, as expressões "desenvolvimento econômico" ou mesmo "riqueza nacional" tendem a se confundir com "poder nacional". A segunda requer desenvolvimento econômico, mas o desenvolvimento econômico não garante, em si mesmo, o poder nacional. Para manter os Estados periféricos em uma situação de subordinação permanente na que estão - e a elite subordinada ideologicamente repete sem críticas nos Estados periféricos - que o desenvolvimento da riqueza nacional é mais importante que a construção do poder nacional. Essa é, realmente, uma longa discussão. Em relação a isso, List afirmou inclusive em 1838, refletindo sobre o destino da Alemanha que era nessa época uma região periférica, subordinada e subdesenvolvida:

"O poder é mais importante que a riqueza; ainda assim, por que é mais importante? Porque o poder de uma nação é uma força capaz de iluminar novos recursos produtivos, porque as forças produtivas são similares a uma árvore cujos ramos são como a riqueza e porque a árvore que produz frutas sempre tem mais valor que a fruta mesma. O poder é mais importante que a riqueza, porque uma nação através do poder não só adquire novos recursos produtivos como também reafirma sua posse de riqueza nacional alcançada no passado, e porque a oposição do poder, que significa a indefensibilidade, faz com que coloquemos nas mãos daqueles que são mais poderosos do que nós, não só a riqueza como também nossa força produtiva, nossa cultura, nossa liberdade e até nossa independência enquanto nação, como nos ensina claramente a história das repúblicas italianas, da Liga Hanseática, da Bélgica, da Holanda, de Portugal e da Espanha"(List, 1955: 56)

Notas

[1] - Enquanto a Inglaterra desempenhou o papel principal no processo de industrialização desde a época de Elizabeth (1558-1603) - que deliberou em uma superioridade econômica e tecnológica que colocou as peças do "xadrez político" em suas mãos em uma escala planetária - a Espanha foi incapaz de se industrializar. A miragem do ouro americano entorpeceu a economia espanhola. Tornou-se mais fácil comprar bens no exterior do que fabricá-los no país. A Espanha negligenciou, do império Inca em diante, a produção de manufaturas, a verdadeira fonte de riqueza e poder. Esta é a situação que explica que o ouro americano teria atravessado a Espanha apenas porque, de fato, rae direcionado aos países em que esse país comprou seus produtos manufaturados. Infelizmente para a Espanha, o influxo de metais preciosos começou uma verdadeira espiral inflacionária que, uma vez que era incapaz de conter, causou uma grave crise que atingiu a população inteira, o que na época levou à reação doa fuga em massa para o Novo Mundo, um êxodo que empobreceu ainda mais o reino ibérico. Assim, enfraqueceu-se na Espanha, um dos fatores que dão poder a qualquer Estado: a população. A emigração em massa despojou a Espanha, que entre 1600 e 1750 perdeu cerca de 4 milhões de habitantes. Em um período de um século e meio, sua população caiu de 12 para 8 milhões de habitantes. Paradoxalmente, as riquezas da América arruinaram a Espanha, que construiu sua própria vulnerabilidade estratégica. O despovoamento e a falta de uma política econômica adequada, não ter sido capaz de subir no trem da revolução industrial, e foi deixado para trás economicamente e tecnologicamente, um atraso que mal começou a avançar timidamente durante séculos até depois da Segunda Guerra Mundial. Para mais informações, veja Barbara Stein e Stanley Stein (1970, 2002).

[2] - Em um sentido físico, Raymond Aron (1984) argumenta que um homem forte é aquele que, graças ao seu peso e constituição física, possui os meios para resistir a uma prova de força, uma agressão ou superação de outros. No entanto, ele avisa sagazmente que a força física não é nada sem a esperteza, sem vontade, sem inteligência. Na área das relações internacionais, é necessário distinguir entre a força no poder e a força através do poder na ação; a mobilização é determinada pela capacidade e pela vontade, o que significa que, pela capacidade e vontade da população (especialmente na elite governante) de se mover à ação do que ainda é força.

[3] - Em agosto de 1651, o Parlamento inglês aprovou a portaria de navegação sob a qual as mercadoras só poderiam ser importados para a Inglaterra em embarcações inglesas sob comando inglês e em que três quartos da tripulação fossem marinheiros ingleses. A portaria também estabeleceu que, na Inglaterra, só era permitido importar diretamente do seu local de origem. Através desta lei, a indústria naval inglesa recebeu um enorme impulso estatal. Os comerciantes ingleses, obrigados a tomar provisões para si, deram um impulso à construção naval tão importante que a marinha britânica logo se tornou o principal porto do mundo.

[4] - "Que poder veio do poder da França", pergunta Morgenthau (1986: 179), "sem a habilidade de Richelieu, Mazarino e Talleyrand? O que teria sido do poder alemão sem Bismarck? Do poder italiano sem Cayour? Quanto deve o poder da jovem República dos Estados Unidos a Franklin, a Jefferson, a Madison, a Jay, a Adams, a seus embaixadores e secretários de Estado?".

[5] - Morgenthau (1986: 194) afirma: "Como toda tarefa ideal, é algo impossível de fazer. Mesmo que os líderes da política externa de uma nação possuíssem sabedoria superior e julgamento infalível e pudessem chegar à fonte de informação mais completa e confiável, sempre haverá algum fator desconhecido que tornará os cálculos imprecisos. Eles nunca poderiam prevenir desastres naturais [...] produzidos por pessoas [...] ou invenções e descobertas, o surgimento e desaparecimento de líderes intelectuais, militares e políticos, os pensamentos e ações de tais líderes, para não mencionar os imponderáveis da moralidade nacional. Para resumir, mesmo as pessoas mais sábias e mais informadas devem enfrentar as contingências da história e da natureza".

[6] - "O que o observador da política internacional precisa para minimizar os erros inevitáveis em um dos cálculos do poder é a mente criativa imune ao fascínio que é transmitida pelos fatores preponderantes do momento, capaz de deixar de lado as superstições, uma imaginação aberta às possibilidades de mudança oferecidas pela dinâmica da história. Uma imaginação criativa desse tipo seria capaz dessa conquista suprema, que consiste em detectar o germe dos desenvolvimentos futuros abaixo da superfície das relações de poder atuais, combinando o conhecimento do que é com o sentimento interior do que pode ser possível e condensar todos esses fatos, sintomas e problemas em um mapa de prováveis tendências futuras que não têm muita variação do que realmente ocorrerá"(Morgenthau 1986: 199).

[7] - Excusado das classes intelectuais e políticas da América do Sul, é necessário reconhecer que, apesar de todas as especulações teóricas que podemos fazer sobre o poder, muitos exemplos históricos nos permitem afirmar que, quando passamos da teoria à realidade, é sempre difícil explicar o poder, mas ainda mais quando se atravessa um estágio de transição, como o que atravessou o sistema internacional após o colapso do Muro de Berlim e a "evaporação" da antiga União Soviética, ou quando experimentamos uma revolução tecnológica de dimensões históricas. Naqueles momentos de perdas, como os modernizadores ou os revolucionários não conseguem entender a verdadeira revolução que está sendo produzida e como ela influencia e modifica todos os fatores de poder. Entre esses revolucionários, não podemos enxergar Nikita Khrushchev e os marxistas soviéticos - quando eles propuseram derrotar os Estados Unidos pela maior produção de aço, semeando mais e mais chaminés em toda a União Soviética quando a corrida da industrialização já havia acabado porque o mundo já havia passado ao pós-industrialismo - mas no exemplo paradigmático dos revolucionários franceses que acreditavam que o poder nacional da Inglaterra não era construído em bases sólidas, como o da França, porque não estava baseado na agricultura, uma atividade que os franceses acreditavam que contribuía não só para a auto-provisão de alimentos, mas também para um maior caráter nacional. De acordo com a curiosa interpretação dos revolucionários franceses, a atividade industrial deu origem a todas as corrupções e fraquezas imagináveis, pulverizando o caráter nacional das pessoas que a adotaram: "Entre os muitos equívocos dos revolucionários franceses, nenhum foi mais insidioso que a ideia de que a riqueza e o poder ingleses estavam apoiados em uma base artificial. Essa crença errônea na fraqueza da Inglaterra veio da doutrina que os economistas e fisiocratas ensinaram no final do século 18, assinalando que o comércio não era um produtor de riqueza por si só, pois a única coisa que fazia era promover distribuição dos produtos da terra, mas sim que a agricultura era a única fonte de riqueza e prosperidade. Desse modo, intensificaram a agricultura ao custo do comércio e dos bens manufaturados, e o curso da revolução, que supervisionava assuntos mais agrários, seguindo a mesma direção. Robespierre e Saint Just nunca se cansaram de contrastar as virtudes de uma vida pastoral simples com as corrupções e fraquezas causadas pelo comércio internacional; e quando, no começo de 1793, o jacobinismo zeloso envolveu a jovem republica contra a Inglaterra, os porta-vozes da convenção profetizaram com confiança a ruína da Cartago moderna"(McLuhan 1985: 67).

Bibliografia

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